Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
285/24.7PFVFX-A.L1-9
Relator: ANDRÉ ALVES
Descritores: MEDIDAS DE COAÇÃO
INCUMPRIMENTO
ALTERAÇÃO
PEDIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECLARAÇÃO DE IRREGULARIDADE
Sumário: 1. Às decisões que aplicam medidas de coação atribui-se a característica rebus sic stantibus, ou seja, a decisão vigora enquanto não se alterarem as circunstâncias de facto, e até de direito, que se verificavam no momento em que a decisão foi proferida (art. 204º, nº1 do CPP).
2. A alteração das circunstâncias pode verificar-se pelo incumprimento/violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coação (art. 203º, nº1 do CPP).
3. A decisão sobre a substituição das medidas de coação por outras mais graves, em resultado da violação de obrigações impostas, deve incidir sobre requerimento do Ministério Público, aqui regendo o princípio do pedido.
4. Formulado este pedido pelo Ministério Público na sequência da acusação por si deduzida, e sem embargo de se haver requerido acessoriamente a audição do arguido, constitui a irregularidade prevista no art. 123º do CPP a decisão que consista no simples indeferimento da audição do arguido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No âmbito do processo de inquérito nº285/24.7..., na sequência de 1º interrogatório judicial de arguido detido, ocorrido a ...-...-2024, foram aplicadas ao arguido AA, as seguintes medidas de coação:
a) Proibição de contactos com a vítima por qualquer meio, directamente ou por interposta pessoa, ou de dela se aproximar a menos de 500m;
b) Proibição de permanecer ou de se aproximar da residência ou local de trabalho da vítima, a menos de 500m;
c) Obrigação de apresentação semanalmente, no posto policial da área da sua residência, daquela que venha a indicar aos autos.
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2. O arguido AA, foi, posteriormente, acusado pela prática de um crime de crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art. 152º, nº1, alínea a), nº2, alínea a) e nº4 do Código Penal, sendo que na parte relativa ao “Estatuto Coactivo”, promoveu o Ministério Público: “ … Conforme resulta do aditamento nº8, de ...-...-2024 (ref. Citius 16110746), o arguido continua a residir em casa da vítima, onde convalesce de assistência hospitalar recebida no Hospital .... No dia ...-...-2024 procedeu-se à reavaliação de risco (ref. Citius 16093777). No decurso deste contacto, a vítima confirmou que o arguido reside com ela desde o passado dia ..., data em que necessitou de receber assistência médica no Hospital..., e após ser atendido, pediu ao filho que o fosse recolher. Mais informou que a situação que deu origem ao presente processo de violência doméstica foi um caso único, que desde aí, o arguido se sentiu envergonhado do que havia feito e desculpou-se pelos seus atos. No final da entrevista, o nível de risco avaliado foi baixo.
Não obstante o teor das últimas declarações da ofendida, a natureza e duração da relação conjugal entre arguido e vítima, conjugada com as características da personalidade e situação pessoal do próprio, que no decurso do 1º interrogatório reconheceu a prática dos factos que lhe são imputados, mas sem demonstrar verdadeiro alcance da gravidade e ilicitude dos mesmos, potencia a ocorrência de novos factos da mesma natureza. Com efeito, a circunstância de o arguido fazer uso de uma faca para ameaçar a vítima, anunciando males maiores, como sendo esfaqueá-la ou matá-la, entende-se ser muito elevado o perigo de continuação da atividade criminosa, sendo previsível que o arguido, tendo acesso à vítima, repita este tipo de comportamentos.
Face ao exposto, remeta de imediato os autos ao Mmo(a) Juiz de Instrução Criminal, a quem se promove que seja designada data para realização de interrogatório judicial de arguido em liberdade nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 144º e 212.º, nº4 do Código de Processo Penal com vista à substituição das medidas de coação aplicadas, a cumular com a medida coativa de termo de identidade e residência já prestado pelo arguido no âmbito dos presentes autos, por se considerar que, e salvo melhor entendimento, se figuram adequadas e proporcionais para assegurar as exigências cautelares dos presentes autos, desde já, o Ministério Público promove que o arguido seja sujeito a medidas mais gravosas que as aplicadas em virtude destas não se terem mostrados suficientes para acautelar os perigos que o caso encerra.
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3. Sobre esta promoção recaiu a decisão da qual se recorre, e que tem o seguinte teor:
Pese embora o arguido tenha incumprido as medidas de coacção a que ficou sujeito em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o certo é que resulta dos autos que foi o filho do arguido quem o levou para a residência da ofendida, após o arguido ter recebido assistência médica no Hospital ..., desconhecendo-se o estado de saúde do arguido, que já conta com 80 anos de idade. Por outro lado, a vitima tem informado que o arguido não mais a molestou e que o presente processo fez com que o arguido se sentisse envergonhado.
Assim sendo, face ao descrito contexto, e uma vez que o arguido tem uma idade avançada e se desconhece o seu estado de saúde, assim como e as concretas motivações que determinaram que o filho do arguido e da vitima, o tivesse deixado na residência da ofendida após o mesmo ter recebido assistência hospitalar. Ou seja, parece-nos que a permanência do arguido naquela habitação não foi uma escolha voluntária do arguido e um incumprimento consciente e doloso das medidas de coacção, mas sim por decisão do seu filho, em resultado de eventuais problemas de saúde de que o arguido padecerá.
Acresce que a vitima declarou sentir-se segura.
Pelo exposto, uma vez que as suscitadas questões não se mostram esclarecidas, indefere-se a realização do interrogatório ao arguido.
Devolva ao Mº Pº.
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4. Inconformado com a decisão transcrita em 3, o Ministério Público interpôs o presente recurso, terminando a motivação através da formulação das conclusões que se transcrevem:
A) Vem interposto o presente recurso do douto despacho que, não obstante, a notícia da violação das obrigações impostas por aplicação da medida de coação de proibição de contactos com a vítima, não extraiu quaisquer consequências do comportamento displicente e incumpridor do arguido, conforme lhe competia, e ao arrepio da lei, nomeadamente do artigo 203.º do Código de Processo Penal.
B) O Tribunal a quo ignorou por completo a informação de que o arguido nunca chegou a sair de casa e continuou a residir e contatar com vítima desde ... de ... de 2024.
C) Perante tal incumprimento, deveria ao Tribunal a quo ter designado, desde logo, data para a sujeição do arguido a interrogatório complementar, com vista a reapreciação e eventual alteração/agravamento das medidas de coação que lhe foram aplicadas, nos termos dos artigos 144.º,nº1, 194.º,n.º4, 203.º,n.º1, 204.º,nº1 e 212.º, n.º4, todos do Código de Processo penal.
D) Caberia, ainda, ao Tribunal de Primeira Instância sopesar a natureza e a gravidade dos crimes, as razões da violação das obrigações ou deveres derivados das medidas de coação, a intensidade e dimensão do incumprimento, a ilicitude e culpabilidade da conduta do arguido, e as suas consequências, para no final, decidir se seria de impor ou não outra, ou outras, medidas de coação.
E) Mais, uma vez que a decisão ora tomada não foi precedida da audição do arguido, em sede interrogatório complementar, nos termos conjugados dos artigos 32.o, n.º5 da Constituição da República Portuguesa, 61.º, n.º1, alínea b),144.º,194.º, n.º4, todos do Código de Processo Penal, tal configura uma nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º, alínea c) do Código de Processo Penal.
F) O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 144.º, n.º1, 194.º, n.º4, 203.º, 204.º, n.º1 e 212.º, n.º4, todos do Código de Processo Penal.
Termos em que,
E nos demais de direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, e consequentemente, deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que designe data para a sujeição do arguido a interrogatório complementar, com vista a eventual alteração ou substituição das medidas de coação que lhe foram aplicadas, nos termos dos artigos 144.º,n.º1, 194.º, n.º4, 203.º, 204.º, n.º1 e 212.º, n.º4, todos do Código de Processo Penal.
Porém, Vossas Excelências, apreciando, farão a esperada e costumada JUSTIÇA!”
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5. O recurso foi admitido por despacho proferido a ... de ... de 2025, a subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo.
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6. Ninguém respondeu ao recurso.
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7. Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pela Ex.ma Sra. Procuradora-Geral Adjunta foi emitido douto parecer nos termos previstos no artigo 416 n.º 1 do CPP, com o seguinte teor:
“O âmbito do recurso é definido pelas conclusões, pelas quais se delimitam as questões passiveis de serem apreciadas pelo tribunal ad quem sem prejuízo de este estar obrigado ao conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.19959.
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Foi nos presentes autos proferida decisão em apreciação de requerimento do Ministério Publico na qual se promovia que fosse designada data para realização de interrogatório judicial de arguido em liberdade nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 144.º e 212.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, tendo em vista a substituição das medidas de coação aplicadas mercê de uma situação factual indiciadora do incumprimento das medidas de coação a que o arguido se encontrava sujeito.
Foi indeferida realização do interrogatório tendo-se entendido que “Pese embora o arguido tenha incumprido as medidas de coacção a que ficou sujeito em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o certo é que resulta dos autos que foi o filho do arguido quem o levou para a residência da ofendida, após o arguido ter recebido assistência médica no Hospital ..., desconhecendo-se o estado de saúde do arguido, que já conta com 80 anos de idade. Por outro lado, a vitima tem informado que o arguido não mais a molestou e que o presente processo fez com que o arguido se sentisse envergonhado.
Assim sendo, face ao descrito contexto, e uma vez que o arguido tem uma idade avançada e se desconhece o seu estado de saúde, assim como e as concretas motivações que determinaram que o filho do arguido e da vitima, o tivesse deixado na residência da ofendida após o mesmo ter recebido assistência hospitalar. Ou seja, parece-nos que a permanência do arguido naquela habitação não foi uma escolha voluntária do arguido e um incumprimento consciente e doloso das medidas de coacção, mas sim por decisão do seu filho, em resultado de eventuais problemas de saúde de que o arguido padecerá.
Acresce que a vítima declarou sentir-se segura.
Pelo exposto, uma vez que as suscitadas questões não se mostram esclarecidas, indefere-se a realização do interrogatório ao arguido.”
Inconformado com a decisão dela recorre o Ministério Publico por entender que o Tribunal a quo omitiu uma formalidade prescrita por lei, atento o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 144º, n.º 1, 194º, n.º 4, 203º, 204º, n.º 1 e 212º , n.º 4, todos do Código de Processo Penal face à violação por parte do arguido AA, das obrigações a si impostas pelas medidas de coação aplicadas em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
Refere-se na peça recursória:
“Face aos perigos em presença no caso concreto, competia ao Tribunal a quo, desde logo, designar data para a sujeição do arguido a interrogatório complementar, com vista sopesar a natureza e a gravidade dos crimes, as razões da violação das obrigações ou deveres derivados das medidas de coação, a intensidade e dimensão do incumprimento, a ilicitude e culpabilidade da conduta do arguido, e as suas consequências, para no final, decidir se seria de impor ou não outra, ou outras, medidas de coação, nos termos dos artigos 144º,nº 1, 194º.nº 4, 203º, 204º,n.º 1 e 212º n.º 4 do Código de Processo Penal.
Além disso, a nosso ver, e uma vez que a decisão ora tomada não foi precedida da audição do arguido, nos termos dos artigos 32.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, 61, n.º l, alínea b), 144.º n.º1, 194º, n,º 4, do Código de Processo Penal, tal configura uma nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal de Relação de Évora, de 15,11.2016, Processo n.º221/I2.3JBLSB-F.El, disponível em www.dgsi.pt, e, mais uma vez, Tiago Caiado Milheiro, ob. cit., página 365.” (fim de citação)
Não se desconhece que a jurisprudência e doutrina não é unanime relativamente à consequência desta falta de audição, uns entendem que se trata de uma nulidade dependente de arguição nos termos previstos no artigo 120 n.º 2 al. d) do CPP1, outros uma irregularidade 2. outros como agora defendido uma nulidade prevista no artigo 119 al. c) do CPP.
Revisitando os presentes autos.
Foi em primeiro interrogatório de arguido detido ocorrido a a ........2024, aplicadas ao arguido as seguintes medidas de coação:
a) Proibição de contactos com a vítima por qualquer meio, directamente ou por interposta pessoa, ou de dela se aproximar a menos de 500m;
b) Proibição de permanecer ou de ser aproximar da residência ou local de trabalho da vítima, a menos de 500m;
c) Obrigação de apresentação semanalmente, no posto policial da área da sua residência, daquela que venha a indicar aos autos.
Tudo ao abrigo do disposto nos artigos 191º a 194º, 204º, alíneas b) e c); 200º, n.º 1, alíneas a) e d) do CPP e 31º, n.º 1, alíneas a) e d) da Lei 112/2009, de 16 de setembro.
A ........2024, através de contacto com a ofendida foi averiguado que, àquela data, o arguido se encontrava na residência do casal a residir.
Foi solicitado ao opc a averiguação das circunstâncias em qua tal ocorria, tendo sido obtidas as informações que constam no inquérito nos ofícios juntos a ........2024 e ........2024
No oficio do OPC de ........2024 refere-se: “Comunico então com a denunciante, e questiono-a porque é que o seu marido se encontra em casa, quando lhe foram aplicadas e comunicadas as medidas de coação acima referidas. A denunciante respondeu que o seu marido teria regressado a casa há vários dias, transportado pelo filho de ambos, após ter recebido assistência médica no Hospital ....
A denunciante afirmou que nada fora do normal ocorreu durante a permanência do denunciado em casa, pelo que afirmou sentir-se em segurança.”
1 Neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, CPP anotado , UCP
2 Neste sentido Ac do TRCoimbra de 04.03.2020 proferido no processo 301/19.4PCCBR-B.C1
No oficio do OPC de ........2024 refere-se: “Relativamente ao facto de o denunciado ter contactado de alguma forma a vítima ou de ter voltado a residir na sua residência após o dia ... de ... de 2024, a mesma confirma que sim. Afirma que, no dia ..., o denunciado necessitou de receber assistência médica no Hospital ..., e após ser atendido, pediu ao filho que o fosse recolher. Dali terá ido para a sua residência, permanecendo na mesma até ao presente dia.
A Denunciante afirma que a situação que deu origem a este processo de violência doméstica foi um caso único, que desde aí, verificou que o marido se sentiu envergonhado do que havia feito, tendo-se desculpado pelos seus actos.
Foi efectuada a reavaliação de risco, ficha RVD-2L (primeira avaliação), tendo resultado nível de risco Baixo, conforme ficha que se junta em anexo.”
Em face desta informação o Ministério Publico requereu a audição do arguido, visando a substituição daas medidas de coação aplicadas perante o evidente incumprimento das medidas aplicadas.
Ora, a situação em apreço, nomeadamente considerando a idade dos intervenientes ( 80 anos), marido e mulher , dever requerer cuidados:
Por um lado a ofendida refere que a situação que deu imediatamente origem aos autos ( no mês de ...) se teria tratado de uma situação isolado em contrário daquilo que havia relatado, até então, em sede de inquérito;
As circunstâncias em que o arguido retornou a casa da ofendida (e residência do casal) estão por apurar - o que consta e cada um dos autos é que o arguido teria pedido ao filho para o ir recolher ao hospital. Depois que o filho o transportou para a casa de morada de família - mas a solicitação de quem, em que circunstâncias, sendo que todos estavam conhecedores das medidas de coação aplicadas.
Do inquérito resultam factos preocupantes ocorridos em passado recente, ... – numa discussão do casal motivada pela circunstância de a ofendida ter referido ao marido que desconhecia onde estavam os óculos deste “o arguido empunhou uma faca, dirigiu-a à vítima e disse-lhe que iria esfaqueá-la toda.”, no dia ... por discussão semelhante , mas agora por a ofendida desconhecer onde estavam os comprimidos do arguido este desferiu socos na cara da esposa e arranhou o pescoço da mesma.
A ofendida havia dado conhecimento em sede de inquerido que durante a sua vida de casada com o arguido (desde ... atá ao presente) as discussões entre o casal eram frequentes e que este lhe dirigiu num passado recente expressões como: “Já devia estar a receber a pensão de viuvez”; “Nunca mais morres, maldita”.
Ou seja a fim de avaliar os factos que em si são indiciadores do incumprimento das medidas de coação aplicadas, em nosso entendimento o Mm.º juiz deveria ter efectuado aquilo que o artigo 212º do CPP nomeadamente o seu n.º 4 do CPP impõe, a audição do arguido e em nosso entendimento, a audição da vitima.
O artigo 212º do CPP está dirigido precisamente à verificação sempre actualizada dos pressupostos de aplicação da medidas conforme previsão do artigo 204º do CPP, uma vez que norteiam esta aplicação os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, cfr art.º 193º do CPP.
Ao não o ter efectuado aquelas audições, em nosso entendimento foram violados os princípios do contraditório cfr art.º 32 n.º 5 da CRP3, os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, previsto no artigo 193º do CPP, bem como da legalidade, pois que não se cuidou de apurar da actual verificação dos pressupostos de aplicação das medidas de coação, conforme previsão do artigo 204º do CPP, bem como não foi assegurado à ofendida o direito a ser ouvida e protegida conforme preconiza o direito da União Europeia nomeadamente a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001 cuja transposição alterou a redacção do art.º 212 n.º 4 do CPP, havendo que harmonizar o estatuto coactivo do arguido com as necessidades cautelares que o caso, em concreto, neste momento requer. 3 O princípio do contraditório, com assento no art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, tem no moderno processo penal o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars (que seja ouvida, igualmente, a outra parte) e nemo potest inauditus damnari (ninguém deve ser condenado sem ser ouvido) e impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido, de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte e de influir na decisão através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo. (ac. TRC de 08-02-2023 proferido no processo 168/19.2GTLRA.C1 por consulta em www.dgsi.pt)
Ocorrendo em concreto, de forma actual e permanente a violação das medidas de coação aplicadas nos autos, a saber:
a) Proibição de contactos com a vítima por qualquer meio, directamente ou por interposta pessoa, ou de dela se aproximar a menos de 500m;
b) Proibição de permanecer ou de ser aproximar da residência ou local de trabalho da vítima, a menos de 500m; com conhecimento e anuência do Tribunal.
Em nosso entendimento, deve o despacho ser revogado e determinada a audição do arguido e da ofendida, a fim de se avaliar das actuais necessidades cautelares que o caso reclama, nos termos previstos no artigo 212º do CPP.
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8. Cumprido o preceituado no nº2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, ninguém se pronunciou.
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9. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II – Fundamentação.
1. Questões a decidir no recurso
A motivação do recurso compreende a enunciação dos fundamentos do pedido e termina pela formulação de conclusões que constituem um resumo daqueles. – art. 412º, nº1 do C.P.P.
As conclusões delimitam o objeto do recurso (art. 412º, 417º, nº3 e 420, nº1, al. c), todos do C.P.P.), devendo a análise a realizar pelo Tribunal de recurso circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (art. 417º, nº6, al. a), b) e c) e 420º, nº1 ambos do Código de Processo Penal).
Como decorre das conclusões formuladas, o recorrente pretende colocar à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
- É legalmente admissível não ouvir o arguido previamente à decisão de alteração de medidas de coação aplicadas e vigentes, por força do incumprimento das mesmas por este?
Existe, todavia, uma questão prévia à colocada pelo recurso que se pode equacionar nos termos seguintes:
- É admissível o Juiz de Instrução indeferir apenas o interrogatório de arguido não detido, solicitado em requerimento do Ministério Público destinado a alterar e agravar medidas de coação aplicadas e vigentes, por força do incumprimento das mesmas pelo arguido?
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2. Apreciação do recurso.
Aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que teve lugar a ... de ... de 2024, foram aplicadas ao arguido AA as seguintes medidas de coação:
a) Proibição de contactos com a vítima por qualquer meio, diretamente ou por interposta pessoa, ou de dela se aproximar a menos de 500m;
b) Proibição de permanecer ou de se aproximar da residência ou local de trabalho da vítima, a menos de 500m;
c) Obrigação de apresentação semanalmente, no posto policial da área da sua residência, daquela que venha a indicar aos autos.
por se considerar indiciada a prática por este de crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art. 152º, nº1, alínea a), nº2, alínea a) e nº4 do Código Penal, e por estar verificado o perigo de continuação da atividade criminosa (art. 204º, al. c) do Código de Processo Penal1); o perigo de perturbação do decurso do inquérito na modalidade de aquisição e conservação da prova (art. 204º, nº1, al. b); e o perigo de perturbação da tranquilidade publica (art. 204º, nº1 al. c).
Neste domínio da aplicação de medidas de coação, o trânsito em julgado das decisões respetivas significa apenas que a decisão tomada naquele concreto momento, e de acordo com a matéria de facto indiciária efetivamente apreciada na altura, não é suscetível de ser modificada ou alterada por via de recurso.
Assim, e ao contrário das decisões que, no âmbito do processo penal, se tomam na sequência do exercício pleno do contraditório e das garantias de defesa dos arguidos, visando a estabilização de uma decisão que afeta a posição processual dos arguidos, estas não geram o clássico efeito de caso julgado formal a perdurar de forma imutável ao longo do processo.
Daí que se atribua às decisões que aplicam medidas de coação a característica rebus sic stantibus. Com isto quer-se dizer que a decisão vigora enquanto não se alterarem as circunstâncias de facto, e até de direito, que se verificavam no momento em que a decisão foi proferida (art. 204º, nº1).
A alteração das circunstâncias pode verificar-se pelo incumprimento/violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coação. Neste caso prevê o art. 203º, nº1 que “… o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coação previstas neste código e admissíveis no caso.2
Esta decisão sobre a substituição das medidas de coação por outras mais graves, em resultado da violação de obrigações impostas, deve incidir sobre requerimento do Ministério Público. Com efeito, “Neste caso, rege o princípio do pedido, não podendo, portanto, o juiz tomar a iniciativa de substituir a medida de coação por outra mais grave sem requerimento do Ministério Público, nem podendo impor medida mais grave do que a requerida por este, a não ser nos casos previstos no art. 194º, nº2.3
No nosso caso, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido pelo crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art. 152º, nº1, alínea a), nº2, alínea a) e nº4 do Código Penal. Quanto às medidas de coação em vigor na data da prolação daquele ato particularmente relevante, a acusação, e por ter reunido informação que considerou suficiente sobre o incumprimento pelo arguido das injunções a que este estava obrigado, e ainda de acordo com a sua própria avaliação de risco para a vítima, decidiu o Ministério Público requerer a substituição das medidas coativas em vigor por outras mais graves.
Por essas razões, e dado que o processo ainda se encontrava na fase de inquérito, promoveu a imediata remessa dos autos à M.ma Juiz de Instrução Criminal4, pretendendo que fosse “designada data para realização de interrogatório judicial de arguido em liberdade nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 144º e 212.º, nº4 do Código de Processo Penal, com vista à substituição das medidas de coação aplicadas, a cumular com a medida coativa de termo de identidade e residência já prestado pelo arguido no âmbito dos presentes autos, por se considerar que, e salvo melhor entendimento, se figuram adequadas e proporcionais para assegurar as exigências cautelares dos presentes autos, desde já, o Ministério Público promove que o arguido seja sujeito a medidas mais gravosas que as aplicadas em virtude destas não se terem mostrados suficientes para acautelar os perigos que o caso encerra.
Pela decisão recorrida, a M.ma Juiz de Instrução indeferiu apenas o interrogatório judicial de arguido em liberdade nos seguintes termos: “Pelo exposto, uma vez que as suscitadas questões não se mostram esclarecidas, indefere-se a realização do interrogatório ao arguido.”
O requerimento do Ministério Público, porém, continha um pedido em sentido estrito, dirigido à M.ma Juiz de Instrução no âmbito das suas competências funcionais: que substituísse as medidas de coação em vigor por outras mais graves. O pedido de interrogatório judicial do arguido é apenas o ato que o Ministério Público reputou de processualmente indispensável para a substituição requerida.5
Nesta senda, a M.ma Juiz de Instrução, ou entendia que para proferir a decisão requerida era obrigatório ouvir o arguido (e a vítima), e então designava data para esse efeito; ou entendia que não era necessária essa audição, e proferia decisão de mérito sobre o pedido formulado.
A M.ma Juiz, pelo despacho recorrido, não fez uma coisa, nem outra. Entendeu que, por existirem questões que não estão esclarecidas, não se devia pronunciar sobre o que lhe foi requerido, indeferindo simplesmente uma formalidade correspondente a um direito de defesa do arguido, abstratamente cabível no caso. A decisão corresponde, a nosso ver, a um inadmissível non liquet.
Não podemos, em absoluto, dizer que se trata de uma decisão inexistente, já que a M.ma Juiz profere uma decisão mas que, no entanto, não incide sobre o pedido formulado. Assim, o despacho recorrido é um ato decisório para os efeitos do disposto na al. b) do nº1 do art. 97º do CPP. Este ato está, contudo, viciado porque a M.ma Juiz não aborda, em termos de decisão, a questão concreta (no sentido de elaboração intelectual sobre a relevância jurídico-penal de factos e/ou da sua conexão, a implicar um quadro normativo, e a exigir uma decisão) colocada pelo requerimento do Ministério Público. Se estivéssemos perante uma sentença, ela seria nula porque não condena, nem absolve (art. 379º, nº1, al. a) e art. 374º, nº3, al. b) ambos do CPP). Como não é, aplica-se ao caso o regime geral das nulidades e irregularidades.
A violação de qualquer norma da lei de processo penal é uma ilegalidade/irregularidade. Destas só aquelas que afetam gravemente as regras estruturais do processo penal (sendo que estas têm subjacentes a proteção dos direitos dos sujeitos processuais – maxime do arguido – e dos interesses da investigação penal – defesa da comunidade) constituem nulidades. A lei, taxativamente, estabelece quais são as ilegalidades que constituem nulidades (art. 118º, nº1)
Das irregularidades graves cuja sanção é a nulidade, umas têm um efeito tão desvalioso sobre determinado ato considerado nuclear do processo penal que não são suscetíveis de serem supridas, e têm que ser conhecidas e declaradas oficiosamente, em qualquer fase do procedimento. O art. 119º indica essas nulidades, sem prejuízo da existência de outras previstas expressamente em outras disposições legais.
Outras irregularidades são também graves e, por isso, a consequência jurídica da sua prática ou omissão é também a nulidade. Estas estão, porém, dependentes da sua arguição pelo titular do direito ou da faculdade processual ofendida pela irregularidade, e podem ser sanadas no tempo e pela forma legal prevista cuja regra consta do artigo 121º. O artigo 120º, nº2 indica quais são essas nulidades, sem prejuízo da existência de outras previstas expressamente em outras disposições legais.
Todos os demais atos ilegais são irregularidades que obedecem ao regime previsto no art. 123º.
Ora, a decisão em causa não padece de uma nulidade, dado que esta sanção só é aplicável aos atos ilegais relativamente aos quais a lei expressamente preveja essa sanção.
A ilegalidade da decisão recorrida é, porém, indubitável, correspondendo a uma irregularidade. Esta irregularidade afeta integralmente o ato praticado, na medida em que, como já foi dito, não decide a questão essencial colocada pelo requerimento do Ministério Público. Daí que preveja o nº2 do art. 123º que é possível determinar “oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.
Nesta medida, impõe-se, neste momento, ordenar a reparação da irregularidade, devendo a M.ma Juiz proferir decisão, ou interlocutória no sentido ouvir o arguido e a vítima (opção que deve considerar como sendo particularmente pertinente, isto na própria lógica da “decisão” que considera que as suscitadas questões não se mostram esclarecidas), ou de mérito no sentido de a mesma se dirigir ao pedido concreto efetuado pelo Ministério Público no requerimento para agravamento das medidas de coação a que se encontra sujeito o arguido.
Assim, fica prejudicado o conhecimento do objeto do recurso.

IV - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 9ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em declarar a irregularidade da decisão recorrida, e determinar que seja substituída por outra que, ou designe data para audição do arguido e da vítima, ou decida o mérito da pretensão formulada pelo Ministério Público no requerimento para agravamento das medidas de coação a que se encontra sujeito o arguido.
Sem custas.
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Notifique.

Lisboa, 22 de Maio de 2025
André Alves
Rosa Saraiva
Isabel Monteiro
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1. Diploma a que nos referiremos de ora em diante sempre que não for mencionada a origem do preceito.
2. Rejeitando a criminalização da violação de obrigações imposta através de medida de coação por inconstitucionalidade, cfr. acta nº10 de 24 de Abril de 1991 da Comissão Revisora do Código
3. Maia Costa in Código de Processo Penal Comentado, pag. 831.
4. “Conquanto se integre na função jurisdicional (artigo 202º da CRP e 17º do CPP), a aplicação de medidas de coação na fase de inquérito ocorre somente se for requerida pelo ministério público, o que é uma consequência inevitável da repartição de funções imposta pelo princípio da acusação, constitucionalmente consagrado, segundo o qual o ministério público investiga e acusa e o juiz julga (art. 32º, nº4 e 5 e art. 219º da CRP e artigos 8º, 9º, 53º, nº2 alínea b), 262º e ss. e 311º e ss) do CPP).” – Maria João Antunes in Direito Processual Penal, pag. 176, 5ª edição.
5. A fim de tornar mais percetível a situação em apreço podemos compará-la à petição inicial de uma ação declarativa em que o autor formula o pedido de, por ex., constituição de uma servidão de passagem, e acrescenta que se deverá citar o réu. O juiz indefere simplesmente o pedido de citação do réu, mas não julga inepta a petição inicial, nem a indefere liminarmente por qualquer outro motivo.