Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PEDRO JOSÉ ESTEVES DE BRITO | ||
Descritores: | REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO ASSISTENTE DESCRIÇÃO DOS FACTOS OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA DOLO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/09/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I. Para verificar se no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, constam narrados todos os factos que fundamentam a aplicação a um arguido de uma reação criminal deve atender-se à globalidade daquele e não apenas a um segmento específico daquele requerimento; II. A descrição desordenada e dispersa dos factos ao longo do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, não equivale a uma total ausência dos mesmos; III. Inexiste preceito legal que imponha ao assistente, no referido caso, a obrigação de observar, de forma sacramental e estanque, determinadas expressões ou fórmulas linguísticas para narrar os factos que fundamentam a aplicação ao respetivo arguido de uma reação criminal, mesmo que habitualmente utilizadas na prática judiciária, bem como ao juiz a utilização das exatas palavras empregues pelo assistente na descrição da factualidade que imputa àquele, podendo-as substituir por outras de sentido equivalente; IV. Tendo o assistente imputado aos arguidos uma vontade de estes levarem a cabo uma ação idónea a ofender a integridade física da pessoa daquele, é inequívoca a descrição do elemento volitivo do dolo (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.) e também o seu elemento intelectual, pois só se pode exercer a vontade relativamente à realidade de que se tem conhecimento e que se representa, pelo que o conhecimento e representação por parte dos arguidos de que as condutas que perpetraram eram idóneas a ofender a pessoa do assistente está lógica e necessariamente contida na afirmação de que os arguidos “atuaram para agredir o assistente, pura e simplesmente, com uma intenção de ofenderem/ferir o corpo do assistente com a sua atuação”. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa I. Relatório: I.1. Da decisão recorrida: No âmbito dos autos n.º 138/21.0PDCSC, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Cascais – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em 30-01-2025 foi proferida decisão instrutória que, entre o demais, julgou nulo o requerimento para abertura de instrução apresentado por AA, na qualidade de assistente e, em consequência, não pronunciou os arguidos BB, CC e DD, determinando o arquivamento dos autos ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (C.P.P.). I.2. Do recurso: Inconformado com a decisão, o assistente AA dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões: “1º- O Mm.º Juiz a quo considerou, no despacho de fls. ora em recurso, que o mesmo não era admissível, por não se mostrar apto o requerimento de abertura de instrução a impedir que a questão seja submetida a julgamento, sendo como tal rejeitada. 2º- No entanto, considera o Arguido, ora Recorrente, que no seu requerimento de abertura de instrução são expostas, de forma clara e objetiva, as razões de facto e de direito pelas quais se discorda do arquivamento do inquérito. 3º- O Mm.º Juiz a quo considerou que no requerimento de abertura de instrução (RAI) não eram discutidos os factos do inquérito. 4º- O Mm.º Juiz a quo limitou-se a uma apreciação depreciativa do RAI a partir do seu art.º 19.º ignorando a demais descrição fática, imputando ao Recorrente uma ausência de identificação de um conluio prévio entre os Arguidos nas agressões que perpetraram, concluindo pela inadmissibilidade legal da peça por não se mostrar apta a que a questão seja submetida a julgamento. 5º- Em simultâneo, embora não se apreciando o RAI decide-se pela não pronuncia dos Arguidos, situação com a qual não se concorda. 6º- O RAI não padece de qualquer tipo de impedimento à sua apreciação. 7º- No RAI foram expostas, de forma clara e objetiva, as razões de facto e de direito pelas quais se discorda do arquivamento, colocando-se em dúvida a falta de ponderação crítica da prova constante dos autos, sendo apresentada a versão da realidade factual, cfr. art.º 287.º n.º 2 do CPP. 8º- Da mesma forma, o Recorrente deu indicação para os atos de instrução que pretendia ver realizados pelo Mm.º Juiz a quo, designadamente ouvi-lo enquanto vítima, cfr. art.º 292.º n.º 2 do CPP, bem como, arrolou prova testemunhal, a fim de serem inquiridas sobre a matéria factual explanada no requerimento em causa. 9º- O dever obrigacional de um Juiz de Instrução, apenas pode deixar de ser cumprido por rejeição do requerimento de abertura de instrução pela sua extemporaneidade, pela incompetência do magistrado judicial ou por inadmissibilidade legal da instrução, cfr. n.º 3 do art.º 287.º do CPP. 10º- Nenhum destes pressupostos se encontra aqui verificado. 11º- O Recorrente cumpriu, assim, as suas obrigações legais no âmbito do requerimento de abertura de instrução de fls., indicando um conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, procedendo à narração dos factos e à apreciação crítica a nível factual e de direito que fundamentam a necessidade de levar os Arguidos a julgamento, indicando os atos de instrução que se pretende que o juiz leve a cabo, bem como, indicando prova testemunhal. 12º- O Recorrente no RAI expos as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, cfr. art.º 287.º n.º 2 CPP e igualmente apresentou os elementos identificados nas alíneas b) e d) do n.º 3 do art.º 283.º do CPP. 13º- O RAI apresentado constitui uma verdadeira acusação com a narração dos factos que fundamentam a aplicação aos Arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, com a indicação das disposições legais aplicáveis. 14º- Em alternativa ao arquivamento, os Arguidos deveriam ter sido acusados da autoria material da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. art.º 145.º n.º 1 alínea a) e 132.º n.º 2 alínea l) por referência ao art.º 143.º n.º 1 do CP. 15º- Ao falarmos deste tipo de crime estamos a referir-nos a uma intenção dos Arguidos de ofenderem o corpo do Assistente com a sua atuação, ou seja, de causar intencionalmente com significância ou relevância uma alteração ou perturbação da integridade corporal ou do bem-estar físico da pessoa visada. 16º- Os motivos que motivaram a sua ação são puramente fúteis e sem justificação e contra um idoso octogenário. 17º- No RAI foi descrita uma ação e uma intenção de causar dano com a aludida atuação, detalhando-se uma situação de ataque contra um idoso no seu lar a altas horas da madrugada. 18º- Considerando o factualismo vertido no RAI, verificamos que os Arguidos atuaram para agredir o Recorrente, pura e simplesmente, tendo-se deslocado à residência daquele de madrugada, causando alarde e barulho provocatório na porta de entrada e atacando o visado quando este apareceu. 19º- O requerimento de abertura de instrução foi apresentado de forma correta, tendo sido indicado um conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, procedeu-se à narração dos factos e à apreciação crítica a nível factual e de direito, indicaram-se os atos de instrução que se pretende que o juiz leve a cabo, bem como, meios de prova a ser produzidos. 21º- Considera o Recorrente terem sido as seguintes NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS pelos motivos devidamente expostos: - art.ºs 286.º n.º 1, 287.º n.ºs 2 e 3, 288.º n.º 4, 292.º n.º 2 e 308.º n.º 1 todos do CPP, pelo que, o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por decisão que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado a fls. e declare aberta a instrução com as inerentes consequências legais.” O referido recurso foi admitido por despacho de 31-03-2025. I.3. Das respostas: I.3.A. Da resposta do Ministério Público: Ao dito recurso respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pela sua improcedência, sem formular conclusões. I.3.B. Da resposta do arguido DD: Ao referido recurso respondeu também o arguido DD pugnando que aquele deveria improceder, mantendo-se a decisão proferida nos seus exatos termos, de acordo com as seguintes conclusões: “I. As conclusões do recurso apresentadas pelo Recorrente são uma mera reprodução, prolixa, da motivação, repetindo-a de forma opinativa, quando deveriam corresponder a um resumo, claro e explícito, das questões colocadas no recurso, e que importam decidir. II. Por conseguinte, tal deficiência equivale à ausência total de conclusões, o que determina a rejeição in limine do recurso, o que se requer. III. Depois, vem o Recorrente interpor recurso do despacho judicial que rejeitou o RAI por inadmissibilidade legal, nomeadamente por não terem sido indicados factos, circunstanciados no tempo e no espaço, integradores dos elementos objectivos e subjetivos do tipo de crime cuja pronuncia se pretendia, apresentados com a estrutura de uma acusação, como se exigia. IV. O Recorrente apresentou nas suas conclusões, essencialmente, discordância face a tal despacho judicial por, no seu entender, constarem do RAI os elementos do tipo incriminador, para além da narração detalhada e pormenorizada dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena, pelo que não existirá, em sua opinião, qualquer inadmissibilidade legal. V. O Arguido não concorda com a posição do Recorrente, por nenhuma razão lhe assistir. VI. Constata-se da leitura do RAI do Assistente que este é omisso em relação aos elementos objectivos e subjetivos do crime imputado, nomeadamente o que é habitualmente traduzido nas expressões: “os arguidos, agindo em comunhão de esforços, quiseram e conseguiram atingir o ofendido na sua integridade física; tendo actuado de forma livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”, ou por quaisquer outras expressões semelhantes que encerram esse conteúdo e os factos a este respeitante. VII. Tal omissão é violadora do estabelecido nos art.ºs 287.º/3 e 283.º/3-b) e d) do C.P.Penal. VIII. O preenchimento de qualquer tipo legal de crime – ou seja qualquer condenação penal – pressupõe a verificação de dois tipos de elementos: objetivos e subjetivos, também designados por tipo objetivo de ilícito e tipo subjetivo de ilícito. IX. Ou seja, só pode haver preenchimento do tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada, se forem alegados factos consonantes com essa qualificação jurídica e, para além dos elementos objetivos, também os elementos subjetivos desse ilícito. X. No RAI o Assistente nada alegou em conformidade com o sobredito, não cabendo ao Mmo. JIC ou ao MP a responsabilidade processual de aditar tais factos, nem existindo a possibilidade de convite para aperfeiçoar o seu requerimento. XI. A este propósito a jurisprudência é clara na necessidade do RAI ter – como se disse no despacho recorrido – uma estrutura equivalente à de uma acusação e, dessa forma, descrever os elementos subjetivos do crime pelo qual se pretende a pronúncia. XII. Um dos efeitos primordiais da pronúncia é fixar o objeto do processo, pelo qual terá a mesma que conter toda a factualidade necessária a esse fim, não podendo ser “complementada” com outros factos “exteriores” à mesma. XIII. Tratando-se de crime doloso, o RAI do Assistente deveria conter, mas não contém!, a referência aos factos que sustentam a imputação objectiva a cada um dos arguidos, nem o dolo do tipo, ou seja, o elemento intelectual (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), e o elemento emocional, que se consubstancia na falta de consciência ética por parte do arguido, bem como a consciência da proibição para que, caso existisse pronúncia, fossem esses os factos a provar em audiência de julgamento, o que o Assistente não fez. XIV. A falta de qualquer destes elementos não pode ser suprida em julgamento com recurso ao art.º 358.º do C.P.Penal (Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça), pelo que não pode (como não pôde) ser aceite o RAI do Assistente, uma vez que os descritos factos nunca levariam a uma condenação por falta de elementos essenciais ao preenchimento do crime. XV. Pelo exposto, verificada a nulidade absoluta e insuprível do RAI do Assistente, bem andou o Mmo. JIC na rejeição daquela iniciativa do Recorrente, por inadmissibilidade legal. XVI. Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e ser mantido o douto despacho recorrido.” Foram os autos remetidos a esta Tribunal da Relação. I.4. Do parecer: Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer através do qual propugnou pela improcedência do recurso, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público em 1.ª instância. I.5. Da tramitação subsequente: Tendo sido dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi apresentada resposta ao dito parecer, pelo recorrente que, em síntese, renovou todas as considerações já tecidas na sua peça recursiva. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir. II. Fundamentação: II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso: Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-1995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, de 28-12-1995, págs. 8211 e segs.3). Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidas, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar. II.2. Da questão a decidir: A esta luz, a única questão a conhecer reside em saber se o requerimento de abertura de instrução contém os elementos suficientes pertencentes a um tipo de ilícito objetivo e subjetivo necessários para fundamentar a aplicação aos arguidos de uma reação criminal (cfr. II.4.). II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar as questões objeto do recurso: Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte: II.3.A. Do despacho de arquivamento (cfr. ref.ª 150634842 de 23-04-2024): No âmbito do inquérito n.º 138/21.0PDCSC, que correu termos na 2.ª Secção de Cascais, do Departamento de Investigação e Ação Penal Regional de Lisboa Oeste, em 23-04-2024 o Ministério Público, proferiu o seguinte despacho de arquivamento: “(…) Processo apenso 177/21.1PECSC 5 - O assistente AA imputou ao arguido EE ter arremessado uma pedra, que o atingiu no nariz causando escoriações, e ter-lhe desferido pancadas no corpo com um bastão. 6 - Estes factos podem integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. no número 1 do artigo 143.º, do Código Penal. 7 - Prosseguidas diligências de investigação, não se coligiram indícios da prática destes factos. Com efeito, o arguido EE, quando interrogado, optou pelo silêncio, não tendo qualquer das testemunhas inquiridas declarado tê-los presenciado. Destarte, nesta parte os autos serão arquivados por carência de indícios suficientes. 8 - Quando interrogado a ........2023 (folhas 175 a 180 do processo principal), AA, após ter imputado aos arguidos EE, DD e CC terem-no agredido fisicamente a ........2021, declarou que “Deseja procedimento criminal contra os indivíduos que o agrediram e contra a CC, que também lhe deu pontapés quando se encontrava prostrado no chão”. Desta declaração se extrai inequivocamente que AA apenas pretendeu procedimento criminal pelas agressões físicas de que foi alegadamente vítima. Descrevendo os factos, AA declarou que os arguidos apareceram à porta da sua residência, tendo um deles começado a gritar “vem cá, cabrão. Vem cá que eu mato-te”. O queixoso AA saiu para o exterior, tendo sido agredido fisicamente (?) pelos arguidos EE e DD. Quando a vítima se encontrava caída no solo, a arguida CC desferiu-lhe diversos pontapés, ao mesmo tempo que dizia “toma lá cabrão. Bem feito”. 9 - Esta factualidade pode integrar a prática dos crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça agravada e injúria. 10 - AA, nos termos acima expostos, não declarou pretender procedimento criminal pelas injúrias de que terá sido vítima. Atenta a natureza particular do crime de injúria, o Ministério Público não tem legitimidade para, por si só, prosseguir o procedimento criminal (confrontar os artigos 48.º e 50.º, do Código de Processo Penal). Mas, mesmo que AA tivesse tido a intenção de também pretender procedimento criminal pelo mencionado crime, estes factos, tal como os integrantes do crime de ofensa à integridade física, terão ocorrido no dia ........2021 e apenas a ........2022 (cerca de 10 meses depois) é que foram denunciados pelo referenciado. Ora, o artigo 115.º, número 1, do Código Penal, preceitua que é de 6 meses o prazo para declarar pretensão de procedimento criminal. Constata-se, assim, que a denúncia é intempestiva, pelo que os factos integrantes do crime de ofensa à integridade física (bem como os integrantes do crime de injúria, caso AA tivesse denunciado estes factos) terão que ser arquivados por ilegitimidade do Ministério Público, nos termos do disposto nos artigos 48.º e 49.º, do Código de Processo Penal. Acresce que, prosseguidas diligências de investigação, os autos não coligiram indícios da prática destes factos. No que concerne ao crime de ameaça agravada, igualmente os autos não lograram apurar a veracidade dos factos e a identidade do seu autor, pelo que, nesta parte, o processo será arquivado por carência de indícios.” II.3.B. Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA (cfr. ref.ªs 25719653 de 27-05-2024): Inconformado com tal despacho de arquivamento o assistente apresentou requerimento do seguinte teor: “AA, Assistente nos autos acima referenciados, vem, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 287.º do CPP, requerer a V. Ex.ª se digne determinar a abertura da INSTRUÇÃO com os fundamentos seguintes: (…) II – DOS FACTOS 5.º No que concerne às agressões de que o Assistente foi vítima às mãos dos Arguidos id. a fls. BB, CC e DD (simultaneamente Assistentes…), urge repor a realidade factual. 6.º Assim, na madrugada de ... de ... de 2021, o Assistente encontrava-se no interior da sua residência. 7.º A casa do Assistente é uma moradia com jardim sita na .... 8.º O acesso da via pública ao espaço é vedado por muros e por um portão com videovigilância instalada. 9.º Por volta das 02:00 horas do dia ... de ... de 2021, tocaram de forma insistente à campainha do portão da casa do Assistente. 10.º De acordo, com a sua mulher FF, pareceu que seriam pessoas provindas da casa da Arguida CC, ali situada no n.º 63 da mesma rua. 11.º Novamente, cerca das 04:00 – 05:00 horas, o sossego do Assistente, que se encontrava deitado com a mulher, foi interrompido por um toque contínuo da campainha do portão de entrada. 12.º Da rua ouviam-se berros: “Vem cá cabrão! Vem cá que eu mato-te!” 13.º Pelo sistema de videovigilância, o Assistente verificou um conjunto de três indivíduos, os Arguidos, a arrancarem a campainha e às pancadas ao portão. 14.º O Assistente ligou para as autoridades policiais a pedir auxílio, sem sucesso. 15.º Temendo pela integridade física da sua família, o Assistente muniu-se da sua arma de caça, de marca “...”, modelo 1400 MKII, de calibre 12mm, de um cano, devidamente legalizada e que encontrava travada. 16.º Do interior do jardim, o Assistente interpelou as pessoas em causa, informando-os que estava armado e para abandonarem o local. 17.º Os cães do Assistente de raça PASTOR ALEMÃO, tão idosos quanto o dono, encontravam-se nervosos e a ladrar em resposta ao desacato que estava a ser criado pelos Arguidos. 18.º Os avisos foram ignorados e as pessoas persistiram nas pancadas que desferiam no portão de entrada. 19.º De forma cautelosa, o Assistente entreabriu o portão e de imediato, o dito BB agarrou no cano da arma, que não estava empunhada, arrancando-a da posse do seu portador. 20.º Por sua vez, o DD segurou com extrema força física o Assistente e o BB começou a agredi-lo com socos e pontapés. 21.º De forma atabalhoada, o Assistente, quase octogenário, tentava defender-se dos golpes que ia recebendo dos seus três agressores. 22.º O Assistente não adotou qualquer postura agressiva, tinha chamado as autoridades e apenas pretendia defender a sua propriedade. 23.º Como é que o Assistente provocou algum tipo de medo ou receio, quando a arma estava travada e foi de imediato desarmado, sendo seviciado de seguida com acentuada gravidade por três agressores? 24.º Como é que o Assistente ameaçou com quer que fosse, como foi acusado em sede de acusação pública de fls., quando estava no interior da sua residência e tem três indivíduos agarrados à campainha e aos murros ao seu portão de entrada a altas horas da madrugada? 25.º Aliás, os agressores faziam-se acompanhar por um bastão extensível de cor preta e por uma chave de fendas com cabo de madeira, que foram apreendidas tais armas pela Polícia de Segurança Pública (PSP) que compareceu no local. 26.º De igual modo, o agente da PSP que tomou conta da ocorrência constatou no auto de notícia de fls. que o DD se encontrava em estado ébrio. 27.º Toda esta situação da agressão terá decorrido a partir das 05:20 horas e consta de vídeo gravação, cujas imagens se encontram juntas a fls. 195 a 208 e CD junto na contracapa do processo. 28.º Quando as autoridades policiais finalmente chegaram ao local, os ânimos acalmaram, tendo o Assistente sido evacuado para unidade hospitalar a fim de receber tratamento médico. 29.º O Assistente sofreu danos hematomas diversos, coágulo na cabeça de 8mm que ainda hoje existe, sequelas nas costas e nos joelhos de ter sido manietado, agredido e atirado ao chão com violência. 30.º Ao falarmos da pessoa do Assistente, estamos a falar de alguém, atualmente com 80 anos de idade, detentor de um elevado prestígio comercial, com reconhecimento público de quatro décadas de atividade empresarial e sendo inclusive titular de uma Comenda da República. 31.º Ciente dos seus direitos, por carta registada com aviso de receção de 3 de maio de 2021 e que consta dos autos a fls. 52 a 53, o Assistente manifesta a sua intenção de denúncia, aliás, reafirmando o já manifestado anteriormente quando confrontado pela PSP na madrugada de ... de ... de 2021 e, no fundo, quando requereu a fls. a sua constituição de Assistente… 32.º De igual modo, a 1 de fevereiro de 2023, o Assistente voltou a confirmar o sucedido em sede de inquérito perante a Polícia Judiciária (PJ). 33.º A denúncia ocorre a partir da própria noite da agressão, confirmando-se em momentos posteriores, não tendo culpa o Assistente apenas ter sido ouvido em sede de inquérito passados quase dois anos sobre a prática dos factos. 34.º A denúncia foi tempestiva ao contrário do que pretende o Digm.º Magistrado do Ministério Público no seu douto despacho de arquivamento, sem prejuízo do que adiante se defenderá em sede de análise da situação a nível do direito. 35.º O douto despacho de arquivamento de fls., sem a necessária cautela ou ponderação crítica da prova constante dos autos, limita-se a ignorar a realidade factual do seu conhecimento desde o momento da sua ocorrência. II – DO DIREITO 36.º Ora, analisemos o crime que ora se imputa á conduta dos Arguidos. 37.º Os Arguidos deveriam ter sido acusados da autoria material da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. art.º 145.º n.º 1 alínea a) e 132.º n.º 2 alínea l) por referência ao art.º 143.º n.º 1 do CP. 38.º Nada se dizendo no art.º 145.º do CP sobre a natureza do crime, dever-se-á entender que o mesmo reveste natureza pública. 39.º A não se entender, deste forma, estar-se-ia perante uma contradição do legislador que, na revisão do Código Penal, na Lei n.º 59/2007, de 04/09 e já em 1995 (então art.º 146.º do CP), onde se visou, precisamente, o reforço da tutela dos bens jurídicos pessoais, conferindo-lhe uma maior dignidade penal. 40.º Tal noção reforça a posição do Assistente em detrimento da douta decisão do Digm.º Magistrado do Ministério Público. 41.º Assim, ao falarmos deste tipo de crime estamos a referir-nos a uma intenção dos Arguidos de ofenderem o corpo do Assistente com a sua atuação, ou seja, de causar intencionalmente com significância ou relevância uma alteração ou perturbação da integridade corporal ou do bem-estar físico da pessoa visada, por motivos puramente fúteis e sem justificação e contra um idoso octogenário. 42.º Aqui, a nível objetivo e subjetivo, tais requisitos estão preenchidos e o crime cometido. 43.º Ou seja, verificou-se uma ação e uma intenção de causar dano com a aludida atuação. 44.º Mesmo que se aceitasse uma possível versão de defesa a uma suposta ameaça do Assistente, a mesma incorre em excesso e não é aceitável. 45.º Houve uma situação de ataque e não de defesa. 46.º O bem jurídico tutelado por via da incriminação é, naturalmente, a integridade física, enquanto valor primordial da ordem jurídica, estreitamente conexionado com o bem jurídico vida e também com tutela constitucional no art.º 25.º n.º 1 da CRP. 47.º Trata-se de norma constitucional preceptiva, ou seja, diretamente aplicável e vinculativa para quaisquer entidades públicas e privadas, cfr. art.º 18.º n.º 1 da CRP). 48.º O elemento objetivo do tipo consubstancia-se no facto humano suscetível de provocar no corpo e /ou na saúde de outrem uma ofensa. 49.º Sendo certo que, para efeitos de imputação objetiva do resultado típico proibido (a ofensa ao corpo e / ou saúde alheias) ao agente, impõe-se a existência de um nexo causal entre o comportamento do arguido e o evento. 50.º Nestes termos, é objetivamente subsumível na previsão típica penal, a ação que constitua causa adequada a produzir no corpo ou na saúde de outrem uma alteração ou uma perturbação da integridade corporal, do bem-estar físico, da morfologia ou do normal funcionamento do organismo. 51.º Contudo, por mera cautela, torna-se necessário apreciar nesta sede se se verifica alguma causa de exclusão da ilicitude da conduta dos Arguidos, mormente uma situação de legítima defesa, cfr. art.º 32.º do CP. 52.º Por seu lado o art.º 31.º do CP, sob a epígrafe “Exclusão da ilicitude”, prescreve, no seu n.º 1, que “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.”. 53.º O n.º 2 alínea a), do citado normativo, estabelece que não é ilícito, nomeadamente, o facto praticado em legítima defesa. 54.º Ao abrigo do que preceituam as referenciadas normas, a exclusão da ilicitude de uma conduta jurídico-penalmente relevante, exige a presença de cinco requisitos de índole objetiva e de um último pressuposto de natureza subjetiva, a saber: 1. - A agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de um terceiro; 2. - A atualidade da agressão (podendo esta estar em curso ou ser iminente); 3. - A ilicitude da agressão (consubstanciada numa contrariedade à ordem jurídica ou numa violação de direitos subjetivos); 4. - A necessidade da defesa (por impossibilidade de recorrer em tempo útil à autoridade competente); 5. - A necessidade do meio (o qual deve ser adequado ou idóneo e proporcional à remoção da agressão, devendo o agente escolher, de entre os meios disponíveis, o que se mostrar menos gravoso para o agressor); 6. O conhecimento da situação de legítima defesa ou animus defendendi (cognição e vontade de afastar a agressão ilícita). 55.º Analisando o factualismo vertido neste pedido de abertura de instrução, verificamos que os Arguidos atuaram para agredir o Assistente, pura e simplesmente. 56.º Não há qualquer defesa mas um agir com intuito de ferir um idoso. 57.º Aliás, os Arguidos dirigiram-se à casa do Assistente numa madrugada em missão puramente punitiva e de ataque. 58.º Tratou-se de um ato intenso, violento e praticado pelos Arguidos, caso em que se deverá qualificar como ofensa à integridade física qualificada, não incluído no direito de legítima defesa. 59.º A legítima defesa não pode redundar numa ação punitiva dos Arguidos contra o Asssistente, devendo processar-se, a ter existido, com proporcionalidade e razoabilidade, com o recurso a meios adequados menos gravosos para o visado, o que não sucedeu neste caso de forma alguma. 60.º O que aconteceu sim, foi a prática pelos Arguidos de um crime de ofensa à integridade física qualificada do Assistente, que teve como resultado lesões no corpo da vítima, que viu prejudicado o seu bem-estar físico de uma forma não insignificante, com marcas visíveis e a merecer tratamento e acompanhamento médico hospitalar. 61.º Na situação vertente, é indubitável que os Arguidos praticaram materialmente atos necessários a atingir no corpo o Assistente. Termos em que, Requer-se a V. Exª. se digne admitir o presente pedido de instrução e mande proceder a: - a declarações do Assistente; - uma inquirição das testemunhas, que ora se arrolam: 1.ª FF, casada, reformada, residente na ..., id. a fls., sobre os factos constantes do presente articulado, nomeadamente, sobre a matéria factual dos seus art.ºs 6.º a 22.º. 2.ª – GG, agente da PSP, matrícula n.º …, a ser requisitado ao Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, com sede na Av. de Moscavide, n.º 88, Edifício da PSP, 1886 – 502 MOSCAVIDE, sobre os factos constantes do presente articulado, nomeadamente, sobre a matéria factual dos seus art.ºs 25.º a 29.º . e a final proferir V. Exª. despacho de pronúncia dos Arguidos pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. art.º 145.º n.º 1 alínea a) e 132.º n.º 2 alínea l) por referência ao art.º 143.º n.º 1 do CP.” II.3.C. Da decisão recorrida (cfr. ref.ª 155423359 de 30-01-2025): Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal de Cascais – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em 30-01-2025 foi proferida a seguinte decisão de não pronúncia: “(…) Na qualidade de assistente AA conclui o seu requerimento para abertura da instrução do seguinte modo: “…e a final proferir V. Exª. despacho de pronúncia dos Arguidos pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. art.º 145.º n.º 1 alínea a) e 132.º n.º 2 alínea l) por referência ao art.º 143.º n.º 1 do CP.”. Arguidos que identifica no ponto 5º do RAI como sendo BB, CC e DD. (…) II – RAI apresentado por AA na qualidade de assistente: No seu requerimento este aqui também assistente (para além de arguido) manifesta discordância contra o despacho de arquivamento parcial proferido pelo Ministério Público, insistindo que foi ele próprio alvo de agressões por aqueles que identifica no ponto 5 do referido RAI. Contudo não imputa factos concretos a pessoa determinada que conduzam a uma concreta incriminação com as respectivas circunstâncias de tempo modo e lugar, bem como respectivos elementos material e subjectivo. Em síntese consta do RAI: 19.º De forma cautelosa, o Assistente entreabriu o portão e de imediato, o dito BB agarrou no cano da arma, que não estava empunhada, arrancando-a da posse do seu portador. 20.º Por sua vez, o DD segurou com extrema força física o Assistente e o BB começou a agredi-lo com socos e pontapés. Ou 25.º Aliás, os agressores faziam-se acompanhar por um bastão extensível de cor preta e por uma chave de fendas com cabo de madeira, que foram apreendidas tais armas pela Polícia de Segurança Pública (PSP) que compareceu no local. 26.º De igual modo, o agente da PSP que tomou conta da ocorrência constatou no auto de notícia de fls. que o DD se encontrava em estado ébrio. Embora se consiga compreender a afirmação de que o DD segurou com extrema força física o Assistente e o BB começou a agredi-lo com socos e pontapés, por expressar ficam factos essenciais com a questão de saber se agiram por si ou após concluiu prévio, com que intenção ou mesmo quais as partes do corpo do assistente a serem atingidas por “socos e pontapés”, circunstâncias da acção dos arguidos impostas por força do disposto no artº 283º, nº 3, do CPP, sob pena de nulidade e que se impõe ao assistente requerente da instrução na sequência de decisão de arquivamento. Esta ausência factual torna não só inviável a compreensão da formulação do assistente que daria corpo a um eventual despacho de pronúncia, como também inútil a discussão em torno da tempestividade (oi não, da denúncia ou da queixa). De facto, também quanto a isso é deficitário o RAI. A denúncia, aplica-se a crimes com natureza pública e não está sujeita aos prazos de caducidade – apenas seriam relevantes os prazos de prescrição do procedimento criminal. A queixa, reporta-se a crimes com natureza particular ou semi-pública e neste caso seriam aplicáveis os prazos de caducidade do direito de queixa – cfr. artºs 113º e 115º, do Código Penal. Tudo indica que, no seu requerimento, o assistente pretenderia imputar aos arguidos a prática de crime público (e não semi-público como foi pressuposto no despacho de arquivamento). Afirma: “37.º Os Arguidos deveriam ter sido acusados da autoria matéria lda prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. art.º 145.º n.º 1 alínea a) e 132.º n.º 2 alínea l) por referência ao art.º 143.º n.º 1 do CP.” No entanto, invoca a alínea l), do nº 2, do artº 132º, do Código Penal, a saber: “Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas;” Não se alcança qual a concreta factualidade alegada, em concreto, para o efeito, nem qualquer outra susceptível de preencher outra das alíneas do referido preceito legal. Em suma, os factos concretos que poderiam conduzir a uma tal conclusão são, em absoluto, omissos no RAI. É que, como repetidamente vem sendo afirmado por este tribunal e Tribunais Superiores e decorre do disposto nos artºs 287º, nº 2, do CPP, é necessário (quando a instrução é requerida na sequência de decisão de arquivamento do Ministério Público) que o requerimento contenha com precisão os factos concretos que se espera ver suficientemente indiciados e a concreta incriminação que se imputa a um concreto arguido, com os respectivos elementos material e subjectivo – uma instrução sem delimitação factual precisa esbarraria na inevitável previsão do artº 303º e 309º, nº 1 do CPP, já que não cabe ao juiz de instrução o exercício da acção penal, mas, unicamente proceder nos termos previstos no artº 286º, sendo que os actos a praticar previstos no artº 290º, reconduzem-se à finalidade específica prevista no primeiro dos preceitos citados. Com efeito, não é em fase de instrução que tais factos devem ser recolhidos ou procurados, em face da finalidade específica reservada a esta fase processual pelo artº 286º, nº 1, do CPP. Como vindo de referir os actos a praticar em instrução têm em vista o disposto no artº 290º, nº 1, do CPP, isto é, permitir a comprovação judicial da decisão de acusação ou arquivamento tomada pelo Ministério Público. Não se trata de uma nova investigação. Trata-se de fase processual em que impera o princípio contraditório e em que é suposta uma determinada delimitação factual e valoração jurídica desse quadro factual, que permitirá, o exercício do contraditório – cfr. artº 303º, do CPP. É por isso que o requerimento para abertura de instrução (na sequência de arquivamento) mais não é do que o afirmar por parte do assistente, em jeito de acusação, com obediência ao disposto no artº 283º, do CPP, dos factos concretos que entende resultarem indiciados da investigação realizada e que não foram vertidos pelo Ministério Público numa acusação pública. Questão idêntica foi detalhadamente debatida no Acórdão do STJ, de 12/03/2009, publicado em www.itij.pt. Com efeito ai se refere que: “conhecido o paralelismo existente entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente na sequência dum despacho de arquivamento, conforme se reconheceu no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-05-2008 – proc.4551/07 e estatuindo o nº 2 do art. 287º do Código de Processo Penal, que é aplicável ao requerimento do assistente para abertura de instrução o disposto no art. 283º nº 3 als. b) e c), norma que diz respeito à acusação, atentemos nas situações que determinam a manifesta falta de fundamento da acusação, com vista a aquilatar da possibilidade da sua aplicação ao requerimento para abertura da instrução. De harmonia com o art. 311º nº 3, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime. É evidente que se o requerimento para abertura de instrução não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será inexequível. E constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente que a requer deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis, elementos acerca dos quais o Prof. Germano Marques da Silva (op. cit,, pág. 145), refere: “insiste-se que, tratando-se doe requerimento do assistente, é imprescindível que do requerimento conste sempre a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes e das disposições legais aplicáveis”. A propósito da alínea d) do art. 311º nº 3, escreve o Prof. Germano Marques da Silva: “Também esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”. Pode, portanto, afirmar-se, fazendo uso das palavras do Conselheiro Maia Gonçalves (op. cit., pág. 667) que “acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios elementos, não tem condições de viabilidade” Ora, se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente nos seus precisos termos, conclui que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que aquele narra jamais constituirão crime, deverá rejeitar o requerimento do assistente. É que, num caso desses, o debate instrutório nenhuma utilidade poderia ter, nomeadamente, porque, tal como se decidiu no acórdão para fixação de jurisprudência nº 7/2005 (D.R. nº 212 – S-A de 4-11-2005) “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”. Também o Tribunal Constitucional afirma, no acórdão nº 385/2004, de 19 de Maio de 2004, que “a estrutura acusatória do processo penal …. Impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão adequados em determinados momentos processuais, ente os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução”. Quando assim suceder, quando pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, então estaremos face a uma fase instrutória inútil. Ou, conforme se refere no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência, “uma instrução que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia do arguido titularia um acto inútil que a lei não poderia admitir (art.. 137º do CPP)”. O que significa que, a par de outros fundamentos da rejeição, que se reconduzem também a realidades de que deriva a inutilidade da instrução, se deva ter a instrução como legalmente inadmissível. Também a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido procede-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (ac. do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3), entendendo ser de “rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura e instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito … e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime” (ac. de 22-03-2006 – proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3) E, mais especificamente, o acórdão de 7-12-1005 – proc. 1008/05, que o aqui relator subscreveu como adjunto, onde foi decidido, com um voto de vencido, que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308.° do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.° do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art. 287°”. Também os tribunais da Relação vêm decidindo que a falta de indicação de factos que preencham os elementos típicos do crime produz uma situação de inadmissibilidade legal da instrução. Nesse sentido, cfr, entre outros, os acs. da Rel. de Lisboa de 03-10-2001 – p. 1293/00, de 18-03-2003 – p. 77635; de 30-03-2004 – p. 8701/03; de 30-05-2006 – p. 1111/06; da Rel. do Porto de 15-12-2004 – p. 3660/03; de 01-03-2006 – p. 5577/05; de 21-06-2003 – p. 1176/06; e da Rel. de Coimbra de 23-04-2008 – p. 988/05.8TAACN Tudo quanto se deixou exposto permite concluir que a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.” Como se referiu, a leitura do presente requerimento para abertura de instrução apresentado na qualidade de assistente revela ser manifesto que não poderá ser imputado qualquer crime a um agente determinado e isso, independentemente daquilo que a seguir se referirá quanto aos elementos de prova indiciária presentes nos autos. Neste ponto e pelas razões expostos, impõe-se a decisão de não pronúncia do arguidos BB, CC e DD.” II.4. Da apreciação da questão objeto do recurso (cfr. II.2.): O requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, o disposto no art.º 283.º, n.º 3, als. b) e d), do C.P.P., não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas (cfr. art.º 287.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do C.P.P.). Assim, o requerimento de abertura de instrução, quando apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, embora não esteja sujeito a formalidades especiais, tem obrigatoriamente que conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (cfr. 283.º, n.º 3, als. b) e d), do C.P.P.). Ora, assim sendo, é inegável que todos os elementos pertencentes ao respetivo tipo de ilícito objetivo e subjetivo, bem como, se relevantes, os respeitantes ao tipo de culpa, porque necessários a fundamentar a aplicação ao arguido de uma reação criminal, terão que constar do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (cfr. ALBERGARIA, Pedro Soares de, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, pág. 1206; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22-05-2024, processo n.º 574/20.0T9ACB.C14). Na verdade, é entendimento maioritário que entre os crimes do chamado “direito penal clássico”, ou seja, de clara e tradicional perceção geral, onde os crimes contra a integridade física se inserem, a consciência da ilicitude, enquanto facto psicológico de conteúdo positivo, não integrando o tipo subjetivo de ilícito mas sim o tipo de culpa, decorre ou está implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do respetivo ilícito típico, pelo que não tem que ser alegada, assumindo autonomia apenas nos casos em que se discuta a “falta de consciência da ilicitude”, enquanto causa de exclusão da culpa (e não do dolo – art.º 16.º do C.P.), nos termos do art.º 17.º do C.P. (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18-06-2024, processo n.º 509/24.0T8STR.E15; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05-03-2024, processo n.º 197/22.9T9LLE.E16; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30-10-2023, processo n.º 941/21.1T9BGC.G17; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21-06-2023, processo n.º 82/22.4GCVFR-A.P18; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14-03-2023, processo n.º 49/21.0GTEVR-D.E19; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28-02-2023, processo n.º 630/18.4GFSTB.E110; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 24-05-2022, processo n.º 1194/20.4T9STR.E111; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22-02-2022, processo n.º 11/21.2PBFAR.E112; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-05-2021, processo n.º 46/19.5PEMTS.P113; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19-12-2019, processo n.º 219/18.8GCSLV.E114; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12-03-2019, processo n.º 251/15.3GESTB.E115; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26-06-2018, processo n.º 8001/15.8TDLSB.E116; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-06-2018, processo n.º 333/16.4T9VFR.P217; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-04-2017, processo n.º 8473/16.3T9PRT.P118), sem que tal contrarie a jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, de 20-11-201419, pois o objeto desta, ditado pela questão relativamente à qual se verificou oposição de julgados, centrou-se na inaplicabilidade do mecanismo previsto no art.º 358.º do C.P.P. para a alteração não substancial de factos aos casos de falta de descrição, na acusação, dos factos integradores do tipo subjetivo de ilícito, máxime o dolo (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06-02-2018, processo n.º 54/16.8T9CBA.E120). Para o que agora interessa, são “factos” os acontecimentos históricos com relevância jurídico-penal isto é, as ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou mudanças operadas no mundo exterior (cfr. REIS, Alberto dos, in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição-reimpressão, Coimbra Editora, 1985, págs. 206 e 207) que, de acordo com certos elementos, nomeadamente temporais, espaciais, lógicos, cronológicos, subjetivo-motivacionais, à luz da valoração social, devam ser reconduzidos a uma unidade de sentido suscetível de ser, por via substantiva, reconduzida a preceito incriminador (cfr. ALBERGARIA, Pedro Soares de, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, 2022, Almedina, págs. 631 e 632). Nos apontados casos, o assistente tem, pois, que indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida, viabilizando a jusante a sindicância instrutória em que o juiz de instrução apura se esses factos se indiciam (ou não), e a final profere (ou não) despacho de pronúncia. Por outro lado, o fundamento da rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da mesma (cfr. art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.), abrange as situações em que aquele que foi apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, não seja, nos termos expostos, autossuficiente quanto aos factos pertinentes ao tipo de crime imputado (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-02-2016, processo n.º 15/14.1UGLSB.S221; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-06-2014, processo n.º 7/14.0YGLSB.S122; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-2012, processo n.º 36/11.6YFLSB.S123; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-01-2011, processo n.º 3/09.0YGLSB.S124; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2009, processo n.º 08P316825; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-11-2023, processo n.º 1093/20.0T9PRT.P126; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07-11-2023, processo n.º 741/22.1GBABF.E127; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12-01-2021, processo n.º 1118/17.6T9EVR.E128; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05-02-2018, processo n.º 270/16.2T9CHV.G129; acórdão do tribunal da relação de Coimbra, de 13-09-2017, processo n.º 36/15.7MAFIG.C130; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11-07-2017, processo n.º 649/16.0T9BRG.G131; ALBERGARIA, Pedro Soares de, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, págs. 1206 e 1207; COSTA, Eduardo Maia, in Código de Processo Penal comentado, Almedina, 2014, pág. 1003). Contudo, para verificar se no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, constam narrados todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma reação criminal deve atender-se à globalidade daquele e não apenas a um segmento específico daquele requerimento (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-12-2024, processo n.º 908/23.5T9CSC.L1-532; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27-09-2023, processo n.º 2984/16.8T9VNG.P133). Ora, analisado o teor do requerimento de abertura de instrução em causa (cfr. II.3.B.) afigura-se que, embora não de forma perfeita, dele constam os factos minimamente suficientes para serem abstratamente subsumíveis a um tipo legal de crime e que, assim, também em abstrato, poderão fundamentar a aplicação aos três arguidos de uma reação criminal: No dia ...-...-2021, entre as 04 e 05 horas, os arguidos BB, CC e DD dirigiram-se à moradia do assistente, onde este reside, sita ..., tendo tocado de forma contínua à campainha do portão de entrada daquela e desferido pancadas/murros no referido portão. [cfr. itens 5, 6, 7, 8, 11, 13 e 24 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] Por volta das 05h20min, o assistente muniu-se da sua arma de caça, de marca “...”, modelo 1400 MKII, de calibre 12mm, de um cano, devidamente legalizada e que encontrava travada. [cfr. itens 15 e 27 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] Do interior do jardim daquela moradia, o assistente interpelou as pessoas em causa, informando-os que estava armado e para abandonarem o local. [cfr. item 16 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] Os avisos foram ignorados e as pessoas desferiram pancadas/murros no portão de entrada daquela moradia. [cfr. itens 18 e 24 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] De forma cautelosa, o assistente entreabriu o portão e, de imediato, o arguido BB agarrou no cano da arma, que não estava empunhada, arrancando-a da posse do seu portador. [cfr. item 19 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] Por sua vez, o arguido DD, que se encontrava em estado ébrio, segurou com extrema força física o assistente e o arguido BB começou a agredi-lo com socos e pontapés, tendo os três arguidos desferido golpes no assistente, sendo que este foi também atirado ao chão com violência. [cfr. itens 20, 21, 26 e 29 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B. ] Os arguidos faziam-se acompanhar por um bastão extensível de cor preta e por uma chave de fendas com cabo de madeira. [cfr. item 25 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] O assistente foi evacuado do local para unidade hospitalar a fim de receber tratamento médico. [cfr. item 28 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] Os arguidos praticaram materialmente atos necessários a atingir no corpo o assistente que sofreu danos hematomas diversos, coágulo na cabeça de 8mm que ainda hoje existe, sequelas nas costas e nos joelhos de ter sido manietado, agredido e atirado ao chão com violência. [cfr. item 29 e 61 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] A atuação dos arguidos teve como resultado lesões no corpo da vítima, que viu prejudicado o seu bem-estar físico de uma forma não insignificante, com marcas visíveis e a merecer tratamento e acompanhamento médico hospitalar. [cfr. item 60 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] O assistente tinha 80 anos de idade, detentor de um elevado prestígio comercial, com reconhecimento público de quatro décadas de atividade empresarial e sendo inclusive titular de uma Comenda da República. [cfr. item 30 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] Os arguidos atuaram para agredir o Assistente, pura e simplesmente, com uma intenção de ofenderem/ferir o corpo do assistente com a sua atuação, ou seja, de causar intencionalmente com significância ou relevância uma alteração ou perturbação da integridade corporal ou do bem-estar físico da pessoa visada, por motivos puramente fúteis e sem justificação e contra um idoso octogenário. [cfr. itens 41, 43, 55 e 56 do requerimento de abertura de instrução – II.3.B.] Cumpre salientar que inexiste preceito legal que imponha a obrigação de observar, de forma sacramental e estanque, determinadas expressões ou fórmulas linguísticas para narrar os factos que fundamentam a aplicação a um arguido de uma reação criminal, mesmo que habitualmente utilizadas na prática judiciária (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-12-2023, processo n.º 157/22.0GDCBR.C134). Por outro lado, o facto de a descrição dos factos ser desordenada e dispersa não equivale a uma total ausência dos mesmos, nem impossibilita que os mesmos sejam devidamente ordenados e reunidos, de forma lógica e cronológica, na decisão instrutória, não ficando o juiz de instrução obrigado à utilização das exatas palavras empregues pelo assistente na narração da factualidade que imputa aos arguidos, podendo-as até substituir por outras de sentido equivalente. Ora, a expressão “desferir golpes no assistente” imputada pelo assistente aos três arguidos, quando utilizada num contexto de agressão física sobre aquele, inequivocamente assume o significado corrente de aplicar pancadas no seu corpo35. Sendo inequívoco que está suficientemente descrita uma execução conjunta de uma ofensa à integridade física do assistente, mesmo que considerasse que não estava descrita a vertente subjetiva do acordo inerente à coautoria, o certo é que tal, por si só, não afasta a verificação de várias autorias imediatas, sendo que a lei penal equipara ambas as formas de autoria (cfr. art.º 26.º do C.P.). Acresce que, por isso mesmo, a alteração da forma de autoria não consubstancia uma alteração substancial dos factos (cfr. art.º 1.º, al. f), do C.P.P. e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30-10-2013, processo n.º 1221/12.9TACBR.C136). É certo que a conduta de atirar o assistente ao chão não é por ele imputada a qualquer um dos três arguidos. Contudo, sendo apenas três os agressores, a todos eles sendo imputada uma outra concreta conduta de agressão física sobre o assistente, o posterior apuramento da identidade do autor de tal específico comportamento constituiria apenas uma concretização que consubstanciaria uma mera alteração não substancial dos factos (cfr. art.º 303.º, n.º 1, do C.P.P.). Por outro lado, alegando o assistente que as lesões por ele sofridas foram uma consequência necessária da agressão desferida pelos três arguidos, uma vez que a conduta imputada a cada um deles é, de acordo com as mais elementares regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, idónea a causar ofensa na integridade física do assistente, também a posterior identificação da concreta conduta e, assim, de qual dos três arguidos causou cada uma das lesões é apenas uma concretização que consubstanciaria uma mera alteração não substancial dos factos (cfr. art.º 303.º, n.º 1, do C.P.P.). Seja como for, saber se qualquer uma das referidas condutas não potenciou o risco proibido para o bem jurídico em causa e não se materializou no resultado típico é já questão que ultrapassa o objeto da presente decisão. Quanto aos elementos pertencentes ao respetivo tipo de ilícito subjetivo, o chamado elemento intelectual do dolo prende-se com o conhecimento, por parte do respetivo agente, das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objetivo, sendo que o elemento volitivo do dolo prende-se com a vontade dirigida à realização desse facto (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, 2012, págs. 351 e 366). Ora, tendo o assistente imputado aos arguidos uma vontade de levarem a cabo uma ação idónea a ofender a integridade física da pessoa daquele, é inequívoca a descrição do referido elemento volitivo do dolo (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.) e também o seu elemento intelectual, pois só se pode exercer a vontade relativamente à realidade de que se tem conhecimento e que se representa, pelo que o conhecimento e representação por parte dos arguidos de que as condutas que perpetraram eram idóneas a ofender a pessoa do assistente está lógica e necessariamente contida na afirmação de que os arguidos “atuaram para agredir o assistente, pura e simplesmente, com uma intenção de ofenderem/ferir o corpo do assistente com a sua atuação” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25-10-2024, processo n.º 2748/22.0T9VIS-A.C137; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12-07-2018, processo n.º 115/14.8NJLSB.E138; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06-02-2018, processo n.º 54/16.8T9CBA.E139; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19-06-2017, processo n.º 430/15.3GEGMR.G140; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07-01-2016, processo n.º 49/15.9PATVR.E141). É certo que em nenhum momento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente se refere que os arguidos agiram de forma livre, expressão que, na prática judiciária, é habitual ser articulada. Contudo, o poder individual de cada um dos arguidos para, naquela situação concreta, agir de outra maneira, integrando já o domínio do tipo de culpa, sempre se trataria de factualidade cuja articulação e prova, no presente caso, não é exigida. Na verdade, decorrendo a imputabilidade em razão da idade direta e automaticamente da lei (cfr. art.º 19.º do C.P.), em rigor, só faz sentido haver lugar à alegação, discussão e prova sobre a questão apenas nos casos em que o problema se coloque em concreto, ou seja, quer nas hipóteses de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica (cfr. art.º 20.º do C.P.), quer nas situações de exclusão da culpa (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06-02-2018, processo n.º 54/16.8T9CBA.E142; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07-01-2016, processo n.º 49/15.9PATVR.E143). Por fim, mesmo que considerasse errada a qualificação jurídica dos factos efetuada pelo assistente, tal não impede que se equacionasse a verificação de distintas circunstâncias qualificativas (cfr. arts. 132.º, n.º 1, als. c), e h), 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do C.P.). Acresce que, caso se entendesse que se verificava uma insuficiência dos factos imputados para tal, no limite, deveria ter sido equacionada a subsunção dos factos imputados ao crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do C.P., para o que, como já decorre do exposto, se reputam de minimamente suficientes os descritos no requerimento de abertura de instrução apresentado. Tendo sido o incumprimento do disposto nos arts. 283.º, n.º 3, al. b), e 287.º, n.º 2, do C.P.P., o fundamento para a prolação, na parte em causa, do despacho de não pronúncia, a decisão recorrida, obviamente na parte em causa, terá que ser revogada, devendo a 1.ª instância selecionar os factos constantes do requerimento de abertura de instrução que considera estarem indiciados (ou não) e/ou pronunciar-se sobre as demais questões aí suscitadas em relação ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, daí retirando as necessárias consequências jurídicas. II.5. Das custas: É devida taxa de justiça pelo assistente se decair, total ou parcialmente, em recurso que houver interposto (cfr. art.º 515.º, n.º 1, al. b), do C.P.P.). Ora, assim sendo, como não houve decaimento, não há lugar a condenação em custas. III. Decisão: Julga-se totalmente procedente o recurso interposto pelo assistente AA, revoga-se, na parte em causa, a decisão recorrida e determina-se que os autos retomem ao tribunal recorrido para concreta seleção dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução que considera estarem indiciados (ou não) e/ou para se pronunciar sobre as demais questões aí suscitadas em relação ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, daí retirando as necessárias consequências jurídicas. Sem custas. Lisboa, 09-09-2025 1.º Adjunto: Pedro José Esteves de Brito (por ter ficado vencida a relatora) 2.º Adjunto: Rui Coelho Relatora vencida: Alexandra Veiga (com voto de vencida) Voto de vencida: Entendo que que o requerimento de abertura de instrução não é mais do que uma contestação ao arquivamento, não contendo uma verdadeira acusação, nos termos que expresso infra. Tendo a abertura de instrução sido requerida pelo assistente, o que só pode ocorrer se o Ministério Público não deduziu acusação, ou seja, se decidiu arquivar, ainda que parcialmente o inquérito, deve o mesmo, além de conter “em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação” (cfr. disposto no artº 287º nº 2 proemio CPP), igualmente conter os elementos identificados “nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º” – cfr. artº 287º nº 2 in fine do CPP. Ou seja, o RAI do assistente – porque apresentado na sequência de um arquivamento – tem que traduzir, ele mesmo, uma acusação com os seguintes elementos: “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; d) A indicação das disposições legais aplicáveis;” Por seu turno, a acusação tem requisitos formais tais como o cabeçalho com identificação do arguido e a narração dos factos. «A narração dos factos é o ponto fulcral ou o coração da acusação» para que o objeto do processo fique claramente definido e fixado. O facto ou acontecimento histórico descrito do ponto de vista naturalístico evitando conceitos e qualificativas, deve delimitar a factualidades de que o arguido é acusado. A narração deve ser logica e cronológica, com indicação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo. Sem isto não podem os elementos ser integrados pelo JIC – artigos 303º, nº3 e 309º do C.P.P. Se possível deve conter o lugar tempo e motivação dos factos. As coordenadas geográficas e histórica são importantes – lugar e tempo dos factos. Deve ainda conter as disposições legais aplicáveis. A falta destes elementos constitui nulidade e viola a estrutura acusatória do processo – 32º, nº5 da CRP. «A omissão da narração no requerimento de abertura de instrução do assistente da factualidade que fundamente a aplicação de reação criminal o ilícito objetivo e subjetivo não é suprível pelo Tribunal – STJ/fj/2005, 15/05/2005 – Armindo dos Santos Monteiro - e leva à rejeição por falta de fundamento legal – artº 287º do C.P.P. ( expressões e acórdão – Comentário Judiciário Ao Código De Processo Penal, Tomo III, 3ª edição, anotação ao artº 287º e 283º, respetivamente por Pedro Soares Albergaria e João Conde Correia.) Vertendo ao caso que nos ocupa: Narração dos factos pelo assistente: Local e tempo: madrugada de ... de ... de 2021, na .... Crime imputado: Ofensa á integridade física qualificada referindo na parte do direito «uma intenção dos Arguidos de ofenderem o corpo do Assistente com a sua atuação, ou seja, de causar intencionalmente com significância ou relevância uma alteração ou perturbação da integridade corporal ou do bem-estar físico da pessoa visada, por motivos puramente fúteis e sem justificação e contra um idoso octogenário» Narração: O arguido DD segurou com extrema força física o Assistente. O arguido BB começou a agredi-lo com socos e pontapés. O Assistente sofreu hematomas diversos, coágulo na cabeça de 8 mm, sequelas nas costas e nos joelhos de ter sido manietado e agredido e atirado ao chão com violência. Elementos típicos do crime base, p. e p. pelo artº 143º do C.P. Tipo Objetivo: Consiste na ofensa ao corpo ou à saúde de outrem. Isso significa que qualquer ação que cause lesão física ou perturbação do bem-estar físico da vítima pode configurar o crime. Não é necessário que a ofensa cause dor ou incapacidade para o trabalho, desde que haja uma lesão apreciável do ponto de vista jurídico. Tipo Subjetivo: A ofensa pode ser praticada com dolo (intenção) ou negligência. O dolo implica a vontade livre e consciente de ofender o corpo ou a saúde de outrem. A negligência, por outro lado, ocorre quando o agente viola um dever objetivo de cuidado e causa o resultado lesivo por imprudência, imperícia ou negligência. Nexo de imputação objetiva: Pese embora o assistente descreva as lesões sofridas, o resultado - O Assistente sofreu hematomas diversos, coágulo na cabeça de 8 mm, sequelas nas costas e nos joelhos de ter sido manietado e agredido e atirado ao chão com violência - não estabelece qualquer nexo causal entre estas e a atuação dos arguidos, nem se atuaram em coautoria. A um atribui socos e pontapés – em que partes do corpo? A outro que o segurou com imensa força (onde?) e por fim refere que foi atirado ao chão com violência (por quem?). Estamos perante um crime de resultado que determina que se estabeleça um nexo de imputação objetiva dos factos aos agentes, a necessidade da adequação tem que se referir a todo o processo causal e não apenas ao resultado. E partido do pressuposto que se trata de uma situação de comparticipação criminosa, individualizar as ações e estabelecer o nexo de imputação não é indiferente para o nosso Código Penal – artigos 28º e 29º do C.P. Quanto aos elementos do tipo subjetivo, decorrendo da sua exposição que pode tratar-se de um crime doloso, é absolutamente omisso quanto ao elemento volitivo e intelectual do dolo, ou seja, que qualquer dos arguidos conhecesse e quisesse obter qualquer resultado. Entendo que não se encontra alegado de forma minimamente suficiente o elemento subjetivo do crime, o elemento intelectual e volitivo do dolo, não se podendo extrair dos factos objetivos a vontade dos arguidos em praticar o facto e o conhecimento de todas as circunstâncias do facto (não bastando a alegação foi intenção). Na verdade, tem razão de ser a fórmula usualmente utilizada nas peças acusatórias: o arguido agiu livre (o agente podia agir de modo diverso, podia determinar a sua ação), voluntária ou deliberada (o arguido quis realizar o facto criminoso). Se os factos integrantes dos elementos subjetivos do tipo do ilícito, designadamente, o dolo, não constarem do R.A.I. não poderão aqueles factos vir a ser aditados pelo JIC, no despacho de pronúncia, por via da alteração dos factos descritos no R.A.I., nos termos previstos no artigo 303º, nº. 1 e no artigo 358º, nº. 1, ambos do C.P.P., antes determinado a rejeição do R.A.I., por inadmissibilidade legal da instrução. – Neste sentido, cfr., Ac. da RP de 13/01/2016, proc. 682/10.5TAVFR.P1, Acs. da RC de 13/9/2017, proc. 36/15.7MAFIG.C1 e de 28/1/2015, proc. 511/13.8TACVL.C1 e Ac. da RG de 6/2/2017, proc. 263/15.7GAVVD.G1 – IGFEJ Bases Jurídico documentais O recurso ao mecanismo previsto no artigo 303º do C.P.P. – que se reporta à alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução -, só pode ocorrer, no decurso da instrução – se dos atos de instrução ou do debate instrutório resultar a alteração não substancial ou substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução. «As dimensões do elemento subjetivo carecem de ser expressamente relatadas na peça acusatória (ou no requerimento de abertura de instrução do assistente, se pretende obter a pronúncia do arguido), não podendo extrair-se da expressão “foi intenção do arguido” que ele tenha agido de forma livre e tivesse efetivo conhecimento do potencial ofensivo do seu comportamento: tratar-se-ia de presunção de factos baseados noutros que não é permitida na fixação do objeto do processo, sob pena de se violar o princípio da vinculação temática do juiz e os direitos de defesa do arguido» – voto vencido de Ana Carolina Cardoso processo 2748/22.0T9 Vis-A.C1 IGFEJ- Bases Jurídico documentais E continua Ana Carolina Cardoso, de forma a que anuímos com total concordância ( decisão citada) (…) «Neste mesmo sentido, o AUJ n.º 1/2015 impõe que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal”. Consta da fundamentação do AUJ o seguinte: “a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configurem os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caraterizem o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo da culpa (…), englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de caráter descritivo como as de cariz normativo, e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito”. Para além, deste, no AUJ n.º 7/2005 é referida a impossibilidade de o juiz se substituir ao assistente na descrição do objeto do processo, colmatando a falta de narração dos factos (nas dimensões objetiva e subjetiva que pressupõem o juízo de condenação pressuposto da pronúncia pedida), por resultar numa função do juiz de caráter indagatório, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado e não isento, imparcial e objetivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado (…), colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do processo penal, violando o juiz o princípio da acusação, por passar o juiz a delimitar o objeto do processo, contra o disposto no art. 311º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal – que estatui ser vedado ao juiz convidar o Ministério Público a completar o elenco factual acusatório. No mesmo Acórdão n.º 7/2005, cita-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004, que se transcreve por relevante: “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução (…) Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”. A falta de descrição do elemento subjetivo do crime é insuscetível de reparação (Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, citado). Esta a posição que já assumimos nos Acórdãos de 5.6.2024 (proc. 578/21.5GCVIS-A.C1, em www.dgsi.pt), de 22.5.2024 (proc. 22/23.3PAMGR.C1), de 28.9.2022 (procs. 111/19.9T9NLS.C1 e 110/21.0T9CTB.C1), 2.11.2019 (proc. 196/17.2GBCLD.C1), e de 15.10.2020 (proc. 7/19.4T9LRA.C1), entre outros. Neste mesmo sentido, os Acs. desta RC de 7.3.2018, rel. Orlando Gonçalves, de 15.5.2019 e 29.4.2015, rel. Vasques Osório, de 23.8.2018, rel. Maria José Nogueira, de 1.5.2013, rel. Jorge Jacob, entre outros, todos em www.dgsi.pt.» Com a fundamentação supra exposta, confirmaria a decisão recorrida. Alexandra Veiga ____________________________________________ 1. https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf 2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/458ff4110b557ba080258ac5002d2825?OpenDocument 3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf 4. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/315c4c002780939c80258b32004e9620?OpenDocument 5. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/e4f2870bdd0a3c6480258b540035d0c0?OpenDocument 6. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/0fc21de220074dfd80258ae400411c98?OpenDocument 7. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/af05f11a9760538c80258a6a003bf13e?OpenDocument 8. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/3c9da808fba75820802589db0038f12c?OpenDocument 9. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8b5b6d671ae326da8025899b00559b04?OpenDocument 10. http://www.gde.mj.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ae05de1408175a5780258971003962c9?OpenDocument 11. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/4cdebfc67d6e58848025885c00311396?OpenDocument 12. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8368dded19798822802587f9003445c3?OpenDocument 13. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/32c779b92db2f19b8025870d0054bd90?OpenDocument 14. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/f75ef9291b6b6584802584e80039b752?OpenDocument 15. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/980789832d3b6502802583c90038e4e3?OpenDocument 16. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/79749f00fe646962802582c8004c4bd3?OpenDocument 17. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d47cca8ccc1d4ffa802582b7003c8052?OpenDocument 18. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/ffa109c73ad556ae802581210035300c?OpenDocument 19. https://files.diariodarepublica.pt/1s/2015/01/01800/0058200597.pdf 20. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/3E1DFA370137DEAB8025824A0041EF36 21. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2e6442ebadf3421480257f570051253b?OpenDocument 22. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a2ae6c994d51fd6180257dc500457cc3?OpenDocument 23. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/693721752726cd5080257b0a00370c18?OpenDocument 24. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/88ae0dde5cdd5dbb802578c6003bd3f0?OpenDocument 25. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/817f446416a75cfb8025759a004b5d49?OpenDocument 26. http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/616bb017c59eb4e280258a8d004d447f?OpenDocument 27. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b95b320e34bdbc9980258a6a003727f0?OpenDocument 28. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/095013b18d6b92d68025867200744cd9?OpenDocument 29. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/6ADF803AB7ACC45B8025824300392443 30. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/e0c1f177f667a29e8025819f0038caf1?OpenDocument 31. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/7760946dafed05ec80258161003c2ddb?OpenDocument 32. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e902bc831b3eba4c80258c0b00592095?OpenDocument 33. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c5c579fbe40c804e80258a58003f3c4f?OpenDocument 34. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/67d28be892d4629c80258aa6003b81ca?OpenDocument 35. https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/desferir e https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/golpe 36. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/0840bc8d2d8c403c80257c16004ce4b1?OpenDocument. 37. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/8fbc5858c24f740d80258bce003538d6?OpenDocument 38. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/e0d08a63803df335802582d0002fd47b?OpenDocument 39. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/3E1DFA370137DEAB8025824A0041EF36 40. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/0f0c84a73d74ebdb8025814e004799ce?OpenDocument 41. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/2fd8cbfffaca079680257f5b0052e7fd?OpenDocument 42. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/3E1DFA370137DEAB8025824A0041EF36 43. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/2fd8cbfffaca079680257f5b0052e7fd?OpenDocument |