Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1821/14.2T8CSC-B.L1-6
Relator: ANTÓNIO MARTINS
Descritores: CITAÇÃO EM PAÍS ESTRANGEIRO
LÍNGUA PORTUGUESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - A regra, em termos de processo civil, quanto à língua a empregar nos actos judiciais - e a citação é um desses actos judiciais - é a do uso da “língua portuguesa” (cfr. art.º 133º nº 1 do CPC), o que aliás se compreende por ser uma decorrência do direito de soberania do Estado Português e de a sua língua oficial ser o português - cfr. art.ºs 7º e 11º nº 3 da CRP.
- Pese embora não devam descurar-se as relevantes funções atribuídas à citação, nomeadamente a de dar “conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção” e de chamar o réu “ao processo para se defender” (cfr. nº 1 do art.º 219º do CPC) e, nessa medida, as cautelas de que a mesma se deve rodear, a verdade é que o art.º 239º do CPC não exige que os réus nacionais ou sediados num estado estrangeiro, tenham de ser citados na língua desse estado e com tradução para essa língua dos actos judiciais, nomeadamente a petição inicial.
- A exigência contida no nº 3 do art.º 239º do CPC, da necessidade de plena compreensão do objecto da citação, reporta-se à exigência de a citação dever ser acompanhada “de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessárias à plena compreensão do seu objecto”, ou seja, não bastar apenas a peça processual petição inicial, mas todos os documentos e elementos juntos com a mesma
- Não padece de qualquer irregularidade, máxime nulidade, a citação de uma pessoa colectiva de direito panamiano, com sede no Panamá, sem a tradução da nota de citação e da p.i. em língua espanhola.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:


I- RELATÓRIO:


1. Nos autos de processo comum ordinário[1] que os AA moveram contra os RR - entre estes seis pessoas colectivas com sede na Republica do Panamá -, vieram aqueles, alegando que tinham sido “notificados pela Secretaria para juntar tradução em castelhano da petição inicial e da carta da citação, a fim de se proceder à citação das RR com domicilio no Panamá”, requerer “se proceda de imediato a citação dos RR com residência no Panamá por meio de carta registada com aviso de recepção” (cfr. fls. 33vº/34).

Invocam, para tanto, que “a efectivação da citação das RR com domicílio no Panamá não está dependente, em nada é condicionada pela tradução da petição inicial e da carta de citação na língua estrangeira de que se trata”.

No processamento ulterior dos autos, foi proferido despacho, certificado a fls 35, que decidiu indeferir “o requerido pelos AA., aguardando os autos a junção da P.I. e da nota de citação devidamente traduzida para espanhol, e sem prejuízo do disposto no art.º 281º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil”.

2. É desta decisão que, inconformados, os AA vieram apelar, pretendendo a revogação do despacho recorrido e se ordene que os autos prossigam os seus termos mediante a citação por carta registada com aviso de recepção dos RR sediados no Panamá.

Alegando, concluem:
1ª-O despacho recorrido decidiu que a citação dos RR sediados no Panamá deve ir acompanhada das traduções da petição inicial e da nota de citação para língua castelhana, ficando os autos a aguardá-las sem prejuízo do disposto no artigo 281º nº 1 do Código de Processo Civil.
2ª-A solução proposta pelo despacho recorrido, sendo razoável de iure constituendo, já se não compagina com a solução estabelecida no direito constituído.
3ª-Na verdade, nos termos do artigo 239º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, quando o Réu resida no estrangeiro, observar-se-á quanto à sua citação o que estiver estipulado nos tratados e condições internacionais; na falta deles, a citação é feita por carta registada com aviso de recepção, aplicando-se as determinações dos regulamentos locais dos serviços postais.
4ª-Entre Portugal e o Panamá inexiste qualquer Tratado ou Convenção acerca das citações e notificações de actos judiciais; e o Panamá nem sequer é um Estado signatário da Convenção de Haia de 15 de Novembro de 1965.
5ª-De sorte, atento o disposto no nº 2 do artigo 239º do Código de Processo Civil, a citação deverá ser efectuada pela forma que ali se determina, ou seja, por carta registada com aviso de recepção em língua portuguesa, atenta a economia conjugada do citado dispositivo e do artigo 133º nº 1, do Código de Processo Civil.
6ª-Assim têm julgado unanimemente os arestos dos nossos tribunais superiores ao decidir que na ausência de uma norma de direito convencional internacional publico que obrigue os Estados intervenientes e que determine solução diferente, a citação dos RR é efectuada por via postal, não sendo necessária a tradução da petição inicial e da nota de citação.
7ª-Esta solução não foi considerada materialmente inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, o qual entendeu – a nosso ver bem – que um tal regime não traduz um encargo desproporcionado para um citando que actue com a diligência e o zelo minimamente exigíveis, cabendo-lhe indagar o sentido da comunicação postal que recebeu.
8ª-Tendo determinado que a citação das RR no Panamá fique a aguardar que os AA juntem ao processo as traduções da petição inicial e da nota de citação, o despacho recorrido transgrediu os artigos 133º nº 1 e 239º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

3. Não se mostra terem sido apresentadas contra-alegações.
 
4. Dispensados os vistos legais, com a concordância das Exmªs Juízas Adjuntas, dada a simplicidade da questão a decidir, cumpre apreciar.

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II- FUNDAMENTAÇÃO:

1. De facto:
A factualidade relevante para a decisão do presente recurso é a constante do relatório supra, documentalmente comprovada.

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2. De direito:
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do Código de Processo Civil[2].
Decorre do exposto que a questão que importa dilucidar e resolver pode equacionar-se da seguinte forma:
A citação das RR, residentes no Panamá, deve ser efectuada por via postal, não sendo necessária a tradução da petição inicial e da nota de citação?  

Vejamos.

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A decisão recorrida, partindo da noção e das funções da citação, previstas no art.º 219º, considera que “a regular citação das mesmas [seis RR. pessoas colectivas de direito panamiano, com sede naquele Estado] passa pela transmissão da nota de citação e da P.I. na língua oficial daquele Estado, o espanhol (art.º 7º da Constituição Política da República do Panamá), para que possam assim as mesmas atingir a plena compreensão do seu objecto”.

Considera-se ainda, no despacho recorrido, que os AA pretendem a prática de um acto inútil, porque susceptível de conduzir à sua nulidade, por inobservância das formalidades prescritas na lei para a citação nos termos do art.º 191º.

Analisada e ponderada esta fundamentação, não cremos que a mesma seja de subscrever, como a seguir se procurará justificar.

Na verdade, a regra, quanto à língua a empregar nos actos judiciais, em termos de processo civil – e a citação é um desses actos judiciais-, é a do uso da “língua portuguesa” (cfr. art.º 133º nº 1). O que aliás se compreende facilmente por ser uma decorrência do direito de soberania do Estado Português e da sua língua oficial ser o português - cfr.. art.ºs 7º e 11º nº 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Igualmente como decorrência daquela regra se prevê a tradução dos documentos escritos em língua estrangeira (cfr. art.º 134º). Atente-se que a excepção está apenas prevista para a audição de estrangeiros que não conheçam a língua portuguesa e limitada a audição de intérprete “ao que for estritamente indispensável” (cfr. nºs 2 e 3 do art.º 133º).

Por outro lado, quanto à citação de réus – independentemente da sua nacionalidade - residentes no estrangeiro, o princípio geral estabelecido no art.º 239º nº 1 é o de que “observa-se o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais”.

Não existe, tanto quanto sabemos, qualquer tratado entre Portugal e o Panamá sobre a citação e notificação em matéria civil e comercial, nem a Convenção de Haia de 15.11.1965, relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro de Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, é aplicável pois, pese embora tenha sido subscrita por Portugal, através do DL 210/71 de 18.05, não se encontra subscrita pelo Panamá.

Assim, não haverá dúvidas que a citação em causa deve ser feita, prima facie, por via postal, mediante carta registada, com aviso de recepção, nos termos do art.º 239º nº 2.

Por outro lado, pese embora não devam descurar-se as relevantes funções atribuídas à citação, nomeadamente a de dar “conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção” e de chamar o réu “ao processo para se defender” (cfr. nº 1 do art.º 219º) e, nessa medida, as cautelas de que a mesma se deve rodear, a verdade é que o art.º 239º não exige que os réus – pessoas singulares ou colectivas – nacionais ou sediados num estado estrangeiro, tenham de ser citados na língua desse estado e com tradução para essa língua dos actos judiciais, nomeadamente a petição inicial.

Nem se invoque o nº 3 do art.º 219º, como parece estar subjacente no despacho recorrido, no sentido de que só dessa forma haveria plena compreensão do objecto da citação. Com efeito, a exigência contida nesta norma, da necessidade de plena compreensão do objecto da citação, reporta-se à exigência de a citação dever ser acompanhada “de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessárias à plena compreensão do seu objecto”, ou seja, não bastar apenas a peça processual petição inicial, mas todo os documentos e elementos juntos com a mesma.

Nesta medida não cremos que padeça de qualquer irregularidade, máxime nulidade, a citação de uma pessoa colectiva de direito panamiano, com sede no Panamá, sem a tradução da nota de citação e da p.i. em língua espanhola, ao contrário do que se considerou no despacho recorrido.

Aliás tal decisão vai ao arrepio, senão da “unanimidade” (cfr. conclusão 6ª das alegações dos apelantes, que invocam e citam em seu abono vários arestos dos tribunais superiores) da jurisprudência dos tribunais superiores, pelo menos da significativa maioria dessa jurisprudência, tendo por base os normativos do anterior Código de Processo Civil (cfr. art.º 198º, 228º e 247º), que são no essencial correspondentes aos actuais art.ºs 191º, 219º e 239º.

Mesmo a questão que se podia colocar, da eventual inconstitucionalidade das normas do CPC atinentes à citação, interpretadas no sentido de não exigirem que a citação de pessoas colectivas de país estrangeiro tenha de ser feita com tradução da nota de citação, para a língua desse país ou para uma das línguas vinculantes da Convenção de Haia, por violação do direito a um “processo equitativo”, consagrado no art.º 20º nº 4, da CRP, não mereceu o acolhimento do Tribunal Constitucional (TC), quando foi defrontado com a mesma. Com efeito, ainda que com dois votos de vencido, a 1ª Secção daquele Tribunal no Acórdão 632/99 de 17.11.99[3], teve oportunidade de considerar que “bem decidiu, pois, o acórdão recorrido julgando que se não verifica a arguida inconstitucionalidade material dos artigos 244º e 495º nº 1 alínea d) do CPC (redacção anterior às revisões de 95/96)”.                              
Com assertivamente se escreve neste aresto do TC “um eventual constrangimento desse direito seria apenas congeminável, no momento em que a parte recebe a citação, ou pela absoluta ignorância do sentido da comunicação recebida ou, numa segunda fase, pela necessidade de a traduzir”. Porém, “tendo como padrão um citando com diligência e zelo minimamente exigíveis, será de todo inaceitável que, recebida uma carta com aviso de recepção, a parte não procure saber o sentido da comunicação e, sem mais, a remeta para um arquivo”. Acresce que, “no que concerne à necessidade de uma tradução e sem embargo de se reconhecer um "incómodo" acrescido no confronto com a parte que domine a língua portuguesa, não assume essa tarefa uma dimensão tal que acabe por representar uma diminuição relativa inadmissível dos direitos de defesa do citado”, como se conclui no citado aresto.

Estas considerações são absolutamente relevantes no caso presente em que as demandadas RR, com sede no Panamá foram, como alegado, entidades patronais dos AA e celebraram diversos negócios jurídicos com sociedades e uma entidade bancária, com sede em Portugal, negócios que os AA pretendem ver declarados ineficazes, em relação a eles, mediante impugnação pauliana.

Ora, como é bom de ver, neste condicionalismo, lidar com a língua portuguesa não será sequer algo a que tais sociedades, formalmente de direito panamiano, estejam absolutamente alheadas e isso represente uma diminuição inadmissível dos seus direitos de defesa.

Em suma e em resumo, é de responder positivamente à questão supra equacionada e, na sequência da procedência das alegações dos recorrentes, julgar procedente o recurso e revogar o despacho recorrido.
          
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III- DECISÃO:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a ...ª Secção Cível deste Tribunal em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam o despacho recorrido, determinando o prosseguimento dos autos com a citação das RR, com sede no Panamá, nos termos requeridos pelos AA a fls 33vº/34.
Custas a cargo da parte vencida a final – cfr. art.º 527º nºs 1 e 2.

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Lisboa, 18.06.2015

António Martins
Maria Teresa Soares
Maria de Deus Correia


[1] Processo nº 1821/14.2T8CSC da Comarca de Lisboa – Cascais – Instância Central – 2ª Secção Cível – J4 
[2] Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável aos presentes autos por força do disposto no art.º 8º da citada lei, diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação.
[3]Proferido no processo 166/99 (relator Artur Maurício), acessível em www.tribunalconstitucional.pt e invocado pelos apelantes (cfr. conclusão 6ª das alegações).