Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1114/09.7TVLSB-L1-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
DEVER DE VIGILÂNCIA
DECISÃO PREMATURA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Sumário: I - No contrato de transporte, a obrigação essencial do transportador não se esgota num resultado - deslocação de pessoas e/ou coisas de um lugar para o outro -, sendo igualmente uma obrigação de garantia, porquanto impende sobre aquele o dever de zelar pela segurança do passageiro e/ou do objecto transportado, de forma a evitar que qualquer dano lhe possa advir durante a vigência do contrato.
II - O dever de protecção pela segurança do objecto transportado assume particularidades quando se trate de pessoas (passageiros), implicando a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento pontual da prestação - os deveres acessórios de conduta. Nestes casos, quer se entenda a obrigação de protecção e segurança como dever principal ou como dever acessório, o respectivo cumprimento pressupõe, inevitavelmente, que o transportador instrua os passageiros e ajuste os espaços para que a deslocação ocorra com garantia de segurança pessoal.
III - Mostra-se precipitada na fase do saneador a decisão de mérito em que o julgador se cinge ao enquadramento jurídico valorado pela parte, sem a perspectivar no âmbito de qualquer outra solução jurídica plausível.
IV - Impondo-se ao tribunal o dever de atender aos factos articulados segundo os possíveis enquadramentos jurídicos para o conhecimento da acção, fixando o factualismo a dar por assente e submetendo à apreciação de prova os factos controvertidos, precipita ainda a decisão o julgador que não tenha, previamente, diligenciado pela correcção da deficiência fáctica alegada nos articulados, ao abrigo dos poderes conferidos nos artigos 264.ºn.º2, 265, n.º3 e 508.º, n.º1, alínea b) e n.º3, todos do Código de Processo Civil.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,
I - Relatório
Partes:
M (Autora/Recorrente)
C.F.L SA e I., SA (Rés/Recorridas)
Pedido:
Condenação das Rés:
- no pagamento de 29 120,96 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de 970,70 euros (relativos a juros de mora vencidos desde o acidente até à data de instauração da acção), bem como os juros vencidos e vincendos, desde a instauração da acção até pagamento integral da dívida, à taxa legal;
- no pagamento de 20.000 euros, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a citação, à taxa legal;
- no pagamento das quantias que vierem a ser indicadas pelo Hospital ....
Fundamentos:
- ter sido vítima de um acidente, ocorrido, em 19 de Julho de 2008, pelas 18 horas, quando se fazia transportar no veículo pesado de passageiros pertencente à Ré C, que consistiu na queda ocorrida no corredor principal do veículo (após se ter levantado do lugar que ocupava no autocarro pretendendo sair na próxima paragem) por ter tropeçado nas canadianas de um passageiro, que se encontravam estendidas no chão, a ocupar todo o corredor do referido veiculo, não tendo o local qualquer varão onde se pudesse ter agarrado de forma a evitar a queda;
- não lhe ter sido possível aperceber-se, atempadamente, da presença das canadianas no chão, de forma a poder ultrapassar tal obstáculo;
- ter sofrido, em consequência da queda, várias lesões na sua integridade física, que lhe determinaram internamentos hospitalares e sujeição a intervenções cirúrgicas e tratamentos de fisioterapia;
- ter sofrido fortes dores, padecendo actualmente de dores permanentes, receio de sair sozinha, de se deslocar a pé ou de autocarro, bem como ficar sozinha em casa, temendo que possa cair;
- não ter conseguido recuperar totalmente das sequelas do acidente, ficando a padecer de uma IPP de 30%.
Contestação
A Ré C defendeu-se por excepção, invocando a sua ilegitimidade; por impugnação, alegou não lhe poder ser imputável o acidente por o mesmo ser da responsabilidade da Autora e do passageiro, dono das canadianas.
A Ré seguradora impugnou a factualidade alegada pela Autora concluindo que pela sua não responsabilização pelo acidente ocorrido.
A Autora replicou pronunciando-se pelo indeferimento da excepção.
No saneador a Ré C foi julgada parte ilegítima e, como tal, absolvida da instância. Foi conhecido o pedido e julgada a acção improcedente, com absolvição da Ré seguradora do pedido.
Conclusões da apelação
1 – A ora Apelante propôs contra a Apelada acção judicial nos termos da qual pedia a condenação da R. no pagamento da quantia de no pagamento da quantia total de € 30.091,66, acrescida de juros vencidos e vincendos, até integral pagamento.
2 – Foi alegado, na douta sentença judicial, que não assiste à transportadora de passageiros de um dever de vigilância, capaz de assegurar e controlar todas as situações que ocorram dentro do veículo transportador.
3- Ademais, o condutor do veículo é a única pessoa que se encontra dentro do veículo, não lhe podendo ser exigível o dever de vigiar e controlar todos os objectos que se encontrem e sejam transportados para dentro dos veículos, imputando-se a este o dever de conduzir zelosamente o veículo pesado, e efectuar as respectivas paragens nos locais devidos.
4- São pressupostos da responsabilidade civil extra contratual o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, a ocorrência de um dano, e a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
5- A responsabilidade civil extra contratual poderá surgir aliada à prática de determinadas acções ilícitas, bem como à omissão de determinados deveres legalmente impostos a um determinado grupo de pessoas ou a determinadas entidades.
6- O mesmo significará dizer que a lei também pune, da mesma forma e com as mesmas consequências legais, aquele que pratica activamente actos considerados ilícitos, mas também aquele que, no exercício das suas funções, omite determinados comportamentos, traduzíveis na violação de determinados deveres impostos por lei.
7- Foi precisamente na esteira deste raciocínio que o legislador previu que as omissões dão lugar à obrigação de reparação dos danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais havia, por força da lei, o dever de praticar o acto omitido.
8- No que no caso concreto importa relevar, é descortinar se a transportadora de passageiros, no exercício da sua actividade corrente, ou seja, de transporte de passageiros nas várias carreiras urbanas, se encontra adstrita a determinados deveres.
9- Para além de se analisar a existência desses mesmos deveres, impõe-se analisar igualmente se a própria transportadora de passageiros assegura ou reúne as condições para o exercício desses mesmos deveres.
10- Resulta do preceituado no art. 187º do Regulamento de Transportes em Automóveis (pesados ou ligeiros) que o pessoal que presta serviço nos veículos empregados em transportes colectivos de passageiros é obrigado a usar a maior deferência para com os passageiros e agentes de fiscalização, prestando uns e outros todos os esclarecimentos, prestar aos passageiros todo o auxílio de que careçam, tendo especial atenção para com as senhoras, mutilados, velhos e crianças, não importunar os passageiros com exigências não justificadas, velar pela segurança e comodidade dos passageiros, verificar, antes de abandonar os veículos em que prestam serviço, se nos mesmos se encontram quaisquer objectos que neles tenham sido esquecidos pelos passageiros.
11- Todos os deveres supra elencados regulam a actividade exercida pelo pessoal contratado pela empresa transportadora de passageiros, competindo-lhe, entre outros deveres, o de zelar pela segurança dos passageiros, e pelo controlo dos objectos que estejam dentro do veículo.
12- Impondo o Regulamento o cumprimento de determinados deveres legais para com os seus passageiros, deverá, por esse motivo, competir à transportadora de passageiros a criação de condições humanas e materiais para assegurar a segurança dos passageiros, não só na circulação rodoviária, mas na sua deslocação dentro do próprio autocarro.
13- É do conhecimento comum que, antigamente, nos autocarros de passageiros, para além do condutor, circulava um assistente, chamado de fiscalizador, ou, na gíria popular «pica».
14- Competia a esse mesmo fiscalizador supervisionar as condições em que os passageiros circulavam, assim como exercer o controlo sobre os pagamentos dos bilhetes de carreira.
15- Entendeu a transportadora de passageiros dispensar esse mesmo assistente, determinando, desta forma, que o condutor do veículo deveria assegurar todas as funções e deveres profissionais aos quais estão adstritos.
16- Do teor da sentença judicial retira-se que, existindo apenas o condutor do autocarro, este não consegue, atentas as suas capacidades humanas, controlar ambas as realidades, a de conduzir e estar atento à condução, e, adicionalmente, controlar tudo o que se passa dentro do autocarro, designadamente de forma os passageiros circulam e se posicionam no autocarro, ou onde são colocados os objectos trazidos por outros passageiros.
17- Atenta a incapacidade do condutor do veículo controlar essas mesmas realidades, e, de facto, sendo uma situação impossível de controlar, exonerou-se a transportadora de passageiros de qualquer responsabilidade, basicamente por não ter a capacidade de vigiar todas as situações referentes à segurança e controle de objectos que circulam dentro do autocarro.
18- Salvo o devido respeito, tal argumentação deverá improceder, uma vez que, sendo imputado às transportadoras de passageiros o cumprimento de determinados deveres intrínsecos à sua actividade, é a esta entidade que compete o dever reunir as condições necessárias para o seu cumprimento.
19- Com efeito, se foi seu entendimento dispensar o recurso à contratação de outros colaboradores para auxiliar o condutor no cumprimento diligente dos seus deveres, então não restará outra solução senão concluir que é seu entendimento que deverá ser o condutor do autocarro a controlar todas as circunstâncias estranhas que possam ocorrer dentro do veículo.
20- A circunstância de existir um apenas o condutor do autocarro para controlar as situações que possam ocorrer dentro do veículo, e na própria estrada, é certamente uma exigência desmesurada para o desenvolvimento da sua actividade e, no fundo, para as suas capacidades.
21- Não obstante, muito embora não se negue essa realidade, o que é certo é que a A., ora Recorrente, não poderá ser lesada pelo facto da transportadora de passageiros descurar o cumprimento dos seus deveres, impondo todas o exercício de todas as funções num único funcionário ou trabalhador.
22- Desta feita, constatando-se que a transportadora se encontra adstrita ao cumprimento de determinados deveres, designadamente o de zelo pela segurança dos passageiros, com especial incidência em pessoas idosas, e de controlo de todos os passageiros, deverá ser responsabilizada, quanto muito, pelo não cumprimento zeloso desse mesmo dever.
23- Imputando o disposto no art. 486º à realidade, a transportadora de passageiros incorreu no incumprimento do especial dever de zelar pela segurança dos passageiros, omitindo a prática de determinadas acções que possibilitassem a remoção dos obstáculos existentes no próprio veículo.
24- Por outro lado, competia igualmente à transportadora de passageiros o dever de vigiar e controlar todos os objectos que se encontrassem dentro do veículo, e que fossem susceptíveis de prejudicar a segurança dos passageiros.
25- Ademais, mesmo considerando que se impõe o dever aos passageiros de saberem por onde caminham, não se deverá ignorar que a A. é uma pessoa idosa, sobre a qual deveria incidir precisamente um cuidado redobrado.
26- Existindo o desrespeito do dever legalmente imposto à transportadora de passageiros, restará alegar que os danos provocados na integridade física da A. foram integralmente provocados pela queda sofrida no veículo, decorrente precisamente na falta de controlo e de vigilância em controlar todos os objectos que se encontram dentro do autocarro.
27- A obrigação de indemnização também se encontra conexa com a ocorrência do mesmo facto, uma vez que, o dano foi provocado pelo descuido e desrespeito dos deveres impostos à transportadora, que, por sua vez, acabaram por provocar lesões físicas na A. que não teria sofrido se não fosse essa mesma lesão.
28- O que se impõe no âmbito do recurso é o entendimento de que a transportadora de passageiros não poderá ser exonerada da sua responsabilidade só pela simples circunstância de ter um condutor a controlar todas as realidades existentes ou que possam ocorrer dentro e fora do autocarro.
29- Compete à transportadora zelar pela segurança dos seus passageiros, devendo reunir todas as condições materiais e humanas para o fazer, não podendo a ora Apelante ser lesada pelo incumprimento, e pelas más opções logísticas dessa mesma entidade.
A Ré não contra alegou.
II - Apreciação do recurso
Os factos:
O tribunal a quo deu como provado o seguinte factualismo:
1. No dia 19 de Julho de 2008, pelas 18 horas, a A. teve uma queda, dentro do veículo pesado de passageiros propriedade da 1ª R., com a matrícula.
2. A responsabilidade civil derivada da circulação do veículo pesado de passageiros propriedade da 1ª R., com a matrícula, encontrava-se transferida para a “I, SA” mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº, conforme documento de fls.93 a 95, e das e das condições gerais e particulares juntas na audiência preliminar.
O direito
Questão submetida pela Apelante ao conhecimento deste tribunal: (delimitada pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – art.ºs 690, n.º1, 684, n.º3, 660, n.º2, todos do CPC)
§ Da responsabilidade da C, SA, enquanto entidade transportadora, pelas consequências do acidente.
Está em causa nos autos determinar se pode ser assacada à proprietária do veículo (e à Ré, por efeito da celebração do contrato de seguro) a responsabilidade pelas consequências do acidente sofrido pela Autora, a 19 de Julho de 200., pelas 18 horas, quando se fazia transportar num autocarro pertença da C, SA (autocarro n.º , matrícula ), da rede de transportes colectivos de Lisboa (carreira 758, no percurso Cais do Sodré/Portas de Benfica). Tal acidente (queda) resultou por ter tropeçado nas canadianas de um outro passageiro (que se encontravam estendidas no chão, ocupando todo o corredor central de passagem do veículo) quando se dirigia para a porta do veículo a fim de sair na paragem pretendida, inexistindo no local um varão a que se pudesse agarrar de forma a evitar a queda.
A Autora, não obstante ter feito alusão à existência de uma relação contratual com a C, fez assentar o direito de que se arroga no instituto da responsabilidade civil da proprietária do veículo, imputando-lhe a violação do dever de vigilância.
O tribunal a quo, considerando que na fase do saneador os autos continham os elementos necessários para o proferimento de uma decisão de mérito, julgou a acção improcedente tendo por subjacente que o processo causal descrito quanto ao acidente apenas pode ser imputado a conduta negligente de um passageiro, sustentando-se na seguinte ordem de argumentos:
- por inexistir (ainda que o processo seguisse os respectivos termos e se viesse a demonstrar toda a factualidade alegada pela Autora quanto à caracterização do acidente) “na conduta da “C”, ou sequer, na conduta do comissário/condutor qualquer omissão digna de significado normativo desvalioso, e portanto ilícito”,
- por não se integrar na tipologia dos riscos próprios dos veículos a colocação inadvertida, por um dos passageiros, de canadianas no chão para efeitos de imputação do acidente a título de responsabilidade objectiva.
Em recurso a Autora reitera a sua posição centrada no entendimento de que impende sobre a entidade transportadora a obrigação de reunir as condições necessárias (materiais e humanas) para o poder dar cumprimento ao dever de zelar pela segurança dos passageiros a que está adstrita; nessa medida, segundo a Recorrente, a responsabilidade daquela pelas causas de um acidente não poderá ser afastada pelo facto do condutor do autocarro se encontrar com o encargo de controlar as situações que possam ocorrer dentro e fora do veículo, por se tratar de uma opção logística da empresa que só à mesma respeita e que, por isso, constitui seu ónus.
Vejamos.
1. A situação fáctica submetida à apreciação jurisdicional que se encontra delineada nos autos e que se reconduz à queda da Autora ocorrida no interior de um autocarro onde a mesma se fazia transportar, emerge, assim, de uma relação contratual de transporte.
O contrato de transporte, enquanto modalidade de um contrato de prestação de serviços, é aquele mediante o qual uma das partes se obriga perante outrem a fazer deslocar fisicamente pessoas e/ou coisas de um lugar para outro.
No caso sob apreciação está em causa o transporte (público) de passageiros que assume nos nossos dias grande relevância social, sobretudo nos grandes aglomerados urbanos, tendo em conta a quantidade de pessoas que o utilizam, gerando várias situações que impõem que o Direito acompanhe.
E se é certo que um contrato deste tipo não altera a essência da natureza da relação contratual no que respeita ao dever típico do transportador (assegurar a deslocação de um lugar para o outro), há que ter em conta que o objecto transportado – pessoas – assume algumas consequências na estrutura interna da relação, com incidência nos direitos/deveres que derivam do vínculo negocial, particularmente, sobre o conteúdo da prestação devida pelo transportador.
Caracterizando-se o contrato de transporte por a obrigação essencial do transportador não ser apenas de resultado, mas também de garantia, impende sobre aquele o dever de zelar pela segurança do passageiro e/ou do objecto transportado, de forma a evitar que qualquer dano lhe possa advir durante a vigência do contrato.
O dever de protecção pela segurança do objecto transportado assume, porém, óbvias particularidades quando se trate de pessoas (passageiros), implicando a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento pontual da prestação - os deveres acessórios de conduta[1]. Nestes casos, quer se entenda a obrigação de protecção e segurança como dever principal ou acessório, o respectivo cumprimento pressupõe, inevitavelmente, que o transportador instrua os passageiros e ajuste os espaços para que a deslocação ocorra com garantia de segurança pessoal.
Para tal, não só é necessário transmitir ao passageiro de que deve manter uma conduta adequada às regras do transporte, sujeitando-se às normas estabelecidas pelo transportador, como informá-lo de que terá de se abster de quaisquer actos que causem incómodo ou prejuízo aos restantes passageiros, que possam danificar o veículo, ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço.
Assumindo o transportador, contratualmente, a obrigação de conduzir o passageiro incólume ao seu destino, o não cumprimento da mesma poderá acarretar-lhe a responsabilidade (contratual) pela reparação de eventuais danos sofridos.
Se em termos da respectiva natureza não ocorre grande dissemelhança entre a responsabilidade contratual e a extracontratual (têm por essência a violação de um dever jurídico e em ambas a noção de culpa centra-se na violação do dever de cuidado), cabe salientar que a grande diferença entre ambas se situa ao nível da demonstração da culpa, porquanto naquela impende sobre o devedor (lesante) uma presunção de culpa que lhe cabe ilidir – cfr. artigos 799.º e 487, n.º1, ambos do Código Civil.
Não há dúvida de que o regime jurídico mais favorável para o passageiro (ainda que não encarada sob a perspectiva de consumidor[2]), será aquele em que não tenha de provar a culpa do transportador. Por outro lado e no que diz respeito ao dever de protecção e segurança, no âmbito da responsabilidade contratual, ao invés do que ocorre no domínio da responsabilidade extracontratual, atento o vínculo jurídico preestabelecido entre as partes, o dever jurídico violado mostra-se perfeitamente configurado em função dos comportamentos pré estabelecidos a que os contratantes se encontram adstritos.
2. Nesta perspectiva, verifica-se que em face do circunstancialismo alegado na petição a sentença recorrida (e, consequentemente, a decisão que conheceu da ilegitimidade da Ré Companhia CFL, SA, enquanto pressuposto da mesma) constitui uma decisão precipitada, desde logo, por ter conhecido a pretensão da Autora cingindo-a ao enquadramento jurídico por esta valorado[3], o que contraria o disposto no artigo 664.º, do Código de Processo Civil, já que, no que se reporta à interpretação e aplicação das leis, o tribunal não se encontra condicionado pela alegação das partes (princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão, ínsito nos artigos 202.º, n.º2 e 203.º, da Constituição, uma vez que incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos).
Por outro lado, a decisão sob censura descurou o articulado inicial onde a Autora, ainda que com deficiência de alegação (deficiência que o tribunal a quo, oficiosamente e dentro dos poderes que lhe são conferidos por lei nos artigos 264.º, n.º2 e 265.º, n.º3, ambos do Código de Processo Civil, deveria ter diligenciado a fim de a corrigir[4],), invoca uma relação contratual de transporte da qual, para além da posição da Autora enquanto passageira e consumidora de boa fé, decorrem, adstritos à entidade transportadora (ainda que por intermédio de outrem, no caso o condutor do veículo), vários deveres acessórios de conduta para cumprimento da obrigação de zelar pela protecção e segurança dos passageiros[5], incidindo sobre a mesma uma presunção de culpa.
Desta forma e ainda que quanto aos factos essenciais o juiz se encontre dependente do factualismo introduzido no processo pelas partes (sem prejuízo, conforme já referido, dos poderes que lhe foram concedidos no artigo 264.º do Código de Processo Civil), cabe-lhe seleccionar e fixar a matéria de facto trazida ao processo segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (cfr. artigo 511.º, n.º1, do Código de Processo Civil).
Nesta ordem de ideias, tendo em linha de conta o factualismo constante da petição inicial, pese embora a deficiência de alegação quanto a aspectos concretizadores dos deveres acessórios de conduta por parte do motorista do autocarro[6] (comportamentos que se imporiam por parte do mesmo, desde logo, em presença da especificidade decorrente de um passageiro que apresentava dificuldades de locomoção face à necessidade de utilização de canadianas), impunha-se ao tribunal a quo o dever de atender aos factos articulados segundo os possíveis enquadramentos jurídicos para o conhecimento da acção, fixando o factualismo a dar por assente e submetendo à apreciação de prova os factos controvertidos, ainda que para esse efeito, sublinhe-se, diligenciasse por corrigir a deficiência de alegação.
Não o fazendo, o tribunal a quo precipitou o conhecimento da decisão de mérito e, bem assim, da que conheceu a excepção de ilegitimidade (a qual, conforme salientado, decorre do entendimento de mérito, por ter reconduzido a situação apenas sob a perspectiva da responsabilidade civil extracontratual da transportadora) sem se inteirar de todos os elementos necessários para o efeito, nomeadamente, notificando previamente a parte nos termos do artigo 508.º, n.º1, alínea b) e n.º3, do Código de Processo Civil, para corrigir o seu articulado.
III – Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em anular a sentença recorrida e o despacho que conheceu da ilegitimidade da Ré C, SA, determinando o prosseguimento dos autos com vista à elaboração da matéria assente e do factualismo relevante a integrar a base instrutória, a fim de se conhecer da acção, relegando o conhecimento da excepção de ilegitimidade da Ré C para sentença final.
Custas pelo vencido a final.
Lisboa, 21 de Maio de 2013
Graça Amaral
Orlando Nascimento
Ana Maria Resende
[1] Como faz salientar o Professor Antunes Varela, deveres de conduta são aqueles que não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autónoma de cumprimento, são essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra (Das Obrigações em Geral). Estão em causa deveres que se mostram indissociáveis da regra geral de boa-fé ínsita no artigo 762º, nº2, do Código Civil, impondo que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação e no exercício do direito correspondente, terão de agir com honestidade tendo em consideração os interesses da outra parte.
[2] O consumidor tem direito à protecção da saúde e da segurança física e à qualidade dos bens e serviços – cfr. artigos 3.º, alínea b) e 4.º, n.º1, ambos da Lei de Defesa do Consumidor.
[3] Sendo certo que ao invés do afirmado na sentença, a indicação dos factos na petição ultrapassa, efectivamente, a fundamentação da acção em termos de responsabilidade extracontratual. 
[4]Partilhamos o entendimento daqueles que defendem que o poder ínsito neste preceito não integra uma mera faculdade atribuída ao juiz no uso de um poder discricionário, mas um compromisso efectivo do julgador com a verdade material cujo não uso indevido constitui matéria sindicável em via de recurso (cfr. acórdão do STJ de 12.06.2003, CJSTJ de 2003, tomo II, pág. 101.
[5] Dispõe o artigo 187.º do Regulamento de Transportes em Automóveis (Decreto n.º 37 272 de 31-12-1948 objecto de várias alterações) que o pessoal que presta serviço nos veículos empregados em transportes colectivos de passageiros é obrigado a prestar aos passageiros todo o auxílio de que careçam, tendo em especial atenção para com as senhoras, mutilados, velhos e crianças e velar pela segurança e comodidade dos passageiros – alíneas b) e d).
[6] Igualmente se imporia esclarecer o alegado no artigo 9.º (…) a A. não tinha no local onde acabou por cair desamparada, nenhum varão onde se pudesse agarrar por forma a evitar a queda ou, pelo menos, diminuir a intensidade da mesma, a fim de, eventualmente, poder ser avaliada a diligência da empresa transportadora no cumprimento das regras de segurança dos veículos que utiliza.