Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7429/21.9T8LRS-B.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS NO RECURSO
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESIDÊNCIA HABITUAL
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O Regulamento (CE) nº 2201/2003 contém, entre o mais, regras diretas de competência internacional quanto às matérias nele abrangidas, estabelecendo, como regra geral, no n.º 1 do seu art. 8.º, a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança resida habitualmente à data em que seja instaurado processo relativo a responsabilidade parental.

2. O Regulamento não define “residência habitual”, pelo que o conceito deve ser interpretado autonomamente como o local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que, para efeitos de determinação dessa residência, é necessário ter em conta todos os elementos de facto dela constitutivos.

3. Acresce que não remetendo o Regulamento expressamente para o direito interno dos Estados-Membros, a determinação daquele conceito há-de ser feita à luz das disposições e do objetivo do próprio Regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando décimo segundo, daí ressaltando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.

4. Para que o superior interesse da criança seja respeitado da melhor forma, a “residência habitual” da criança deve corresponder ao lugar que traduz uma certa integração da mesma num ambiente social e familiar, devendo, para concretização do conceito à luz de cada caso concreto, ter-se em consideração a sua presença física num Estado-Membro, e ainda outros fatores suplementares indiciadores de que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional, como por exemplo: - a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro, assim como da mudança; - a nacionalidade da criança; - a sua idade; - os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado-Membro; - o lugar e condições de escolarização da criança; - a intenção manifestada pelos progenitores, através de determinados fatores, como a ocupação profissional.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


Questão prévia:

Na motivação do recurso afirma o apelante o seguinte: «Desde logo: a progenitora sempre trabalhou, conforme documento n.º 1 que se junta.
E, conforme se pode verificar, quando este processo deu entrada, a requerida ainda trabalhava para a empresa francesa, sua empregadora, o que não pode deixar de demonstrar que habitava regularmente em França.»
E, sem qualquer outra referência, com o requerimento de interposição de recurso junta um documento datado de 31 de agosto de 2021, escrito em língua francesa, intitulado «Certificat de Travail».
Dispõe o art. 134.º, n.º 1, que «quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte.»
Seria caso, para ordenar a junção aos autos de tradução idónea daquele documento.
Seria, mas não é, pois é inadmissível a junção aos autos de tal documento com a alegação de recurso.
E por mais do que uma razão!
O direito português consagra o modelo de recurso de reponderação, o modelo de apelação restrita, o que significa que a apelação não visa o reexame, sem limites da causa julgada em 1.ª instância, mas apenas a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que encontrava o tribunal recorrido no momento da sua prolação. Por conseguinte, a lei só permite a utilização de documentos supervenientes quanto a factos já alegados que não tenham sido dados como provados por falta do documento.
Tal como é salientado por João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, «o direito português consagra o modelo de recurso de reponderação, pelo que a lei só permite a utilização de documentos supervenientes quanto a factos já alegados que não tenham sido dados como provados por falta do documento.»[1].
Tal não é, manifestamente, o que ocorre no caso concreto!
Só em sede de recurso o apelante vem alegar que «a progenitora sempre trabalhou (...)» e que «(...) quando este processo deu entrada, a requerida ainda trabalhava para a empresa francesa, sua empregadora, o que não pode deixar de demonstrar que habitava regularmente em França.»
A outra premissa que importa considerar, afirmam os referidos Autores, «é a de que, em consonância com o modelo de reponderação, também para os tribunais de recurso vale o disposto no art. 611.º, n.º 1: a decisão do recurso deve refletir a situação de facto existente no momento do encerramento da discussão em 1.ª instância»[2], no caso concreto, no momento da decisão que julgou improcedente a exceção de incompetência internacional do tribunal a quo.
Daqui resultaria, sem necessidade de mais considerandos, a inadmissibilidade da junção do documento apresentado pelo apelante com a alegação de recurso.
Nos termos do art. 651.º, n.º 1, «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.»
Dispõe, por sua vez, o art. 425.º que «depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.»
Resulta da conjugação dos dois citados preceitos que a junção de documentos na fase do recurso só é admissível em duas situações, a saber:
a)-por se ter tornado necessária a junção em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância;
b)-por não ter sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, no caso, até à prolação da decisão sobre a questão da incompetência internacional do tribunal a quo.
Não está em causa a situação referida em b), pois o documento junto pelo apelante em sede de recurso é datado de 31 de agosto de 2021, cinco dias depois do Ministério Público ter instaurado a presente ação, e vários meses antes da decisão prolação da decisão recorrida.
Também não é, manifestamente, caso da junção dos documentos se tornou necessária em virtude da prolação da decisão recorrida.
Conforme referem Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, no caso da junção de documentos em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância, «(...) a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando espera obter ganho da causa) e pretender, com tal fundamento juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª instância.
O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes da decisão proferida.»[3].
Ainda de acordo com Antunes Varela, «a junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos de impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1.ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou a dedução da defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.
(...)
A decisão da 1.ª instância pode, por isso, criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se funde em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar (...).»[4].
Não é, como se referiu, manifestamente, o caso da situação sub judice.
A propósito da necessidade do documento, João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, exemplificam: «Por exemplo: a 1.ª instância deu como provado determinado facto que exige prova documental, sem que o documento tivesse sido junto; o recorrido pode juntar o documento, de molde a evitar a procedência do recurso. Fora desta hipótese, atendendo à proibição das decisões surpresa (art. 3.º, n.º 3), o caso é de verificação rara, ou melhor, só se pode verificar em violação dessa proibição, como sucede, por exemplo, quando a 1.ª instância, fazendo uso dos poderes instrutórios (art. 436.º, n.º 1), apoia a sus decisão em documento não conhecido das partes.»[5].
Não se verifica, pois, no caso concreto, nenhuma das situações em que a lei permite a junção de documentos na fase do recurso.
Por isso, não se admite a junção aos autos dos documentos apresentados com as alegações de recurso do apelante, determinando-se o seu desentranhamento dos autos e a sua restituição à ilustre advogada sua apresentante.
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I– RELATÓRIO:
O Ministério Público instaurou, em representação da menor Leonor, ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, contra:
- MC, solteira, residente na Rua ____, Loures; e
- LF, solteiro, residente em Route ____, França,
alegando, em suma, que a Leonor é filha dos requeridos, os quais viverem juntos em França desde finais de 2016 até 29 de julho de 2021, altura em que se separaram.
A Leonor reside com a mãe, e os progenitores não estão de acordo quanto à forma de regulação das responsabilidades parentais.
Corre termos no DIAP de Loures um processo de inquérito por crime de violência doméstica, em que é ofendida a progenitora, e suspeito, o progenitor.
Conclui requerendo a realização de uma Conferência de Pais, seguindo-se os demais termos até final.
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No dia 7 de outubro de 2021 realizou-se a Conferência de Pais, na qual foi provisoriamente fixado o seguinte regime provisório quanto ao exercício das responsabilidades parentais da Leonor:
«Residência e responsabilidades parentais
1.Leonor fica entregue à guarda e cuidados da mãe, com quem esta habitualmente reside, a qual exercerá as responsabilidades parentais quanto aos atos da vida corrente, sendo as responsabilidades parentais exercidas por ambos os progenitores quanto aos atos de particular importância.
Regime de Convívios
2.O pai poderá estar com a criança sempre que quiser e puder, quando estiver em Portugal, mediante contacto prévio com a progenitora, sem prejuízo dos horários das actividades escolares e de repouso da mesma.
3.No período até 17 de Outubro de 2021, data até à qual, previsivelmente, o pai estará em Portugal, os convívios ocorrerão da seguinte forma:
a)- A criança conviverá com o pai na tarde de hoje entre as 15:00 horas e as 18:00 horas, devendo para o efeito a criança ser entregue pela mãe ou familiar próximo, na casa desta, e o pai entregá-la no mesmo local.
b)- a criança conviverá com o pai nos dias 09 e 10 de Outubro, indo para o efeito o pai buscar a filha a casa da mãe no primeiro dia, pelas 10:00 horas, entregando-a, no seguinte, no mesmo local, pelas 19:00 horas.
c)- a criança conviverá com o pai nos dias 13 e 14 de Outubro, indo para o efeito o pai buscar a filha a casa da mãe no primeiro dia, pelas 10:00 horas, entregando-a, no seguinte, no mesmo local pelas 19:00 horas.
d)- a criança conviverá com o pai nos dias 15 a 17 de Outubro, indo para o efeito o pai buscar a filha a casa da mãe, no primeiro dia, pelas 10:00 horas entregando-a no último, na casa da mãe, pelas 14:00 horas.
4.Nas subsequentes deslocações do pai a Portugal, que não coincidam com o período de Natal e Páscoa, a criança passará com o mesmo dois dias, sendo esse período entre as 10:00 horas do primeiro dia e as 19:00 horas do terceiro dia (incluindo duas noites pernoita), comunicando para o efeito o pai à mãe com a antecedência de uma semana qual o período em que se encontrará em Portugal, de forma a que o convívio se inicie ao dia seguinte ao chegado do pai a território nacional.
Alimentos
5.O progenitor contribuíra, a título de pensão de alimentos para o menor, com a quantia de 130€ (cento e trinta euros) mensais, por transferência /deposito bancário para a conta da mãe, com o IBAN PT50 ____ até ao dia 8 de cada mês.
Não se fixa a parte variável das despesas extraordinárias por ter sido considerado tal valor na prestação alimentícia acima acordada atenta a residência do progenitor no estrangeiro.»
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No dia 28 de dezembro de 2021 a progenitora apresentou nos autos um requerimento com o seguinte teor:
«1.º-Não se encontram ainda reguladas, a título definitivo, as responsabilidades parentais quanto à menor Leonor, atualmente com um ano de idade.
2.º-Sem embargo do iter processual, encontram-se ainda em curso negociações entre as mandatárias dos progenitores com vista a tal finalidade.
Sucede que,
3.º-Houve a necessidade de os progenitores estipularem um regime provisório para a quadra festiva do Natal e Ano Novo, o que foi conseguido por acordo entre ambos, tendo os mesmos consentido nos seguintes termos:
- O Pai iria buscar a menor no dia 26 de Dezembro pelas 10h00 e entregaria a menor à mãe pelas 19h00 desse dia;
- No dia 28 de Dezembro o Pai iria buscar a Menor à Casa da Mãe e entregaria a Menor à mãe no dia 29 de Dezembro pelas 17h00;
- No dia 31 de Dezembro o Pai iria buscar a Menor à Casa da Mãe pelas 10h00 e entregaria a Menor à Mãe no dia 2 de Janeiro 2022, pelas 17h00.
4.º- A verdade é que o Pai da Menor, LF, foi buscar esta à casa da Progenitora no dia 26 de Dezembro e, até à data, não entregou a criança, como acordado de boa-fé.
5.º- A progenitora tem tentado, sem sucesso, ligar ao Pai da Criança que mantém o telemóvel desligado.
6.º- A progenitora encontra-se muito preocupada, pois trata-se de um bebé de um ano de idade que saiu de casa no dia 26 de Dezembro apenas com a roupa do corpo e uma pequena mochila com fraldas e um biberon de água.
7.º- No dia em que levou a criança, o Pai da Menor terá dito à Progenitora que devolveria a criança apenas quando ele entendesse.
8.º-A Progenitora tem neste momento a responsabilidade parental e a guarda da Menor a si atribuída, porém, entendeu que não devia privar o Pai de passar uma época festiva com a Menor Leonor.
9.º- É o Pai da Menor que com o seu comportamento, incumpriu com o estipulado, ainda que a título provisório, e impossibilita a Mãe de manter qualquer contacto com a filha ou com o Pai desta.
10.º-O Progenitor nem sequer faculta uma única informação acerca do estado da Menor Leonor à Progenitora ou a informa das suas pretensões de entrega como já o deveria ter feito.
11.º-Recorde-se que o Progenitor tem a sua residência em França e já por diversas vezes ameaçou a Progenitora que “entrego a minha filha quando eu quiser” (SIC).
Assim sendo, vem, mui respeitosamente, requer a V.Ex.ª se digne oficiar o Órgão de Polícia Criminal no sentido de proceder à entrega da Menor Leonor à mãe MC, sendo que se indica a seguinte morada onde provavelmente a criança se encontra:
1 - Rua ____, n.º 140, ____, Castro Daire;
2 – Rua ____, n.º 70, _____, Castro Daire;
(...).»
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O Ministério Público requereu o seguinte:
«A situação reportada pela progenitora é intolerável, pois priva a criança do convívio com os dois progenitores, e potencio a já elevada conflituosidade entre ambos.
Assim, de forma a proteger a criança e a permitir que conviva com ambos os progenitores, promovo:
a)- Para evitar diligências inúteis se contate telefonicamente a mãe e o progenitor a fim de aferir se a situação reportada se mantem;
- Em caso negativo, ou seja, se a criança já foi entregue à mãe ou se os progenitores, entretanto, acordaram um regime de permanência diferente, aguardem os autos as diligências já requeridas;
- Em caso afirmativo, ou seja, se o pai mantem a recusa a entrega à progenitora da criança, como por eles acordado, se solicite ao OPC territorialmente competente que averigue pelo paradeiro da mesma e, localizada que seja, se diligencie pela entrega à progenitora que, para o efeito, a deverá ir recolher no local onde a mesma se encontrar.»
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A senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho, datado de 29 de dezembro de 2021:
«Diligencie nos termos promovidos, passando-se os competentes mandados se necessário.
Sem prejuízo do acima determinado, a fim de obviar à intervenção do OPC, informe o progenitor, por contacto telefónico e também na pessoa da sua Ilustre Mandatária, lavrando cota em conformidade, para, nas próximas cinco horas, entregar de imediato a criança.»
***

Na sequência desse despacho o progenitor veio apresentar requerimento de cuja parte final consta o seguinte:
«(...) requer-se seja admitido que a Menor permaneça com o Pai durante o este período da passagem de ano, tendo em conta que passou o Natal com a Mãe, devendo o Pai entregar a Menor à Mãe até ao dia 8 de janeiro em casa da mãe.»
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No dia 30 de dezembro de 2021 a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho:
«(...)
Alega a progenitora que ambos os progenitores acordaram informalmente quanto aos convívios de Natal e Ano Novo de Leonor com os pais, que: “O Pai iria buscar a criança no dia 26 de Dezembro pelas 10h00 e entregaria a mesma à mãe pelas 19h00 desse dia; No dia 28 de Dezembro, o Pai iria buscar criança à Casa da Mãe e entregá-la-ia no dia 29 de Dezembro pelas 17h00;
No dia 31 de Dezembro o Pai iria buscar a Menor à Casa da Mãe pelas 10h00 e entregaria a Menor à Mãe no dia 2 de Janeiro 2022, pelas 17h00”.
Mais sustenta que o progenitor foi buscar a criança a sua casa no dia 26 de Dezembro e, até à data, não a entregou como acordado.
No exercício do contraditório, o progenitor alega ter sido acordado entre ambos que a criança permaneceria junto de si desde o dia 26 de Dezembro até 8 de Janeiro, data em que o mesmo regressará a França onde reside.
Há a considerar, no caso e tal como se ponderou a propósito da fixação do regime provisório, o desacordo dos pais, a circunstância da criança não se encontrar a conviver com o pai com frequência, neste caso e conforme o mesmo reconhece desde Outubro, e a tenra idade da criança, de um ano e cinco meses, cuja figura primordial de referência afectiva é a mãe que deixou de trabalhar desde o seu nascimento, conforme resulta das declarações prestadas em diligência.
No caso, e uma vez mais como se ponderou oportunamente, a tenra idade da criança desaconselha, na falta de acordo entre os pais, a privação de contactos com a mãe por longos períodos.
Assim, e considerando, por um lado, que a criança se encontra aos cuidados do pai desde 26 de Dezembro, sem contactos com a mãe, o que se demonstra contrário aos seus interesses, e, por outro, que a mesma deve conviver com o pai e família paterna, designadamente no período festivo em curso, determino que o progenitor entregue a criança à progenitora, em casa desta, no dia 1 de Janeiro, às 18.00 horas.»
***

No dia 3 de janeiro de 2022 a progenitora apresentou requerimento com o seguinte teor:
«1– Conforme douto despacho que antecede, o Progenitor da Menor Leonor não entregou a menina à mãe no dia 1 de Janeiro, às 18h00.
2– No dia 2 de Janeiro 2022, a progenitora deslocou-se à residência dos avós paternos, sita em M, onde esta se encontra, acompanhada da GNR de Castro D’Aire, sendo que, mesmo assim, o Pai da Menor recusou-se a entregar a Menor à Mãe.
3– O pai da Menor comunicou à Progenitora que só levaria a Menor se existissem mandados de entrega emitidos pelo Tribunal.
4– A Progenitora sofreu sérias ameaças por parte do Progenitor da Menor e do seu avô Paterno e teme que o Progenitor possa abandonar o País para França, local onde reside, levando com ele a Menor.
5– A Requerida encontra-se desesperada com a situação acima descrita, que se arrasta desde dia 26 de Dezembro 2021, pois desconhece as condições reais em que a filha se encontra, criança que tem apenas 1 ano e meio de idade.
Termos em que requer a V.Ex.ª se digne autorizar a emissão dos mandatos de entrega da Menor Leonor à sua Progenitora e que se oficie de imediato a GNR de Castro D’Aire para o efeito.»
***

No mesmo dia o progenitor apesentou requerimento que conclui assim:
«A Menor encontra-se aos cuidados diários dos avós maternos e não da Mãe;
A Mãe da Menor não tem casa própria vivendo com os seus pais, ao contrário do Pai da Menor que tem casa própria e vive sozinho, tendo uma escola perto de casa com disponibilidade para receber a Leonor;
O Pai tem disponibilidade para trazer a Leonor à Mãe com regularidade que o Tribunal entender por conveniente mais se comprometendo a fazer videochamadas diariamente, sendo que o superior interesse da criança se encontra assegurado se a menor ficar provisoriamente à guarda do seu Pai.
Os pais da Leonor concordaram entre si que a Leonor passaria com o Pai período de férias de Natal entre o dia 26/12 e 08/01, tendo reiterado esse acordo no dia de ano novo.
Nestes termos e nos demais que V. Exa. doutamente suprirá requer-se:
Alteração do regime provisório, devendo a Menor viver regularmente com o Pai, sendo que este se compromete a levá-la à Mãe durante o mês de fevereiro em data a combinar entre ambos, ou noutra data que o Tribunal considerar mais oportuna.
Sem prescindir:
Deve o Pai poder ficar com a filha até ao próximo dia 8, mantendo a regularidade dos contactos telefónicos com a Mãe.»
***

No dia seguinte, a 4 de janeiro de 2022, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho:
«Dos elementos juntos pelo progenitor como documentos 1 a 6 não resulta evidenciado qualquer acordo entre os progenitores, reflectindo os mesmos uma série de chamadas não atendidas, o envio de duas fotografias e o pedido na progenitora para ver a filha por videochamada.
Ademais, tendo sido proferida decisão judicial, caberia às partes fazer chegar qualquer acordo ao tribunal a fim de o mesmo aquilatar se aquele satisfaz os interesses da criança.
É, portanto, de concluir que o progenitor não entregou voluntariamente a criança à progenitora, incumprindo o regime provisório e desobedecendo à origem judicial da qual foi notificado.
Em consequência, a emissão dos mandatos para entrega da criança à progenitora, a cumprir pelo cometente OCP em articulação com os progenitores.
No que concerne à requerida alteração do regime provisório fixado e inquirições requeridas, pronunciar-nos-emos oportunamente, designadamente junta que seja a informação a elaborar pelo ISS.
(...).»
***

No dia 5 de janeiro de 2022 a progenitora apresentou requerimento com o seguinte teor:
«1–Conforme despacho que antecede, constante a fls.(…), proferido no dia de ontem, dia 4 de Janeiro, V.Ex.ª ordenou a emissão de mandatos para entrega da Menor Leonor à sua Progenitora, mandados a serem cumpridos pelo O.P.C. competente, in casu, a GNR de Castro D’Aire.
2–Em articulação com a GNR de Castro D’Aire, no dia de ontem, a Progenitora deslocou-se a Castro D’Aire tendo lá chegado por volta das 19h00, tendo sido informada pela GNR que o Progenitor se havia ausentado de Portugal.
3–De imediato a Progenitora ligou ao Pai da Menina que manteve o telemóvel desligado até por volta das 21h00.
4–A GNR conseguiu falar com a mãe do Progenitor da Menor, tendo aconselhado que a mesma falasse com o filho no sentido deste se apresentar no Posto da GNR com a Menor, o mais depressa possível.
5– O Progenitor da Menor efetuou ligação telefónica à GNR por volta das 21h00 tendo informado os militares da GNR que se encontrava em França.
6–Os militares da GNR solicitaram ao Progenitor que lhe fizessem uma videochamada, tendo os mesmo constatado que, naquele momento, o Progenitor se encontrava em Espanha com a Menor.
7–O Progenitor, ligou no dia de hoje, pelas 11h00, a informar a Progenitora que se encontra em França com a Menor.
8–O Progenitor enviou, inclusivamente, uma foto à Progenitora da Criança, onde se contata que ambos se encontravam numa Bomba de Gasolina Francesa (...).
9–Desconhece a Progenitora da Menor, neste momento, qual o paradeiro exacto do Progenitor e da Menor Leonor,
Até porque,
10–A progenitora sabe que o Progenitor tem uma irmã que vive em Espanha, que o mesmo reside em França e ocasionalmente realiza trabalhos na Suíça, podendo, a qualquer momento se deslocar para qualquer parte.
(...)
13–Teme a Progenitora que o Progenitor tenha fugido com a Menor no sentido de não mais a entregar.
(...)
Termos em que requer a V.Ex.ª se digne, muito respeitosamente:
- autorizar a emissão dos mandados de detenção europeus ao Progenitor da Menor Leonor, LF, no sentido de se obter a entrega da Menor à Progenitora;
E,
- se oficie a GNR de Castro D’Aire no sentido de obter auto da diligência do dia 4 de Janeiro 2022, com identificação dos militares que acompanharam as diligências supra descritas.»
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No dia 6 de janeiro de 2022 o Ministério Público promoveu o seguinte:
«No seu requerimento de 5-1-2022 (refª 11786355) veio a mãe da criança Leonor requerer que se autorizasse a emissão dos mandados de detenção europeus ao Progenitor da Menor Leonor, LF, no sentido de se obter a entrega da Menor à Progenitora.
Em suma, pretende a requerente que lhe seja entregue a filha, cuja guarda se lhe encontra provisoriamente entregue.
Ora, o recurso a mandados de detenção internacionais do pai da criança não serão o meio adequado a tanto pois que tais mandados estão previstos no âmbito do processo criminal e visa nos termos do art. 1º, nº1 da Lei 65/2003 de 23-8 a “detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade”.
Ainda que tais mandados, em mero juízo abstracto, possam ser emitidos no âmbito de um processo crime, nunca a detenção do pai da criança, poderia implicar a entrega da criança à mãe.
Para o efeito, estando a criança no estrangeiro, terá de recorrer-se aos mecanismos previsto no direito comunitário/tratados internacionais, no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria de responsabilidade parental.
Acresce que, no âmbito da jurisdição de família e menores, ao contrário do que sucede quando as crianças estão em Portugal não pode o juiz português emitir um “mandado” a autoridades estrangeiras para que a criança regresse a Portugal.
Deverá ser a pessoa que tem, por referência, à situação concreta dos autos, a guarda da criança a requerê-la nos termos do Regulamento nº 2201/2003 e da Convenção Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, junto da autoridade central competente, nos termos do art. 8º do mencionado Regulamento e 4º da mencionada Convenção sendo que os tribunais apenas têm intervenção quando pertençam ao Estado requerido, o qual será aquele para onde a criança tiver sido ilicitamente deslocada.
Ora, no caso concreto, o Estado requerido não é Portugal, pelo que deverá ser a requerente a dinamizar o procedimento perante a autoridade central e não estes autos, tudo sem prejuízo de poder/dever instruir o pedido com a cópia certificada da decisão provisória.
Mais se afigura que, ao contrário do alegado no 2º requerimento de 5-1-2022 (Refª 1187961) o nº 6 do art. 11º do Regulamento apenas seria aplicável ao caso da Leonor caso as autoridades do país onde se encontrar, caso seja requerido pela mãe o regresso, venha a decidir pela retenção da criança.
Assim sendo, promovo se indefira o requerido pela mãe nos requerimentos de 5-1-2021, na parte sobre a qual ainda não recaiu despacho.
*
Os autos indiciam que a Leonor quer a razão esteja com um ou com outro dos requeridos não está a ter a estabilidade que a sua idade exige nem a proximidade devida com a mãe que tem sido a sua figura de referência, devendo adaptar-se os convívios com o pai ao seu superior interesse e que passa por um regime que não possibilite diferendos entre os pais, não se afigurando, contudo, existir fundamento para que se defira a alteração do regime nos termos requeridos pelo pai, pelo afastamento entre mãe e filha.
No entanto, afigura-se, que, por ora, e desconhecendo-se se o pai entregará a filha à mãe neste fim de semana, se deve aguardar o seu decurso, pelo que promovo que, decorrido o mesmo, seja a requerida notificada para informar se a criança lhe foi entregue.»
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No dia 7 de janeiro de 2022 a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho:
«Vem a progenitora requerer a emissão de mandados de detenção europeu ao progenitor e bem assim que o tribunal observe o artigo 11.º, n.º 7, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro.
Conforme bem salientado pelo Ministério Público na antecedente promoção, os tribunais apenas têm intervenção quando pertençam ao Estado requerido, o qual será aquele para onde a criança tiver sido ilicitamente deslocado, o que não é caso.
Assim, terá de ser a formular o pedido de regresso da criança junto da autoridade central competente, nos termos citado artigo 11.º do Regulamento e da 8.º Convenção Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
No que concerne à requerida emissão de mandados, também como salientado pelo Ministério Público, os mesmos apenas têm lugar relativamente a pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade e, como não poderia deixar de ser, no respectivo processo (cf. 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto).
Ademais, também como apontado pelo Ministério Público, o cumprimento de tais mandados não teria como efeito automático, a entrega da criança à mãe.
Atento o exposto, indefere-se, por falta de fundamento legal, o requerido.
Decisão cautelar - Interdição de saída da criança do território nacional:
O Ministério Público interpôs a presente providência em Agosto de 2021, para regulação das responsabilidades parentais relativas a Leonor, nascida a 23-07-2020, contra a progenitora MC, residente em Portugal, e o progenitor LF, residente em França, invocando a separação dos pais, a falta de acordo entre os mesmos e a pendencia de inquérito criminal por crime de violência doméstica do qual é denunciante a mãe e denunciado o pai.
Realizada conferência de pais a 07-10-2021, ambos os progenitores invocaram serem vitimas de actos de violência doméstica, ambos pugnando para que a residência da criança fosse fixada junto de cada um deles.
Considerando o desacordo dos pais, a circunstância da criança não se encontrar a conviver com o pai desde Julho de 2021, a sua tenra idade, a desaconselha a privação de contactos por longos períodos com a mãe, sua figura primordial de referência, já que inclusivamente não exerce actividade profissional desde o nascimento da filha, e a residência do progenitor no estrangeiro, mas dentro do espaço Schengen, nos termos dos artigos 28.º e 38.º do RGPTC, regime quanto ao exercício das responsabilidades parentais nos termos do qual:
- A criança ficou entregue à guarda e cuidados da mãe, sendo as responsabilidades parentais exercidas por ambos os progenitores quanto aos actos de particular importância.
- Foi fixado regime livre de convívios da criança com o pai mediante contacto prévio com a progenitora.
- Foi fixado regime transitório de convívios, com vista à reaproximação gradual do pai à criança durante o mês de Outubro:
- Foi fixado regime e convívios com a duração de dois dias, por ocasião das deslocações do progenitor a Portugal não coincidentes com o período de Natal e Páscoa.
À data, entendeu-se que a especificidade destas datas festivas e contornos do relacionamento inter-parental aconselhava, na ausência de acordo entre os pais, a intervenção do tribunal em momento mais próximo a fim de permitir a avaliação da execução do regime provisório fixado.
Extrai-se, dos requerimentos apresentados pelos progenitores após essa data, que terão decidido acordar quanto à repartição dos tempos da criança no Natal e Passagem de Ano.
O que invocam, agora, é moldes diferentes em que tal acordo foi formulado alegando, cada um deles, o incumprimento do acordo informal alcançado.
Neste sentido, e tendo-se verificado um conflito inter-parental quanto às datas de entrega, cuja demora na resolução poderia causar prejuízo aos interesses da criança, entendeu-se ser de proferir decisão cautelar quanto a tal período, o que pode suceder a qualquer tempo sem necessidade de declaração expressa ou contraditório (cf. artigos 13.º e 28.º, n.º 1 e n.º 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
Em conformidade, determinou-se, pelos fundamentos exarados no respectivo despacho que o progenitor, com quem a criança reconhecidamente se encontrava desde dia 26, permaneceria com a filha até ao dia 1 de Janeiro, data em que a entregaria à mãe (cf. despacho de 30-12-2021).
De tal despacho foram os progenitores notificados, na pessoa das respectivas mandatárias, em 30-12-2021 (cf. Ref.ª 151046470/1).
Por requerimento de 03-01-2021, a progenitora informou não ter o progenitor entregue a criança.
Por requerimento da mesma data, este reconheceu não a ter entregue, invocando um acordo informal com a progenitora e requerendo a alteração do regime provisório. Sustentou que a residência da criança deve ser fixada unto de si uma vez que, de facto, a mesma encontra-se aos cuidados dos avós maternos e não da mãe.
Por despacho de 04-01-2021, determinou-se a emissão dos mandados para entrega da criança à progenitora porquanto, não só o progenitor não comprovou o referido acordo, mas, tendo sido proferida decisão judicial, qualquer acordo teria de passar pelo crivo do tribunal a fim de se quilatar se aquele satisfaz os interesses da criança.
Em consequência, determinou-se a emissão de mandados para entrega da criança à mãe.
Não se logrou o seu cumprimento, tendo o progenitor, levando consigo a criança, se ausentado da morada onde se encontrava para parte incerta.
Desconhece-se, em concreto, o paradeiro da criança já que o progenitor poderá deslocar-se livremente dentro no espaço Schengen.
Ora o estado dos autos não é de molde, ainda, a apurar da pretensão do progenitor para fixação da residência da criança junto de si que, de resto, implicaria a deslocação da mesma para França, estando pendente a realização de informação social a respeito do contexto vivencial da criança e progenitores. Ademais, o alegado pelo pai, no sentido de que a filha permanece aos cuidados dos avós, para além de não demonstrado, não consubstancia qualquer situação de perigo já que a mãe reside com aqueles e admitiu que, quando está a trabalhar (cf. acta de conferência de pais), são os mesmos que prestam cuidados à Leonor.
Os autos encontram-se, portanto, em fase embrionária, importando recolher os elementos necessários à prolação de decisão, mantendo este tribunal, ainda que a criança se encontre em França, competência para o efeito (cf. artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro).
Assim, dado o conflito inter-parental e residência pluri-estadual dos progenitores, importa manter, por ora, estabilizada a situação em que se encontram a criança, ou seja, neste país, sendo que a alteração de residência da mesma assume a natureza de questão de particular importância.
Desconhecendo-se o concreto paradeiro da criança, entende-se que se justifica a interdição de saída da criança de território nacional, a fim de permitir o apuramento das suas actuais circunstâncias de vida e o seu futuro desenvolvimento.
Pelo exposto, e nos termos do artigo 28.º do RGPTC, determina-se a interdição de saída de Leonor, nascida a 23-07-2020, de território nacional sem o acordo de ambos os pais ou prévia decisão judicial.
Comunique às competentes autoridades para difusão e SEF e, após, notifique.
Considerando as decisões judiciais de fixação de residência junto da mãe e de entrega da criança a esta no dia 1 de Janeiro, notifique o progenitor para, em 48 horas, indicar o paradeiro de Leonor.»
***

No dia 19 de janeiro de 2022, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho:
«O progenitor, notificado em 10-01-2022 e na pessoa da sua ilustre Mandatária para, em 48 horas, indicar o paradeiro de Leonor, nada disse.
Oportunamente, o tribunal valorará a falta de colaboração do mesmo com o tribunal – artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 33.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.»
***

No dia 25 de janeiro de 2022, o progenitor apresentou requerimento com o seguinte teor:
«LF, progenitor da Menor nos presentes autos, vem esclarecer que a Menor tem estado aos seus cuidados, sendo que voltaram para França para a mesma morada aonde viviam, casa que pertence a ambos os pais da Leonor.
A mãe da menor sempre soube do seu paradeiro e todos os dias os progenitores falam telefonicamente por videoconferência.
Os pais da menor têm conversado sobre questões vida da sua filha.
De facto, tendo em conta que a progenitora atualmente não tem casa própria nem condições para tomar conta da menor num ambiente saudável, o pai tem mantido a filha aos seus cuidados sendo que se encontra a diligenciar no sentido de vir a Portugal com a maior brevidade possível.
Por outro lado, aquando a mãe veio para Portugal com a menor sem autorização do progenitor, este dirigiu-se ao Tribunal Francês para dirimir litígio a isso respeitante.
Assim, e uma vez que a menor aí nasceu e sempre aí residiu, deve o processo de responsabilidades parentais seguir os seus termos nesse Tribunal Francês, sendo que para tanto, se protesta juntar comprovativo do ora alegado.»
***

No dia 16 de fevereiro de 2022, a progenitora apresentou requerimento com o seguinte teor:
«(...)
1– Na sequência do rapto da Menor Leonor, perpetrado pelo seu Progenitor LF no dia 4 de Janeiro de 2022, foi acionada a Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Regulamento CE) tendo a documentação necessária sido entregue na Autoridade Central Portuguesa (DGSRP).
2–De imediato a Autoridade Central Portuguesa remeteu à Autoridade Central Francesa toda a documentação que recebeu, devidamente traduzida.
3–No decurso do processo, a Menor Leonor foi, no passada Sábado, dia 12 de Fevereiro, entregue pelas Autoridades Francesas a pessoa de confiança da Progenitora, devidamente identificada na documentação entregue, reencontrando-se com a Menor no dia 13 de Fevereiro.
4– No dia 14 de Fevereiro a Progenitora obteve informação por parte das Autoridades Francesas que podia abandonar o País e regressar a Portugal, visto que o processo estava concluído.
5–A progenitora receia, contudo, o comportamento futuro do Progenitor da Menor e, de outra forma não pode encarar este assunto, visto que o mesmo desrespeitou todas as ordens judiciais que lhe haviam determinado a entrega da Menor à Progenitora e a proibição de sair do País com a criança.
6–Na perspetiva de salvaguardar os superiores interesses da Menor Leonor, urge estabelecer um regime definitivo da regulação das responsabilidades parentais.
7–Pretende a Progenitora que o regime provisório das responsabilidades parentais, estabelecido no dia 7 de Outubro de 2021, nos presentes autos, seja convertido com a maior urgência em definitivo, nos seguintes termos:
(...)
8–Recorde-se que o Progenitor tem um histórico de violência doméstica sobre a Progenitora da Menor;
9Progenitor revelou ser incapaz de se conformar com a determinação das decisões judiciais que lhe são aplicadas;
10–O Progenitor vive em França e trabalha durante a semana na Suíça, conforme informação que o próprio relatou à GNR de Castro de Aire, vertida no processo a fls …;
11–O progenitor não oferece, presentemente e num futuro próximo, garantias que cumprirá com qualquer tipo de acordo que venha a ser estabelecido com a Progenitora, nomeadamente, no que a um regime de visitas diz respeito, correndo-se mesmo o risco de um possível novo rapto para França e/ou Suíça, como aconteceu muito recentemente.
12–O progenitor não oferece assim qualquer garantia de estabilidade diária à Menor ou apresentou no passado qualquer garantia de assegurar e valorizar o seu normal desenvolvimento físico e psíquico, o seu bem-estar, a sua segurança, a formação da sua personalidade, muito pelo contrário.
13A menor tem 19 meses, sendo a Progenitora a sua principal referência afetiva e securizante, com quem mantém uma relação de maior proximidade, aquela que, no dia-a-dia, enquanto os progenitores viviam juntos, lhe prestava os cuidados necessários e quem, após a separação, o continuou a fazer; aquela que é mais capaz de lhe garantir um normal e adequado desenvolvimento físico e psíquico.
14– Mostrando-se a presença do Pai como um fator perturbador da estabilidade que se quer e se pretende, absolutamente necessária à criação de uma rotina habitual, com vista ao seu normal, feliz e harmonioso desenvolvimento.
15– O Progenitor incumpriu as ordens judiciais emitidas neste mesmo processo (...).
Termos em se requer a V. Ex.ª, muito respeitosamente, tendo em consideração os superiores interesses da criança, se digne fixar, com a maior urgência possível, o regime definitivo das responsabilidades parentais, nos termos acima descrito.»
***

No dia 17 de fevereiro de 2022 o progenitor apresentou requerimento com o seguinte teor:
«(...)
Na verdade, a menor sempre residiu em França.
A acrescer, o seu pai não a raptou, sendo certo que a progenitora sempre soube do seu paradeiro e falou com a menor todos os dias. O progenitor não pretende nem nunca pretendeu afastar a filha da sua mãe. Passa-se exatamente o oposto! O progenitor veio a Portugal e pretendeu passar férias com a sua filha num período de tempo que fora acordado entre os pais da menor. No entanto, depois de dois dias a progenitora começou a fazer requerimentos ao processo alegando falsidades, dizendo que o menor tinha a filha contra a sua vontade e diretamente ao pai da Leonor dizia que lhe “ia tirar a filha para sempre”, misturando questões de índole emotiva e romântica com a vida da Leonor. A acrescer, o progenitor sabia que a criança, quando em Portugal, estava diariamente com a avó (materna) e não com a mãe.
O que a progenitora pretende é que a filha fique aos cuidados diários da avó materna, situação que o progenitor considera inaceitável. Enquanto Pai, o ora requerente sempre fará o que sentir ser melhor para a sua filha, sendo que o melhor é estar na casa onde nasceu e sempre viveu e não obrigada a viver segundo os caprichos da mãe que uns dias quer viver em Portugal, noutros em França e às vezes na Suíça.
A casa que os pais da Leonor compraram foi a pensar no crescimento da Leonor e é dos dois, ambos a têm de pagar e ambos têm de decidir o que fazer quanto ao fim da sua vida em comum, no entanto a sua vida sempre foi em França. É lá que têm os seus bens e a suas obrigações, sendo portanto nos Tribunais franceses que deve decidir-se sobre tudo a que ao seu património diga respeito e bem assim tudo quanto diga respeito à filha de ambos que lá nasceu e sempre lá viveu.
O facto de as partes serem portuguesas não confere qualquer critério de competência territorial.
Diga-se ainda que o progenitor não tem qualquer historial de violência doméstica consistindo essa alegação uma vã difamação.
Julgamos pois que o Tribunal competente para dirimir esta questão é o da residência da menor e dos seus pais que sempre foi (SEMPRE – desde o nascimento da criança) em França.
Nestes termos, tendo a menor sempre vivido em França assim como os seus progenitores, estando lá a correr processo com objeto idêntico ao dos presentes autos, deve o presente Tribunal declarar-se incompetente para conhecer das responsabilidades parentais relativas à menor.»
***

Sobre esse requerimento recaiu a seguinte promoção do Ministério Público, datada de 20 de fevereiro de 2022:
«Veio o requerido suscitar a incompetência internacional dos tribunais portugueses para decidir acerca das responsabilidades parentais da Leonor, alegando que a residência habitual desta é em França, local onde nasceu e sempre viveu e onde os pais tinham – até à vinda, em Julho de 2021, da mãe para Portugal – instalada a sua vida.
Apesar de formalmente se encontrar em tempo para arguir a mencionada excepção, não se pode deixar de notar que é a primeira vez que o requerido o faz nos autos e em plena discordância com o que a sua actuação indiciava e da qual resultava que, para si, eram os tribunais portugueses competentes: dirigiu diversos requerimentos, participou em conferência de pais na qual foi aplicado um regime provisório de que não recorreu e recorreu de decisões posteriores e, até, instaurou regulação das responsabilidades parentais a que coube o nº ____/21.T8LRS, sem que alguma vez tivesse suscitado a questão da competência internacional.
Nos termos dos artigos 96º e 97º do Código Processo Civil, a incompetência absoluta – e que ocorre quando sejam violadas as disposições da competência internacional dos tribunais – pode ser arguida/suscitada oficiosamente enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.
O que no caso não ocorre.
Pelo que a arguição da incompetência é tempestiva.
Considerando que estão em causa quer a jurisdição portuguesa quer a francesa importa recorrer ao Regulamento 2001/2003 mencionado pelo requerido a fim de determinar o critério de atribuição de competência internacional para dirimir as questões relacionadas com a competência internacional.
E compulsados os artigos 8º a 12º constata-se que, em consonância com os pressupostos que presidiram à elaboração do Regulamento é a residência habitual da criança que serve de critério. Ou seja, será competente o tribunal do local onde a criança tinha a sua vida instalada, com foros de habitualidade.
Levando em conta que a Leonor nasceu, em França, em Julho de 2020, que os seus pais aí trabalhavam e viviam desde 2016, que a mesma veio para Portugal em finais de Julho de 2021 para assistir a um casamento e com regresso previsto em inicio de Agosto, que a sua mãe decidiu ficar por ser alegadamente vitima de violência doméstica e que a acção foi interposta em 26-8-2021, à data de interposição da acção, a residência habitual da criança era em França.
Ao que acresce que, ainda que se pretenda que a residência da criança tenha mudado, o espaço de tempo que mediou entre a data em que a criança veio em férias e a data da interposição da acção (pouco mais de um mês) não é suficiente para se concluir que reside habitualmente em Portugal, para mais quando os pais - vivendo com ambos até à vinda para Portugal – não estão de acordo quanto à residência da criança.
Pelo que, sem prejuízo de outros elementos que a requerida, em sede de contraditório, possa trazer aos autos e que impliquem distinta conclusão, afigura-se que assiste razão ao requerido.»
***

No dia 10 de março de 2022, a senhora juíza a quo proferiu a seguinte decisão:
«Veio o Requerido suscitar a incompetência internacional dos tribunais portugueses para decidir acerca das responsabilidades parentais da Leonor, alegando que a residência habitual desta é em França, local onde nasceu e sempre viveu e onde os pais tinham instalada a sua vida até à vinda, em Julho de 2021, da mãe para Portugal.
O MP acompanhou tal entendimento.
A Requerida, por seu turno, pugnou pela competência do tribunal, sustentando que o centro de vida da criança é em Portugal, para onde se deslocou na companhia da mãe por ser esta vítima de violência doméstica, sendo a primordial figura de referência da criança.
Para a decisão, importa ponderar os seguintes elementos, evidenciados da tramitação processual e nos elementos infra discriminados:
-Iniciaram-se os presentes autos em 26-08-2021 por requerimento do MP alegando encontrarem-se os pais separados, residir a criança com a mãe e correr termos processo de inquérito por crime de violência doméstica sendo denunciado o pai e denunciante a mãe.
-Por requerimento de 13-09-2021, o progenitor requereu a regulação das responsabilidades parentais relativamente à criança, junto deste tribunal, processo que correu termos sob o n.º ____/21.6T8LRS, deste Juízo, na qual foi conhecida a exceção dilatória da litispendência (doc. 1 junto ao requerimento de 07-03-2022).
-A criança nasceu em 23-07-2020, em França, país onde residia com ambos os pais, de nacionalidade portuguesa (declarações dos próprios documentadas a 07-10-2021 e CAN junta ao requerimento inicial).
-A progenitora não trabalha desde que a criança nasceu (declarações da própria documentadas a 07-10-2021).
-A criança encontra-se em Portugal desde 29 de Julho de 2021, para onde viajou na companhia da mãe que aqui se deslocou para o casamento de um familiar e permaneceu invocando ser vítima de violência doméstica, tendo-lhe sido atribuído tal estatuto no NUIPC __/22.5PBLRS (declarações da própria documentadas a 07-10-2021 e doc. 2 junto ao respetivo requerimento).
-Desde então reside com a mãe, em Loures, e com os avós maternos na morada dos autos (declarações dos próprios documentadas a 07-10-2021 e doc. 3 junto ao respetivo requerimento).
-No corrente ano lectivo, frequenta o colégio ____, em Loures, na valência de creche (doc. 4 junto ao respetivo requerimento).
-A progenitora trabalha atualmente para a Junta de Freguesia de Loures (contrato junto ao respetivo requerimento).
-O Requerido reside em França (declarações do próprio documentadas a 07-10-2021).
Decidindo:
Estabelece o art. 62.º do CPC, que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (al. a)), tiver sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou alguns dos factos que a integram (b)), ou quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (al. c)).
Resulta do art. 9.º, n.º 1, do RGPTC que será competente para decretar as providências o tribunal da residência do menor no momento em que o processo foi instaurado. Mas “Se no momento da instauração do processo a criança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido” (n.º 7 do art. 9).
Estabelece o art. 5.º da Convenção Haia de 1996 que: “1. As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança. 2. Com ressalva do artigo 7.º, em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência.”
Já o art. 8.º, n.º 1, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, estabelece que:1.- Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal. 2.- O n.º 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º.”
No caso, à data da propositura da acção, a criança encontrava-se em Portugal há cerca de um mês, tendo acompanhado a sua mãe, sua figura primária de referência, que aqui se deslocou e decidiu permanecer alegando ser vítima a de violência doméstica.
Considerando que a criança nasceu e viveu em França, com os seus pais, cidadãos portugueses residentes naquele país até à sua deslocação poderia, numa primeira abordagem, entender-se que o país da residência habitual é Franca e que, como tal, seriam competentes para a acção os tribunais franceses.
Porém, impõe-se ponderar outros elementos já que as regras de competência em matéria de responsabilidade parental são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério de proximidade, justificando-se que o mérito de um processo seja julgado por tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, pois que o mesmo estará colocado/preparado para conhecer do processo. “Ou seja, em sede de aferição da competência internacional do tribunal de um Estado-Membro para conhecer de uma acção de regulação do exercício do poder paternal, as regras comunitárias não devem ser aplicadas de uma forma mecânica, simplista, antes se impõe que a regra geral do nº 1, do artº 8º, seja aplicada sob reserva (como o refere o nº 2, do artº 8º), não olvidando nunca o superior interesse da criança e o critério da proximidade” (in Ac. do TRP de 29-04-2013, Proc. n.º 1083/12.6TBSJM.P1, disponível em www.dgsi.pt).
De acordo com o nº 3 do art. 12 do citado Regulamento, os tribunais de um Estado-Membro serão igualmente competentes em matéria de responsabilidade parental quando: “a)- A criança tenha uma ligação particular com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro ou de a criança ser nacional desse Estado-Membro; e b)- A sua competência tenha sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança.”
Ora, no caso, a criança é cidadã nacional e filha de cidadãos nacionais.
Por seu turno, o pai, ora Requerido, requereu a regulação das responsabilidades parentais relativamente à criança, junto deste tribunal, processo que correu termos sob o n.º ____/21.6T8LRS, deste Juízo, mais tendo intervindo nestes autos sem suscitar a incompetência do tribunal, o que apenas fez após proferido despacho determinando a entrega da criança à mãe e se ter deslocado com a mesma à revelia de decisão judicial proferida nos autos e sem o consentimento da mãe.
O Requerido, com tal actuação, reconheceu inequivocamente a competência deste tribunal.
Acresce que a criança se encontra inserida em creche neste país, a mãe, com quem reside, é a sua figura primordial de referência, pelo que será este tribunal o melhor colocado para aferir qual o seu superior interesse.
Decisão:
Atento o exposto, e à luz das normas legais citadas, julga-se improcedente a excepção da incompetência internacional do tribunal.
Custas pelo Requerido, pelo mínimo legal.»
(...)
Do regime provisório fixado:
No âmbito dos presentes autos, em 07-10-2021, foi fixado regime provisório de exercício das responsabilidades parentais, tendo sido fixada a residência da criança junto da mãe e alimentos a pagar pelo pai.
No atinente ao regime de convívios, foi fixado, para além de um regime transitório a vigorar em Outubro por ocasião da presença do pai em Portugal, que o mesmo poderia estar com a criança sempre que quisesse e pudesse, quando estiver em Portugal, mediante contacto prévio com a progenitora e, ainda, que nessas deslocações a criança passaria com o mesmo dois dias, incluindo duas noites com pernoita, comunicando para o efeito o pai à mãe com a antecedência de uma semana qual o período em que se encontrará em Portugal, de forma a que o convívio se inicie ao dia seguinte ao chegado do pai a território nacional.
Sucede, porém, que no período do Natal o pai, com quem a criança se encontrava desde dia 26 de Dezembro, não a entregou à mãe e ausentou-se com a mesma para França, à revelia do regime fixado pelo tribunal e sem o consentimento da mãe, tendo ocorrido o regresso da criança a Portugal por via do mecanismo previsto no art. 11.º do Regulamento(CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro e da 8.º Convenção Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
O enunciado impõe que sejam adoptadas providências com vista a garantir a estabilidade da situação vivencial da criança, designadamente no que respeita à sua residência e bem assim contactos com ambos os progenitores sem privação de convívios com o outro como sucedeu.
Assim, nos termos do art. 28.º do RGPTC, fixa-se, em substituição do determinado a 07-10-2021, o seguinte regime provisório de convívios:
a)-O pai poderá comunicar com a criança por videochamada.
b)-O pai conviverá com a criança quando se encontrar em Portugal, mediante contacto prévio com a mãe e na presença da mesma ou pessoa da sua confiança.»
***

Inconformado, o progenitor interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«I.A Menor nasceu em França aonde sempre viveu com os seus pais até à data em que a Progenitora saiu de casa e veio para Portugal, trazendo-a consigo contra a vontade do Progenitor.
II.Os pais da Menor compraram casa em França, têm uma empresa em França, têm empréstimo em França e sempre trabalharam em França.
III.À data da entrada da presente ação em juízo, a Mãe da Menor ainda estava laboralmente vinculada à sua então entidade empregadora.
IV.À data da entrada da presente ação, a Menor tinha residência habitual em França.
V.São os Tribunais Franceses os competentes para decidir a regulação das responsabilidades parentais da Leonor
VI.O Tribunal de Loures é portanto incompetente.
VII.“Residindo a criança com carácter habitual e duradouro em França, trata-se de uma permanência estável e duradoura em França, pelo que a situação sub judice deve ser apreciada e decidida pelos tribunais franceses, por força do critério da proximidade e do superior interesse da criança.”
VIII.Ao decidir de outra forma, foi violado o Regulamento n.º 2201/2003 do Conselho, de 27.11.2003 e as regras de competência internacional.
IX.Havendo separação entre os Pais e pretendendo a Mãe mudar de país, a criança deve ficar a residir provisoriamente com o Pai, progenitor que se vai manter na residência da família, dessa forma se mantendo as rotinas da menor.
X.Decidindo de outra forma, o Tribunal violou o superior interesse da criança que se vê repentinamente a ter de mudar de rotinas
XI.Mesmo que ficando a residir provisoriamente com a Mãe, deve ser estabelecido um regime de visitas que permita à Menor passar tempo com o Pai e a família paterna.
XII.Assim, sendo que o Pai viverá noutro País, deve ser estabelecido regime provisório que permita ao Pai estar com a filha na sua casa sita em Castro Daire Viseu, sempre que vier a Portugal, desde que avise a Mãe com uma antecedência mínima de uma semana.
XIII.Estas visitas, para não porem em causa a estabilidade da Menor, não serão mais de duas vezes por mês, isto para além do período de férias de Natal, Páscoa e férias de Verão.
XIV.Neste contexto, mais deverá o progenitor que está com a criança assegurar contactos diários da mesma com o progenitor que não estiver com ela.
XV.Outro qualquer regime provisório que não permita ao Pai coabitar com a sua filha ainda que esporadicamente quando este em Portugal viola seriamente o superior interesse da criança uma vez que põe em causa a relação entre pai e filha.
XVI.O Pai nutre muito amor pela sua filha e não quer ter de viver sem a possibilidade de a acompanhar, sentimento e vontades que o Tribunal deve considerar na fixação de regime (provisório ou não) de forma a salvaguardar a saúde emocional da Menor e o seu superior interesse.
XVII.O superior interesse da Menor não pode deixar de exigir que o Pai brinque com ela, a vista, com ela tome refeições, a deite, lhe conte histórias, a leve ao parque, etc, tudo laivos de uma parentalidade que será negada a ambos (pai e filha) se os contactos do Pai com a Menor ficarem reduzidos a algumas horas e na presença da Mãe.
XVIII.Os eventuais conflitos entre o Pai e Mãe não têm mais força que a necessidade de ambos os pais conviverem com a filha em contexto familiar.
Nestes termos (...) deve ser alterado o despacho que se recorre e ser substituído por decisão que:
a)-Julgue internacionalmente incompetente o Tribunal Português para a resolução deste litígio, mantendo-se em curso o processo que se encontra a correr em França.
b)-Altere o regime provisório nos termos solicitados devendo a Menor ficar provisoriamente a viver com o Pai naquela que foi sempre a sua residência habitual, comprometendo-se o Pai a trazer a Menor a Portugal com regularidade para que esteja com a Mãe e ainda podendo a Mãe visitá-la sempre que queira;
Caso assim não se entenda e devendo a criança ficar a viver provisoriamente com a Mãe:
c)-Deve ser alterado o regime de contactos estabelecido provisoriamente por outro que possibilite ao Pai estar com a filha sempre que venha a Portugal podendo levá-la para a sua casa de família durante os dias que estiver em território nacional, devendo entregá-la à Mãe findo que seja esse período de visita ao País.
Fazendo-se, desta forma, a acostumada e desejada Justiça!»
***

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo assim:
«Nestes termos, afigura-se que deverá ser dado provimento ao recurso no que tange à excepção de incompetência internacional e, no demais, negado provimento ao recurso apresentado, e fazendo-se, deste modo, a costumada Justiça.»
***

II–ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer “ex officio”, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, “ius novarum”, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, “ex vi” do art. 663.º, n.º 2).

À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a)-se a competência internacional para a tramitação e decisão pertence aos tribunais portugueses, concretamente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Família e Menores de Loures, ou se deve, antes, ser deferida aos tribunais franceses;
b)-se há lugar à alteração do regime provisório de regulação das responsabilidades parentais, no que respeita às comunicações e convívios entre o progenitor e a criança, nos termos fixados na decisão recorrida, em alteração do determinado na transcrita decisão de 7 de outubro de 2021.
***

III–FUNDAMENTOS:

3.1–Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório que antecede, a que acresce o seguinte, resultante da documentação junta a este apenso, assim como ao processo principal, tal como das declarações dos progenitores, documentadas nos autos:

1.– Os requeridos
-MC, solteira, residente na Rua ____, Loures, natural da freguesia de P, concelho de Loures; e
-LF, solteiro, residente em Route ____, França, natural da freguesia de M, concelho de Castro Daire,
mantiverem uma relação de namoro, tendo vivido juntos, em França, desde 2016;
2.–No dia 23 de julho de 2020, fruto dessa relação, em Tours, França, nasceu a Leonor;
3.–No dia 7 de agosto de 2020, foi lavrado no Consulado de Portugal em Paris, França, o assento de nascimento de Leonor­, com o n.º ____/2020;
5.–Esse assento de nascimento foi, na mesma data, integrado na Conservatória dos Registos Centrais Portugueses;
6.–Ainda na mesma data, foi atribuído a Leonor o número de identificação civil: ____;
7.–No dia 29 de julho de 2021 a requerida MC viajou para Portugal, na companhia da Leonor, para assistir a um casamento;
8.–A presente ação deu entrada em juízo no dia 26 de agosto de 2021;
9.–Na petição inicial a requerida MC é identificada como residente na Rua ____, nº 28, Loures;
10.–Antes, no dia 2 de agosto de 2021, a requerida MC apresentou queixa crime contra o requerida LF, pela alegada prática, por este contra aquela, de factos integradores de um crime de violência doméstica;
11.–Nessa queixa-crime a requerida MC é identificada como residindo na morada referida em 9.;
12.–A requerida MC foi citada para a Conferência de Pais, realizada nestes autos a 7 de outubro de 2021, com referência à morada identificada em 9., mediante carta de 15 de setembro de 2021.
13.–Ambos os progenitores compareceram na Conferência de Pais realizada no dia 7 de outubro de 2021;
14.–No dia 30 de setembro de 2021, a requerida MC outorgou procuração forense indicando como sua morada, a identificada em 9;
15.–No dia 15 de outubro de 2021, o tribunal a quo solicitou à «Equipa ATT (ISS) – Loures e Odivelas», a elaboração de informação social, sobre as condições socio económicas da criança, com referência à morada da progenitora, a referida em 9.;
16.–A Leonor reside na dita morada, na companhia da progenitora e dos avós maternos;
17.–No ano letivo de 2021/2022, a Leonor frequentou o Colégio ____, em Loures «na valência de cresce, tendo como representante legal (...) MC, portadora do cartão de cidadão ____»;
18.–No dia 20 de dezembro de 2021, entre a Junta de Freguesia de Loures, como primeiro outorgante, e MC , como segundo outorgante, foi celebrado um contrato de prestação de serviços AJ n.º __/2021, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Cláusula 1.ª
O Segundo Outorgante obriga-se a prestar ao Primeiro Outorgante o seguinte serviço: prestação de serviços de varrição urbana na Freguesia de Loures, de acordo com o estipulado no Caderno de Encargos.
Cláusula 2.ª
Pela prestação de serviços prevista na cláusula anterior, o Primeiro Outorgante obriga-se a pagar ao Segundo Outorgante o preço de 11.280,00 € (...), ao qual está isento de IVA ao abrigo do art. 53 do CIVA;
Cláusula 3.ª
O Segundo Outorgante obriga-se a prestar os seus serviços durante 12 meses a partir de 1 de janeiro de 2022.
(...).»­
19.–Por requerimento datado de 13 de setembro de 2021, o progenitor instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Família e Menores de Loures, processo para regulação das responsabilidades parentais relativamente à Leonor, ao qual foi atribuído o n.º ____/21.6T8LRS, distribuído ao Juiz ____, e que findou pela procedência da exceção dilatória de litispendência.
***

3.2– FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

3.2.1–A questão da competência internacional dos tribunais portugueses para a tramitação e decisão da presente causa.
Está em causa saber se o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Família e Menores de Loures – Juiz ___, é internacionalmente competente para tramitar e julgar estes autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais da criança Leonor, como entende o tribunal a quo, ou, pelo contrário, se competente para o efeito é um tribunal francês, como defende o apelante e o Ministério Público.
A razão, há que dizê-lo desde já, está do lado da senhora juíza a quo!
Dispõem os n.ºs 1 e 7 do art. 9º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 08.09 (RGPTC):
«1- Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado.
(…)
7- Se no momento da instauração do processo a criança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido.»
Dispõe o art. 62º:
«Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a)-Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b)-Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;
c)-Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.»
Dispõe o nº 2 do art. 8º da CRP, que «as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português», acrescentando o nº 4 que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.»
Assim, e no que ao caso concreto diz respeito, importa trazer à colação:
-a Convenção Relativa à Competência, à lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Proteção das Crianças, adotada em Haia em 19 de outubro de 1996, aprovada em Portugal pelo Decreto nº 52/2008, de 13.11, publicado no DR, 1ª Série, nº 221, de 13.11.2008[6];
-o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003[7], alterado pelo Regulamento (CE) nº 2116/2004 do Conselho, de 2 de dezembro de 2004[8], relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria de responsabilidade parental, e que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000, uma vez que tanto Portugal como a França fazem parte do Comunidade Europeia[9].
Dispõe o art. 5º da Convenção de Haia:
«1- As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à proteção da pessoa ou bens da criança.
2- Com ressalva do nº 7, em caso de mudança de residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência.»
No que ao Regulamento diz respeito:
- dispõe o art. 1º, nº 1, al. b):
«O presente regulamento é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas (…) à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental.»
- dispõe o art. 17º:
«O tribunal de um Estado-Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência nos termos do presente regulamento e para o qual o tribunal de outro Estado-Membro seja competente, por força do presente regulamento, declara-se oficiosamente incompetente.»
- diz-se no seu considerando 12 que «as regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.»
- dispõe o art. 8º, nº 1:
«1.Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
2.O nº 1 à aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9º, 10 e 12º.»
Conforme referido no Ac. do S.T.J. de 28.01.2016, Proc. n.º 6987/13.6TBALM.L1.S1 (Fernanda Isabel Pereira), in www.dgsi.pt, «em vigor desde 1 de Agosto de 2004 e aplicável a partir de 1 de Março de 2005, o Regulamento (CE) nº 2201/2003, que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000, alargou o âmbito da competência no tocante às questões de responsabilidade parental com a finalidade de garantir igualdade de tratamento entre as crianças, dispondo em relação a todos os filhos menores, independentemente da existência, ou não, de um vínculo matrimonial entre os pais e da conexão da questão relativa a responsabilidades parentais com eventual processo de dissolução do casamento.
Caracterizado por Moura Ramos como um direito «inclusivo», o direito comunitário constitui um sistema de normas disciplinadoras da vida jurídica da sociedade «comunitária», cuja aplicação se torna directamente vinculativa na ordem interna dos Estados-Membros (Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, II, Coimbra Editora, 2007, p. 146). Assim, o Regulamento (CE) nº 2201/2003, directamente aplicável na nossa ordem jurídica, contém, entre o mais, regras directas de competência internacional quanto às matérias nele abrangidas, estabelecendo, como regra geral, no seu artigo 8º nº 1 a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança resida habitualmente à data em que seja instaurado processo relativo a responsabilidade parental, definida no seu artigo 2º nº 7 como “o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou bens de uma criança”, conceito que abrange, como expressamente afirmado, “o direito de guarda e o direito de visita”.»
O Regulamento não define o que seja residência habitual.
Segundo o citado acórdão do S.T.J., «o princípio geral fundado no critério da “residência habitual” da criança mostra-se bem vincado no ponto 12 dos considerandos que antecedem a parte dispositiva do Regulamento (CE) nº 2201/2003 (...).
Na verdade, a “residência habitual” da criança, enquanto critério atributivo da competência internacional, sofre desvios nos casos de prolongamento da competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança (artigo 9º nº 1) – caso em que a criança se desloca legalmente e passa a ter residência habitual noutro Estado-Membro e o primeiro Estado-Membro conserva a competência durante os três meses seguintes à data da deslocação com vista a eventual alteração da decisão quanto ao direito de visita – de extensão da competência fixada para as acções de divórcio, de separação ou de anulação do casamento (artigo 12º nº 1) – hipótese em que é dada prevalência à competência por conexão – ou de extensão da competência por razão de especial ligação da criança a um Estado-Membro – o que pode acontecer caso exista acordo das partes no processo e essa competência seja exercida no superior interesse da criança (artigo 12º nº 3).
(...)
Em qualquer dos casos, a questão que se coloca é a da determinação do conceito aberto de “residência habitual” da criança para efeitos de aplicação da regra geral de competência estabelecida no Regulamento (CE) nº 2201/2003, cuja concretização se impõe, posto que esta constitui a questão nuclear colocada pelo recorrente.
A propósito do conceito de “residência habitual” à luz do referido Regulamento (CE) nº 2201/2003, escreveu Maria Helena Brito (in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, vol. I, Almedina, p. 323) que, na ausência de uma definição (cfr. artigo 2º), o mesmo “deve interpretar-se autonomamente, de acordo com a jurisprudência do TJCE (se bem que em domínios diferentes do da Convenção de Bruxelas de 1968), como “o local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que, para efeitos de determinação dessa residência, é necessário ter em conta todos os elementos de facto dela constitutivos”.
Pronunciando-se no âmbito de um pedido de reenvio prejudicial sobre a interpretação do conceito de residência habitual na acepção dos artigos 8º e 10º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 para efeito de determinação do tribunal competente para se pronunciar sobre questão relativa ao direito de guarda de uma criança deslocada licitamente pela mãe para Estado-Membro diferente daquele onde tinha a sua residência habitual, considerou o Tribunal de Justiça (Primeira Secção), por Acórdão de 22 de Dezembro de 2010 (acessível em http://curia.europa.eu/júris/document.jsf;jsessionid), que, não remetendo o regulamento expressamente para o direito interno dos Estados-Membros, a determinação daquele conceito há-de ser feita à luz das disposições e do objectivo do dito regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando décimo segundo, daí ressaltando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.
Prosseguindo, escreveu-se no mesmo aresto que, “a fim de que este superior interesse da criança seja respeitado da melhor forma, o Tribunal de Justiça já declarou que o conceito de “residência habitual”, na acepção do artigo 8º nº 1 do regulamento, corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar”. E mais adiante, que “para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta num Estado-Membro, outros factores suplementares devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional”.
Como factores suplementares podem considerar-se, nomeadamente, a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro e da mudança, a nacionalidade da criança, a idade e, bem assim, os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado (neste sentido o Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção), de 2 de Abril de 2009).
Também este Supremo Tribunal definiu já o conceito de «residência habitual» no mesmo sentido, conforme acórdão de 20.01.2009, proc. nº 08B2777, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
Perante os contornos do conceito de residência habitual da criança acabados de definir para efeitos de determinação da competência internacional do tribunal relativamente a processo de regulação de responsabilidades parentais, que se acolhem por inteiro, será em função da facticidade concretamente apurada, das circunstâncias concretas relevantes de cada caso, que se concluirá pela existência ou não de «residência habitual» da criança no Estado-Membro onde se encontra na data em que o respectivo processo ou processos foram iniciados.»
No Ac. da R.L. de 02.06.2016, Proc. nº 1883/06.6TBMFR-C.L1-8 (Ilídio Sacarrão Martins), in www.dgsi.pt, entendeu-se estar em causa «um conceito autónomo da legislação comunitária, independente relativamente ao que possa constar das legislações nacionais, devendo ser interpretado em conformidade com os objetivos e as finalidades do Regulamento, e que deve ser procurado caso a caso pelo juiz, mas tendo em conta, desde logo, que o adjetivo “habitual” tende a indicar uma certa duração.»
E mais adiante, «a determinação e alcance da lei não se cinge à sua letra, envolvendo, além do mais, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada – artº 9 nº 1, do Código Civil.»
No Ac. da R.L. de 12.07.2012, Proc. n.º 1327/12.4TBCSC.L1-2 (Sérgio Almeida), in www.dgsi.pt, decidiu-se que «tendo em atenção a nota 12 daquele Regulamento, verificamos, porém, que o critério decisivo para a determinação da competência em sede de responsabilidade parental não é tanto a residência habitual mas sim a proximidade. I. é, a residencia habitual é uma decorrencia ou manifestação da proximidade, enquanto critério aferidor, e não o contrário.
E, portanto, se a maior proximidade do menor for a outra ordem jurídica, será o Tribunal desta o competente (art.º 15), já que é o que melhor corresponde ao superior interesse na criança (nota 12), na medida em que é “o que se encontra mais bem colocado para conhecer do processo (art.º 15).
A noção de ligação particular da criança a um Estado é-nos dada pelo n.º 3 do art.º 15, podendo destacar-se (al. c.) a nacionalidade da criança (a menor nasceu em Portugal e é portuguesa) e (al. d) um dos titulares da responsabilidade parental residir no país.
Ora, como se exarou no recente acórdão desta Relação de Lisboa de 27-03-2012, justifica-se que “o mérito de um processo seja julgado por tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, pois que prima facie estará ele melhor colocado/preparado para conhecer do processo. Ou seja, em sede de aferição da competência internacional do tribunal de um Estado-Membro para conhecer de uma acção de regulação do exercício do poder paternal, as regras comunitárias não devem ser aplicadas de uma forma mecânica, simplista, antes se impõe que a regra geral do nº 1, do artº 8º, seja aplicada sob reserva (como o refere o nº 2, do artº 8º), não olvidando nunca o superior interesse da criança e o critério da proximidade (ou como refere o artº 15º, o tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular)”.»
No Ac. da R.L. de 11.05.2022, Proc. n.º 9528/20.5T8SNT.L1 (Luís Filipe Sousa)[10], in www.dgsi.pt, escreveu-se:
«O Regulamento não define o conceito de residência habitual, sendo que este conceito deve ser objeto de uma interpretação autónoma (cf. Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. III, Tomo I, Competência Internacional, AAFDL, 2019, p 287).
Na jurisprudência, o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a questão nestes termos:
TJ 2/9/2009 (C-523/07), no qual se definiu o seguinte:
O conceito de «residência habitual», na aceção do artigo 8. °, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao local que revelar uma determinada integração do menor num ambiente social e familiar. Para esse fim, devem ser tidas em consideração, nomeadamente a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade do menor, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que o menor tiver no referido Estado. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar a residência habitual do menor tendo em conta o conjunto das circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto.
TJ 22/12/2010 (C-497/10 PPU, Mercredi/Chaffe), que decidiu o seguinte:
O conceito de «residência habitual», na aceção dos artigos 8. ° e 10. ° do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar. Para tanto, e quando está em causa a situação de uma criança em idade lactente que se encontra com a mãe apenas há alguns dias num Estado-Membro diferente do da sua residência habitual, para o qual foi deslocada, devem designadamente ser tidas em conta, por um lado, a duração, a regularidade, as condições e as razões da estada no território desse Estado-Membro e da mudança da mãe para o referido Estado e, por outro, em razão, designadamente, da idade da criança, as origens geográficas e familiares da mãe, bem como as relações familiares e sociais mantidas por esta e pela criança no mesmo Estado-Membro. Cabe ao órgão jurisdicional nacional fixar a residência habitual da criança tendo em conta todas as circunstâncias de facto específicas de cada caso.
Na hipótese de a aplicação dos critérios acima referidos levar, no processo principal, a concluir que a residência habitual da criança não pode ser fixada, a determinação do tribunal competente deveria ser efetuada com base no critério da «presença da criança» na aceção do artigo 13.° do regulamento.
TJ 28.6.2018, C-512/17:
O artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que a residência habitual da criança, na aceção deste regulamento, corresponde ao lugar onde, na prática, se situa o centro da sua vida. Cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar onde se situava esse centro no momento em que foi apresentado o pedido respeitante à responsabilidade parental relativa à criança, com base num conjunto de elementos de facto concordantes.
Na jurisprudência nacional, merecem destaque os seguintes arestos do STJ.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.1.2017, Olindo Geraldes, 1691/15:
I.Nos termos do art. 8.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
II.O conceito de residência habitual, ou permanente, traduz em especial uma ideia de estabilidade do domicílio, assente, designadamente, num conjunto de relações sociais e familiares, demonstrativas da integração na sociedade local.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.6.2019, Raimundo Queirós, 1789/18:
I- O art.º 5º nº1 da “Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças”, adotada em Haia em 19 de Outubro de 1996, estabelece que “As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à proteção da pessoa ou bens da criança”.
II-Assim, a competência internacional dos tribunais portugueses, nesta matéria, afere-se pelo critério da residência habitual da criança (arts. 59.º e 62.º do CPC)
III- O conceito de "residência habitual" - a que alude o referido art.º 5º nº1 da Convenção deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao local onde se encontra organizada a sua vida familiar, social e escolar em termos de estabilidade e permanência.
Na doutrina, António José Fialho, “A competência internacional dos tribunais portugueses em matéria de responsabilidade parental”, in Julgar, nº 37, pp. 18-21, afirma que:
“O conceito de residência habitual da criança deve ser objeto de uma interpretação autónoma, em conformidade com os objetivos e finalidade dos instrumentos internacionais, a determinar com base num conjunto de circunstância de facto relevantes em cada caso concreto (teste de conexão), incumbindo ao órgão jurisdicional nacional determinar esse local.
As circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto que a doutrina e a jurisprudência têm utilizado para determinar a residência habitual são as seguintes:
a)-Presença da criança sem carácter temporário ou ocasional, revelando uma certa integração num ambiente social e familiar;
b)-Presença física da criança num determinado Estado (embora essa mera presença não seja suficiente);
c)-Duração, regularidade, condições e razões da permanência num Estado e da mudança da família para esse Estado;
d)-Nacionalidade da criança, local e condições de escolaridade, conhecimentos linguísticos, bem como laços familiares e sociais nesse Estado;
e)-Aquisição ou locação de uma habitação ou pedido de atribuição de uma habitação social;
f)-Idade da criança, ou seja, os fatores a tomar em consideração no caso de uma criança em idade escolar são diferentes daqueles a que se deve atender tratando-se de uma criança que terminou os seus estudos ou ainda daqueles que dizem respeito a uma criança em idade lactente;
g)-Sendo a criança de tenra idade, origens geográficas ou familiares da pessoa ou pessoas de referência com as quais a criança vive, a guardam efetivamente e dela cuidam;
h)-Estando a criança em idade lactante, razões da mudança da mãe para outro Estado, seus conhecimentos linguísticos e suas origens geográficas e familiares;
i)-Intenção dos progenitores, que, embora não seja, em princípio, decisiva para determinar a residência habitual de uma criança, pode constituir um indício suscetível de completar um conjunto de outros elementos concordantes, nomeadamente quando expressa em circunstâncias exteriores;
j)-Propositura conjunta de uma ação por ambos os pais de uma criança num tribunal da sua escolha (…).
Ana Rita Oliveira Sousa Nogueira Lopes, O princípio do superior interesse da criança na regulamentação das responsabilidades parentais pela União Europeia, Universidade do Minho, 2017, pp. 59-62:
«(...). Tem sido entendimento do TJUE que a residência habitual da criança deverá corresponder ao local em que a criança se encontra integrada num ambiente social e familiar. Assim, o termo “habitual”, na aceção do artigo 8.º deve refletir habitualidade e estabilidade. A ausência de tal definição poderá significar a existência de uma lacuna, ou então um mero erro do legislador. Poder-se-á ainda tratar uma opção deliberada por uma “técnica legislativa silenciosa” no intuito de preencher o conceito apenas no caso concreto. Nesta última hipótese, tem-se apontado que que não deve ser fornecida uma noção única de residência habitual, sob pena de daí resultar uma descrição excessiva por parte do legislador. Ademais, tem vindo a ser entendimento de que a interpretação do conceito de residência habitual levada a cabo noutros domínios do direito da União não poderá servir de base à interpretação do conceito plasmado no artigo 8.º, ao qual deve ser atribuído um significado autónomo. Trata-se, portanto, de um conceito de conteúdo variável, autónomo e próprio. Não obstante, há quem considere que esta indeterminação dá azo à divergência de decisões.
O conceito de residência habitual poderá ter de ser, como já referido, interpretado consoante o contexto do caso concreto em que se insira, levando-se a cabo uma interpretação sistemática. Para além do mais, deverá ter-se em conta os objetivos prosseguidos pelo Regulamento, devendo atender-se neste caso ao já referido considerando n.º 12, que manda atender ao superior interesse da criança orientado pelo critério da proximidade. Daqui decorre que o conceito de residência habitual deverá, à final, ser interpretado à luz do superior interesse da criança.
Neste contexto, por forma aferir qual a residência habitual de uma criança, cumpre salientar que a sua mera presença física em determinado local não releva por si só. Deverá antes verificar-se uma certa duração e estabilidade que se não se confunda como uma mera e breve presença física, da qual resulte uma intenção de se estabelecer nesse Estado. Assim, deverá levar-se a cabo uma ponderação de determinadas circunstâncias do caso concreto, como a duração da estadia da família no Estado-Membro; a nacionalidade da criança; o lugar e condições de escolarização da criança, os seus conhecimentos linguísticos, as relações familiares e sociais; ponderar-se-á também a intenção manifestada pelos progenitores, através de determinados fatores como a eventual compra ou o arrendamento de um imóvel ou o pedido de apoio social de habitação- sendo que a intenção dos progenitores não basta para determinar a residência habitual da criança, servindo apenas como um mero indício. Em suma, a ponderação destes fatores deverá indicar que a presença da criança não revela caráter temporário ou ocasional. Assim, por exemplo, neste contexto não relevará a presença física da criança num determinado Estado que aí se encontra a passar férias.
A ponderação da mera presença física da criança num determinado Estado enquanto fator a considerar na determinação da residência habitual tem sido analisada pelo TJUE. No acórdão OL vs. PQ apreciara-se qual a interpretação a dar ao conceito de residência habitual no caso particular em que uma criança nasça no Estado A (Grécia) com o qual não apresenta qualquer ligação, por opção de ambos os progenitores que, inicialmente, pretendiam que após o nascimento a criança regressasse ao Estado B, Estado da residência habitual de ambos (Itália). Sucede que, após o nascimento, por vontade da mãe, a criança permaneceu com ela no Estado A, onde teria nascido. Perante isso, o pai apresentou nos tribunais italianos um pedido de divórcio, requerendo ainda a regulação das responsabilidades parentais, pedindo que lhe fosse atribuída a guarda exclusiva da criança e que fosse ordenado o seu regresso da criança a Itália. Da mesma forma, apresentou nos tribunais gregos um pedido de regresso. Submetida a questão ao tribunal, procurou-se aferir se a mera presença física da criança nesse Estado constitui sempre “condição prévia necessária e evidente” na determinação da residência habitual de um recém-nascido. Conclui-se que a intenção inicial dos progenitores relativamente ao regresso da criança ao Estado da residência habitual de ambos, após o nascimento, não constitui consideração primordial a ter em conta. Justifica concluindo que a residência habitual na aceção do Regulamento constitui “uma questão de facto”. Desta forma, esta intenção inicial dos progenitores de que a criança residisse no Estado B após o seu nascimento não poderá prevalecer sobre a circunstância de a criança residir, de facto, no Estado A de forma contínua desde que nasceu. Da mesma forma, a falta de consentimento de um dos progenitores também não poderá neste caso servir de ponderação para determinação da residência habitual. Ademais, deduz-se que a consideração desta intenção inicial se mostrara contrária à eficácia do processo de regresso, que enquanto processo de natureza célere não se coaduna com a necessidade de recolha de prova para determinar a intenção em causa. De acordo com o descrito, ponderando o superior interesse da criança e o critério da proximidade, o TJUE concluiu que a circunstância de a criança nascer e permanecer continuadamente num determinado Estado-Membro determina que aí se fixe a sua residência habitual.
Note-se que caso não se mostre possível determinar a residência habitual da criança, não sendo possível determinar a competência de determinado tribunal com recurso ao artigo 12.º, atribuir-se-á competência aos tribunais do Estado onde se encontra a criança. O mesmo resulta do artigo 13.º, que determina a atribuição de competência baseada na presença física da criança.»
Após este breve excurso na jurisprudência e na doutrina, há que reverter à análise do caso em apreço.»

À luz dos considerandos que antecedem, não temos dúvidas em afirmar a bondade da decisão recorrida e, consequentemente, que o tribunal a quo é internacionalmente competente para tramitar e julgar a presente ação, importando recordar que, segundo o princípio da atualidade das decisões, estas devem tomar consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação (art. 611.º, n.º 1).

Os progenitores da Leonor têm ambos nacionalidade portuguesa, sendo:
- a requerida MC, natural da freguesia de P, concelho de Loures; e
- o requerido LF, natural da freguesia de M, concelho de Castro Daire.
Os requeridos mantiverem uma relação de namoro, tendo vivido juntos, em França, desde 2016.
No dia 23 de julho de 2020, fruto dessa relação, em Tours, França, nasceu a Leonor.
No dia 7 de agosto de 2020, foi lavrado no Consulado de Portugal em Paris, França, o assento de nascimento de Leonor­, com o n.º ____/2020;
Esse assento de nascimento foi, na mesma data, integrado na Conservatória dos Registos Centrais Portugueses;
Ainda na mesma data, foi atribuído a Leonor o número de identificação civil: ____;
A Leonor, hoje com quase dois anos de idade, tem, desde escassos dias após o seu nascimento, nacionalidade portuguesa.
Nos termos do art. 1.º, n.º 1, al. a) da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, com a sucessivas alterações que lhe foram sendo introduzidas, «são portugueses de origem (...) os filhos de mãe portuguesa ou de pai português nascidos no estrangeiro se tiverem o seu nascimento inscrito no registo civil português (...).»
No dia 29 de julho de 2021 a requerida MC viajou para Portugal, na companhia da Leonor, para assistir a um casamento, tendo a presente ação dado entrada em juízo no dia 26 de agosto de 2021.
Na petição inicial a requerida MC é identificada como residindo na Rua ____, nº 28, Loures.
Antes, no dia 2 de agosto de 2021, a requerida MC apresentou queixa crime contra o requerida LF, pela alegada prática, por este contra aquela, de factos consubstanciadores de um crime de violência doméstica.
Nessa queixa-crime a requerida MC é identificada como residindo na Rua ____, nº 28, Loures.
A requerida MC foi citada para a Conferência de Pais realizada nestes autos a 7 de outubro de 2021, com referência à mesma morada.
Ambos os progenitores compareceram na Conferência de Pais realizada no dia 7 de outubro de 2021, conforme decorre da respetiva ata, não tendo sido suscitada a questão da competência internacional do tribunal a quo.
No dia 30 de setembro de 2021 a requerida MC outorgou procuração forense indicando como sua morada, a acima identificada.
Consta do certificado de registo criminal da requerida MC, junto aos autos a 15 de setembro de 2021, que a mesma nasceu a 7 de julho de 1997 e é natural da freguesia da P, concelho de Loures, Portugal;
No dia 15 de outubro de 2021, o tribunal a quo solicitou à «Equipa ATT (ISS) – Loures e Odivelas», elaboração de informação social, sobre as condições socio económicas da criança Leonor, com referência à morada da progenitora, Rua ____, nº 28, Loures.
A Leonor reside na companhia da progenitora e dos avós maternos, na referida morada.
No ano letivo de 2021/2022, a Leonor frequentou o Colégio ____ , em Loures «na valência de cresce, tendo como representante legal (...) MC, portadora do cartão de cidadão ____».
A requerida MC presta, desde 1 de janeiro de 2022, para a Junta de Freguesia de Loures, serviços de varrição urbana na Freguesia de Loures, auferindo uma retribuição anual de € 11.280,00.
Por requerimento datado de 13 de setembro de 2021, o progenitor instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Família e Menores de Loures, ação para regulação do regime das responsabilidades parentais relativamente à Leonor, a que correspondeu o Proc. n.º ____/21.6T8LRS, distribuído ao Juiz _, e que findou pela procedência da exceção dilatória de litispendência.
Perante isto, a outra conclusão não é possível chegar que não seja a de que a criança, Leonor, tem residência habitual em Portugal, mais concretamente, na Rua ____, nº 28, Loures.
A criança deslocou-se legalmente para Portugal na companhia de sua mãe e aqui passou a ter a sua residência habitual.
Residem ambas na morada acima indicada, na companhia dos avós maternos da requerida, ali funcionando, com caráter de estabilidade, o centro permanente ou habitual das suas vidas e dos seus interesses.
É evidente a integração da criança e da sua progenitora no atual meio social e familiar em que atualmente se inserem (a progenitora trabalha atualmente para a Junta de Freguesia de Loures e a criança frequenta um Jardim-escola), nada havendo que indicie tratar-se de uma situação temporária ou ocasional, tendo até em conta a duração do contrato de prestação de serviços celebrado entre a requerida e aquela entidade autárquica.
Assim como é manifesta a ligação da criança a Portugal, e à morada acima referida.
As razões da permanência da criança e da sua mãe radicam, segundo esta afirma, dos episódios de violência doméstica perpetrados pelo requerido na sua pessoa.
É em Portugal que se encontra organizada, em termos de estabilidade e permanência, junto dos avós maternos:
- a vida familiar, social e escolar e da criança;
- a vida familiar, social e laboral da sua progenitora.
A circunstância de o requerido ter instaurado, em 13 de setembro de 2021, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Família e Menores de Loures, ação para regulação do regime das responsabilidades parentais relativamente à Leonor, a que correspondeu o Proc. n.º ____/21.6T8LRS, distribuído ao Juiz _, e que findou pela procedência da exceção dilatória de litispendência, mais não significa do que a aceitação explicita, inequívoca, da competência internacional do tribunal a quo para tramitar e decidir a presente ação.
Não tivesse aquela ação, a que correspondeu o Proc. n.º ____/21.6T8LRS, instaurada pelo requerido no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Família e Menores de Loures, com vista à regulação do regime das responsabilidades parentais relativamente à Leonor, findado pela ocorrência da exceção dilatória de litispendência, e prosseguido seus termos em vez desta, teria o requerido, alguma vez, equacionado sequer a questão da incompetência internacional daquele mesmo tribunal?
A resposta parece evidente!
Assim, com a arguição de uma tal exceção, neste momento, o requerido está na fronteira da litigância de má-fé, nos termos do art. 542.º, n.2, al. d).
Uma palavra final, quanto a esta questão, para que fique claro que considerar internacionalmente competentes para a tramitação e julgamento da presente ação, os tribunais franceses, em vez dos portugueses, depois do episódio protagonizado pelo requerido no final de 2021 e princípios de 2022, que acima ficou descrito, revelador de um manifesto desprezo e desrespeito pelo tribunal, pelas autoridades policiais e pela progenitora, claramente contrário ao interesse da criança, constituiria um flagrante e intolerável benefício do infrator, que a comunidade não compreenderia e a ordem jurídica não toleraria.
Termos em que, nenhuma censura merece a decisão recorrida, que considerou, e muito bem, o tribunal a quo internacionalmente competente para a tramitação e julgamento desta ação, decisão essa que, assim, deve subsistir.
***

3.2.2 –Da alteração do regime provisório fixado:
Consta da decisão recorrida:
«No âmbito dos presentes autos, em 07-10-2021, foi fixado regime provisório de exercício das responsabilidades parentais, tendo sido fixada a residência da criança junto da mãe e alimentos a pagar pelo pai.
No atinente ao regime de convívios, foi fixado, para além de um regime transitório a vigorar em Outubro por ocasião da presença do pai em Portugal, que o mesmo poderia estar com a criança sempre que quisesse e pudesse, quando estiver em Portugal, mediante contacto prévio com a progenitora e, ainda, que nessas deslocações a criança passaria com o mesmo dois dias, incluindo duas noites com pernoita, comunicando para o efeito o pai à mãe com a antecedência de uma semana qual o período em que se encontrará em Portugal, de forma a que o convívio se inicie ao dia seguinte ao chegado do pai a território nacional.
Sucede, porém, que no período do Natal o pai, com quem a criança se encontrava desde dia 26 de Dezembro, não a entregou à mãe e ausentou-se com a mesma para França, à revelia do regime fixado pelo tribunal e sem o consentimento da mãe, tendo ocorrido o regresso da criança a Portugal por via do mecanismo previsto no art. 11.º do Regulamento(CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro e da 8.º Convenção Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
O enunciado impõe que sejam adoptadas providências com vista a garantir a estabilidade da situação vivencial da criança, designadamente no que respeita à sua residência e bem assim contactos com ambos os progenitores sem privação de convívios com o outro como sucedeu.
Assim, nos termos do art. 28.º do RGPTC, fixa-se, em substituição do determinado a 07-10-2021, o seguinte regime provisório de convívios:
a)-O pai poderá comunicar com a criança por videochamada.
b)-O pai conviverá com a criança quando se encontrar em Portugal, mediante contacto prévio com a mãe e na presença da mesma ou pessoa da sua confiança.»
Também quanto a esta questão não merece qualquer censura a decisão recorrida.
Nos termos do art. 4.º do RGPTC, «os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo (...).»

Assim, conforme decorre do art. 4.º da LPCJP, importa verificar se a decisão recorrida obedece ao superior interesse da Leonor, princípio a que qualquer decisão deve prioritariamente atender, estando em causa questões relativas e crianças e jovens.

De acordo com José de Melo Alexandrino, “superior interesse” da criança constitui «uma norma de competência (norma que estabelece uma habilitação para criar normas ou decisões), ora a favor do legislador (na configuração a dar ao ordenamento), ora a favor do juiz e da administração tutelar (na construção de normas de decisão de casos concretos; em segundo lugar é uma norma impositiva que ordena ao juiz e à administração que, na tomada de uma decisão que respeite ao menor, não deixem nunca de recorrer (mas sempre dentro dos limites do direito aplicável e circunstâncias do caso) à ponderação dos interesses superiores do menor, ou seja, dos interesses conexos com os bens prioritários da criança (a vida, a integridade, a liberdade), no contexto dos bens e interesses relevantes no caso.»[11].

Trata-se, como afirma Maria Clara Sottomayor, de uma noção em desenvolvimento contínuo e progressivo, uma noção polimorfa, plástica e essencialmente não objetivável, que pode assumir todas as formas e vigorar em todas as épocas e em todas as causas[12].
Segundo a mesma Autora, «o interesse da criança dado o seu estreito contracto com a realidade, não é suscetível de uma definição em abstracto que valha para todos os casos. Este critério só adquire eficácia quando referido ao interesse de cada criança, pois há tantos interesses da criança como crianças.»[13].

Constitui, pois, um conceito aberto, indeterminado, cujo preenchimento exige uma análise sistémica e interdisciplinar, caso a caso, da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência, logo uma «punctualização tópica[14].

No entanto, com Almiro Rodrigues, por superior interesse da criança e do jovem podemos entender o seu direito ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade[15], o que significa que se trata de um conceito que deve comportar em si tudo aquilo que seja suscetível de contribuir para o desenvolvimento integral da criança em termos harmoniosos e felizes.
Por conseguinte, é à luz desse objetivo que deve nortear-se, sempre, a regulação das responsabilidades parentais, o que significa que, no caso concreto, é em vista do superior interesse da Leonor que deve ser analisada a bondade de justeza da decisão recorrida.
Face aos elementos fornecidos pelo processo nenhuma dúvida subsiste que a decisão recorrida se norteou pelo superior interesse da Leonor.
O lamentável episódio protagonizado pelo progenitor no final de 2021, princípio de 2022, revelador, reitera-se, de um manifesto desprezo e desrespeito pelo tribunal, pelas autoridades policiais e pela progenitora, claramente contrário ao interesse da criança, impunha uma decisão como aquela que agora se aprecia.
O superior interesse da criança impunha, relativamente ao seu pai, a adoção de providências adequadas com vista a garantir a estabilidade da situação vivencial da Leonor, designadamente no que respeita à sua residência e, ainda assim, garantir os contactos da mesma com o progenitor, acautelando o risco de repetição de episódios como o que este protagonizou no final de 2021, princípios de 2022.
Bem andou, pois, a senhora juíza a quo em ambas as situações, não merecendo as decisões em causa qualquer censura.
***

IV–DECISÃO:

Por todo o exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo, em consequência, e na íntegra, as decisões recorridas.
Custas pelo recorrente.


Lisboa, 7 de julho de 2022


José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara


[1]João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, 2022, pp. 133; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª Edição, Lex, 1997, p. 395; Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, 3.ª Edição, Almedina, 2022. p.141.
[2] Manual cit., p. 133.
[3]Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985. pp. 533-534.
[4]Antunes Varela, em anotação ao Ac. do S.T.J. de 09.12.1980, R.L.J. 115º, n.º 3696, pp. 90-96 (esp. 95.96).
[5]Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, 2022, pp. 135.
[6]Doravante referida apenas como Convenção de Haia.
[7]Publicado no Jornal Oficial da União Europeia nº L 338, de 23.12.2003.
[8]As alterações introduzidas no Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, pelo Regulamento (CE) nº 2116/2004 do Conselho, de 2 de dezembro de 2004, não assumem relevo para a decisão do presente recurso.
[9]Doravante, sempre que nos referirmos ao Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, alterado pelo Regulamento (CE) nº 2116/2004 do Conselho, de 2 de dezembro de 2004, fá-lo-emos com recurso à expressão “Regulamento”.
[10]O acórdão foi subscrito pelo aqui relator na qualidade de 1.º adjunto, e pelo aqui pelo 1.º adjunto, ali na qualidade de 2.º adjunto.
[11]O Discurso dos Direito, Coimbra Editora, 2011, pp. 140 ss.
[12]Exercício do Poder Paternal, Porto, Universidade Católica, 2003, pp. 63-87, e Joana Salazar Gomes, O Superior Interesse da Criança e as Novas Formas de Guarda, Universidade Católica Editora, 2017, pp. 58-62.
[13]Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 6.º Edição, Almedina, 2016, p. 42.
[14]Cfr. José de Melo Alexandrino, Os Direitos cit. pp. 140 ss.
[15]Almiro Rodrigues, Interesse do menor, contributo para uma definição, in Revista Infância e Juventude, n.º 1, 1985, pp. 18-19.