Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2883/23.7T8OER-A.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: NULIDADES DE DECISÃO
APREENSÃO CAUTELAR DE VEÍCULO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1- A cláusula de reserva de propriedade apenas tem sentido quando relacionada com a transferência de propriedade, enquanto efeito do contrato de alienação.
2- A previsão legal de que a reserva ocorre até à verificação de “qualquer outro evento” tem de ser entendida no contexto do contrato de alienação, ou seja, de evento relacionado com as vicissitudes desse contrato, que “afecte” o contrato de alienação, não podendo exorbitar do seu âmbito.
3- A cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante não proprietário é inútil, porque estando cumpridas as obrigações do comprador a mesma extinguiu‑se e não pode ser actuada.
4- A cedência da reserva de propriedade ao mutuante não proprietário, cumprido o contrato de alienação, é nula por impossibilidade do objecto.
5- Não é possível qualquer interpretação actualista do regime constante do D.L. 54/75, de 12/2, no sentido de permitir ao mutuante não proprietário o recurso à reserva de propriedade como meio de garantia do seu crédito, antes tendo a interpretação do mesmo de partir da letra da lei e de se conter dentro do espírito do sistema, ainda que considerado segundo as condições específicas do tempo em que o regime legal em causa é aplicado.
6- Em caso de incumprimento do contrato de mútuo o mutuante não proprietário não pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo a que respeita o art.º 15º do D.L. 54/75, de 12/2, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade inscrita a seu favor.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

BMW Bank GmbH – Sucursal Portuguesa instaurou contra C. Unipessoal, Ld.ª procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do disposto no art.º 15.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, pedindo a apreensão e entrega do veículo automóvel que identifica, acompanhado das chaves e respectivos documentos.
Alega para tanto, e em síntese, que:
- Celebrou com a requerida um contrato pelo qual lhe concedeu um financiamento, no valor de €23.400,00, destinado à aquisição de um veículo automóvel, a restituir em 61 prestações mensais;
- É titular de reserva de propriedade do veículo automóvel em questão, que lhe foi transmitida pelo fornecedor do mesmo, em conformidade com o acordado no contrato de crédito, a qual se mostra registada a seu favor;
- A requerida não pagou as prestações que se venceram desde 28/3/2023, pelo que lhe enviou carta registada em que lhe comunicou que as mesmas deveriam ser liquidadas no prazo de oito dias, sob pena de considerar o contrato resolvido, bem como o contrato de compra e venda, e assim ficando a requerente obrigada a proceder à devolução do veículo;
- Uma vez que decorreu o prazo em questão sem que a requerida tenha liquidado as quantias em atraso, deve considerar-se automaticamente resolvido o contrato, nos termos das condições gerais do mesmo, estando a requerida obrigada a proceder ao pagamento imediato dos valores em dívida e a entregar o veículo automóvel, o que não fez.
Foi ordenada a citação da requerida, o que foi concretizado, tendo a mesma apresentado oposição onde, em síntese, confirma a celebração dos contratos invocados pela requerente e alega que o veículo apresentou uma deficiência que o representante da marca se recusou a reparar, invocando não estar coberta pela garantia, assim concluindo pela improcedência do procedimento cautelar.
A requerente exerceu o contraditório quanto à matéria alegada pela requerida na oposição.
Seguidamente foi proferida decisão final, com o seguinte dispositivo:
Pelas razões de facto e de Direito que se deixaram expostas, julgo manifestamente improcedente o presente procedimento cautelar, em consequência do que o indefiro liminarmente”.
A requerente recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida a 14.09.2023 a fls. (...) dos autos, nos termos da qual o Tribunal a quo indeferiu liminarmente o presente procedimento cautelar, considerando que não se encontram preenchidos os pressupostos essenciais ao seu decretamento, mais concretamente, os específicos pressupostos elencados nos artigos 15.º a 22.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro;
2. A Recorrente não se pode conformar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, pelo facto de a mesma não efectuar uma interpretação correcta e integral dos factos alegados, nem tão pouco valorar com acuidade os regimes legais aplicáveis, ao ter indeferimento liminarmente o procedimento cautelar;
3. Sendo firme convicção da ora Recorrente que o douto Tribunal a quo ficou aquém do que lhe era exigível enquanto intérprete e aplicador da Lei, nomeadamente no que concerne à verificação dos pressupostos aplicáveis por via do disposto no artigo 15.º a 22.º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro;
4. À data em que veio a ser proferida sentença de indeferimento liminar, encontrava-se já precludida tal prerrogativa do Tribunal a quo;
5. Ao indeferir liminarmente o procedimento cautelar após o mesmo ter sido admitido e o Requerido citado, outra não poderá ser a conclusão que não a da nulidade da sentença proferida, ao abrigo do disposto no artigo 195º do CPC.
6. Como resulta do requerimento inicial, a Requerente alegou ser detentora de reserva de propriedade sobre o veículo, reserva essa que, nos termos conjugados dos artigos 589.º, 582.º e 594.º do Código Civil, lhe foi transmitida pelo fornecedor do veículo, em conformidade com o disposto nas Condições Particular do Contrato, bem como previsto no n.º 2 do Artigo 9º das Condições Gerais do mesmo.
7. Assentando o pedido da Requerente precisamente no facto de a reserva lhe ter sido validamente transmitida, à luz de um instituto legal expressamente previsto no nosso Código Civil;
8. A sentença proferida é absolutamente omissa quanto à sub-rogação expressamente alegada, a qual conduz a um diferente enquadramento jurídico dos factos e, em consequência, à procedência do pedido.
9. Concluindo-se, assim, que a sentença padece igualmente do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615°, n.º 1, alínea d) do CPC.
10. A sentença recorrida encontra-se fundada num erro de julgamento flagrante, no que respeita à validade da reserva de propriedade constituída a favor da ora Recorrente.
11. Decorrente da celebração do Contrato de Financiamento, ficou estipulado que a Recorrente titulava a reserva de propriedade sobre o mencionado veículo, reserva essa que, nos termos conjugados dos artigos 589.º, 582º e 594º do CPC, lhe foi transmitida pelo fornecedor do veículo em conformidade com o disposto nas Condições Particular do Contrato, bem como previsto no n.º 2 do Artigo 9.º das Condições Gerais do mesmo;
12. A referida reserva de propriedade encontra-se registada a favor da Recorrente conforme resulta do teor do Doc. 2 junto ao Requerimento Inicial, o qual consubstancia a informação emitida pela Conservatória do Registo Automóvel;
13. Uma vez que a venda com reserva propriedade é expressamente permitida pelo artigo 409.º do Código Civil, considerando-se o negócio realizado sob condição suspensiva, resulta claro que a propriedade sobre o veículo automóvel objecto do contrato não se transmitiu para o Recorrido, tendo tal transmissão ficado condicionada ao cumprimento das obrigações emergentes do contrato de financiamento cujo escopo final visa, precisamente, a aquisição do veículo pelo Recorrido;
14. Por outro lado, sempre se terá que ter presente que a Lei expressamente determina que, se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro, pode sub-rogá-lo nos direitos do credor, conforme artigo 591.º do Código Civil, sendo que, de acordo com o disposto no artigo 582.º do mesmo diploma legal, aplicável ex vi artigo 594.º, a sub-rogação importa a transmissão, para o sub‑rogado, das garantias e acessórios do direito transmitido;
15. Resulta expressamente do teor do Contrato, mais concretamente do artigo 1º das respectivas Condições Gerais: “O Mutuante concede ao Mutuário, que aceita, o Montante Total do Crédito para a aquisição do Bem objecto do contrato de compra e venda conexo com o presente Contrato, nos termos das Condições Particulares e das presentes Condições Gerais, concedendo o Mutuário ao Mutuante autorização para este entregar directamente o Montante Total do Crédito ao Fornecedor, deduzido dos encargos financiados se aplicável, ficando o Mutuante sub-rogado nos direitos (incluindo de crédito) do Fornecedor decorrentes do contrato de compra e venda, os quais, por esta via, se transmitem para o Mutuante”;
16. Resultando, por sua vez, do disposto no n.º 2 do artigo 9.º da Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Garantias”: “Se as partes assim o acordarem nas Condições Particulares, o Mutuário declara conhecer e aceitar a transmissão pelo Fornecedor a favor do Mutuante da reserva de propriedade acordada entre o Mutuário e o Fornecedor. A referida transmissão é promovida por sub-rogação pelo Fornecedor a favor do Mutuante (ou seja, pela substituição do Fornecedor pelo Mutuante) nos direitos (incluindo o de crédito) que para aquele emergem do contrato de compra e venda que celebrou com o Mutuário. O Mutuário reconhece ainda, atenta a conexão entre o contrato de compra e venda e o presente Contrato, que a resolução do presente Contrato comportará a automática resolução do contrato de compra e venda conexo, podendo o Mutuante accionar a seu favor a reserva de propriedade sobre o Bem”;
17. Ante o n.º 1 do artigo 593.º do Código Civil, o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam, nada obstando a que os direitos emergentes da reserva sejam transferidos pelo vendedor para a titularidade do financiador através de sub-rogação, com vista a garantir o seu direito de crédito, dada a intrínseca conexão entre o contrato de compra e venda e o contrato de financiamento;
18. De toda a realidade factual elencada, resulta claro que a Recorrente passou, legitimamente, a ser titular do direito de propriedade — ainda que sob reserva — por via da sub-rogação pelo vendedor e autorizada pelo Requerido, donde lhe assistem as faculdades que ao vendedor, em igualdade de circunstâncias, caberiam;
19. A sentença em crise, evidenciando uma interpretação claramente restritiva do número 1 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, restringe o âmbito de aplicação do artigo 409.º do Código Civil, e não se adapta à realidade da prática comercial actual, particularmente no âmbito do sector de venda de veículos automóveis, a qual, ao invés, impõe uma interpretação actualista e mesmo correctiva da referida norma, com vista a dar resposta jurídica adequada às várias situações contratuais que entretanto se instituíram na prática comercial;
20. A verdade é que, a reserva da propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objecto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem, ou seja, quando existe uma clara interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;
21. Este entendimento encontra pleno acolhimento no princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405.º do Código Civil, uma vez que não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor;
22. Na esteira do que é defendido pela recente e ampla Jurisprudência, é de entender não só como admissível a cláusula de reserva de propriedade no âmbito de contrato de crédito, na modalidade de mútuo, quando este está intrinsecamente conexionado com o contrato de compra e venda, como também, e determinante no caso concreto, quando tal cláusula, na sequência da sub-rogação operada, foi transmitida pelo vendedor à mutuante, ora Recorrente, tendo essa transmissão sido expressamente aceite pela mutuária, ora Recorrida;
23. É assim firme entendimento da ora Recorrente, merecendo acolhimento na mais recente Jurisprudência, a admissibilidade da constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de financiamento cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço do bem ao alienante;
24. Concluindo-se, assim, pela verificação dos requisitos de que depende o decretamento da Providência Cautelar requerida, ao abrigo do disposto no artigo 15º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro;
25. Violando a decisão proferida o disposto no artigo 15º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
A requerida não apresentou alegação de resposta.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
- As nulidades da decisão recorrida (por excesso e por omissão de pronúncia);
- O direito da requerente à restituição cautelar do veículo automóvel, em razão da titularidade da reserva de propriedade registada a seu favor.
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Na decisão final recorrida não foi elencada qualquer matéria de facto como estando provada.
Todavia, tendo presente o disposto nos art.º 607º, nº 3 e 4 e 663º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil, há que considerar como provada a seguinte factualidade, por resultar do acordo das partes:
1. Em 22/12/2021 a requerente e a requerida celebraram por escrito um acordo que denominaram de “contrato de crédito nº 338133”, nos termos do qual a requerente declarou conceder à requerida um crédito no valor de €23.400,00, destinado a financiar a aquisição do veículo automóvel de marca BMW, (…), vendido por “Santogal L – Carnaxide”, pelo preço de € 34.900,00, mais declarando a requerida obrigar-se a proceder ao pagamento do valor do crédito, juros e demais encargos, em 61 prestações mensais e variáveis, sendo 60 no montante de €271,41 cada uma, acrescidas do valor de €3,60 a título de comissão de gestão mensal, e uma última no valor de €12.215,00.
2. Das condições particulares do contrato consta que a diferença (€11.500,00) do valor do crédito para o preço da compra e venda corresponde à “entrada inicial”.
3. Das condições particulares do contrato consta igualmente, sob a epígrafe “garantias”, a “reserva de propriedade sobre o bem a favor do mutuante”.
4. Do ponto 1 do art.º 1º das condições gerais do contrato consta que “o mutuante concede ao mutuário, que aceita, o montante total do crédito para a aquisição do bem objecto do contrato de compra e venda conexo com o presente contrato, nos termos das condições gerais e das presentes condições gerais, concedendo o mutuário ao mutuante autorização para este entregar directamente o montante total do crédito ao fornecedor, deduzido dos encargos financiados, se aplicável, ficando o mutuante sub-rogado nos direitos (incluindo de crédito) do fornecedor decorrentes do contrato de compra e venda, os quais, por esta via, se transmitem para o mutuante”.
5. E do ponto 2 do art.º 9º das condições gerais do contrato consta que “se as partes assim o acordarem nas condições particulares, o mutuário declara conhecer e aceitar a transmissão pelo fornecedor a favor do mutuante da reserva de propriedade acordada entre o mutuário e o fornecedor. A referida transmissão é promovida por sub-rogação pelo fornecedor a favor do mutuante (ou seja, pela substituição do fornecedor pelo mutuante) nos direitos (incluindo o crédito) que para aquele emergem do contrato de compra e venda que celebrou com o mutuário. O mutuário reconhece ainda, atenta a conexão entre o contrato de compra e venda e o presente contrato, que a resolução do presente contrato importará a automática resolução do contrato de compra e venda conexo, podendo o mutuante accionar a seu favor a reserva de propriedade sobre o bem”.
6. Por apresentação de 25/1/2022 mostra-se inscrita a favor da requerente a reserva de propriedade do veículo automóvel identificado em 1.
7. A requerida não pagou à requerente as prestações que se venceram em 28/3/2023 e no dia 28 de cada um dos meses subsequentes de Abril e Maio.
8. Com data de registo de 16/6/2023 a requerente enviou à requerida uma carta, endereçada para a morada indicada no contrato identificado em 1., aí lhe comunicando, para além do mais, estarem por liquidar as referidas três prestações mensais, e mais lhe declarando que “decorrido prazo de 8 (…) dias sem que V. Exa. proceda ao pagamento ora solicitado, a mora converter-se-á em incumprimento definitivo e o contrato acima identificado e respectivo contrato de compra e venda conexo considerar-se-ão automática e imediatamente rescindidos, sem necessidade de qualquer outra comunicação”.
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Das nulidades da decisão recorrida
Segundo a al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil a sentença é nula quando aí deixe de ser apreciada questão que devesse ser apreciada, ou quando se conheça de questões de que não se podia tomar conhecimento.
Com efeito, decorre do art.º 608º do Código de Processo Civil que na sentença o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se senão dessas questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras questões.
A este respeito importa recordar que, como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”.
Mais explicam tais autores (pág. 738) que “é pacífica a jurisprudência de que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas, e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com “questões” (STJ 27‑3-14, 555/2002)”.
Do mesmo modo, explica Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II) que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto, começa a requerente por sustentar que o tribunal recorrido não podia ter proferido “sentença de indeferimento liminar”, uma vez que já havia sido proferido despacho que havia admitido liminarmente o procedimento e ordenado a citação da requerida.
E a partir dessa afirmação conclui que se verifica a nulidade da decisão recorrida, por força do disposto no art.º 195º do Código de Processo Civil, mais convocando o teor do acórdão de 25/2/2021 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Gabriela Cunha Rodrigues e onde o ora relator intervém como segundo adjunto, disponível em www.dgsi.pt).
É manifesto que o dispositivo da decisão final recorrida padece de um erro, no que respeita à afirmação do indeferimento liminar do procedimento cautelar, por ter sido julgado “manifestamente improcedente”.
Com efeito, e como resulta do nº 1 do art.º 590º do Código de Processo Civil, a figura do indeferimento liminar surge nas situações em que, por determinação legal (como sucede em todos os casos a que respeita o art.º 226º, nº 4, do Código de Processo Civil) ou do juiz, a citação não é oficiosamente promovida pela secretaria, antes sendo a petição apresentada a despacho, para que o juiz verifique se se verifica a manifesta improcedência do pedido, ou a ocorrência evidente de qualquer excepção dilatória insuprível e de conhecimento oficioso, caso em que não deve ser ordenada a citação.
Todavia, e como resulta do nº 5 do art.º 226º do Código de Processo Civil, quando nesse despacho liminar se mande citar o réu, não se consideram precludidas as questões que podiam ter sido motivo de indeferimento liminar.
O que sucede neste último caso, tratando-se de procedimentos cautelares, é que do disposto conjugadamente nos art.º 367º, nº 1, e 595º, nº 1, al. b), ambos do Código de Processo Civil 590º, resulta a possibilidade de se julgar manifestamente improcedente o pedido, findos os articulados, com a consequente absolvição do requerido do pedido (mas já não com o indeferimento liminar do requerimento inicial).
É exactamente isto que resulta do referido acórdão de 25/2/2021, não no sentido de se considerar que após o despacho liminar já não se pode mais conhecer da manifesta improcedência do pedido, mas apenas que com o esclarecimento que o despacho que conheça dessa manifesta improcedência do pedido, após a citação do requerido e o termo dos articulados, já não corresponde a uma situação de indeferimento liminar da petição, mas a uma manifesta improcedência do pedido, a determinar a absolvição do requerido do mesmo, na exacta medida em que já se verificou a estabilização da instância com a sua citação, nos termos do art.º 260º do Código de Processo Civil.
E se o tribunal recorrido qualificou erradamente a consequência da manifesta improcedência do pedido, porque a mesma corresponde à absolvição da requerida do pedido, e não ao indeferimento liminar do requerimento inicial, tal situação não determinava ao tribunal recorrido qualquer proibição de conhecer essa manifesta improcedência, neste momento subsequente ao termo dos articulados.
O que é o mesmo que dizer que não se verifica a nulidade a que respeita o art.º 195º do Código de Processo Civil, porque do erro de qualificação em causa não resulta qualquer irregularidade susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, tal como a mesma foi examinada e decidida pelo despacho final recorrido.
E como só nesta medida é que seria possível afirmar uma actuação do tribunal recorrido (correspondente à afirmação do indeferimento liminar) que não podia ter ocorrido, só assim se podendo afirmar a nulidade da decisão final, por excesso de pronúncia, torna‑se evidente a não verificação da nulidade em apreço.
Do mesmo modo, e no que respeita à invocada omissão de pronúncia, a requerente sustenta que o tribunal recorrido nada disse quanto à argumentação que a mesma apresentou, no sentido de poder validamente lançar mão da reserva de propriedade registada a seu favor, por lhe ter a mesma sido validamente transmitida, tendo presente a estipulação da sub-rogação dos direitos do credor originário (a vendedora do veículo automóvel), expressamente aceite pela requerida.
Ora, e como resulta da doutrina acima mencionada, não é a falta de resposta a todo e qualquer argumento apresentado pela parte que determina a omissão de pronúncia, mas antes a falta de decisão relativamente à pretensão formulada. A pretensão manifestada pela requerente prende-se com a apreensão cautelar do veículo automóvel adquirido pela requerida, a par das chaves e documentos do mesmo. E tal pretensão foi objecto de específica e concreta pronúncia, no sentido da sua manifesta improcedência.
A ausência de qualquer referência à invocada transmissão da reserva de propriedade, tal como a requerente a invocou no art.º 12º do requerimento inicial, a par da desconsideração desse argumento, para concluir pela procedência da pretensão da requerente, pode configurar um erro de julgamento do tribunal recorrido. Mas não determina a nulidade da decisão final recorrida, nos quadros da al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, na medida em que não corresponde a uma questão relativamente à qual o tribunal recorrido estivesse obrigado a pronunciar-se.
O que faz concluir, sem necessidade de ulteriores considerações, que não se verificam as invocadas nulidades da decisão recorrida.
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Do direito à restituição cautelar do veículo automóvel
Na decisão recorrida ficou fundamentada pela seguinte forma a manifesta improcedência da pretensão cautelar da requerente:
O art.º 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro, regula o modo como deve ser efectuada a apreensão e o art.º 22.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, estabelece como consequência da apreensão a proibição de circulação do veículo.
São, então, em síntese, os requisitos cumulativos constitutivos da providência cautelar sob análise:
a) Existência de um contrato de alienação de veículo automóvel, em que tenha sido convencionada a reserva de propriedade a favor do titular do registo;
b) Incumprimento das obrigações assumidas pelo adquirente que tenham condicionado a reserva de propriedade.
Neste domínio impõe-se desde logo considerar, perante a alegação da requerente e para a eventualidade de tal acervo fáctico vir a ficar demonstrado, se se verificariam, ou não, cumulativamente, os requisitos subjacentes ao decretamento da providência de apreensão judicial de veículo alienado com reserva de propriedade, a qual tem como pressupostos a existência de um contrato de alienação de veículo automóvel, em que tenha sido convencionada a reserva de propriedade a favor do titular do registo, bem como o incumprimento das obrigações assumidas pelo adquirente que tenham condicionado essa reserva (abstraindo-nos da situação também prevista de existência de um crédito vencido de natureza pecuniária que se encontre garantido por hipoteca sobre veículo automóvel em que não foi cumprida a obrigação correspondente, por a mesma se não enquadrar no objecto processual configurado pela requerente nestes autos).
Como se sabe, o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, foi publicado numa época em que a aquisição de veículos automóveis seguia a forma tradicional (compra e venda). Tal aquisição pode revestir, hoje, outras formas: desde logo, a que passa pela intervenção de entidades de financiamento a crédito, seja mediante mútuos, seja mediante contratos de locação financeira, com opção de aquisição final do bem locado. Tais inovações contratuais, de resto, deram lugar a legislação específica, como a vertida no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, cujo art.º 21.º prevê também um procedimento cautelar especialíssimo para a apreensão de veículo objecto de locação financeira.
Coloca-se, então, a questão de saber se o procedimento cautelar especificado em causa tem aplicação ao caso dos autos, em que a reserva de propriedade surge registada a favor de um terceiro, que não o vendedor do veículo automóvel.
(…)
Trata-se, na verdade, de questão já vastamente debatida na jurisprudência.
Adianta-se que se segue a linha de entendimento (que se crê, de resto, maioritária) que defende que o procedimento cautelar em causa está vedado às entidades financiadoras.
Como se sabe, a venda com reserva de propriedade configura uma venda sob condição suspensiva. Tal possibilidade encontra-se expressamente prevista no art.º 409.º, n.º 1 do Código Civil.
Dispõe tal normativo que nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
Ora, o contrato a que a requerente se reporta e que funda o respectivo alegado direito que aqui pretende fazer valer não é certamente um contrato de alienação, mas sim um contrato de mútuo. O “contrato de alienação” foi, diversamente e de acordo com a alegação da requerente, celebrado entre o requerido e o fornecedor e vendedor do veículo, em cujos direitos, aliás, a requerente entende ter ficado sub-rogada.
Termos em que se pode desde logo concluir que o procedimento cautelar em causa faz sentido quando equacionado para garantia do direito do vendedor, o qual, guardando para si a reserva da propriedade (de um bem que, reafirma-se, é seu até à celebração do contrato mediante o qual opera a transmissão da propriedade), vê o adquirente incumprir as obrigações que para si nascem do contrato de compra e venda, mormente a obrigação de pontual pagamento do preço convencionado.
Já a intervenção de um terceiro, não adquirente, que guarda para si a reserva de propriedade – por cessão da posição jurídica que o vendedor deveria assim ocupar (isto é, como titular da reserva) –, introduz um novo elemento para o qual o procedimento em causa não foi gizado, pois que é inabalável a diversidade de escopo e natureza entre a compra e venda e o mútuo. É este entendimento, aliás, que vem plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.05.2005 (disponível em www.dgsi.pt – Processo n.º 05B538, relatado pelo Exm.º Juiz Conselheiro Araújo Barros), no qual se decidiu que “(…) nenhuma perspectiva, formal ou substancial, consente que se confunda contrato de alienação, que implica a transferência, ainda que sob condição suspensiva, da propriedade de um veículo, com um contrato de mútuo que teve como mutuante outra entidade e de cuja resolução resulta o vencimento das prestações convencionadas e não a obrigação de restituição do veículo vendido”.
(…)
Importa ainda ter em atenção, como argumento que fortifica as precedentes conclusões, que o credor pode constituir hipoteca sobre o veículo, assim ficando com uma garantia real sobre o mesmo.
E os argumentos expendidos a favor da tese a que se adere não ficam por aqui: nos termos do preceituado no art.º 18.º, n.º 1 do citado Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, “Dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a concurso de credores; dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação”.
Perante este preceito, nova e evidente perplexidade se suscita: como pode a entidade financiadora propor a acção de “resolução do contrato de alienação” (parte final do transcrito artigo) quando ela própria não é a alienante? A resposta só pode ser “não pode”.
Mais, perante o art.º 409.º, n.º 1, do Código Civil, como aceitar que a mesma entidade possa proceder à alienação (por via judicial) de tal veículo, como decorre da primeira parte daquele mesmo preceito?
A posição aqui seguida encontra-se reflectida em vários arestos, de entre os quais destacamos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02.10.2007 (disponível em www.dgsi.pt – Processo n.º 07A2680, relatado pelo Exm.º Juiz Conselheiro Fonseca Ramos), para cuja leitura – pela clareza e referência a outras fontes – igualmente se remete e no qual se analisa ainda a eventual “interpretação actualista” do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, ali se concluindo, pelas razões expostas, que tal interpretação não é possível, no sentido da admissibilidade do presente procedimento em casos como o dos autos, defendendo-se que:
“I) - Os artigos 15º, 16º, e 18º, do Decreto-Lei nº 54/75, de 12.2 – procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis – têm o seu campo de aplicação em caso de incumprimento das obrigações do contrato de compra e venda por parte do comprador, havendo cláusula de reserva de propriedade.
II) - Tal regime jurídico impede que o financiador da aquisição dele beneficie, invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo automóvel a cláusula de reserva de propriedade.
III) - Em caso de incumprimento do contrato de mútuo, não pode quem financiou a aquisição requerer aquele procedimento cautelar, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade – art.º 409º do Código Civil.
IV) - A interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito.”
(…)
Conclui-se, pois, que, não vindo alegada (e não podendo, consequentemente, vir a ser objecto de prova) factualidade que traduza a celebração entre a requerente e o requerido de um contrato de alienação de veículo automóvel, em que tenha sido validamente convencionada a reserva de propriedade a favor do titular do registo (vendedor da viatura) e assim não assumindo a requerente a qualidade de titular do registo para os efeitos apontados no 15.º, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro, mostra-se desde logo afastada a verificação de um dos pressupostos essenciais fundadores do decretamento da providência cautelar especificada requerida.
Assim sendo e tendo presente que mesmo que resultem provados todos os factos alegados pela requerente se não mostrará preenchido um pressuposto essencial ao decretamento da providência requerida, ter-se-á que julgar manifestamente improcedente o presente procedimento cautelar especificado, sem necessidade de apreciação do segundo pressuposto apontado para sua procedência (o referente ao incumprimento das obrigações assumidas pelo adquirente que tenham condicionado a reserva de propriedade), por motivo de ficar tal análise prejudicada”.
Contrapõe a requerente com o desenvolvimento de “uma corrente jurisprudencial que considera admissível a constituição da reserva de propriedade tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro”.
E, para tanto, faz apelo ao acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 14/6/2007 (relatado por Olindo Geraldes e disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário consta:
I. A menção do art.º 18.º, n.º 1, do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, ao “contrato de alienação” pode ser entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
II. Provando-se a existência do registo da reserva de propriedade a favor do mutuante e o incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade, deve ser decretada a imediata apreensão do veículo automóvel, ao abrigo do disposto no art.º 16.º, n.º 1, do referido DL n.º 54/75”.
Do mesmo modo, convoca o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/9/2014 (relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário consta:
1. A reserva de propriedade é uma figura atípica, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, a qual, apesar da designação de “propriedade”, não confere ao titular o poder de uso, fruição ou disposição de um verdadeiro proprietário, visando antes assegurar ao vendedor o pagamento do preço.
2. É válida a transferência da propriedade reservada do vendedor para o terceiro mutuante, como garantia do crédito concedido por este ao comprador.
3. A cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento, significa, no contexto em que foi proferida, de acordo com os critérios do art.º 236.º, n.º 1 do CC, uma declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado, pelo devedor, nos direitos do credor (art.º 591.º, n.ºs 1 e 2 do CC).
4. O Código Civil, ao remeter, no art.º 9.º, n.º1, para as “condições específicas do tempo em que a norma é aplicada” aderiu ao actualismo, considerando que é legítimo ao intérprete ter em conta a evolução socioeconómica verificada entre o momento da elaboração da norma e o momento da sua aplicação, transpondo para o condicionalismo actual o juízo de valor feito pelo legislador na norma a interpretar e ajustando o significado da norma à evolução entretanto sofrida”.
Todavia, o aí decidido não mereceu a unanimidade do colectivo, pois que o segundo adjunto (Conselheiro Moreira Alves) votou vencido, com a seguinte declaração de voto:
(…)
Como resulta dos autos a M... Ld.ª, vendeu à sociedade Ré o veículo automóvel de matrícula ...-FH-.., tendo reservado a seu favor a propriedade do veículo vendido.
Porém, foi a A. quem financiou a aludida aquisição celebrando, para o efeito, com a Ré compradora, o contrato de financiamento para aquisição a crédito nº 2251, documentado nos autos.
Na sequência desse financiamento a vendedora cedeu à A., com consentimento da Ré, a titularidade da referida reserva de propriedade, reserva que se encontra registada na Conservatória do Registo Automóvel a favor da A. (financiadora).
Ora, salvo melhor opinião, atento o disposto nos Art.ºs 409º nº 1 do C.C. e 5º nº 1 b) do D.L. 54/75, pensamos que só nos contratos de alienação será lícito ao vendedor/proprietário clausular a reserva de propriedade.
O contrato de mútuo que a A. celebrou com a Ré, não é, evidentemente, um contrato de alienação e a A. nunca adquiriu a propriedade do veículo em causa, limitando-se a financiar a aquisição.
Assim sendo, não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo não se vê como possa reservar para si a propriedade de algo que nunca foi sua, e, com base na titularidade da reserva, obter a declaração de propriedade sobre um veículo que nunca lhe pertenceu, conseguindo a sua restituição definitiva, aliás, corolário da qualidade de proprietária.
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A cláusula, enquanto titulada pela A., afigura-se-nos nula.
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E não se vê que os citados preceitos possam ser interpretados actualísticamente no sentido da douta decisão maioritária, visto que na letra da lei não existe o mínimo de correspondência verbal, no referido sentido, ainda que imperfeitamente expresso (Art.º 9º nº 2 do C.C.).
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Portanto, não parece justificado lançar-se mão de mecanismos jurídicos como o da “alienação da propriedade em garantia” ou da “transmissão da propriedade em garantia” consagrados no direito brasileiro ou alemão, para justificar a licitude da reserva da propriedade a favor da financeira (que não seja, simultaneamente a vendedora), uma vez que tais mecanismos não foram adoptados pelo nosso direito positivo.
Assim, por muito actualistas que sejam tais concepções, a sua aplicação, traduzir‑se-á na criação de uma nova norma, o que não é função da jurisprudência nem do intérprete.
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Seja como for, mesmo a admitir-se que na interpretação do Art.º 409º do C.C. caberia a constituição de reserva de propriedade para garantir um critério alheio, tal só significaria que o comprador não adquiriria a propriedade da coisa comprada ao vendedor reservatório, enquanto não pagasse o crédito ao terceiro financiador.
Mas não significaria a atribuição ao terceiro da propriedade da coisa, que se manteria na esfera jurídica do vendedor.
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Por outro lado, não se vê como a dita propriedade do veículo pudesse ser adquirida pela A. (financeira) por via da cessão ou sub-rogação.
Tais institutos são típicos do direito das obrigações, que não dos direitos reais e, se a dúvida ainda era sustentável face à redacção do Art.º 785º do Código de 1867, o novo Código eliminou-a com toda a clareza, restringindo intencionalmente o objecto da cessão aos créditos.
Notar-se-á, ainda, que a aplicação das regras da cessão de créditos a quaisquer outros direitos, consignada no Art.º 588º do C.C., não abrange os direitos reais cuja forma de transmissão e constituição é regulada no Livro das Coisas (Artºs 1316º e seg.).
(Confr:
A. Varela – Direito das Obrigações em Geral – 2º vol.- 285;
B. Menezes Cordeiro – Direito das Obrigações – 2º vol. – 90, 91, ou
C. Almeida Costa – Direito das Obrigações, 4ª Ed. – 554).
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Portanto, por via da cessão de créditos ou sub-rogação, transmitem-se direitos de crédito, não se transmitem nem se constituem direitos reais.
Como resulta do Art.º 1316º do C.C., o direito real de propriedade apenas se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (entre os quais não se conta a cessão de créditos ou a sub‑rogação).
Ora, não consta dos autos a celebração de qualquer contrato por via do qual a A. (financeira) tenha adquirido à vendedora, a propriedade do veículo em questão, nem consta que tenha adquirido essa propriedade por qualquer outra forma idónea para produzir tal aquisição.
Logo, não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo, não podia assumir a titularidade da reserva de propriedade e muito menos reivindicar tal propriedade com a consequente entrega definita do veículo.
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Pelos motivos expostos resumidamente, teria julgado improcedente a revista, repondo a decisão da 1ª instância”.
Por fim, a requerente faz apelo ao acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 9/1/2020 (relatado por Arlindo Crua e no qual o ora relator intervém como primeiro adjunto, disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário consta que:
Em princípio, a cláusula de reserva de propriedade inscrita no artº. 409º, do Cód. Civil, apenas pode ser estipulada ou constituída por aquele que é proprietário, isto é, por aquele que aliena a coisa;
- pelo que, nos casos em que aquela cláusula é estipulada, ab initio, no próprio contrato de compra e venda, a favor da entidade mutuante (terceira), a mesma é inválida, por impossibilidade de objecto – cf., o nº. 1, do artº. 280º, do Cód. Civil;
- Todavia, devendo ser sempre constituída a favor do proprietário/alienante, é válida a sua posterior transmissão a favor do terceiro financiador, ou seja, a cláusula é sempre constituída a favor do proprietário/alienante, ocorrendo posteriormente transmissão desta a favor do financiador mutuante, com a consequente sub-rogação deste nos direitos do vendedor/alienante;
- para que se possa admitir tal transmissão e sub-rogação, é mister que a reserva de propriedade não fique condicionada ao pagamento do preço ao vendedor – cumprimento, total ou parcial, das obrigações da outra parte – antes se admitindo que nos contratos de alienação se reserve a propriedade à verificação de qualquer outro evento (que, in casu, era o da liquidação de todas as prestações acordadas no âmbito do contrato de financiamento, isto é, no mútuo outorgado), sendo que este não tem que necessariamente reportar-se ao âmbito ou efeitos do contrato de alienação em causa;
- na actualidade, o contrato de alienação tradicional deu lugar a um denominado negócio com sinalagma trilateral, em que associado àquele surge um contrato de financiamento/mútuo, existindo assim clara necessidade de reportar o artº. 18º, nº. 1, do DL nº. 54/75, de 12/02, ao “negócio trilateral de alienação financiada”, deste decorrendo obrigações do contrato de mútuo, que determinaram a reserva estipulada;
- efectivamente, reconhecendo-se a validade do aduzido negócio trilateral de alienação financiada, deve concluir-se pela inexistência de qualquer óbice a que o incumprimento definitivo do contrato de mútuo, que ocorreu in casu, possa servir de base à presente providência cautelar, bem como de causa de resolução daquele negócio triangular de compra e venda dependente do mútuo que originou a reserva, a fundar a posterior acção principal de resolução inscrita na parte final do nº. 1, do mesmo artº. 18º”.
Todavia, também neste acórdão o aí decidido (no sentido da revogação da decisão recorrida) não mereceu a unanimidade do colectivo, pois que o ora relator votou vencido, com a seguinte declaração de voto:
Vencido, por concordar com os fundamentos expressos na decisão recorrida para indeferir liminarmente o requerimento inicial, especialmente quanto ao afastamento da necessidade da interpretação actualista do D.L. 54/75, de 12/2.
Com efeito, e para além do argumento aí apresentado, no sentido da entidade mutuante não estar desprotegida, já que sempre lhe era permitido recorrer à constituição de hipoteca sobre o veículo automóvel cuja aquisição é financiada (e sendo que o “acesso” a tal instrumento jurídico de garantia decorre claramente do disposto no art.º 4º do D.L. 54/75, de 12/2), importa salientar que as afirmações constantes do referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/9/2014 (…), quer no sentido de que “a cláusula de reserva da propriedade mais não é, afinal, do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito, desde a data em que foi elaborado o Código Civil”, quer no sentido de que “a utilização da reserva de propriedade a favor do financiador resulta da evolução socioeconómica e representa a resposta do sistema a novas necessidades do comércio jurídico, devido à insuficiência do modelo tradicional de garantias do crédito, sobretudo das garantias reais”, não reflectem a realidade nem decorrem de qualquer factualidade verificada, ainda que sob a forma de factos públicos e notórios.
Com efeito, afirmar que o tráfico negocial evoluiu ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito mais não representa que o reconhecimento que institutos negociais históricos e sedimentados, como a compra e venda ou como o mútuo, continuam a ser utilizados como antes da entrada em vigor do Código Civil de 1966 (e já assim eram utilizados no domínio do Código de Seabra). Que é o mesmo que afirmar que carecem apenas de ser aplicados tendo em atenção “as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (conforme dispõe o nº 1 do art.º 9º do Código Civil), mas já não com recurso a uma interpretação que vai além da sua letra e espírito.
Do mesmo modo, afirmar que a utilização do instituto da reserva de propriedade como meio de garantia do financiador é a resposta do sistema à insuficiência do modelo tradicional de garantias reais é esquecer a existência do instituto da hipoteca, seu alcance e modo de exercício. É que a menção feita no D.L. 54/75, de 12/2, ao “crédito hipotecário” (nº 1 do art.º 15º) e ao “vencimento do crédito” (nº 1 do art.º 16º) é quanto basta para concluir que o sistema apresenta uma resposta adequada e eficaz às necessidades de garantia do mutuante financiador de aquisições de veículos automóveis, através da faculdade de recurso à mais tradicional das garantias, como é a hipoteca.
Por outro lado, e quanto ao afirmado “resultado insólito” (porque contrário ao fim visado pelo legislador), que consiste na circunstância da propriedade se transferir “para o comprador, no momento do pagamento pelo terceiro [o mutuante], adquirindo aquele [o comprador] a propriedade plena sem ter pago o preço”, assim seria se o preço (entendido o mesmo como a contrapartida pecuniária da entrega da coisa vendida) não estivesse satisfeito na sua totalidade ao vendedor. Mas é exactamente porque o bem é entregue pelo vendedor ao comprador, do mesmo passo que este providencia pela satisfação integral da obrigação de pagamento do preço (ainda que com recurso à quantia emprestada pelo mutuante) que não há que falar em qualquer resultado não querido pelo legislador, mas apenas e tão só aos efeitos típicos do contrato de compra e venda.
Assim, e porque se entende estarem afastados os argumentos jurisprudenciais decisivos para afirmar a necessidade da interpretação actualista do D.L. 54/75, de 12/2, com a consequente afirmação do direito da requerente à peticionada apreensão de veículo, seria de manter a decisão recorrida”.
Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça vem repetidamente afastando a referida interpretação actualista, rejeitando que assista à entidade financiadora o direito à apreensão do veículo a que se destinou o financiamento, e relativamente ao qual é titular do registo da reserva de propriedade.
Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/5/2005 (relatado por Araújo Barros, igualmente referido na decisão recorrida, e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
1. Só o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade, que é titular do respectivo registo, detém legitimidade para requerer, em processo cautelar, a apreensão do veículo.
2. Se o alienante do veículo e a financiadora da respectiva aquisição forem pessoas diferentes, não pode esta última, ainda que em associação com aquela, instaurar providência cautelar destinada à apreensão do veículo vendido.
3. A apreensão de veículo automóvel constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato, sendo, sempre, dependente ou instrumental da competente acção de resolução.
4. Se o vendedor, com reserva de propriedade e titular do respectivo registo, não pode intentar a acção de que depende a providência, que é a acção de resolução cujo direito lhe assistiria, na medida em que não é credora do preço do veículo, que lhe foi pago, é manifesta a inviabilidade (improcedência) do procedimento cautelar de apreensão, que deve ser indeferido por faltar o nexo de instrumentalidade em relação à acção principal”.
Do mesmo modo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/10/2007 (relatado por Fonseca Ramos, igualmente referido na decisão recorrida, e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
 “I) - Os artigos 15º, 16º, e 18º, do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2 – procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis – têm o seu campo de aplicação em caso de incumprimento das obrigações do contrato de compra e venda por parte do comprador, havendo cláusula de reserva de propriedade.
II) – Tal regime jurídico impede que o financiador da aquisição dele beneficie, invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo automóvel a cláusula de reserva de propriedade.
III) – Em caso de incumprimento do contrato de mútuo, não pode quem financiou a aquisição requerer aquele procedimento cautelar, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade – art.º 409º do Código Civil.
IV) A interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/9/2008 (relatado por Alberto Sobrinho e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
1. A cláusula de reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato -nº l do art.º 408º C.Civil.
Mediante esta cláusula, consistente na possibilidade do transmitente reservar para si a propriedade da coisa (art.º 409º C.Civil), a transferência do direito para a esfera do adquirente só se verificará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o evento a que as partes a subordinaram. O efeito real do contrato fica dependente de uma condição suspensiva.
2. O Dec-Lei 54/75 não previa aquelas situações que as novas realidades económico-financeiras e do crédito ao consumo colocaram. Foi arquitectado para conferir apenas ao vendedor a possibilidade de apreensão do veículo, já que a propriedade lhe continua a pertencer até ao pagamento integral do preço.
Mas mesmo numa interpretação actualista não se pode omitir o texto da lei e apenas há que ajustar o sentido da norma à evolução sócio-jurídica do ordenamento em que se integra, sem violação dos princípios imanentes a esse mesmo ordenamento.
3. O regime específico de apreensão de veículos automóveis apenas convive com o princípio de que essa faculdade radica na esfera do vendedor com reserva de propriedade e já não com a entidade financiadora, mesmo que lhe tenha sido transmitida a titularidade dessa reserva. Aliás, não seria compatível esta faculdade com a instauração da acção, a propor obrigatoriamente pela financiadora, para resolução do contrato de alienação, sendo que apreensão do veículo integra precisamente o primeiro passo no caminho da resolução desse contrato.
4. São realidades distintas e de efeitos diferentes o contrato de alienação com reserva de propriedade, que implica a transferência, sob condição suspensiva, da propriedade do veículo, e o contrato de mútuo que produz apenas a transferência para o mutuário da quantia entregue e em que a sua resolução implica o vencimento das prestações convencionadas, mas já não a restituição do veículo.
Por isso, a expressão outro evento referida no nº l do art.º 409º C.Civil tem de se reportar a um acontecimento que, para além de ter uma ligação directa com o contrato de alienação, se contenha dentro do objectivo e das finalidades próprias desse específico contrato”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/3/2011 (relatado por Álvaro Rodrigues e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
I- Só quando o vendedor do bem em prestações (alienante) é simultaneamente o financiador da sua aquisição por outrem faz sentido que no respectivo contrato de crédito ou mútuo se inclua e mencione a cláusula da reserva de propriedade, se acordada pelos contraentes. De contrário, se não é o proprietário do bem que vende, nada poderá transmitir (“nemo plus iuris ad alium transferre postest quam ipse habet”), e também, por nada ter e nada poder transmitir, nada poderá reservar sob condição.
II- É sempre o efeito de uma aquisição derivada de quem é dono e aliena que permite a este subordinar a transferência do direito de propriedade (que normalmente se dá por simples efeito do contrato – Art.º 408º, nº 1) do bem à verificação da condição suspensiva do pagamento integral do preço, pela inserção da cláusula da reserva de propriedade, que representa para si uma garantia de cumprimento.
III- A situação do mutuante/financiador quanto a possíveis garantias do seu crédito, é idêntica, aliás (ressalvadas as diferenças que decorrem de uma mais rápida degradação, tanto do valor dos bens como da sua conservação material), à das entidades bancárias que concedem crédito à habitação; não incluem a seu favor cláusulas de reserva de propriedade nos respectivos contratos de mútuo porque não são as alienantes do imóvel financiado, mas constituem outras garantias do seu crédito, reais ou pessoais (hipoteca, fiança, etc.), que também se podem usar no crédito para aquisição de veículo automóvel – cfr, entre outros, e com mais esclarecida desenvoltura, Fernando de Gravato Morais, in “Contratos de Crédito Ao Consumo”, Almedina, pag. 304-309.
IV- Por outro lado, não decorre da aludida conexão de interesses, também só por si, que o mutuante/financiador fique sub-rogado nos direitos do vendedor ou do devedor, pois que a vontade de sub-rogar tem que ser expressa ( art.ºs 589º e 590º, nºs 1 e 2, do CC), e no caso de ser o devedor a sub-rogar o terceiro que lhe emprestou o dinheiro para cumprir o contrato, terá que a declaração além de ser expressa constar do documento do empréstimo ( Art.º 591º, nºs 1 e 2, do CC)”.
E do mesmo modo, igualmente, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/7/2011 (relatado por Garcia Calejo e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
I - O art.º 409.º, n.º 1, do CC, estabelece a possibilidade do alienante reservar para si a propriedade da coisa, até que o devedor cumpra, total ou parcialmente, as suas obrigações, configurando uma excepção ao princípio geral, segundo o qual, a propriedade da coisa vendida se transfere por mero efeito do contrato (art.º 879.º, al. a), do CC).
II - Por força da cláusula de reserva de propriedade, a propriedade da coisa alienada só se transfere no momento em que o comprador cumpra todas as suas obrigações, operando essa cláusula como garantia do adquirente cumprir essas obrigações (normalmente o pagamento do preço).
III - A cláusula de reserva de propriedade e a correspondente condição suspensiva, não incide propriamente sobre a essência do contrato de compra e venda, mas tão só sobre o efeito real do contrato, ou seja, sobre a transferência da propriedade da coisa.
IV - A disposição constante do art.º 409.º, n.º 1, do CC, apenas permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa e já não ao (eventual) financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação.
V - Suspendendo, a cláusula em questão, somente os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só nesse tipo de contrato pode ser estipulada, não sendo válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante constante do contrato de mútuo, porque legalmente inadmissível, face ao disposto no art.º 409.º, n.º 1, do CC.
VI - Sendo nula tal cláusula, nos termos do art.º 294.º do CC, é evidente que não pode produzir o efeito da transferência de propriedade do bem da vendedora para o financiador.
VII - A expressão “outro evento”, constante do art.º 409.º, n.º 1, do CC, diz respeito ao próprio contrato de alienação e não a qualquer outro, mesmo que relacionado com ele.
VIII - O art.º 6.º, n.º 3, al. f), do DL n.º 359/91, de 21-09 (diploma que estabelece o regime jurídico do crédito ao consumo) nada modifica os contornos da questão, pois o facto de no contrato de crédito para financiamento da aquisição de bens ou serviços dever constar “o acordo sobre a reserva de propriedade”, refere-se, de harmonia com o determinado no art.º 409.º, n.º 1, do CC, ao alienante e não ao financiador/mutuante.
IX - Só quando o vendedor do bem em prestações é simultaneamente o financiador da sua aquisição, é que faz sentido e se justifica que no respectivo contrato de crédito se inclua e mencione a cláusula de reserva de propriedade, se acordada pelos contratantes.
X - A disposição inserta no art.º 6.º, n.º 3, al. f), do DL n.º 359/91, reporta-se somente a situações em que o vendedor/proprietário mantém essa qualidade, por efeito da reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no art.º 2.º do diploma (diferimento do pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante).
XI - Do art.º 589.º do CC resulta que a sub-rogação pressupõe o pagamento ao credor por terceiro, dependendo de que aquele expressamente manifeste ao terceiro a vontade no sentido da sub-rogação, que constitui uma forma de transmissão de créditos que coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito que pertencia ao primitivo credor (art.º 593.º, n.º 1, do CC).
XII - A sub-rogação a favor do mutuante, prevista no art.º 591.º do CC, embora dispense o acordo do credor, exige a declaração expressa, no documento de empréstimo, de sub-rogação feita pelo devedor ao mutuante – cf. n.º 2 daquela disposição legal”.
Para além da referida jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que se tem por largamente maioritária, também este Tribunal da Relação de Lisboa tem vindo repetidamente a decidir no mesmo sentido já acima apontado.
Assim, no acórdão de 3/7/2007 (relatado por Rijo Ferreira e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
I. A reserva de propriedade (art.º 409º do CCiv) é exclusiva do alienante, não se aplicando ao financiador;
II. Deve ser liminarmente indeferida a providência cautelar de apreensão do veículo e respectivos documentos, requerida pelo financiador que tem inscrita reserva de propriedade a seu favor, por lhe estar vedada a instauração da acção principal de resolução do contrato de alienação”.
Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 15/4/2008 (relatado por Orlando Nascimento, ora primeiro adjunto, e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
1. A reserva de propriedade configura-se como uma autêntica retenção do direito de propriedade, destinada a assegurar o vendedor contra os efeitos da aplicação da regra geral estabelecida no art.º 408.º, n.º 1, do C. P. Civil, qual seja, ficar despido do seu direito de propriedade sem receber a contrapartida, o preço.
2. Esta definição conceptual da figura da reserva de propriedade impede a sua aplicação no âmbito do contrato de mútuo, a favor do mutuante, pela própria natureza do contrato, ainda que consentida pelo mutuário e objecto de cedência, em documento particular, posterior à celebração do contrato de mútuo, assinado pelo vendedor, com reserva de propriedade registada a seu favor, uma vez que este acto - de cedência da reserva de propriedade - se não configura como cessão da posição contratual.
3. O mutuante que, ainda assim, logrou registar a reserva de propriedade a seu favor, não pode fazer uso do procedimento cautelar previsto no art.º 15.º do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, o qual é dependência da acção de resolução do contrato de compra e venda e não da acção de resolução do contrato de mútuo”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25/3/2010 (relatado por Carlos de Melo Marinho e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
1. Corresponde, de forma mais adequada e harmónica, à leitura da unidade do sistema jurídico nacional (exigida ao julgador por força do disposto no n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil) a conclusão segundo a qual o Direito constituído não admite o pactum reservati dominii nos negócios jurídicos em que não esteja em causa a transmissão do direito real que se reserva, ou seja, nos pactos negociais que não envolvam a sua transferência;
2. Emerge do art.º 409.º, n.º 1, do invocado encadeado normativo que é no exclusivo quadro do processo jurídico de transformação em alheio daquilo que inicialmente é próprio, isto é, no seio de um qualquer contrato de alienação, que se viabiliza a introdução de uma condição suspensiva relativa à translação da propriedade;
3. Não se extraia da datação temporal dos Decretos-Lei n.º 54 e 55/75, de 12 de Fevereiro – que regulam o registo da propriedade automóvel – que o que deles resulta necessite de actualização e adaptação às novas realidades económicas, já que o primeiro foi objecto de onze actualizações ao longo dos anos sem que o legislador tenha procurado clarificar e alargar os contornos da reserva;
4. Não é tecnicamente aceitável a sub-rogação tácita do mutuante na posição jurídica do vendedor nos termos dos art.ºs 589.º e seguintes do Código Civil, desde logo porque o primeiro dos invocados preceitos exige a expressa manifestação da vontade de operar a inerente rotação subjectiva;
5. Não parecem estar envolvidos riscos de denegação de Justiça ou de frustração de direitos por via interpretativa, já que o mutuante continua a ter ao seu dispor amplos e generosos meios de reacção perante o incumprimento do mutuário”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25/1/2011 (relatado por Luís Lameiras e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
I – O processo cautelar de apreensão de veículo, no que à compra e venda com reserva de propriedade se refere, tem por objectivo preservar a integridade desse bem, em vista à sua restituição ao vendedor, consequente da resolução do contrato (artigos 15º, nº 1, 16º, nº 1, e 18º, nº 1, do DL nº 54/75, de 12 de Fevereiro);
II – Ainda que exista contrato de financiamento, e o comprador o haja incumprido, a utilização do mecanismo de apreensão cautelar de veículo apenas é permitida como dependência da acção resolutória do contrato de compra e venda;
III – Se o procedimento cautelar for fundado, apenas, na resolução do contrato de financiamento deve ser liminarmente indeferido”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 6/12/2011 (relatado por Orlando Nascimento, ora primeiro adjunto, e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
I - Sendo um dos pressupostos de decretamento do procedimento cautelar a simples verosimilhança da existência do direito, que não a certeza jurídica do mesmo, mesmos existindo divergência jurisprudencial sobre a possibilidade de utilização de tal meio processual, pode o tribunal indeferir liminarmente o procedimento, por manifesta improcedência, com fundamento em que o requerente nunca poderá propor a acção de que ele depende.
II - A utilização da reserva de propriedade, com eficácia real, para garantia de um direito de crédito ultrapassa os limites da lei, violando o princípio do numerus clausus de restrições aos direitos reais estabelecido pelo art.º 1306.º e o disposto no art.º 409.º, ambos do C. Civil.
Nessas circunstâncias, a estipulação da cedência da reserva de propriedade, por não se tratar de uma coisa susceptível de negócio jurídico, em si mesma, é nula, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil.
III - É nula, por impossibilidade legal e contrariedade à lei, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil, a estipulação da reserva de propriedade a favor do vendedor, no âmbito de um contrato de compra e venda de um veículo, até pagamento do preço, nos termos do art.º 409.º do C. Civil, quando o respectivo preço já se encontra pago aquando dessa estipulação.
IV - A presunção registral estabelecida pelo art.º 7.º do C. R. Predial é elidida quando se sabe que o titular activo da reserva de propriedade não tem e nunca teve a propriedade do veículo em causa e que, quando foi registada a reserva de propriedade a favor do vendedor, já a obrigação do comprador se encontrava cumprida.
V - A sub-rogação, por declaração do devedor, nos termos do art.º 591.º do C. Civil, não é meio adequado para operar a transmissão da reserva de propriedade, inicialmente constituída a favor do vendedor do veículo, para o mutuante da quantia destinada ao pagamento do preço, por se tratar de um instrumento de transmissão de créditos, alheio à constituição e transferência da reserva de propriedade, que é uma restrição ao direito real de propriedade.
VI - O procedimento cautelar, previsto no art.º 15.º, n.º 1 do Dec. lei n.º 54/75 de 12/ de Fevereiro, sendo dependente da acção declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade, não é o meio processual próprio para requerer a apreensão do veículo com fundamento no incumprimento do contrato de mútuo.
Para este efeito existem os meios processuais adequados, não existindo qualquer lacuna na lei processual a tal respeito, não fazendo sentido falar-se em interpretação actualista da lei ou em interpretação extensiva, em ordem a justificar a utilização daquele procedimento cautelar”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 13/3/2012 (relatado por Pimentel Marcos e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
I - No contexto económico em que o Decreto-Lei n.º 54/75, de 2 de Fevereiro, foi elaborado, a concessão de crédito para aquisição de veículos automóveis era efectuada através do contrato de venda a prestações com garantia hipotecária ou reserva de propriedade, nos termos do artigo 934º e seguintes do Código Civil, sendo o crédito concedido directamente pelo vendedor ao comprador.
II - Sucede, porém, que o incremento do comércio automóvel e a liberalização e especialização na concessão de crédito, mormente a partir dos anos 90, conduziram a que o sistema de crédito directo do vendedor ao comprador fosse ultrapassado pelo sistema de financiamento através das instituições de crédito.
III - Após o Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro (diploma que estabelece o regime jurídico do crédito ao consumo), no campo da venda automóvel começaram a aparecer empresas financiadoras dos consumidores, celebrando com estes, enquanto compradores, contratos de mútuo (financiamento à aquisição de bens de consumo), passando, então, a ser prática corrente o vendedor ceder ao financiador da aquisição a sua posição contratual, particularmente no caso de venda de veículos automóveis a cláusula de reserva de propriedade.
IV - O artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil, estabelece a possibilidade de o alienante reservar para si a propriedade da coisa, até que o devedor cumpra, total ou parcialmente, as suas obrigações, configurando, assim, uma excepção à regra geral, segundo a qual a propriedade da coisa vendida se transfere por mero efeito do contrato [artigo 879.º, al. a), do CC].
V - Do seu teor literal decorre que só nos contratos de alienação – maxime, nos contratos de compra e venda – é lícita a estipulação da cláusula de reserva de propriedade a favor do alienante.
VI - No mesmo sentido apontam os artigos 15º, 18º, 19º e 21º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, dos quais decorre que é pressuposto do recurso à providência cautelar de apreensão neles prevista a existência de um contrato de alienação de veículo, em que tenha sido convencionada a reserva de propriedade, só dela podendo lançar mão o alienante.
VII - Suspendendo, a cláusula em questão, somente os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só nesse tipo de contrato pode ser estipulada, não sendo válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante constante do contrato de mútuo, porque legalmente inadmissível, face ao disposto no artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil.
VIII - O artigo 6.º, n.º 3, al. f), do Decreto-Lei n.º 359/91 não modifica os contornos da questão, pois o facto de no contrato de crédito para financiamento da aquisição de bens ou serviços dever constar “o acordo sobre a reserva de propriedade”, refere-se, de harmonia com o determinado no artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil, ao alienante e não ao financiador/mutuante, isto é, diz respeito apenas a situações em que quem financia o pagamento é quem detém o direito de propriedade sobre o bem alienado.
IX -A expressão “outro evento”, constante do artigo 409.º, n.º 1, diz respeito ao próprio contrato de alienação e não a qualquer outro, mesmo que relacionado com ele.
X - Consequentemente, em caso de incumprimento do contrato de mútuo, quem financiou a aquisição não tem legitimidade para requerer aquele procedimento cautelar nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 28/2/2013 (relatado por Ana Azeredo Coelho e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
I) A cláusula de reserva de propriedade apenas tem sentido quando relacionada com a transferência de propriedade.
II) A menção legal de que a reserva ocorre até ao cumprimento da obrigação não oferece particular dúvida: cumpridas as obrigações do comprador, consolida-se a transferência de propriedade operada pela compra e venda.
III) A previsão legal de que a reserva ocorre até à verificação de «qualquer outro evento» tem de ser entendida no contexto do contrato de alienação, ou seja, de evento relacionado com as vicissitudes desse contrato, que «afecte» o contrato de alienação, não podendo exorbitar do seu âmbito.
IV) Esta natureza da reserva da propriedade não é afastada por um mero acto de registo de um acordo que não detenha aquelas necessárias características, sem o que se reservaria a propriedade quem nunca dela foi titular.
V) A cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante não proprietário é inútil, porque estando cumpridas as obrigações do comprador a mesma extinguiu-se e não pode ser actuada.
VI) A cedência da reserva de propriedade ao mutuante, cumprido o contrato de alienação é nula por impossibilidade do objecto.
VII) A interpretação actualista - quer do artigo 409.º, do CC, quer do artigo 18.º, do DL 54/75 - nem se impõe nem é possível.
VIII) Não se impõe face a um diploma que sofreu onze intervenções legislativas, a última das quais em Novembro de 2008, sem que o legislador tenha entendido esclarecer a legitimidade do mutuante para a providência prevista.
IX) Não é possível por não encontrar apoio na letra da lei nem se reportar a realidades inexistentes à data da sua publicação.
X) A liberdade contratual está sujeita a limites quais sejam os do artigo 280.º, do CC, citado, como liminarmente resulta da sua sede legal, o artigo 405.º, n.º 1, do CC.
XI) A sub-rogação do mutuante nos direitos do vendedor implicaria que estes existissem, o que não se verifica após o pagamento do preço, suscitando-se o mesmo obstáculo perante uma eventual cessão da posição contratual.
XIII) A providência de apreensão de veículo apenas pode ser decretada na dependência actual ou futura de acção de resolução do contrato de alienação, antecipando, nomeadamente, o efeito de resolução da transmissão da propriedade operada pelo contrato de alienação.
XIV) As pretensões do mutuante podem ser garantidas pelo instituto da hipoteca e acauteladas nos termos do procedimento cautelar comum, inexistindo lacuna da lei”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 17/12/2015 (relatado por Teresa Pardal e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que:
- É inválida, por ser contra a lei, a cláusula de reserva de propriedade a favor da mutuante num contrato de mútuo, pois tal cláusula visa proteger o contraente que transmite a propriedade do incumprimento da contraparte e no contrato de mútuo não está em causa a transmissão do direito de propriedade, existindo meios próprios para garantir o crédito do mutuante.
-  Ao mover-se dentro do princípio da liberdade contratual, as partes têm de atender aos limites impostos pela lei, não podendo, mediante uma reserva de propriedade a favor do mutuante, fixar restrições à tipicidade que vigora no âmbito dos direitos reais”.
E do mesmo modo, ainda, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19/11/2019 (relatado por Maria Amélia Ribeiro e disponível em www.dgsi.pt) ficou a constar do respectivo sumário que “em caso de incumprimento do contrato de mútuo, o financiador não pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do Decreto-Lei nº 54/75, de 12.2, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade”.
Por outro lado, e recuperando o afirmado no já mencionado acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 9/1/2020, pode-se afirmar a existência de três posições diferenciadas, relativamente à questão em apreço, que podem ser assim sintetizadas:
- A primeira “admite a constituição, ab initio, da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora do contrato de alienação”;
- A segunda “considera que a cláusula de reserva de propriedade só pode ser estipulada a favor do alienante, mas que tal não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento do crédito do mutuante/financiador, sendo posteriormente transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do vendedor/alienante”;
- A terceira “apenas admite a estipulação de cláusula de reserva de propriedade em benefício do alienante/vendedor, não admitindo a transmissão da mesma cláusula, por parte do alienante/vendedor, por cessão da posição contratual ou por sub-rogação dos seus direitos, para o mutuante/financiador”.
Enquanto o acórdão em questão está em linha com a segunda posição, já da resenha jurisprudencial que veio de se fazer pode-se então extrair o conjunto de argumentos que permitem sustentar o decidido na instância recorrida, em linha com a terceira posição.
Assim, e desde logo, surpreende-se a limitação da aplicação do procedimento cautelar a que respeita o art.º 15º do D.L. 54/75, de 12/2, aos casos em que assista ao titular do registo da reserva de propriedade legitimidade substantiva para intentar a acção de resolução do contrato de compra e venda, nos termos da segunda parte do nº 1 do art.º 18º do diploma em questão. O que significa que a entidade que financiou o pagamento do preço pelo comprador/mutuário não poderá assumir-se como titular do direito a obter a resolução do contrato de compra e venda, porque a consequência da afirmação judicial desse direito seria a aquisição do direito de propriedade reservado, por uma das formas que não está imperativamente prevista na lei.
Do mesmo modo, resulta do nº 1 do art.º 409º do Código Civil que a reserva de propriedade se assume como uma garantia a favor do proprietário alienante, no sentido de condicionar a transmissão do seu direito de propriedade sobre a coisa vendida ao cumprimento integral das obrigações assumidas pelo adquirente no âmbito do contrato de alienação, designadamente a obrigação correspectiva de pagamento do preço. Pelo que nos casos em que inexistem quaisquer obrigações do adquirente para com o alienante, e desde logo a obrigação de pagamento do preço, extinta pelo cumprimento, igualmente se extingue o direito correspondente à reserva de propriedade. E, nessa medida, qualquer convenção no sentido da transmissão do direito em questão a um terceiro revela-se nula, nos termos do nº 1 do art.º 280º do Código Civil, porque se reporta a um objecto legalmente impossível.
Do mesmo modo, reportando-se o procedimento cautelar em questão também a situações de créditos hipotecários vencidos e não pagos, e não apenas aos casos de incumprimento de obrigações que originaram a reserva de propriedade, nos termos do art.º 409º, nº 1, do Código Civil, não se pode falar de qualquer circunstância que conduza à desprotecção das entidades financiadoras dos compradores de veículos sujeitos a registo (que seja estranha às mesmas e com a qual não podiam ter contado, ao tempo da concessão do crédito), na medida em que a própria lei prevê para essas entidades financiadoras (e já o prevê desde 1975) o mesmo tipo de protecção que prevê para o vendedor, no caso do clássico contrato de compra e venda a prestações, e bastando que seja (ou tivesse sido) constituída hipoteca sobre o veículo sujeito a registo, tal e qual como sucede no caso dos bens imóveis.
E, assim, qualquer interpretação do art.º 15º do D.L. 54/72, de 12/2, tem de se conter dentro do espírito do sistema, ainda que considerado segundo as condições específicas do tempo em que o regime legal em causa é aplicado, não sendo admissível a invocada interpretação actualista, que o art.º 9º do Código Civil não autoriza.
Em suma, e regressando ao caso concreto, é certo que do contrato celebrado entre requerente e requerida consta a afirmação da existência da reserva de propriedade sobre o veículo automóvel vendido pela Santogal, a favor da requerente. E também é certo que do clausulado do mesmo contrato emerge a declaração da requerida de que conhece e aceita a “transmissão pelo fornecedor a favor do mutuante da reserva de propriedade acordada entre o mutuário e o fornecedor”.
Mas como ficou igualmente afirmado no clausulado contratual geral que o valor emprestado pela requerente à requerida era entregue directamente pela requerente à vendedora (e só assim faz sentido a dinâmica do referido financiamento e a invocada conexão entre o contrato de compra e venda e o contrato de mútuo), daí resulta que esta última não podia acordar com a requerida qualquer reserva de propriedade, no âmbito do contrato de compra e venda que celebrou com a mesma, porque essa estipulação só se revelaria válida se estivesse em causa o cumprimento de qualquer obrigação da requerida emergente do contrato de compra e venda, designadamente e desde logo o pagamento do preço (€34.900,00), integralmente satisfeito pela indicada “entrada inicial” de €11.500,00 e pelo “montante total do crédito” de €23.400,00.
Dizendo de forma mais simples, verificando-se o pagamento integral do preço e não existindo qualquer outra obrigação da requerida, emergente do contrato de compra e venda, que legitimasse a reserva da propriedade a favor da vendedora Santogal, qualquer estipulação no sentido da constituição de tal reserva de propriedade é nula, nos termos do nº 1 do art.º 280º do Código Civil.
E, nessa medida, inexiste qualquer direito da vendedora Santogal à reserva de propriedade que pudesse ter sido validamente transmitido à requerente.
Pelo que, na improcedência das conclusões do recurso da requerente, não há que fazer qualquer censura à decisão recorrida, quando conclui pela falta da verificação de um dos pressupostos de que depende a concessão da providência cautelar a que respeita o art.º 15º do D.L. 54/75, de 12/2, e pela consequente manifesta improcedência da pretensão da requerente.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela requerente.

7 de Dezembro de 2023
António Moreira
Orlando Nascimento
Susana Mesquita Gonçalves