Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO ANTÓNIO FILIPE FERREIRA | ||
Descritores: | DESOBEDIÊNCIA POLÍCIA MUNICIPAL MEDIDA CONCRETA DA PENA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/21/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
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Sumário: | I - Atua com culpa no não acatamento de uma ordem legítima emanada por autoridade competente, comunicada ao arguido adequadamente, quem podendo agir de acordo com a imposição legal, escolhe livremente o não fazer, enquanto reflexo de uma personalidade expressa no facto, desconforme às exigências do Direito. II - Da acusação apenas devem constar os factos constitutivos do crime imputado e a norma penal incriminadora, sendo que sendo todas as demais referências legislativas mencionadas na sentença apenas relevam para a maior ou menor fundamentação jurídica da mesma, não carecendo de serem comunicadas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal. III - Tendo o Tribunal a quo indicado na sua decisão todas as circunstâncias relevantes para tal fixação, bem como expressado de forma racional e lógica o processo subjacente à fixação do quantum da pena, o Tribunal de Recurso apenas deve alterar o mesmo em casos em que o peso relativo das mesmas esteja desproporcionalmente valorado, daí resultando uma manifesta desadequação da pena, que ultrapassa o necessário espaço de discricionariedade que tal fixação envolve. IV - Não se pretende neste processo de sindicância, determinar o que o Tribunal de Recurso, colocado na posição do Tribunal a quo, decidiria quanto à pena a aplicar ao recorrente. O que se pretende é saber se o processo de fixação está devida e racionalmente fundamentado, se a pena fixada respeita os critérios fixados no artigo 71.º do Código Penal em face do caso em concreto, e se o quantum da pena assim obtido, se situa naquele espaço discricionário racional de valoração, proporcional aos critérios enunciados. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I - RELATÓRIO 1. A SENTENÇA RECORRIDA Por sentença proferida em 3.7.2024, no Processo Comum por Tribunal Singular n.º 5216/22.6T9SNT do Juízo Local Criminal de Sintra – Juiz 2, foi decidido: a) Condenar o Arguido AA pela prática, a ........2022, de um crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros) perfazendo o total de €950,00 (novecentos e cinquenta euros). b) Condenar o Arguido AA no pagamento das custas processuais, bem como taxa de justiça, que se fixa em 3 UC, nos termos do disposto no artigo 513.º, do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais. * 2. O RECURSO Inconformado o arguido AA recorreu da sentença condenatória, apresentando a sua motivação, extraindo as seguintes conclusões, após convite para o seu aperfeiçoamento: O Tribunal, no entender do Recorrente, incorreu em erro de julgamento pois que, os factos narrados na acusação e os factos dados como provados na Sentença impunham decisão contrária à proferida pelo Tribunal, E impunham que o Recorrente fosse absolvido do crime de desobediência, por não se mostrarem verificados os elementos objetivos do tipo, nos termos do artigo 412.º nº 2 alíneas a) e b) o CPP. O crime de desobediência, por o agente ter omitido uma conduta imperada, pressupõe a prova de que estava em condições de cumprir a ordem dada, sendo requisito da condenação que conste da acusação que, no local da ocorrência, tinha a sua identificação em seu poder. Ora, não vinha imputado, não se provou, nem resultou provados dos fatos provados, que o recorrente tivesse a sua identificação na sua posse, como por exemplo num bolso, no local da ocorrência, nem que a tivesse na sua posse aquando da ordem dos agentes da PM. Do mesmo modo que, não vinha imputado, não se provou, nem resultou dos fatos provados, que podia ter cumprido a ordem dos agentes da PM e que apenas não o fez porque não quis. . Como se disse, nada consta alegado na acusação que permita concluir que o Recorrente tinha os documentos na sua posse, como por exemplo num bolso, no momento da ocorrência, nem que a tivesse na sua posse aquando da ordem dos agentes da PM. E não basta, a prova de que o Recorrente não se identificou, sem mais. É indispensável que tivesse sido provado que tinha a sua identificação na sua posse naquele momento ou, pelo menos, algum facto de que inevitavelmente resultasse que podia dispor da sua identificação para efetuar a sua identificação àqueles agentes da PM e, ainda assim, o Recorrente não o fez, o que claramente não sucedeu. Não resultou, pois, provado que o Recorrente tivesse consigo, naquele momento, a sua identificação nem que dela podia dispor, nem tal imputação resulta, minimamente, na acusação pública deduzida. Tal "facto" não consta da acusação e tinha forçosamente de constar, pois a ela compete a alegação e prova de todos os elementos constitutivos do crime e não contendo os factos suficientes para a condenação do Recorrente, não pode o tribunal alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação. Pois que, a acusação deveria conter (e não contém) a «narração» de todos os factos que fundamentam a aplicação ao Recorrente da pena. . Ora, como se disse, do texto da acusação não resulta explícito, nem implícito, que o Recorrente tinha a identificação em seu poder aquando da ordem para identificar-se. . Assim, por consistir a desobediência na omissão de um comportamento, tinha de constar da acusação factos que permitissem o juízo de que o Recorrente estava em condições de não omitir a conduta que lhe foi ordenada. . Concretamente, a alegação de que tinha a identificação consigo. E esta insuficiência da acusação na narração de factos, não pode ser colmatada pela imputação genérica dos factos relativos aos elementos subjetivos do crime, antes pressupunha, a prova prévia dos factos que preenchem os elementos objetivos do crime, o que não sucedeu. Verifica-se, assim, impossibilidade legal de indagação pelo tribunal recorrido da matéria de facto omissa, essencial para descoberta da verdade material e boa decisão da causa. Por assim ser, por se tratar de facto essencial à condenação, que não foi sequer alegado na acusação pública, impõe-se a absolvição do recorrente, o que deve ser declarado com as legais consequências. Ora, a possibilidade de cumprimento da ordem, constituindo elemento objetivo do tipo de ilícito, tem de constar da narração dos factos da acusação e depois resultar provada na sentença, sob pena de, no primeiro caso levar à rejeição da acusação por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, n.º 3, al. d) do CPP, e no segundo à absolvição por não preenchimento do tipo de ilícito. E não basta que na acusação ou na sentença se faça na narração dos factos uma mera referência indireta, vaga, imprecisa, conclusiva ou, até, como por vezes sucede, meio implícita nos factos relativos ao elemento subjetivo do tipo, a tal possibilidade, mas antes tem de se descrever de forma clara e inequívoca os factos que levam a concluir pela possibilidade do destinatário cumprir a ordem, sob pena de violação do princípio do acusatório e dos direitos de defesa. Para além de todo o acima exposto, deveria, no limite, o Tribunal ter aplicado ao Recorrente o princípio in dúbio pro reo, porquanto existia dúvida razoável sobre o fato de o arguido ter ou não ter na sua posse a sua identificação. O que não aconteceu, nem tão pouco na Sentença foi esclarecido a razão pela qual o Tribunal não aplicou o princípio in dúbio pro reo aos presentes autos. Pelo exposto, a acusação deveria ter sido rejeitada, por manifestamente infundada nos termos do artigo 311º, n.º 3 d) do CPP, por os factos nela descritos não constituírem crime, contudo a acusação não foi rejeitada, e os autos seguiram para julgamento e na matéria de facto provada não estão presentes todos elementos do tipo objetivo de ilícito de desobediência, faltando a possibilidade de cumprimento da ordem, pelo que a consequência tem que ser a absolvição do Recorrente. A propósito desta matéria indica-se como Jurisprudência o seguinte Acórdão: Ac. TRG de 12-01-2015: 1. Traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime p. e p no artº 348º, nº 1, al. b), do CP, quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem. 2. Não constando da acusação pública factos ou eventos da vida real que, pelo menos de uma forma implícita, permitam com segurança concluir que o Recorrente tinha em seu poder ou dispunha do acesso aos documentos que devia entregar, impõe-se a absolvição da recorrente do ilícito em causa. Razão pela qual a sentença em recurso violou as disposições conjugadas dos artigos 311.º n.º 3 alínea d), 348.º n. º1 alínea a) e artigo 412.º n.º 2 alíneas a) e b) todos do Código de Processo Penal e violou ainda o princípio do acusatório nos termos do artigo da Constituição da República Portuguesa. O princípio da legalidade da lei penal é controlado pelo princípio constitucional de reserva de lei, pelo que a Constituição reserva, nos termos do art.º 165º, nº 1 al. c) à AR a competência para legislar sobre a definição dos crimes, das penas de segurança e dos pressupostos destes, porém isto é uma reserva relativa, pois a AR pode autorizar o Governo a elaborar decretos-lei. As disposições legais de que o Recorrente vinha acusado na acusação, eram as seguintes normas penais: «(...) previsto e punido pelo art.º 348.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal, por referência ao artigo 10.º n.º 2 do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, Aviso n.º 4006/2021, de 16 de maio, publicado na II Série do Diário da República.» O Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra é um regulamento, e um regulamento é constituído por normas jurídicas aprovadas ao abrigo da atividade administrativa, tendo sido o Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra aprovado por um órgão municipal, in casu, a Câmara Municipal de Sintra, cfr. artigo 135.º do CPA. Nesta medida, não tendo sido o Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra aprovado nem pela Assembleia da República, nem pelo Governo em funções à data com a respetiva autorização da Assembleia da República, este Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, não pode ter uma norma, como tem, a legislar sobre o crime de desobediência no artigo 10.º n.º 2: Artigo 10.º - Uso dos meios coercivos "1 — Os agentes de polícia municipal poderão fazer uso dos meios coercivos de que dispõem, atentos os condicionalismos legais, nos seguintes casos: a) repelir uma agressão ilícita, actual ou iminente, de interesses ou direitos juridicamente protegidos, em defesa própria ou de terceiros; b) Para vencer a resistência à execução de um serviço no exercício das suas funções, depois de ter feito aos resistentes intimação formal de obediência e esgotados que tenham sido quaisquer outros meios para o conseguir. 2 - A resistência ou a falta de obediência a ordem ou mandado legítimos regularmente comunicados e emanados de agentes de polícia municipal serão punidos com a pena prevista para o crime de desobediência." A existência desta norma penal num Regulamento aprovado por um órgão administrativo (Câmara Municipal de Sintra) é inconstitucional, porquanto viola o artigo 165.º n.º1 alínea c) e o artigo 29.º ambos da CRP. Tudo visto, a acusação deveria ter sido rejeitada, por manifestamente inconstitucional. Contudo, a acusação não foi rejeitada, e os autos seguiram para julgamento quando na verdade os fatos descritos na acusação não constituíam crime, porquanto o artigo 1 0.º n.º 2 do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, Aviso n.º 4006/2021, de 16 de maio, publicado na II Série do Diário da República é inconstitucional. Pelo exposto deverá ser decretada como norma inconstitucional o n.º 2 do artigo 10.º do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, Aviso n.º 4006/..., de ..., publicado na II Série do Diário da República, sendo a consequência a absolvição do Recorrente do crime que vem condenado. Razão pela qual a sentença em recurso violou as disposições conjugadas dos artigos 165 n.º 1 alínea c) e 29.º ambos da Constituição da República Portuguesa. No Enquadramento jurídico-penal, o Tribunal, na Sentença, fez questão de acrescentar o seguinte: «Já nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea b) e i) da Lei 19/2004, de 20/05 "as polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de: (...) b) Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal. (...) i) Instrução dos processos de contra-ordenação e de transgressão da respectiva competência;". Ora, este crime tem como elementos objetivos do tipo: "a) a ordem ou mandado; b) a sua legalidade formal e substancial; c) a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; d) a regularidade da sua comunicação ao destinatário; e) a cominação não legal mas expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência (alínea b); f) o conhecimento pelo agente dessa ordem". Por seu turno, no que que respeita ao elemento subjetivo do tipo, para a sua verificação exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades enunciadas no art.º 14.º, do Código Penal. Relativamente aos elementos objetivos, verifica-se que existiu uma ordem legítima de uma autoridade competente, na medida em que os agentes da polícia municipal que ordenaram ao Recorrente que se identificasse, podiam fazê-lo por o Recorrente ser suspeito da prática de uma contraordenação (por estacionar em local não permitido). A polícia municipal tem competência, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea b) e i), da Lei 9/2004, de 20/05, não só para efetuar fiscalização relativa ao estacionamento, como instrução do respetivo processo contraordenacional, tendo, pois, total legitimidade para ordenar que o Recorrente se identificasse.» O artigo 4.º, n.º 1, alínea b) e i) da supra referida_Lei 9/2004, de 20/05 não foi indicada como disposição legal aplicável aos fatos imputados ao Recorrente na acusação, conforme exigem os artigos 283.º n.º 3 alínea d) e 311.º n. º3 alínea c) ambos do CPP. O artigo 4.º, n.º 1, alínea b) e i) da supra referida Lei 9/2004, de 20/05 foi indicado na Sentença como disposição legal aplicável aos fatos imputados ao Recorrente na acusação, pelo que o Recorrente foi condenado por uma qualificação jurídica diferente, sem que o tribunal tenha comunicado previamente a alteração da qualificação jurídica, nos termos dos artigos 358.º n.º 1 e 2 do CPP, para aquele se pronunciar sobre o novo enquadramento penal dos fatos, tendo como consequência legal a nulidade da sentença, prevista no artigo 379.º n.º 1 alínea b) do CPP. Pelo exposto, a Sentença padece de nulidade por fatos diversos dos descritos na acusação sem prévio cumprimento do artigo 358.º conjugado com o artigo 379.º n.º alínea b) do CPP. Em caso de condenação. o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite. sempre se terá em consideração que tendo em conta a conduta anterior e posterior ao facto, que o crime dos autos é o crime de desobediência simples, a ausência de antecedentes criminais, que a favor do Recorrente militam as necessidades de prevenção especial que são diminutas, considerando a pouca gravidade das mesmas, a inexistência de danos provocados, havendo somente a ressaltar o dolo, o Recorrente entende que o seu grau de culpa é diminuto, que o grau de ilicitude da sua conduta não é elevado e considerando as condições socioeconómicas do Recorrente e o facto de o Recorrente estar profissional, social e familiarmente inserido que tal deve ser levado em linha de conta na medida da pena. A moldura penal do crime de desobediência fixa-se entre os 10 dias e os 120 dias de multa, tendo o Tribunal a quo, aplicado a pena de 95 dias de multa ao Recorrente, a qual é já muito próxima do limite máximo, o que o Recorrente considerou bastante exagerado e injusto. O Recorrente entende como sendo justa uma pena de um terço ou metade do limite máximo da pena de multa prevista. N o que concerne ao valor diário da multa a aplicar deve atender-se ao nº 2 do art.º 47º do código Penal, fixando-se, como antes já se referiu, dentro dos limites legais, o quantitativo de cada dia de multa em função da situação económica e financeira do arguido. Ora a sentença deu como provado que o Recorrente aufere cerca de mil euros por euros, trabalha por conta própria com as dificuldades inerentes a esse risco, tem uma filha de seis anos (tem guarda partilhada com a mãe da filha) e vive sozinho num apartamento do qual paga renda mensal. Assim, quanto ao quantitativo diário, atentas as condições de vida do Recorrente, deveria ter sido fixada pelo mínimo legal no valor de cinco euros. de acordo com o artigo 47º, nº 2 do Código Penal, entendendo o Recorrente merecer reparo a medida concreta da pena que foi aplicada nos presentes autos. Deve assim e neste ponto em concreto, a sentença ser revogada e de ver estipulado o valor mínimo legal de cinco euros de taxa diária e a pena de multa não deverá ser superior a quarenta (40) dias. Razão pela qual a sentença em recurso violou as disposições conjugadas dos artigos 40.º, 47º, 71.º e 181º, nº 1 todos do Código Penal. Pelo exposto, deverá tal Venerando Tribunal da Relação: a) Revogar a sentença recorrida e absolver o Recorrente, nos termos do artigo 412.º n. º 2 alínea a) e b) do CPP do crime a que foi condenado; b) Decretar a inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 10.º do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, Aviso n.º 4006/2021, de 16 de maio, publicado na II Série do Diário da República, e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, absolvendo o Recorrente do crime a que foi condenado; c) Declarar a nulidade da Sentença nos termos do artigo 379.º n.º 1 alínea b) do CPP e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, absolvendo o Recorrente do crime a que foi condenado; d) Em caso de condenação, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite como possível, a pena de multa do Recorrente deverá ser no máximo de 40 (dias) de multa à taxa diária de cinco euros; * O Ministério Público em 1.ª instância respondeu ao recurso, apresentando a sua motivação, extraindo as seguintes conclusões: 1. A sentença proferida nos autos condenou o arguido AA, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros) perfazendo o total de € 950,00 (novecentos e cinquenta euros). 2. As questões por si suscitadas, em sede de recurso, ainda que por ordem diversa, são as seguintes: a nulidade da sentença (art.º 379.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal); o não preenchimento do elemento objectivo do tipo de desobediência; a inconstitucionalidade do art.º 10.º, n.º 2 do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra; e, a medida da pena. 3. A referência na fundamentação de direito à norma prevista no art.º 4.º, n.º 1, alínea b) e i), da Lei n.º 9/2004, de 20/05, pretende justificar que a ordem transmitida pelos agentes da polícia municipal era legítima e transmitida por quem tinha competência para tal, atentas as competências dessa polícia, quer para efetuar fiscalização relativa ao estacionamento, quer para a instrução do respetivo processo contra-ordenacional, tendo pois total legitimidade para ordenar que o arguido se identificasse. 4. A norma em questão não integra a qualificação jurídica dos factos, porquanto da mesma não resulta descrito nenhum tipo legal nem qualquer pena, daí que não consta do dispositivo da sentença. 5. Deste modo, não se verifica a nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal, não havendo qualquer outra comunicação de alteração da qualificação jurídica a ser efectuada, para além da realizada em momento prévio ao da leitura da sentença. 6. Da conjugação das declarações do arguido com a demais prova produzida, analisados à luz das regras da experiência comum e da lógica, não poderia ter sido outra a decisão do Tribunal que a de considerar que o arguido tinha possibilidade de se identificar (como o fez na presença dos militares da GNR) e não o fez, porque não o quis fazer, incorrendo, desse modo, na prática de um crime de desobediência, no qual foi cominado pelos agentes da polícia municipal. 7. Da leitura da sentença recorrida não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática dos factos submetidos a julgamento pelo arguido, nem que, sentindo-a, tenha optado por decidir contra o arguido. Pelo contrário, resulta que o Tribunal chegou a um estado de certeza quanto à prática dos factos pelo arguido, não tendo sido violado o princípio in dubio pro reo. 8. Os factos dados como provados preenchem os elementos objectivo e subjectivo do tipo de desobediência, pelo qual o arguido foi condenado. 9. O art.º 10.º, n.º 2 do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra prevê que a recusa de acatamento de uma ordem transmitida pelos agentes da polícia municipal seja punida como desobediência, mas punição dessa conduta está consagrada no art.º 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, pelo que não há qualquer violação do art.º 165.º, n.º 1, al. c) da Constituição da República Portuguesa. 10. Em face do estatuído no art.º 71.º, n.º 1 do Código Penal, a pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa aplicada ao arguido - acima da média abstracta -, revela-se adequada e proporcional às exigências de prevenção geral e especial do caso concreto e, ainda, à culpa do mesmo. 11. A fixação do quantitativo diário da multa em € 10,00 (dez euros) mostra-se adequado, tendo em consideração os rendimentos e os encargos do arguido, dados como provados na sentença e mencionados nesta resposta, que não se trata de um indigente pois aufere rendimentos, encontrando-se assim respeitado o princípio da igualdade e preservando a eficácia da prevenção geral e especial. * Admitido o recurso nos termos legais, neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador Geral Adjunto emitiu o seu parecer, defendendo a total improcedência do recurso, nos termos propostos na resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância. * Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente não reagiu. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência para decisão do recurso, nos termos do disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código do Processo Penal. *** * *** II – FUNDAMENTAÇÃO QUESTÕES A DECIDIR: Dos poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso Conforme jurisprudência fixada, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, in D.R., série I-A, de 28/12/1995). Atentas as conclusões de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal: 1. Saber se da decisão recorrida constam todos os elementos objetivos do crime de desobediência. 2. Saber se o Tribunal a quo deveria ter aplicado ao recorrente o princípio in dúbio pro reo 3. Saber se o artigo 10.º n.º 2 do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, Aviso n.º 4006/2021, de 16 de maio é inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c) e o artigo 29.º, ambos do Constituição da República Portuguesa 4. Saber se o Tribunal a quo condenou o recorrente por uma qualificação jurídica distinta da imputada na acusação, sem ter cumprido o disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal. 5. Saber se a pena aplicada é exagerada e injusta * FACTOS PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA Ficou a constar da sentença, como factos provados, o seguinte: Do crime 1. No dia ... de ... de 2022, cerca das 15h15, BB e CC, ambos agentes da Polícia Municipal de Sintra, deslocaram-se, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, à ..., em ..., a fim de procederam à fiscalização de dois estabelecimentos comerciais ali existentes. 2. Chegados à mencionada artéria, os agentes da Polícia Municipal de Sintra depararam-se com o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca ..., modelo A3, de cor …, com a matrícula ..-..-ZL, propriedade do arguido AA, a obstruir a via e a impedir a passagem do veículo daquela força policial. 3. Quando o Arguido se apercebeu da presença dos agentes da Polícia Municipal dirigiu-se para junto dos mesmos tendo estes lhe solicitado que desobstruísse a via, o que o Arguido recusou fazer. 4. Ante tal recusa o agente BB ordenou ao Arguido que se identificasse, o que se recusou a fazer. 5. Perante tal recusa, o dito agente BB advertiu o Arguido de que tinha o dever de se identificar perante si porque sobre ele recaíam fundadas suspeitas da prática de contraordenação. 6. O Arguido persistiu na recusa de se identificar, não obstante o referido agente policial lhe ter ordenado por mais três a quatro vezes de que tinha o dever se identificar e de o advertir de que o não cumprimento da ordem de identificação o fazia incorrer na prática de um crime de desobediência. 7. Por se ter juntado um aglomerado de pessoas no local, os agentes da Polícia Municipal chamaram reforços tendo-se deslocado para a Rua da ..., entre outros, os agentes DD e EE, o que fizeram devidamente uniformizados. 8. Depois de se inteirar do ocorrido, o agente FF pediu a identificação ao Arguido, o que este se recusou a fazer. 9. O Arguido manteve a recusa de se identificar mesmo depois de ter sido advertido por cerca de 10 vezes pelo aludido agente FF de que incorria na prática de um crime de desobediência caso não o fizesse, do que ficou ciente. 10. Embora soubesse que, naquelas circunstâncias, era obrigatório identificar-se perante os agentes de autoridade, o Arguido quis mesmo assim recusar-se a cumprir tal obrigação. 11. O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de não cumprir a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que a mesma era legítima, regularmente comunicada e emanada de autoridade competente no exercício das suas funções. 12. Sabia igualmente o arguido que tal conduta era proibida por lei e punida por lei. Mais se apurou que: 13. O Arguido, nas circunstâncias referidas em 3., encontrava-se de calções, t-shirt e descalço. 14. Foi chamada a GNR ao local. 15. Tendo os militares da GNR ido falar com o Arguido, este identificou-se perante os militares. Das condições pessoais do Arguido 16. O Arguido tem uma empresa na …. 17. O Arguido aufere cerca de €1.000,00. 18. O Arguido tem uma filha de 6 anos. 19. A filha do Arguido reside, de forma alternada, com o pai e a mãe. 20. O Arguido estudou até ao 9.º ano de escolaridade. 21. Do Certificado do Registo Criminal do Arguido nada consta. * FACTOS NÃO PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA Inexistem factos não provados. * MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO NA SENTENÇA RECORRIDA O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção nos seguintes termos: “O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base nas declarações do Arguido, conjugadas com as declarações das testemunhas BB (agente da Policia Municipal), CC (agente da Policia Municipal), DD (agente da policia Municipal), GG, (Agente da policia Municipal), HH (senhoria do Arguido), II (senhorio do Arguido), JJ, (vizinha do Arguido), KK (vizinho do Arguido), nos moldes infra especificados. Do mesmo modo, atendeu o Tribunal aos documentos juntos aos autos, nomeadamente, as fotografias juntas fls. 11, informação de fls. 13, fotografias juntas a 12.06.2024. * No que concerne aos pontos 1. e 2. da matéria de facto provada, atinentes ao local, dia e hora dos acontecimentos, bem como à circunstância de o veículo do Arguido estar a obstruir a via, atendeu o Tribunal às declarações das testemunhas BB, CC, HH e II, conjugadas com as declarações do Arguido e com as fotografias juntas aos autos a fls. 11 e a 12.06.2024. Por um lado, admitiu o Arguido que deixou o seu veículo sem estar em local apropriado, embora alegando não estar a obstruir a via. Tal facto foi contrariado pela restante prova testemunhal produzida, não só pelos elementos da Polícia Municipal que primeiro chegaram ao local, BB e CC, mas também pela testemunha II que referiu que colocou o seu veículo atrás de um carro que estava no meio da via. Tal obstrução é por demais evidente nas fotografias juntas a fls. 11, aferindo-se que, com o carro do Arguido ali estacionado, não passavam outros veículos. No que concerne ao ponto 3. da matéria de facto provada, atinente à recusa do Arguido em dali tirar o seu veículo, a mesma ficou patente logo das suas declarações, uma vez que considerou, por um lado, que os agentes se deviam preocupar com os veículos sem dístico de morador e, por outro, alega que apenas poderia ir em marcha atrás e não seguir em frente. Mais uma vez tornou-se claro da restante prova produzida, não só que os agentes municipais deixaram outros veículos irem em marcha atrás, conforme as declarações de HH e II, como a circunstância de o Arguido podia, ao contrário do que alega, ir com o seu veículo em frente, como explicou a testemunha KK. De facto, explicou esta testemunha, de forma clara, que o veículo do Arguido poderia seguir em frente, sendo apenas uma “volta grande à vila toda para voltar ali à rua”. No que respeita à factualidade constante dos pontos 4. a 10. e 13. da matéria de facto provada, atinente à recusa do Arguido, perante vários agentes, em se identificar, mesmo após ser informado que cometida o crime de desobediência, atendeu o Tribunal às declarações dos agentes BB, CC, DD e GG, bem como às declarações da testemunha KK e II. De facto, apesar de o Arguido ter negado que lhe tenham dito que cometia o crime de desobediência, a verdade é que todos os agentes da polícia municipal o afirmaram, explicando que foi dito por diversas vezes que cometeria o crime de desobediência. Também a testemunha KK foi honesta e clara a referir que sim, foi advertido da prática do crime de desobediência, não mostrando qualquer dúvida do ocorrido. Também a testemunha II afirmou que os agentes disseram ao Arguido que cometia o crime de desobediência, caso não se identificasse. A recusa do Arguido em se identificar resultou evidente do seu discurso, uma vez que chegada a GNR se identificou de imediato, sendo tal compatível com a versão apresentada pelos agentes da policia municipal que afirmaram que o Arguido referia que não se identificava a eles e apenas a um OPC (órgão de policia criminal). Assim, e apesar de se provar o alegado pelo Arguido, de que estava descalço, de calções e t-shirt, confirmado pelas testemunhas CC e FF, que apesar de não se lembrarem exatamente da roupa confirmaram que o Arguido se encontrava descalço, resultou provado que não deu a sua identificação porque não quis e não por não a ter no local. Aliás, do próprio discurso do Arguido se tornou patente que não o fez por não querer e considerar que era a polícia municipal que o tinha de informar de formas alternativas de identificação, demonstrando a sua atitude arrogante, provocadora e desrespeitosa. Não se torna verossímil que, tendo-se identificado à GNR, estivesse impossibilitado de fazê-lo perante a polícia municipal, tendo antes resultado provado que não o quis fazer, mesmo após ser advertido que incorria, pela recusa, na prática de um crime de desobediência. No que respeita à matéria constante dos pontos 11. e 12. relativa à vontade do Arguido em desobedecer, agindo de forma voluntária e consciente, atendeu o Tribunal Às suas declarações, conjugadas com as regras da experiência comum. De facto, qualquer pessoa, mais ou menos instruída, sabe que se deve identificar à Polícia Municipal, sendo que, no caso concreto, por ter o seu veículo em local não permitido, tinha o Arguido o conhecimento de que tal entidade o podia autuar. Ademais, e apesar de apenas ter completado o 9.º ano de escolaridade, mostrou o Arguido ter (ou julgar ter) conhecimento acima da média cerca das competências das polícias municipais, pelo que sabia que era obrigado a identificar-se perante tal entidade. De toda a prova produzida resultou que o Arguido, face à abordagem dos agentes da polícia municipal, que considerou excessiva e desproporcionada, resolveu não se identificar perante eles, ao contrário do que outros vizinhos com veículos mal estacionados fizeram, como as testemunhas HHe II. Aliás, várias testemunhas referiram de forma espontânea que os agentes deveriam aplicar então coimas a todos os veículos, especialmente os que não tivessem dístico (KK, JJ) resultando das declarações de todas as testemunhas que se gerou uma situação de conflito, embora imputem à outra parte a causa de tal conflito. No que concerne aos pontos 14. e 15. da matéria de facto provada, atinentes à identificação, do Arguido perante os elementos da GNR, a mesma foi declarada não só pelo Arguido, como confirmada pelas testemunhas BB, CC e KK. No que concerne aos pontos 16. a 21. da matéria de facto provada, atinente às condições sócio-económicas do Arguido e ao que consta do seu certificado do registo criminal, teve o Tribunal em consideração as suas declarações que, nesta parte, se reputaram de credíveis, bem como o certificado do registo criminal junto aos autos a 01.07.2024. Por todo o exposto, formou o Tribunal a sua convicção.” * ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DA SENTENÇA RECORRIDA “Do crime de desobediência O Arguido vem acusado da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348.º n.º s 1 do Código Penal, por referência ao artigo 10.º n.º 2 do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, Aviso n.º 4006/2021, de 16 de maio, publicado na II Série do Diário da República. À luz do disposto no artigo 348.º, no seu n.º 1: “1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”. Por seu turno, o n.º 2 do artigo 10.º do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra estabelece que “a resistência ou a falta de obediência a ordem ou mandado legítimos regularmente comunicados e emanados de agente da policia municipal serão punidos com a pena prevista para o crime de desobediência”. Já nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea b) e i) da Lei 9/2004, de 20/05 “as polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de: (…) b) Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal. (…) i)Instrução dos processos de contra-ordenação e de transgressão da respectiva competência;”. Ora, este crime tem como elementos objetivos do tipo: “a) a ordem ou mandado; b) a sua legalidade formal e substancial; c) a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; d) a regularidade da sua comunicação ao destinatário; e) a cominação não legal, mas expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência (alínea b); f) o conhecimento pelo agente dessa ordem”1. Por seu turno, no que que respeita ao elemento subjetivo do tipo, para a sua verificação exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades enunciadas no art.º 14.º, do Código Penal2. Relativamente aos elementos objetivos, verifica-se que existiu uma ordem legítima de uma autoridade competente, na medida em que os agentes da polícia municipal que ordenaram ao Arguido que se identificasse, podiam fazê-lo por o Arguido ser suspeito da prática de uma contra-ordenação (por estacionar em local não permitido). A policia municipal tem competência, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea b) e i), da Lei 9/2004, de 20/05, não só para efetuar fiscalização relativa ao estacionamento, como instrução do respetivo processo contra-ordenacional, tendo pois total legitimidade para ordenar que o Arguido se identificasse. Efetuaram os agentes municipais, de forma clara e regular, a cominação ao destinatário das da ordem de identificação, tendo, pois, o Arguido o conhecimento da ordem dada e capacidade para a compreender. Ora, no caso concreto, perante a recusa do Arguido em identificar-se, foi feita a cominação do cometimento do crime de desobediência, não sendo a mesma acatada. Assim, e sendo através do documento de identificação que o Arguido se deveria identificar, nos termos do disposto no artigo 250.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, e não se tendo provado que não tivesse acesso ao mesmo, não lhe era permitido a identificação por outro meio. Não só resultou provado que o Arguido não se identificou porque não quis, por não reconhecer autoridade à polícia municipal para tal, como perante a GNR já se identificou, resultando evidente que teria conseguido fazê-lo perante os agentes municipais, caso o pretendesse, o que não aconteceu. Deste modo, no caso em apreço, verifica-se estarem preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do tipo. Por fim, inexistem causas de justificação da ilicitude e de exclusão da culpa. Pelo exposto, verifica-se que o Arguido cometeu um crime de desobediência, previstos e punidos pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.” * DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA NA SENTENÇA RECORRIDA “O crime de desobediência é punido pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, nos termos do n.º 1, do artigo 348.º, alínea a), do Código Penal. Sendo os crimes, em alternativa, punidos com pena de multa ou de prisão, há que fazer a opção pela pena a aplicar ao Arguido. Isto porque, sendo o crime punível, em alternativa, com pena de prisão e pena de multa, deve sempre ser dada preferência à pena de multa, quando esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Não tendo o Arguido averbado no seu certificado do registo criminal qualquer condenação averbada, considera o Tribunal que a pena de multa ainda acautela de forma suficiente as finalidades da punição, já que, com a aplicação da mesma, se antecipa, por parte do Arguido, um reconhecimento do desvalor da sua conduta e a uma alteração no seu comportamento. Feita a opção pela pena concreta a aplicar (a pena de multa), importa agora determinar a medida concreta da pena a aplicar ao Arguido, pena essa que é limitada pela sua culpa revelada nos factos, de acordo com o artigo 40º, n.º 2 do Código Penal, e terá de se mostrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos. 40º, n.º 1 e 71º, ambos do Código Penal. Assim, em face da factualidade apurada importa ponderar: Em sede de culpa, o comportamento do Arguido merece censura, na medida em que o mesmo teve consciência da ilicitude da sua conduta e, por outro lado, não se verificou nenhuma circunstância que afaste a exigibilidade de um comportamento lícito. As exigências de prevenção geral são muito elevadas, atendendo ao número elevados de ilícitos desta natureza praticados na nossa comarca. As exigências de prevenção especial são medianas, na medida em que, apesar de não averbar condenações pela prática de qualquer crime, a falta absoluta de reconhecimento do desvalor das condutas é indicativa das exigências de prevenção especial. Também as condições sócio-económicas do Arguido serão consideradas, que se encontra integrado familiar, profissional e socialmente, neste âmbito. * Assim, ponderados todos os fatores acima referidos, decide o Tribunal aplicar a pena de 95 dias de multa. Atenta a situação económica do Arguido, e tendo como limite mínimo €5,00 e limite máximo €500,00, segundo o disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, entende o Tribunal que é adequado que cada dia de multa corresponda à quantia de € 10,00, o que perfaz o total de €950,00” *** * *** III - APRECIAÇÃO DO RECURSO No presente recurso, o recorrente alega síntese que da decisão recorrida não constam todos os elementos objetivos do crime de desobediência, uma vez que o “crime de desobediência, por o agente ter omitido uma conduta imperada, pressupõe a prova de que estava em condições de cumprir a ordem dada, sendo requisito da condenação que conste da acusação que, no local da ocorrência, tinha a sua identificação em seu poder (…) e que podia ter cumprido a ordem dos agentes da PM e que apenas não o fez porque não quis..” Apreciando a presente alegação, entendemos que não assiste razão ao recorrente. Em primeiro lugar, ao contrário do alegado pelo recorrente, os elementos típicos objetivos do crime de desobediência pelo qual foi condenado encontram-se tipificados no artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, para o qual, necessariamente remete o artigo 10.º n.º 2 do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, Aviso n.º 4006/2021, de 16 de maio, publicado na II Série do Diário da República. Nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, «1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; (…)». Por seu turno, o n.º 2 do artigo 10.º do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra estabelece que “a resistência ou a falta de obediência a ordem ou mandado legítimos regularmente comunicados e emanados de agente da policia municipal serão punidos com a pena prevista para o crime de desobediência”. Da conjugação destes normativos, resulta claro que os elementos objetivos típicos deste crime são a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, e a falta ou resistência à mesma. Ligando estes elementos típicos está, a noção de desobediência penalmente relevante que se traduz no não acatamento, por ação ou omissão, de uma ordem legítima dada por uma autoridade competente, regularmente comunicada por uma via adequada, constituindo-se, para o visado, num dever de obediência. Neste plano, sobre a natureza das Polícias Municipais e suas competências e poderes, o Parecer da Procuradoria Geral da República n.º 2971, homologado em 23.06.2008, refere que “as polícias municipais são, de acordo com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio, serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa no espaço territorial correspondente ao do respectivo município (…) As polícias municipais não constituem forças de segurança, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias de órgãos de polícia criminal, excepto nas situações referidas no artigo 3.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 19/2004. (…) Os agentes de polícia municipal podem exigir a identificação dos infractores quando necessário ao exercício das suas funções de fiscalização ou para a elaboração de autos para que são competentes (artigos 14.º, n.º 2, da Lei n.º 19/2004, e 49.º do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro; (…) O não acatamento dessa ordem pode integrar a prática do crime de desobediência previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, da Lei n.º 19/2004, 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 40/2000, de 17 de Março, e 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;(…)” Estando em causa um crime formal, o tipo de ilícito objetivo exige apenas estes elementos para a sua consumação. No caso em apreço, a ordem de identificação foi dada no âmbito da função de fiscalização das normas de estacionamento de veículo e de circulação rodoviária, ao visado por tal ato de fiscalização, pelo que estamos perante uma ordem legítima, emanada por autoridade competente, comunicada ao arguido adequadamente. Não se colocando neste recurso qualquer questão sobre a ordem em si mesma e o dever de acatamento por parte do arguido, mas apenas sobre a capacidade e possibilidade dele a acatar, apenas nos cingiremos a esta dimensão subjetiva. Afastada a situação de uma impossibilidade física e/ou legal de cumprimento da próprio ordem, independentemente do visado, que em si mesmo afastava a possibilidade de da mesma resultar o correspetivo dever de obediência, torna-se manifesto que a impossibilidade ou incapacidade do visado em cumprir a mesma não se coloca no plano do tipo de ilícito objetivo, mas no plano da censura jurídica dirigida ao agente pela prática do facto. Em suma, a questão pressuposta pelo recorrente coloca-se ao nível do tipo de ilícito subjetivo. Num primeiro plano, só deve obediência a uma ordem legitima se a mesma for possível de cumprir pelo visado, o que pressupõe que a mesma seja física e/ou juridicamente passível de ser cumprida pelo obrigado à obediência, o que nos remete para as condições pessoais do mesmo para o seu cumprimento na situação concreta em análise. Num segundo plano, decorrente do primeiro, é necessário que o agente atue com culpa no seu não acatamento. Com efeito, como refere o Professor Jorge de Figueiredo Dias, “A categoria da culpa jurídico-penal adiciona um novo elemento (uma nova qualificação) à acção ilícita-típica, sem o qual nunca poderá falar-se de facto punível. Este não se esgota na aludida desconformidade com o ordenamento jurídico-penal, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sócio-comunitário”3 Radicando esta censura no valor da liberdade pessoal do agente enquanto reflexo da sua personalidade reflectida no facto praticado, só age com culpa quem podendo agir de acordo com a imposição legal, escolhe livremente o não fazer, enquanto reflexo de uma personalidade expressa no facto, desconforme às exigências do Direito. Assim compreendido o núcleo essencial de avaliação da possibilidade/capacidade do arguido concreto, na situação em apreciação, em agir conforme o tipo de ilícito objetivo descrito na norma legal, torna-se evidente que esta avaliação exige que se avalie todo o contexto fático ocorrido, por forma a poder concluir-se que o não acatamento da ordem resultou da liberdade pessoal do mesmo em querer não se conformar com a mesma. Como assertivamente refere o Professor Jorge de Figueiredo Dias, “a culpa é materialmente, em direito penal, o ter que responder pela personalidade que fundamenta um facto ilícito-típico e nele se exprime”, 4 fundada na “liberdade daquele que tem de agir assim por ser como é”.5 Tendo presente este enquadramento, analisando a matéria de facto dada como provada e a própria convicção expressa pelo Tribunal a quo, é manifesto que resulta provado que o ora arguido podia ter acatado a ordem dos agentes da polícia municipal, como o fez quando interpelado pelos agentes da GNR que se deslocaram ao local dos factos. Ao arguido foram dadas todas as condições para que o mesmo cumprisse com a ordem legítima emanada por uma autoridade competente, não tendo o mesmo a acatado apenas porque não o pretendeu fazer perante a polícia municipal, tanto mais que o fez logo que interpelado pelos agentes da GNR. Por outro lado, resultava da acusação e foi dado como provado na decisão recorrida que “Embora soubesse que, naquelas circunstâncias, era obrigatório identificar-se perante os agentes de autoridade, o Arguido quis mesmo assim recusar-se a cumprir tal obrigação. O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de não cumprir a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que a mesma era legítima, regularmente comunicada e emanada de autoridade competente no exercício das suas funções”, acrescentando-se ainda, na decisão recorrida, que “Tendo os militares da GNR ido falar com o Arguido, este identificou-se perante os militares.” Em conclusão, da decisão recorrida – tal como da acusação – já constavam todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de desobediência, bem como da prova produzida resulta inequivocamente a sua verificação no caso concreto, não havendo, sequer, qualquer fundamento para a rejeição da acusação, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d) do Código de Processo Penal, nem a decisão recorrida, ao dar como verificado o crime de desobediência, violou o princípio do acusatório constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa Por outro lado, é manifesto que o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida na verificação de tal factualidade, pelo não tem cabimento o recurso ao princípio in dúbio pro reo, que pressupõe sempre a existência de uma dúvida inultrapassável quanto a um facto constitutivo do crime imputado, o que não ocorre no caso em apreço. Nestes termos, e, nesta parte, improcede o presente recurso. * Vem o recorrente invocar a inconstitucionalidade do artigo 10.º n.º 2 do Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, Aviso n.º 4006/2021, de 16 de maio, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c) e o artigo 29.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, alegando, em síntese, que, “não tendo sido o Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra aprovado nem pela Assembleia da República, nem pelo Governo em funções à data com a respetiva autorização da Assembleia da República, este Regulamento do Serviço de Polícia Municipal do Município de Sintra, não pode ter uma norma, como tem, a legislar sobre o crime de desobediência no artigo 10.º n.º 2” Entendemos que não assiste razão ao recorrente. Com efeito, a norma referida do Regulamento do serviço da Policia Municipal de Sintra não é inovadora quanto à configuração do crime, apenas transpondo para o Regulamento o teor da norma prevista artigo 14.º da Lei n.º 140/99, de 28.8, que dispõe «1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos que tenham sido regularmente comunicados e emanados do agente de polícia municipal será punido com a pena prevista para o crime de desobediência. 2 - Quando necessário ao exercício das suas funções de fiscalização ou para a elaboração de autos para que são competentes, os agentes de polícia municipal podem identificar os infractores, bem como solicitar a apresentação de documentos de identificação necessários à acção de fiscalização, nos termos da lei.» (atual artigo 14.º da Lei 19/2004, de 20.5). No que diz respeito à cominação do crime de desobediência o Regulamento citado nada acrescenta ao citado artigo 14., n.º 1, remetendo este para o artigo 348.º do Código Penal, donde constam os elementos típicos constitutivos do crime de desobediência, constituindo este o suporte normativo que fundamenta a incriminação ora em apreciação. Sendo estes últimos dois diplomas emanados pela Assembleia da República, não existe qualquer violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea c) e 29.º, ambos da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos, improcede, nesta parte, o recurso. * Vem ainda o recorrente, como fundamento para o seu recurso, alegar, em síntese, “que o Tribunal a quo, no enquadramento jurídico-penal, fez menção do disposto no artigo 4.º, alíneas b) e i) da Lei 19/20024, de 20.05, sem que tal norma fosse indicada como disposição aplicável aos factos imputados ao recorrente na acusação, conforme exigem os artigos 283.º n.º 3 alínea d) e 311.º n. º3 alínea c) ambos do Código de Processo Penal e sem que o tribunal tenha comunicado previamente a alteração da qualificação jurídica, nos termos dos artigos 358.º n.º 1 e 2 do CPP, para aquele se pronunciar sobre o novo enquadramento penal dos fatos.” Quanto a este ponto, não assiste qualquer razão ao recorrente uma vez que da acusação apenas devem constar os factos constitutivos do crime imputado e a norma penal incriminadora. Ora, quanto a este último ponto, a norma relevante é artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, sendo todas as demais referências legislativas, meras concretizações do enquadramento legal da atividade da polícia municipal de Sintra, relevantes para a situação em concreto. Não fazendo estas menções parte da norma incriminadora, não só as mesmas não tinham de estar indicadas na acusação, como a sua menção na decisão recorrida não exigia a sua prévia comunicação ao arguido, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal. A sua referência na decisão deste enquadramento legislativo apenas visa tornar mais compreensível o conteúdo normativo pressuposto, no caso em apreço, na imputação ao arguido do crime de desobediência. A maior ou menor fundamentação deste enquadramento apenas pode relevar, na medida em que a sua falta pudesse comprometer a compreensão do sentido da decisão, na suficiência da fundamentação jurídica da mesma. Aliás, no caso em apreço, o enquadramento jurídico da atuação dos agentes da polícia municipal feito na decisão recorrida cinge-se à estrita atuação dos mesmos no caso em apreço e descrita na acusação, factualidade a que o arguido teve toda a possibilidade de se defender de facto e de direito. Em suma, a norma incriminadora relevante reside no Código Penal, no seu artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, pelo que nenhuma nulidade padece a decisão recorrida ao fazer menção aos demais normativos citados. Improcede, nesta parte, o recurso interposto. * Por fim, alega o recorrente que a pena aplicada é excessiva, “tendo em conta a conduta anterior e posterior ao facto, que o crime dos autos é o crime de desobediência simples, a ausência de antecedentes criminais, que a favor do Recorrente militam as necessidades de prevenção especial que são diminutas, considerando a pouca gravidade das mesmas, a inexistência de danos provocados, havendo somente a ressaltar o dolo”, pugnando pela aplicação de uma pena de 40 dias de multa à taxa diária de 5,00 Euros. Estando em causa apenas a medida concreta da pena de multa aplicada e o seu quantitativo, apenas a esta matéria nos cingiremos. Nesta matéria, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos: “Assim, em face da factualidade apurada importa ponderar: Em sede de culpa, o comportamento do Arguido merece censura, na medida em que o mesmo teve consciência da ilicitude da sua conduta e, por outro lado, não se verificou nenhuma circunstância que afaste a exigibilidade de um comportamento lícito. As exigências de prevenção geral são muito elevadas, atendendo ao número elevados de ilícitos desta natureza praticados na nossa comarca. As exigências de prevenção especial são medianas, na medida em que, apesar de não averbar condenações pela prática de qualquer crime, a falta absoluta de reconhecimento do desvalor das condutas é indicativa das exigências de prevenção especial. Também as condições sócio-económicas do Arguido serão consideradas, que se encontra integrado familiar, profissional e socialmente, neste âmbito. * Assim, ponderados todos os fatores acima referidos, decide o Tribunal aplicar a pena de 95 dias de multa. Atenta a situação económica do Arguido, e tendo como limite mínimo €5,00 e limite máximo €500,00, segundo o disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, entende o Tribunal que é adequado que cada dia de multa corresponda à quantia de € 10,00, o que perfaz o total de €950,00” O Código Penal consagra a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, sendo a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade». Para a determinação da medida concreta da pena a aplicar, o Código Penal enuncia no artigo 71.º n.º 1 do Código Penal, define os princípios gerais, e no n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas circunstâncias agravantes e atenuantes a atender nesta matéria. Se a matriz fundacional desta operação encontra na culpa, o seu limite superior (em respeito ao plasmado no artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal), e o seu limite mínimo nas razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da proteção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição -, operando as necessidades de prevenção especial ou de socialização do agente neste espaço como critério decisivo de fixação do quantum concreto da mesma, a verdade é que um processo racional que exige do julgador um processo de mediação racional da realidade em apreciação. Como refere a Professora Anabela Miranda Rodrigues, é preciso não esquecer que “diferentemente do que é o caso com o juízo de culpa – que impõe a consideração de fatores que se referem unicamente ao facto cometido e, assim, a circunstâncias que apenas têm a ver com a gravidade do ilícito típico cometido pelo agente e com a culpa que manifesta na sua prática -, a avaliação das necessidades preventivas a satisfazer com a aplicação da pena concreta implica a valoração de circunstâncias alheias ao facto, isto é, atípicas ou extratípicas atinentes à pessoa do agente e à comunidade em geral. Sendo certo que, deste ponto de vista (preventivo), é um juízo de proporcionalidade entre a gravidade da lesão dos direitos do agente (com a aplicação da pena) e a (medida das necessidades preventivas entre si articuladas) – a utilidade da pena para a prevenção – que define a pena concreta a aplicar.”6 Este processo racional e cognitivo deve transparecer na decisão a proferir, por forma a que se possa, de algum modo, sindicar o respeito da mesma aos critérios normativos de determinação concreta da pena impostos pela lei penal. Aos Tribunais da Relação, em sede de recurso no âmbito da dosimetria da pena, cabe averiguar da adequação daquele processo de determinação da medida concreta da pena aos factos do caso concreto, em respeito pelos critérios plasmados no citado artigo 71.º do Código Penal. Este controle jurisdicional faz-se em três planos distintos: Em primeiro lugar, no plano da avaliação se a decisão recorrida enumera de forma suficiente e adequada os fatores e circunstâncias que estiveram na base da sua decisão quanto à escolha e fixação da medida concreta da pena, sendo este plano prévio aos demais planos de análise. Em segundo lugar, deve sindicar da correção das operações de determinação atento os critérios enunciados no artigo 71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal. Em terceiro lugar, deve avaliar o quantum exacto da pena fixado, determinado dentro dos parâmetros por si enunciados. Aqui chegados, entendemos que tendo o Tribunal a quo indicado na sua decisão todas as circunstâncias relevantes para tal fixação, bem como expressado de forma racional e lógica o processo subjacente à fixação do quantum da pena, o Tribunal de Recurso apenas deve alterar o mesmo em casos em que o peso relativo das mesmas esteja desproporcionalmente valorado, daí resultando uma manifesta desadequação da pena, que ultrapassa o necessário espaço de discricionariedade que tal fixação envolve. Nesta matéria, partilhamos o entendimento da Professora Anabela Miranda Rodrigues quando refere que “a racionalidade que se exprime na decisão judicial quanto à medida concreta de uma pena convoca a discricionariedade; ou, como se aceita além-mancha, deve contar com uma margem de flexibilidade. Porque, agora numa formulação mais chegada às nossas preocupações punitivas, a relação do juiz com o facto, o condenado e a situação é uma relação existencial.”7 Só é possível aceitar tal discricionariedade na medida em que a mesma se baseia num método racional de fixação do quantum da pena. Por isso mesmo, não se pretende neste processo de sindicância, em primeira linha, determinar o que o Tribunal de Recurso, colocado na posição do Tribunal a quo, decidiria quanto à pena a aplicar ao recorrente. O que se pretende é saber se o processo de fixação está devida e racionalmente fundamentado, se a pena fixada respeita os critérios fixados no artigo 71.º do Código Penal em face do caso em concreto, e se o quantum da pena assim obtido, se situa naquele espaço discricionário racional de valoração, proporcional aos critérios enunciados. Analisando a decisão recorrida, constata-se que a mesma enuncia de forma fundamentada os pressupostos que estiveram na base da fixação da pena, e os mesmos respeitam os critérios legalmente impostos. Urge apenas discutir se a pena fixada ponderou devidamente o peso de cada um e se respeitou aquele espaço de discricionariedade racional do julgador. Avaliando a culpa do arguido, dir-se-á que a mesma, atenta a natureza do crime em apreço, é muito elevada porquanto toda a sua conduta pautou-se por uma manifesta vontade de menorizar a autoridade dos agentes da policia municipal envolvidos num espaço público, bem sabendo que com isso estava a colocar em causa de forma séria o respeito que deve ser devido a esta autoridade pública por todos os cidadãos. Ainda assim, entendemos que o facto não apresenta uma tal gravidade que, no plano abstrato do crime em apreço, demonstre estarmos perante uma personalidade expressa no facto, tão desconforme que coloque a sua culpa perto do limite máximo da moldura abstrata da pena aplicável, como pressupõe a decisão recorrida (tanto mais que esta é a primeira condenação do arguido), antes a mesma deve situar-se no limite dos 3/4 da mesma. Assim, a pena a fixar nunca poderia ser superior a 90 dias de multa. Deste modo, a pena a fixar nunca poderia situar-se nos 95 dias como foi decidido pelo Tribunal a quo, sendo necessária a sua reformulação. Para o efeito, e como da decisão recorrida constam todos os elementos necessários para a sua determinação, far-se-á a mesma no âmbito deste recurso. No que diz respeito ao limite mínimo, refere a decisão recorrida, “As exigências de prevenção geral são muito elevadas, atendendo ao número elevados de ilícitos desta natureza praticados na nossa comarca”. Acresce que o arguido ao atuar da forma pública como o fez, tornou ainda mais prementes tais exigências. Nestes termos, o limite mínimo deve situar-se bem acima da mediana da pena, uma vez que as necessidades comunitárias de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada assim o impõem, sob pena de vermos a autoridade do Estado seriamente comprometida. Nestes termos, situamos o limite mínimo nos 70 dias de multa. Dentro destes dois limites – 70 a 90 dias – apenas operam as exigências de prevenção especial de socialização do agente. No caso concreto, estando o arguido familiar, social e laboralmente integrado, a pena deve situar-se mais perto do limite mínimo, apenas devendo ser considerada a necessidade de o mesmo compreender a ilicitude da sua conduta e a sua gravidade, por forma a alterar o seu comportamento futuro. Tudo ponderado, entendemos que é justa e proporcional a pena de 75 dias de multa. Quanto à fixação do quantitativo diário da multa, a mesma tem de ser entendida como uma operação totalmente autónoma da fixação dos dias de multa, não só na medida em que que os critérios para a sua fixação são distintos, como, principalmente, os dias de multa fixados não podem em nenhuma medida condicionar o valor do quantitativo diário. Quanto ao quantitativo diário da multa, atento o facto de o limite mínimo se situar nos 5,00 Euros e o máximo em 100,00 Euros, é manifesto que estando em causa um arguido que aufere o rendimento mensal de 1.000,00 Euros, a taxa preconizada pelo recorrente de 5,00 Euros é completamente desadequada. Nesta matéria, temos que ter atenção à realidade económica existente à data da fixação dos referidos valores – o ano de 2021, ano em que foi publicado o Decreto-Lei n.º 323/2001, diploma que fixou tais quantitativos – e o ano de 2024. Em Janeiro de 2002 a retribuição mínima mensal garantida, vulgo, salário mínimo nacional, situava-se nos 348,01 Euros, sendo que em 2024 a mesma situava-se em 820,00 Euros, um crescimento de 135,62%.8 Por sua vez, a remuneração média mensal bruta era em 2002 de 693,67,00 Euros9, sendo em 2024 de 1.295,00 Euros, o que corresponde, nestes 22 anos, a um crescimento de 136,5%.10 Tendo presente este enquadramento económico, torna-se evidente que é necessário que o julgador atenda ao mesmo aquando da fixação do valor diário da multa, não podendo remeter-se para o valor mínimo indicado no artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal em situações, como a dos autos, em que a remuneração é de 1.000,00 Euros. Em face da evolução económica ocorrida nestes 22 anos, não podemos deixar de considerar adequado a e proporcional o valor de 10,00 Euros diários fixados na decisão recorrida, tanto mais que ao arguido assiste o direito de pedir o pagamento da multa em prestação, nos termos do disposto no artigo 47.º, n.º 3 do Código Penal, caso entenda não ter condições para o seu pagamento de uma só vez. Pelo exposto, e nesta parte, procede o recurso parcialmente. *** * *** IV – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação: 1. Julgar parcialmente procedente o recurso, condenando o arguido AA pela prática, a ........2022, de um crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros) perfazendo o total de €750,00 (setecentos e cinquenta euros). 2. Julgar, no mais, improcedente o recurso interposto. * Sem custas [artigos 513.º, n.o 1, a contrário do Código de Processo Penal]. *** * *** Lisboa, 21.01.2025 (Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP) João António Filipe Ferreira João Grilo de Amaral Paulo Barreto ____________________________________________________ 1. Assim, Acórdão do TRC de 23.05.2012; relator: Brízida Martins; processo: 569/10.1TATNV.C1. 2. Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2010, pág. 915. 3. Dias, Jorge de Figueiredo Dias (...) “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, p. 231. 4. Dias, Jorge de Figueiredo Dias (...) “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, p. 242. 5. Dias, Jorge de Figueiredo Dias (2019) “Direito Penal, Tomo I – Questões Fundamentais: a Doutrina Geral do Crime”, 3.ª edição, Gestelag, p. 617. 6. Cfr. Rodrigues, Anabela Miranda (2024) “40 anos do Código Penal: 1982-2022”. Coimbra, FDUC, p. 112,113. 7. Cfr. Rodrigues, Anabela Miranda, Op. cit, p.118,119 8. Cfr. https://www.dgaep.gov.pt/index.cfm?OBJID=9e569f81-68f4-49c5-bab4-c698b807cd9a 9. Cfr. Jornal de Negócios 10. Cfr. Datalabor |