Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ONDINA CARMO ALVES | ||
| Descritores: | TRANSPORTE MARÍTIMO CONTRATO DE SEGURO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 05/14/2009 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
| Sumário: | 1. O contrato de seguro é um negócio jurídico rigorosamente formal, constituindo a apólice o documento que titula o contrato celebrado com a seguradora e é integrada pelas condições gerais, especiais e particulares acordadas. 2. Incumbe ao segurado ou ao beneficiário do seguro, ao exigir da seguradora a realização da prestação a que esta está vinculada, a prova do sinistro - materialização do evento futuro e incerto que se traduz na realização do risco previsto no contrato de seguro - bem como a demonstração da existência do prejuízo reparável, do nexo causal entre este e o evento tipificado no contrato de seguro e a ocorrência do mesmo durante o período de vigência do contrato. (Sumário elaborado pela relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES DA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I. RELATÓRIO R, LDA., intentou contra COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a acção declarativa com processo ordinário, através da qual pede a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de Esc. 11.422.000$00, a título de indemnização, pelos danos e prejuízos sofridos, acrescida de juros vincendos até efectivo e integral pagamento. Fundamentou, a autora, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de ter procedido à importação da Nigéria de 1298 caixas de camarão congelado. Para acautelar os riscos emergentes do transporte por via marítima dessas mercadorias, a autora celebrou com a ré um contrato de seguro. A carga seria transportada da Nigéria (Lagos) para Portugal (Lisboa), por via marítima, no navio "P", mas, por razões a que a autora foi alheia, a carga a importar foi carregada e expedida em dois contentores de 40 pés (950 caixas) e de 20 pés (348 caixas) respectivamente, nos navios "P" e "C M". Deste facto foi a ré avisada. A carga de 950 caixas de camarão, transportada no navio "P" em contentor frigorífico de 40 pés (contentor CMBU ....), foi descarregada em Lisboa, em 23/10/92. Aquando da vistoria foi verificado que 2/3 do produto importado não reunia condições para ser comercializado e consumido, pelo foi dado como impróprio e destruído. A carga de 348 caixas de camarão, transportada no navio "CM" em contentor frigorífico de 20 pés (contentor ....), foi descarregada em Lisboa, em 05/11/92. Após vistoria foi verificado que o produto em causa se mostrava todo impróprio para consumo humano, pelo que foi destruído. Como em ambas as situações as autoridades sanitárias nigerianas consideraram que produto se encontrava em perfeitas condições quando foi feito o seu carregamento e embarque no porto de origem, conclui a autora que o mesmo foi objecto de grave deterioração durante a viagem. Invoca, por fim, a autora, que a mercadoria importada estava toda ela coberta pelo referido seguro celebrado entre autora e ré e que esta se recusou a pagar-lhe a indemnização que resulta desse contrato de seguro. Citada, a ré apresentou contestação, excepcionando a competência material do Tribunal para conhecer da questão objecto destes autos, por ser competente o Tribunal Marítimo. Mais invocou que, tendo as descargas da mercadoria ocorrido em 23/10/92 e 05/11/92 e tendo a acção sido proposta em 1998, há "uma situação inadmissível e injustificada", porque impede qualquer reclamação quanto ao armador por decurso do prazo de caducidade previsto no art. 3° n° 6 da Convenção de Bruxelas. Esta circunstância conduz à inviabilidade da pretensão. Mais invoca que foi referido à contestante que os fornecedores da mercadoria inutilizada procederam à sua reposição junto da autora, pelo que inexiste prejuízo. Por outro lado, a avaria era de origem e não causada pelo transporte. Nada justifica o atraso na instauração da presente acção tanto mais que a autora declinou a sua responsabilidade em 1993. O seguro em causa foi proposto pela autora para uma viagem directa e sem transbordo, contudo a mesma foi efectuada em dois navios, com transbordo em Leixões e Algeciras. E esta irregularidade exclui o evento da cobertura contratual nos termos do n° 8 das Cláusulas Especiais de Seguros de Carga (Cláusula A). Quanto às 950 caixas não há notícia de qualquer anomalia nas temperaturas registadas durante o transporte. Aquando da realização da vistoria foi verificado que tudo estava em condições. No que toca às 348 caixas também não há noticia que, durante o transporte, tenha havido qualquer anormalidade nas temperaturas registadas. Alega ainda a ré que a vistoria foi extemporânea. E, aquando desta, constatou-se que as causas da avaria parcial da mercadoria eram anteriores ao próprio início da viagem, o que terá motivado a reposição da mercadoria pelos fornecedores. A avaria terá resultado de descongelamento antes ou depois do transporte. Foi proferido despacho saneador que julgou o Tribunal materialmente competente. Elaborada a condensação com a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória, foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento. Foi proferida decisão, julgando a acção procedente, decisão com a qual a ré se não conformou. No recurso interposto, este Tribunal da Relação anulou parcialmente o julgamento, ordenando a sua repetição na parte respeitante à ampliação da matéria de facto, com o aditamento de novo quesito à Base Instrutória com redacção correspondente à alínea O) dos Factos Assentes, que foi eliminada, determinando-se a produção de prova com vista à resposta ao novo quesito aditado bem como ao quesito 7º. Após a realização do julgamento, o Tribunal a quo proferiu decisão, julgando a acção improcedente, por não provada, e consequentemente, absolveu a ré do pedido. Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada. São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente: i) A decisão da primeira instância enferma de algumas contradições, as quais, aliás, vieram a fundamentar a decisão em apreço; ii) Veio a ré invocar que a acção em causa foi instaurada apenas em 22.04.1998, impedindo qualquer reclamação junto do armador, atento o prazo de caducidade previsto no Arts 32, N2 6 da Convenção de Bruxelas; iii) Não obstante, a Ré não invocou a excepção de caducidade; iv) Pelo que, decidiu, e bem, o Tribunal "a quo" que o prazo de caducidade de um ano para instaurar a acção aplica-se apenas às acções em que a demandante é a dona da mercadoria e o demandado é o armador e não à ré, ora recorrida; v) Invocou ainda a ré o facto do transporte do camarão congelado, objecto de viagem da Nigéria para Lisboa, não ter sido directo e num único navio, excluiu a sua responsabilidade; vi) Sucede porém que, também aqui não assistiu razão à ré. Desde logo, porque não logrou provar que a cobertura solicitada e por ela aceite, se reportava a uma viagem directa e sem transbordo. E, ainda, porque as Condições Especiais da Apólice estipulam que o seguro se mantém em vigor durante o desvio de rota, transbordo e durante qualquer alteração da viagem resultante do exercício de um direito concedido aos armadores ou fretadores ao abrigo do contrato de transporte; vii) Ficou ainda provado que a ré foi avisada desse facto; viii) A mercadoria inutilizada nunca foi reposta pelos respectivos fornecedores junto da autora; ix) A vistoria levada a efeito não foi extemporânea, tendo decorrido ao abrigo da responsabilidade contratual; x) A ré alegou ainda que o dano não lhe é imputável uma vez que a mesma era de origem e não foi causada durante e/ou pelo transporte; xi) Conforme resulta da apólice de contrato de seguro celebrado entre a ora recorrente e a recorrida, o seguro cobria todos os riscos de perda ou dano sofridos pelos objectos seguros, com excepção da perda ou dano causado por avariação de temperatura; xii) Nos termos da cláusula especial desse contrato, o seguro inicia-se no momento em que as mercadorias são carregadas no veículo transportador, na fábrica de congelação ou armazém frigorífico no local indicado para o inicio da viagem, continua em vigor durante o percurso e termina com a entrega no armazém frigorífico ou lugar de armazenagem no destino indicado na apólice; xiii) As autoridades sanitárias na Nigéria atestaram que a mercadoria estava em condições aquando do embarque; xiv) A vistoria efectuada aos datalóger que registou as temperaturas durante a viagem, concluiu que não foram detectadas anomalias nas temperaturas registadas; xv) Da prova testemunhal produzida resultou demonstrado que nenhuma das testemunhas tinha conhecimento pessoal e directo dos factos, desconhecendo, em absoluto, o que se passara objectivamente com a mercadoria durante o transporte; xvi) No tocante à prova documental junta aos autos constata-se que: 1. A recorrente fez um contrato de seguro com a recorrida; 2. O seguro cobria todos os riscos de perda ou dano sofridos pelos abjectos segurados, com excepção da perda ou dano causado por avariação de temperatura; 3. Tal seguro iniciou-se no momento em que as mercadorias são carregadas no veículo transportador, na fábrica de congelação ou armazém frigorífico no local indicado para início da viagem; 4. Continua em vigor durante o percurso; 5. Termina com a sua entrega em qualquer outro armazém frigorífico ou lugar de armazenagem; 6. As autoridades sanitárias na Nigéria atestaram que a mercadoria estava em perfeitas condições; 7. Os técnicos que efectuaram a vistoria concluíram que não foram detectadas anomalias na temperatura durante a viagem; xvii) Fácil é concluir que a deterioração das mercadorias está coberta pelo contrato de seguro em causa, sendo a ré, ora recorrida, responsável pelo pagamento das mercadorias deterioradas, acrescida dos juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento; xviii) O tribunal «a quo» violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 425º ss do C. Comercial; Pede, por isso, a apelante, que seja considerado procedente o presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida, com as legais consequências. Respondeu a recorrida, concluindo que deverá ser negada a procedência ao recurso, certificando-se totalmente a sentença tal como é de Justiça, por entender que: i) É essencial reconduzir a questão à sua simplicidade, evitando centrar o recurso em situações ultrapassadas e findas; ii) A posição da recorrente é tanto mais bizarra quanto é certo que não se pronuncia sobre a causa que tornou improcedente a acção, enunciado no ponto 3.3., a fls. 351 e 352... iii) A ora apelada alegou que a avaria ocorrida era de origem, não tendo sido causada por ou durante o transporte; iv) Como se lê a fls. 351, "da matéria de facto dada como provada não resulta que, durante o transporte das 950 caixas tenha havido qualquer anomalia na temperatura registada nesse contentor. - Quanto às 348 caixas provou-se, pelo contrário, que durante o transporte a temperatura oscilou entre –20º e -18º C, pelo que não se pode concluir pela variação de temperatura susceptível de danificar a mercadoria"; v) Mais se provou que "no que concerne às 348 caixas de camarão, a avaria se deveu a, pelo menos, um descongelamento antes da colocação da mercadoria dentro do contentor”; vi) Cumpre, aliás, sublinhar que as respostas decisivas foram dadas aos quesitos 7º e 9º da Base Instrutória, precisamente aqueles que no seu Acórdão de 31 de Outubro de 2006 deste Tribunal da Relação se tinham considerado fundamentais; vii) Nas respostas de fls. 338 estão, aliás, muito minuciosamente descritos os motivos e fundamentos das mesmas, pelo inútil seria repeti-los aqui e agora; viii) Como sublinhou o Ilustre Juiz "a quo", para a responsabilidade ser imputável à ré teria de se demonstrar que a mesma ocorreu durante o transporte. E isso não foi feito; ix) Pelo contrário, provou-se um descongelamento antes da colocação da mercadoria dentro do contentor, o que torna irrelevante a documentação nigeriana, se credível fosse, uma vez que se reporta à sua situação antes do respectivo carregamento; x) Nestas circunstâncias, torna-se evidente que, como foi julgado, não se demonstrou que a mercadoria se tivesse danificado durante o transporte ou por sua causa, risco excluído nos termos do ponto 4.4 da Cláusula Especial – Cláusula do Instituto para Alimentos Congelados e Cláusula A e art°. 30, n°. 2, das Condições Gerais, citadas a fls. 351. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a única questão controvertida a resolver é apurar: Ø Se o sinistro invocado nos autos está ou não coberto pelo contrato de seguro celebrado entre apelante e apelada. III . FUNDAMENTAÇÃO A - OS FACTOS Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos: 1. A autora, no âmbito da sua actividade comercial, procedeu a importação da Nigéria de 1298 caixas de camarão congelado (A); 2. Para acautelar os riscos emergentes do transporte por via marítima dessas mercadorias a autora celebrou com a ré o contrato ele seguro (apólice n° 493299) do ramo de transporte de cargas - doc. de fls. 13 a 17 que se dá por reproduzido (B)); 3. O capital seguro ascendia a Esc. 16.220.452$00 (C)); 4. A carga seria transportada da Nigéria (Lagos) para Portugal (Lisboa) por via marítima, no navio "Polasia" (D)); 5. A carga foi carregada e expedida em dois contentores de 40 (950 caixas) e de 20 (348 caixas) pés, respectivamente nos navios "P" e "CM" (E)); 6. A empresa seguradora foi avisada do referido no ponto anterior (F)); 7. Após tratadas todas as questões respeitantes à importação do aludido produto, nomeadamente as de natureza sanitária, bancária e fiscal, os aludidos navios foram carregados no porto de embarque com observância de todas as regras, tendo iniciado a viagem com destino a Portugal (G)); 8. A carga de 950 caixas de camarão foi transportada no navio "P" em contentor frigorífico de 40 pés (contentor CMBU ....) descarregou em Lisboa em 23/10/92 (H)); 9. Efectuadas todas as diligências impostas nestes casos, pela sociedade importadora, foi solicitada vistoria ao contentor respectivo, no sentido de se proceder ao seu descarregamento, tendo aquele sido aberto na presença do perito da companhia seguradora (1)); 10. Quando da realização da referida vistoria foi verificado pelas autoridades sanitárias competentes, na presença do perito da seguradora e do legal representante da autora que dois terços (2/3) do produto importado não reunia as condições mínimas para poder ser comercializado e consumido, razão porque foi dado como impróprio e, consequentemente destruído (J)); 11. De acordo com as autoridades sanitárias nigerianas, o produto encontrava-se em perfeitas condições aquando do carregamento e embarque no porto de origem (K)); 12. A carga de 348 caixas de camarão transportada no navio "CM" em contentor frigorífico de 20 pés (contentor ....) descarregou, em Lisboa, em 05/11/92 (L)); 13. Após o que o contentor foi transportado com o permanente e ininterrupto acompanhamento fiscal para os armazéns frigoríficos da "Sociedade...." onde foi vistoriado e aberto na presença do perito da companhia seguradora, do representante da ora demandante e das respectivas autoridades sanitárias (M)); 14. Aberto o contentor as autoridades sanitárias verificaram que todo o produto se mostrava impróprio para consumo humano e, consequentemente para ser comercializado pelo que também foi destruído (N)); 15. A autora solicitou à ré o pagamento das quantias referentes aos danos sofridos (P)); 16. As 950 caixas transportadas no navio "P" foram carregadas em Apapa, Nigéria em 03/10/92 e foram transportadas para Leixões em 22/11/92 e descarregadas em Lisboa, em 23/10/92, e seguiram para a Tertir de Alverca em 09/11/92, onde foi realizada a vistoria (1°); 17. Quando foi realizada a vistoria da mercadoria, na presença de autoridades sanitárias, foi verificado que uma parte se encontrava em condições (3°); 18. No tocante às 348 caixas transportadas no "CM a mercadoria foi carregada em 16/10/92 na Nigéria sendo transbordada em Algeciras em 02/11/92 e descarregada em Lisboa em 05/11/92 (4°); 19. E a vistoria foi solicitada em 20/11/92 (5°); 20. Durante o transporte a temperatura registada no contentor oscilou entre -20°C e - 18°C (6°); 21. No que concerne às 348 caixas de camarão a vistoria concluiu que a avaria se deveu a, pelo menos, um descongelamento, em momento anterior à colocação da mercadoria dentro do contentor (7°); B - O DIREITO Em causa nos autos está um contrato de seguro celebrado entre apelante e apelada, nos termos do qual esta se comprometeu a assumir os riscos emergentes do transporte por via marítima da mercadoria consistente em 1298 caixas de camarão congelado que a autora, no âmbito da sua actividade comercial, importou da Nigéria – v. Nº 1 da Fundamentação de Facto. O contrato de seguro, como refere José Vasques, "Contrato de Seguro", Coimbra Editora, 1999, 87 e ss., define-se pela convenção através da qual uma seguradora se obriga a proporcionar a outrem, a segurança de pessoas ou bens, relativamente a determinados riscos, mediante o pagamento de uma contraprestação chamada "prémio". Mediante retribuição paga pelo segurado, a seguradora obriga-se a assumir determinado risco e, caso ele ocorra, a satisfazer, ao segurado ou a um terceiro, uma indemnização pelo prejuízo ou um montante previamente estipulado. Em geral, a obrigação do tomador do seguro consiste no pagamento do prémio convencionado e a obrigação da seguradora, verificado o risco, na prestação convencionada, designadamente, a de indemnização ou de capital. O regime base do contrato de seguro consta do Código Comercial. Dele decorre que se trata de um contrato formal, cuja validade depende da verificação de um documento escrito – apólice - do qual devem constar, não só o nome do segurador, do tomador e do beneficiário do seguro, bem também o respectivo objecto e a natureza, o valor e os riscos cobertos (artigo 426º, § único, do Código Comercial). Conforme resulta do artigo 427º do Código Comercial o contrato de seguro regula-se pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código. E, sendo o contrato de seguro um negócio jurídico rigorosamente formal, nomeadamente sujeito ao artigo 238º, nº 1º, do Código Civil, emitida que seja a apólice, vale com o conteúdo que dela consta. A apólice constitui, pois, o documento que titula o contrato celebrado com a seguradora e é integrada pelas condições gerais, especiais e particulares acordadas. O risco, que se pode definir como o evento futuro e incerto, cuja materialização constitui o sinistro, está ínsito na própria noção de contrato de seguro, sendo um elemento essencial do contrato. Estatui-se no proémio do artigo 436º do Código Comercial que “o seguro é nulo se, quando se concluiu o seguro, o segurador tinha conhecimento de haver cessado o risco, ou se o segurado, ou a pessoa que fez o seguro, o tinha da existência do sinistro. O sinistro é a realização do risco que se encontrava previsto no contrato de seguro, i.e., evento susceptível de fazer funcionar as garantias do contrato. No caso vertente, as condições especiais e gerais do contrato de seguro do ramo “transportes”, constam de fls. 13 a 19, aí se estabelecendo, designadamente, os riscos cobertos e excluídos, a amplitude de cobertura do seguro, explicitando-se quando se inicia e termina o contrato de seguro. Com efeito, resulta do nº 1 da cláusula especial (cláusula do instituto para alimentos congelados – excluindo carne congelada ) que o seguro em causa cobre os riscos de perda ou dano sofridos pelos objectos seguros, com excepção da perda ou dano causados por variação de temperatura, que não seja perda ou dano sofridos pelos objectos seguros, causada por variação de temperatura atribuível a avaria da máquina de refrigeração de que resulte a sua paragem por um período mínimo de 24 horas consecutivo. Por outro lado, decorre dos nºs 8 da citada cláusula especial que o seguro se inicia no momento em que as mercadorias são carregadas no veículo transportador, na fábrica de congelação ou armazém frigorífico, no local indicado para início da viagem e termina com a entrega no armazém frigorífico ou lugar de armazenagem, na localidade de destino indicada na apólice ou com a sua entrega em qualquer outro armazém frigorífico ou lugar de armazenagem, situado na ou antes da localidade de destino indicada na apólice que o segurado decidir utilizar (…) Ficou apurado nos autos que as duas carga a que se refere o contrato de seguro em causa foram descarregadas em Lisboa, no dia 23.10.92 e no dia 05.11.92. Após vistoria, conclui-se que 2/3 do produto da primeira carga (950 caixas de camarão) não reunia as condições mínimas para poder ser comercializado e consumido, tendo sido destruído, o mesmo tendo sucedido, relativamente a todo o conteúdo da segunda carga ( 348 caixas de camarão) – v. Nºs. 8 a 10, 12 a 14 da Fundamentação de Facto. Da prova produzida, no que concerne ao perguntado no artigo 7º da Base Instrutória, ficou demonstrado que a avaria relativa às 348 caixas de camarão se ficou a dever a, pelo menos, um descongelamento, em momento anterior à colocação da mercadoria dentro do contentor – v. Nº 21º da Fundamentação de Facto. Aliás, resultou apurado que durante o transporte a temperatura registada no contentor oscilou entre -20ºC e -18º C – v. Nº 20º da Fundamentação de Facto. É que, segundo a vistoria realizada ao contentor com 348 caixas de camarão congelado seria essa a temperatura que deveria ser observada para que o camarão transportado se conservasse em perfeitas condições, sendo que os registos de temperatura do contentor revelaram que a aludida temperatura se mantivera durante o transporte dentro dos níveis adequados – v. fls. 30 a 37. Como é sabido,– v. neste sentido Ac. STJ de 24.10.2006 (Pº 06A3224), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt . Como esclarece Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 272, o ónus da prova consiste, precisamente, em determinar qual das partes há-de suportar o correspondente risco processual, em cada caso concreto, sendo este risco uma ideia correlativa à de ónus, é a consequência ou reflexo de um ónus. Nos termos do artigo 342º do Código Civil, aquele que invoca um direito tem, consequentemente, de provar os factos que normalmente o integram, incumbindo à parte contrária, por seu turno, a prova dos factos que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos. E, em caso de dúvida, como dispõe o nº 3 do citado normativo, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito. Acresce que dispõe o artigo 516º do Código de Processo Civil que a dúvida sobre a realidade dum facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita. Sucede que, no caso vertente, conforme decorre da resposta negativa dada ao artigo 9º da Base Instrutória (1ª parte), não resultou provado que o produto importado haja sido objecto de grave deterioração durante a viagem de transporte. E, não tendo a autora efectuado prova – como lhe competia - do risco prevenido no contrato, ou seja, que a avaria detectada na mercadoria haja ocorrido durante o transporte, sendo este um facto constitutivo integrante das normas substantivas e contratuais susceptíveis de conceder à autora o direito ao ressarcimento dos invocados prejuízos, não poderia o Tribunal a quo deixar de julgar improcedente a presente acção, decisão essa com a qual se concorda inteiramente. Improcede, pois, o recurso da apelante, mantendo-se a decisão recorrida. Vencida, é a recorrente responsável pelas custas respectivas – v. artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil – sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi oportunamente concedido. IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida e em condenar a recorrente no pagamento das custas respectivas, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido. Lisboa, 14 de Maio de 2009. Ondina Carmo Alves – Relatora Ana Paula Boularot Lúcia Sousa |