Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
204/22.5T8LSB-A.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: CARTA DE CONFORTO
COMPRA E VENDA
GARANTIA
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Perante a versão dos factos trazida à petição inicial são duas as devedoras da referida quantia à autora, podendo ser exigida de qualquer delas: a vendedora/chamada, na qualidade de devedora principal, porque incumpriu obrigações estabelecidas no contrato de compra e venda que celebrou com a autora; e a ré na qualidade de garante do cumprimento dessas obrigações em conformidade com a carta de conforto que subscreveu a favor da compradora autora.
II – Como a carta de conforto tem a sua razão de ser naquele contrato de compra e venda e está em causa o incumprimento de obrigações assumidas naquele, a vendedora é também titular da relação material controvertida.
III – Mostra-se atendível o interesse da ré em chamar a intervir a devedora principal, quer para esta a auxiliar na defesa, quer para melhor poderem ser discutidas as questões que possam ter repercussão em eventual acção de regresso ou de indemnização.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
Na acção declarativa comum instaurada por W Lda contra S, SGPS, SA – actualmente com a designação M - foi deduzido pela ré, na contestação, incidente de intervenção de terceiros nestes termos:
«IV. DA INTERVENÇÃO PROVOCADA DA “VENDEDORA” S PARTICIPAÇÕES LTDA”.
459.
Em face do supra exposto, verifica-se que “Vendedora” S Participações Ltda. tem todo o interesse em pleitear ao lado da R., enquanto parte principal
460.
O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer - cfr. n.º 1 do artigo 30.º do CPC.
461.
Fica claro que a Vendedora pode e deve ser considerada uma parte legitima nos presentes autos.
462.
Com efeito, preceitua o n.º 2 e 3 do artigo 316.º do CPC que:
“2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.”
463.
Destarte, claramente que a Vendedora é uma contitular do alegado direito indemnizatório invocado pela A.
464.
E, em caso de procedência da presente ação, o que apenas por mera cautela de patrocínio se invoca, sendo a Vendedora contitular da relação material controvertida, deverá também esta ser solidariamente condenada com a R.
465.
O contrato de compra e venda de ações foi celebrado entre a Vendedora e a A..
466.
Sendo certo que a causa de pedir dos presentes autos tem que ver única e exclusivamente com o sobredito contrato de compra e venda de ações e as obrigações que a Vendedora ali assumiu perante a A.
467.
No âmbito de tal contrato, a R. interveio enquanto “interveniente anuente”, cfr. Termo utilizado no sobredito contrato de compra e venda de ações.
468.
Sendo certo que a S Participações Ltda. interveio enquanto parte principal, Vendedora de ações e a A. enquanto Compradora das mesmas.
469.
Ao invés, a R. interveio enquanto parte principal apenas aquando da celebração da Carta de Conforto com a A,
470.
Em que garantiu que faria de tudo para que a S Participações Ltda. Cumprisse com as obrigações assumidas perante a A. no sobredito contrato de compra e venda.
471.
Conforme se vem até aqui referindo, as Cartas de Conforto são uma modalidade de garantias recente e que apresenta contornos algo difusos.
472.
Contudo, numa formulação bastante geral, sempre se poderá dizer que consistem em declarações de um ente que, de uma forma mais ou menos intensa, procura que seja concedido crédito a um terceiro, manifestando determinadas intenções face ao creditado, ou mesmo assumindo determinadas obrigações perante o creditante, de maneira a “confortá-lo”, ou seja, a, de alguma forma, incrementar a sua expetativa de que as obrigações do creditado serão cumpridas, cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “As garantias difusas do financiamento societário: as cartas de conforto”, in Revista Eletrónica de Direito.
473.
Recorrendo às palavras do Supremo Tribunal de justiça, in CJ/STJ, 2001 (III), pp. 157 e seguintes, em Acórdão de 19 de dezembro de 2001 (Ferreira Ramos):
As "cartas de conforto" são tipicamente subscritas por uma sociedade, têm por destinatário um banco e visam facilitar determinado financiamento a conceder por este a uma outra sociedade - que a primeira controla ou na qual tem, pelo menos, fortes interesses - e representam quase sempre o culminar de uma negociação, comportando, em regra, três personagens: a instituição financeira, que concede crédito; o beneficiário desse crédito e o "padrinho", ou seja, o patrocinante ou subscritor da carta, o qual, com esta sua declaração, "conforta" o primeiro, tranquiliza-o, inspirando nele a necessária confiança à concessão do crédito.”
474.
Ora, atendendo à configuração tripartida desta relação jurídica, torna-se claro e inequívoco que a Vendedora tem interesse direto em agir e contradizer na presente demanda.
475.
Sendo certo que também deveria ter sido demanda pela A., enquanto Co-Ré, nos presentes autos.
476.
E, acrescente-se, que nada impedia a A. de demandar a Vendedora para fazer valer o seu alegado direito indemnizatório decorrente do incumprimento das obrigações por aquela assumidas no contrato de compra e venda.
477.
Até porque a Vendedora tem conhecimento direto dos factos alegados pela A. no seu articulando, podendo contradizer a posição assumida por aquela.
478.
A Vendedora tem ainda conhecimento do ordenamento jurídico Brasil, ao qual as partes submeteram a resolução de quaisquer litígios emergentes do contrato de compra e venda de ações entre elas celebrado.
479.
Pelo que, tem um claro e inequívoco interesse na improcedência de tudo o quanto é peticionado nos presentes autos pela A.
480.
 “O pressuposto da intervenção principal, seja ela espontânea ou provocada, consiste na existência dessa legitimidade por banda dos chamados, expressa num interesse litisconsorcial por banda destes, sobretudo, nas situações em que o chamado seja, também ele, um devedor no confronto do autor”, vide C. Lopes do Rego, Os Incidentes de Intervenção de Terceiros em Processo Civil, Revista do M.º P.º, Ano 5º, vol. 18, pág. 106, a propósito do incidente equivalente no regime do CPC anterior à reforma de 1995/96: “a intervenção litisconsorcial provocada pressupõe que entre a parte que suscita o incidente e o terceiro chamado a intervir exista interesse litisconsorcial, desencadeando, consequentemente, uma situação de litisconsórcio, necessário ou voluntário, sucessivo”.
481.
Sabendo que a legitimidade processual, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir tal como são apresentados pelo autor, o incidente de intervenção principal provocada supõe uma contitularidade da relação material controvertida, com participação do chamado à intervenção.
482.
Sendo certo que, tal contitularidade da relação material controvertida entre a R. e a Vendedora é indubitável.
483.
Motivo pelo qual expressamente se requer a Intervenção Principal Provocada da S Participações Ltda.
484.
Se assim não se entender, o que por mera cautela de patrocínio se invoca, sempre deverá ser admitida a Intervenção Acessória Provocada da Vendedora
485.
Porquanto, a R. tem sobre aquela um direito de regresso em caso de procedência da presente ação, o que não se concede, mas por cautela de patrocínio se invoca.
486.
Daí que, atendendo à viabilidade da eventual ação de regresso perante a Vendedora destinada a permitir à R. a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda,
487.
Assim como atendendo à sua conexão com a causa principal (relação de conexão entre o objeto da ação pendente e o da ação de regresso, ou seja, o objeto da ação pendente deverá ser prejudicial relativamente à apreciação do direito de regresso contra o terceiro), se deva concluir que está configurado um direito de indemnização com viabilidade e conexo com o objeto da relação controvertida na ação.
488.
Motivo pelo se justifica a pretendida intervenção acessória provocada da Vendedora S Participações Ltda., que pelo presente e expressamente se requer.
489.
Em qualquer dos casos deve a interveniente Vendedora S Participações Ltda., ser citada na Rua …, nº …. – …, …., …. Brasil, … »
*
A autora opôs-se, alegando:
«267. Basta, porém, uma leitura superficial da Petição Inicial para que se conclua que a Ré não tem razão. De facto, contrariamente ao que a Ré alega e conforme já exposto à saciedade, a relação material controvertida diz respeito às responsabilidades assumidas pela Ré perante a Autora nos termos da Carta de Conforto. Posto de outro modo, de acordo com a causa de pedir formulada pela Autora na Petição Inicial, a titular das obrigações cujo cumprimento se peticiona nos presentes autos é apenas e somente a Ré — e não também a Vendedora.
268. Assim, e conforme se detalhará, é manifesta a improcedência da intervenção principal provocada peticionada pela Ré, devendo a mesma ser indeferida pelo Tribunal.
269. De acordo com o disposto no artigo 316.º do CPC, a intervenção principal provocada pode ser requerida pelo réu nas seguintes situações:
a. Preterição de litisconsórcio necessário;
b. Chamamento de outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida, desde que o réu mostre interesse atendível nesse chamamento; e
c. Chamamento de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
270. No presente caso é manifesto que o chamamento da Vendedora requerido pela Ré não se enquadra em nenhuma das situações legalmente tipificadas.
271. Primeiro, a Ré não está numa situação de litisconsórcio necessário com a Vendedora, o que, aliás, nem é alegado pela Ré.
272. Conforme previsto no artigo 33.º do CPC, há litisconsórcio necessário, por um lado, quando a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida; e, por outro, quando pela própria natureza da relação jurídica a intervenção seja necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal.
273. Nenhuma das situações se verifica no caso presente.
274. Por um lado, não existe qualquer norma legal ou convencional que exija a intervenção da Vendedora nos presentes autos. Com efeito, nada na lei ou nos contratos celebrados entre as partes impede a Autora de proceder judicialmente apenas e somente contra a Ré ao abrigo da Carta de Conforto. A relação material controvertida que se estabelece entre a Autora e a Ré com base no incumprimento da Carta de Conforto é distinta daquela que se estabelece entre a Autora e a Vendedora com base no incumprimento do Contrato.
275. Por outro lado, também não é necessária a intervenção da Vendedora para que a decisão a proferir nos autos produza o seu efeito útil normal. De facto, qualquer decisão que venha a ser proferida resolve definitivamente a situação concreta entre a Autora e a Ré relativamente ao pedido formulado pela Autora na Petição Inicial, não sendo necessária qualquer intervenção da Vendedora para o efeito.
276. Segundo, a Vendedora também não é litisconsorte voluntária da Ré, porquanto não é sujeito da relação material controvertida em discussão nos presentes autos.
277. Nos termos do artigo 32.º do CPC, há litisconsórcio voluntário quando a relação material controvertida respeitar a várias pessoas.
278. O litisconsórcio voluntário passivo não existe quando há várias pessoas com conhecimento direto dos factos alegados pelo autor, mas sim quando a relação material controvertida — tal como configurada pelo autor — respeita a várias pessoas. É, por isso, irrelevante se é a Ré ou a Vendedora quem tem conhecimento direto dos factos ou do ordenamento jurídico do Brasil. As testemunhas também devem ter conhecimento direto dos factos (e os advogados das respetivas leis aplicáveis) e isso não as torna partes nos processos judiciais em que depõem.
279. Conforme já se repetiu variadíssimas vezes, a relação controvertida nos presentes autos — tal como configurada pela Autora — baseia-se na Carta de Conforto, a qual, como já referido, foi emitida pela Ré a favor da Autora. Contrariamente ao que a Ré pretende fazer o Tribunal crer, a Autora não formula a sua causa de pedir e os seus pedidos com base nas obrigações assumidas pela Ré no âmbito do Contrato, mas sim na Carta de Conforto.
280. É verdade, como refere a Ré, que nada impediria a Autora de demandar a Vendedora ao abrigo do Contrato. No entanto, conforme já explicado, tal não foi a opção da Autora nos presentes autos. Nos presentes autos, repita-se, a Autora demanda apenas e somente a Ré e fá-lo ao abrigo das obrigações que a mesma assumiu no âmbito da Carta de Conforto (e não também do Contrato).
281. Ora, a Vendedora não assume qualquer obrigação no âmbito da Carta de Conforto, nem é titular de qualquer direito nessa sede. De facto, da leitura da Carta de Conforto resulta claríssimo que todas os direitos e obrigações que a Carta de Conforto estabelece têm como sujeitos apenas e somente a Autora e a Ré.
282. Não sendo a Vendedora sujeito dos direitos e obrigações resultantes da Carta de Conforto e sendo esses direitos e obrigações que constituem a relação material controvertida nos presentes autos, não restam dúvidas que a Vendedora não é sujeito da relação material controvertida dos autos.
283. Por conseguinte, como antecipado, e contrariamente ao que a Ré parece alegar na Contestação, a Vendedora também não é litisconsorte voluntária da Ré.
284. Terceiro e último, e contrariamente ao alegado pela Ré 223, como é manifesto e já foi antecipado, a Vendedora não é contitular do direito invocado pela Autora. De facto, a Vendedora não tem qualquer direito perante a Ré ao abrigo da Carta de Conforto. Repare-se que esta é emitida exclusivamente a favor da Autora (e não também a favor da Vendedora), não podendo a Vendedora acionar a Carta de Conforto ou exigir o que quer que seja da Ré ao abrigo da Carta de Conforto.
285. Em suma, o chamamento da Vendedora requerido pela Ré não se enquadra em nenhuma das situações legalmente previstas para a intervenção principal provocada, mormente no artigo 316.º do CPC, pois não configura uma situação nem (i) de litisconsórcio necessário, (ii) nem voluntário, (iii) e a Vendedora não é contitular do direito invocado pela Autora.
286. Consequentemente, deve o pedido de intervenção principal provocada da Vendedora formulado pela Ré na sua Contestação ser indeferido na totalidade.
5. A INTERVENÇÃO ACESSÓRIA PROVOCADA DEVE SER INDEFERIDA
287. A título subsidiário, na sua Contestação, a Ré requer também a intervenção acessória provocada da Vendedora, alegando que tem direito de regresso sobre a Vendedora em caso de procedência da presente ação.
288. A intervenção acessória provocada aplica-se nos casos em que, conforme previsto no artigo 321.º do CPC, o réu “tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda de demanda”. Acresce que, nos termos do disposto no artigo 322.º, n.º 2, do CPC, o Tribunal apenas deve deferir a intervenção acessória provocada quando “a intervenção não perturbe indevidamente o normal andamento do processo e, face às razões invocadas, [o juiz] se convença da viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na causa principal”.
289. A Ré tinha, assim, de (i) convencer o Tribunal da viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na causa principal e (ii) demonstrar que a intervenção requerida não perturba indevidamente o normal andamento do processo.
290. Nenhum destes requisitos se encontra verificado no presente caso, estando, portanto, o chamamento da Vendedora como interveniente acessória votado ao insucesso.
291. No que respeita ao primeiro requisito — que o Tribunal “se convença da viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na causa principal” —, a Ré limita-se a alegar um putativo direito de regresso sobre a Vendedora sem apresentar qualquer fundamentação ou prova para o efeito.
292. De facto, a Ré não refere qual a fonte do seu direito de regresso, desconhecendo-se quais os contratos celebrados entre a Ré e a Vendedora relativamente à emissão da Carta de Conforto dos autos. Ou seja, com base na alegação da Ré, nem sequer é possível ao Tribunal aferir da efetiva existência — quanto mais da viabilidade ou dependência das questões a decidir nos presentes autos — de um putativo direito de regresso da Ré contra a Vendedora.
293. No que respeita ao segundo requisito — que “a intervenção não perturbe indevidamente o normal andamento do processo” —, o pedido de intervenção acessória da Vendedora tem exatamente como finalidade introduzir perturbações no normal andamento destes autos, de forma a atrasar substancialmente tal andamento.
294. Com efeito, não pode deixar de se referir que o capital social da Vendedora é detido na quase totalidade — em mais de 99,99% — pela Ré225. Ou seja, a Ré controla integralmente a Vendedora.
295. O facto de a Ré controlar integralmente a Vendedora tem necessariamente como consequências: (i) que a Ré tem acesso a toda a informação que a Vendedora tem (ii) que não é necessária a intervenção da Vendedora nos presentes autos para que a Ré possa efetivar um qualquer putativo direito de regresso que possa ter contra a Vendedora (sendo, portanto, a procedência do chamamento da Vendedora a prática de um ato inútil).
296. No entanto, e, não obstante o ora exposto, a Ré decidiu requerer o chamamento da Vendedora. E assim o decidiu porque, como resulta da própria Contestação, a Vendedora tem a sua sede no Brasil. Ou seja, a citação da Vendedora teria de ser feita no Brasil, o que só por si implicaria um atraso substancial no andamento devido aos complicados trâmites relativos à citação de entidades no Brasil, os quais saem totalmente do controlo dos tribunais judiciais portugueses.
297. Acresce que, in casu, este atraso será certamente muito superior à demora usual relativa à citação de entidades no Brasil atendendo ao volume da citação que seria necessário expedir. É que a Ré decidiu juntar aos autos documentos com milhares de páginas, já tendo o presente processo, pelo menos, 19 volumes, todos os quais necessitam ser remetidos à Vendedora caso a sua intervenção seja admitida.
298. Por outro lado, o chamamento da Vendedora permitirá também à Ré apresentar uma segunda contestação, agora por intermédio da Vendedora que, relembre-se, é detida pela Ré em praticamente 100%. Se lhe fosse concedida tal possibilidade, estar-se-ia a defraudar, de uma assentada, o princípio da concentração da defesa e o prazo perentório para contestar, ambos estabelecidos na lei portuguesa. Obviamente, não pode ser admitido tal resultado.
***
299. Em conclusão, o chamamento da Vendedora é um mero expediente dilatório utilizado pela Ré para perturbar indevidamente o normal andamento dos presentes autos, atrasando substancialmente a tramitação dos mesmos, e para obter vantagens que não obteria legalmente.
300. Nestes termos, por não se encontrarem reunidos os requisitos previstos no artigo 322.º, n.º 2, do CPC, deve o pedido de intervenção acessória provocada da Vendedora ser indeferido na totalidade.».
*
Em 15/07/2024 foi proferida decisão em que se lê, além do mais:
«(…)
Em suma, a intervenção principal, espontânea ou provocada, cinge-se no actual Código de Processo Civil aos casos de litisconsórcio, tendo-se suprimido a admissibilidade da intervenção principal a título de coligação – ou seja, só é possível a promoção de intervenção principal activa baseada em interesse litisconsorcial.
A dilucidação da questão prende-se com a natureza e alcance da carta de conforto subjacente ao litígio dos autos.
Por conseguinte, «… principalmente na prática bancária, o devedor presta garantias, ditas especiais, de cumprimento das suas obrigações.
Mas essas garantias têm uma mera eficácia obrigacional, só produzindo efeitos entre o devedor e o credor, pelo que se poderão denominar de aparentes, pois nada acrescentam à garantia geral …; dito de outra forma, as garantias aparentes são ineficazes em relação aos demais credores.».
«a) Carta de conforto
Um dos exemplos de garantias aparentes pode ser o da vulgarmente chamada «carta de conforto», também denominada «carta de patrocínio» …
Com a carta de conforto, como o próprio nome indica, o credor, fica, talvez do ponto de vista moral, melhor assegurado, na medida em que o devedor escreveu uma carta em que lhe conferia essa melhor situação.
Tal declaração tem um significado meramente obrigacional, pois não qualifica este credor melhor do que os demais credores comuns; não lhe confere qualquer privilégio para a execução do seu crédito
«No direito bancário, a denominada carta de conforto ou carta de patrocínio corresponde a um documento consubstanciado numa missiva dirigida a uma instituição de crédito, em princípio, por uma determinada sociedade (sociedade-mãe) que, numa relação de grupo, detém uma posição accionista ou quotista significativa ou mesmo dominante numa outra sociedade (sociedade-filha)
«Na referida epístola, a entidade dominante informa acerca da existência da relação de domínio e afirma conhecer da existência de um compromisso assumido pela sociedade dominada perante a destinatária e, depois, conforta ou dá o seu patrocínio à instituição de crédito em causa quanto à seriedade da recomendada ou quanto ao cumprimento dos deveres por ela assumidos.
Como traços característicos da usual carta de conforto há a referir três aspectos: É emitida por uma sociedade comercial numa relação de domínio a favor de uma sociedade por ela dominada. Tem, por destinatária, uma instituição financeira. Visa facilitar um financiamento a favor da aludida sociedade dominada.
Constitui, pois, um fenómeno próprio dos grupos de sociedades e uma técnica de financiamento dos mesmos, principalmente nos mercados internacionais.».
«Tendo em conta a ambiguidade própria das cartas de conforto, a interpretação da declaração negocial (artigos 236.º e seguintes do Código Civil) assume um papel relevante.
Neste ponto, para além da teoria da impressão do destinatário (artigo 236.º, n.º 1 do Código Civil), tem particular interesse o princípio da falsa demonstratio non nocet (artigo 236.º, n.º 2 do mesmo diploma), nos termos do qual, mesmo que não esteja expressa ou implicitamente declarada, prevalece a vontade real do declarante conhecida do declaratário.».
Procurando apreender os contornos da carta de conforto aqui em apreço, devem chamar-se à colação outros ensinamentos doutrinários.
«Consistem estas em situações em que alguém por alguma forma presta um conforto ao credor em relação ao facto de outrem vir a cumprir uma obrigação que tem perante aquele, o que se tem tornado frequente nos grupos de sociedades, em ordem a permitir a existência de alguma espécie de comprometimento da sociedade-mãe relativamente a dívidas que irão ser contraídas pela sociedade-filha.
…. Normalmente as cartas de conforto são imprecisas, traduzindo uma ideia de contratação mitigada ou enfraquecida, uma vez que os seus autores evitam assumir vinculações precisas, sendo este facto que evita que se tenham transformado em garantias comuns, eventualmente típicas.
… A primeira questão que se coloca …diz respeito à sua juridicidade, pretendendo-se saber se correspondem a verdadeiros negócios jurídicos ou são antes meros acordos de cavalheiros, regulados pelas regras do trato social. Hoje em dia parece pacífica a sua juridicidade, uma vez que delas resulta um compromisso assumido por uma parte e validamente aceite pela outra. As cartas de conforto são assim negócios jurídicos e sendo a sua função a prestação de uma garantia, podem legitimamente qualificar-se como negócios jurídicos de garantia.
Apesar de resultarem de uma carta assinada pelo remetente, as cartas de conforto não correspondem a negócios unilaterais (art.º 457.º), sendo antes contratos, … …implicam apenas a realização de prestações, pelo que são garantias pessoais e não reais. Trata-se de garantias pessoais atípicas, cujos traços principais podem ser livremente estipulados pelas partes, mas que ao contrário da fiança, não são acessórias de uma
obrigação principal, nem funcionam à primeira solicitação, ao contrário do que
normalmente ocorre na garantia bancária autónoma.
… deve distinguir-se entre cartas de conforto fracas e cartas de conforto fortes.
No caso de conforto fraco, a entidade emitente limita-se a prestar informações sobre certas situações de facto ou a assumir obrigações não relacionadas com o pagamento, como a de informar ou solicitar determinada autorização.
No caso de conforto forte, a emitente assume um conteúdo promissório mais empenhado em relação ao beneficiário, como a de não ceder a sua participação social a outrem, ou obrigar-se a fornecer outras garantias no caso de a cessão vir a ocorrer, ou ainda a garantir a inexistência de prejuízos para o beneficiário. Em certos casos, o emitente assume mesmo o dever jurídico de pagar as dividas que o devedor tenha para com o destinatário da carta, caso aquele falte ao pagamento devido, quanto mais não seja através da assunção da obrigação de dotar a filial dos capitais necessários a esse pagamento. Neste caso, a carta de conforto forte aproximar-se-á de uma fiança, uma garantia autónoma ou um mandato de crédito.
As consequências do incumprimento da carta de conforto variarão, consoante o tipo de conforto de que se trate. No caso de conforto fraco poderá equacionar-se a aplicação do regime da responsabilidade por informações (art.º 485.º), da responsabilidade pré-contratual (art.º 227.º) ou do venire contra factum proprium (art.º 334.º). No caso de conforto forte, há uma efectiva prestação de uma garantia pessoal, pelo que o autor da carta responderá pelo incumprimento da garantia (art.º 798.º).».
Revertendo ao caso em epígrafe, em vista do teor concreto da carta de conforto junta aos autos, subscreve-se o entendimento da A. quando a integra na categoria de conforto forte.
Na conformação que a A. entendeu livremente dar à presente acção, a relação material controvertida não se estende à denominada Vendedora, centrando-se na eventual responsabilidade da R., por força do alegado incumprimento das responsabilidades que assumiu através da carta de conforto (e não do contrato).
Com efeito, a carta de conforto foi emitida pela R. exclusivamente a favor da A. – e não também a favor da Vendedora, razão pela qual esta não pode accioná-la contra a R.
A provar-se a tese sufragada pela A., a R., enquanto autora da carta, é que é a responsável pelo incumprimento da garantia.
É certo que a A. poderia ter intentado esta acção também contra a Vendedora; não obstante, não estava legalmente vinculada a fazê-lo.
Foi uma opção que tomou, eventualmente motivada pela circunstância de não pretender protelar o andamento dos autos, não se descortinando qualquer obstáculo legal a isso.
O certo é que da leitura da petição inicial não se configura um caso de contitularidade de direitos, de direito de regresso ou de interesse litisconsorcial passivo necessário ou voluntário entre a R. e a denominada Vendedora (arts. 30.º, 32.º e 33.º, todos do Código de Processo Civil), não havendo cobertura legal para o incidente, em qualquer das modalidades peticionadas.
O que vem de dizer-se não obsta a que a R., caso entenda que tem fundamento para tanto, demande a Vendedora por eventuais prejuízos sofridos, mas tal enquadrar-se-á em acção autónoma da presente.
Em síntese, indefere-se o incidente suscitado pela R.».
*
Inconformada, apelou a ré, terminando a alegação com estas conclusões:
«1. O Tribunal a quo decidiu, por despacho com a referência CITIUS 437262505, pelo indeferimento de incidente intervenção de terceiros, na modalidade de intervenção principal provocada de S Participações Ltda;
2. A Ré, ora Recorrente, não se conforma com a referida decisão proferida pelo Tribunal a quo, porquanto no seu entender, fez uma incorreta aplicação do direito ao caso em concreto.
Motivo pelo qual, a necessidade e legitimidade da Recorrente na apresentação das destas alegações recurso;
3. A Ré, ora Recorrente, deduziu na sua Contestação incidente de intervenção de terceiros, na modalidade de intervenção principal provocada ou, se assim não se entendesse, de intervenção acessória provocada;
4. Com efeito, alega a Recorrente que a Vendedora S Participações Ltda. tem todo o interesse em pleitear ao lado seu lado enquanto parte principal, porquanto tem interesse direto em contradizer, vide n.º 1 do artigo 30.º do CPC; a Vendedora é contitular do alegado direito indemnizatório invocado pela Autora em caso de procedência da presente ação; e bem assim a Vendedora é contitular da relação material controvertida, podendo também esta ser solidariamente condenada com a Ré; mas ainda a Vendedora tem conhecimento do ordenamento jurídico Brasil, ao qual as partes submeteram a resolução de quaisquer litígios emergentes do contrato SPA – contrato de compra e venda de ações entre elas celebrado;
5. A chamada S Participações Ltda. tem um claro e inequívoco interesse na improcedência de tudo o quanto é peticionado nos presentes autos pela Autora;
6. Caso assim não se entendesse, a Ré, ora Recorrente, entende que deveria ter sido admitida a Intervenção Acessória Provocada da Vendedora, porquanto a tem sobre aquela um direito de regresso em caso de procedência da ação;
7. A causa de pedir dos presentes autos está diretamente relacionada com factos ocorridos integralmente no Brasil, entre relações havidas entre a chamada, S Participações Ltda. e a Recorrente;
8. Aliás, atendendo às relações havidas entre as partes e à alegada existência de prejuízos sofridos pela Autora esta moveu ações judiciais que correram termos no Tribunais Judiciais do Brasil, pelo que determinados valores peticionados nos presentes autos já foram discutidos em sede judicial no Brasil, conforme foi possível à Ré apurar genericamente até ao momento;
9. Outros tantos valores peticionados, decorrentes de alegados prejuízos sofridos pela Autora, a Recorrente não dispõe de qualquer informação sobre o processo que os subjaz e se são legitimamente devidos a esta;
10. Porquanto o contrato SPA foi celebrado entre a S Participações Ltda. e a Recorrida A chamada S Participações Ltda. interveio enquanto parte principal, Vendedora de ações e a Recorrida enquanto Compradora das mesmas;
11. A Recorrente apenas interveio enquanto parte principal aquando da celebração da Carta de Conforto com a Autora. Com efeito, a Recorrente garantiu que faria de tudo para que chamada S Participações Ltda. cumprisse com as obrigações assumidas perante a Autora no sobredito contrato de compra e venda;
12. Existe, assim, uma configuração tripartida na presente relação jurídica, tornando-se claro e inequívoco que a chamada S Participações Ltda. tem interesse direto em agir e contradizer na presente demanda;
13. Torna-se essencial apurar se os valores peticionados pela Autora são legítimos e devidos, seguidamente se as demais “garantias” - previstas no contrato SPA - já foram previamente acionadas ou não. E, apenas posteriormente, após obter resposta ao acima referido, poderá o Tribunal decidir-se pelo legitimo e direto acionamento da Carta de Conforto e, por via desta, a Recorrente ser responsabilizada;
14. Torna-se por demais evidente que a Carta de Conforto não pode ser apreciada autonomamente e desentranhada da obrigação principal definida no contrato SPA e assumida entre a Autora e a chamada S Participações Ltda;
15. A Carta Conforto dispõe claramente que tem uma natureza meramente complementar e acessória, constituindo uma garantia adicional para pagamento das obrigações e responsabilidades da Vendedora, quando devidas à luz dos termos definidos no SPA (sublinhado nosso) – vide Secção 2 a) da Carta de conforto;
16. Conforme decorre do até aqui vertido, salvo o devido respeito por opinião diverso, a chamada S Participações Ltda., também deveria ter sido demandada pela Recorrida enquanto Co-Ré;
17. No entanto, assim não o entende o Tribunal a quo que refere não se verificarem os pressupostos da intervenção principal provocada, baseando o seu indeferimento na configuração a Recorrida faz da relação material controvertida (configurada pelo Autor na sua petição inicial), e na consequência "fatal" que o Tribunal entendeu que essa mesma configuração teria no direito de a Recorrente vir a chamar terceiros ao processo;
18. Todavia, deve atender-se, para determinação de legitimidade, não à relação jurídica unilateralmente descrita pela Recorrida na petição inicial, mas antes à relação material controvertida tal como emerge das versões das partes constantes nos seus articulados e dos elementos constantes do processo;
19. Considerando que a Recorrente descreveu a relação material controvertida nos termos substantivos em que de facto se devem litigar as pretensões em Juízo, não se pode deixar de concluir que o Tribunal a quo não terá atendido à relação material controvertida tal como ela emerge das versões das partes e dos elementos constantes do processo;
20. O Tribunal a quo não se pronunciou sequer sobre os factos acima expostos e a relação material tripartida explicitada pela Recorrente. Ao invés, o Tribunal a quo configurou a relação material controvertida apenas conforme enunciada na petição inicial, desconsiderando a apresentada pela Recorrente sem delongas;
21. A intervenção provocada deduzida pela Recorrente visou colocar o terceiro, i.e. a chamada S Participações Ltda., em condições de a auxiliar relativamente à discussão das questões que possam ter repercussão na ação de regresso ou indemnização invocada como fundamento do chamamento;
22. Está a Recorrente certa de que, ao analisar o requerimento de intervenção provocada, não teve o Tribunal a quo em conta o fundamento do chamamento, nem a importância da intervenção na sua defesa e no articular dos seus direitos e posições jurídicas no pleito;
23. No mínimo, mas nunca concedendo, seria de admitir por parte do Tribunal a quo a existência de uma dúvida fundamentada na configuração da relação substantiva, sendo óbvio que do alegado pelas partes surge uma incerteza em relação a coisas ou factos, a ignorância na ausência de conhecimento sobre umas e outros, e o erro na falsa representação de determinada realidade, e face a esta dúvida é de admitir a intervenção principal provocada;
24. Atendendo à viabilidade da eventual ação de regresso perante a Vendedora destinada a permitir à Recorrente a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda, e bem assim à sua conexão com a causa principal deve-se concluir inequivocamente que está configurado um direito de indemnização com viabilidade e conexo com o objeto da relação controvertida na ação;
25. O entendimento sufragado pelo Tribunal a quo abre portas a que o Autor de qualquer processo tenha o poder de condicionar/limitar a defesa da contraparte ao configurar a relação substantiva para o Tribunal de forma a não permitir chamar partes ao processo que pudessem partilhar/auxiliar a defesa da parte Ré, que comungassem do interesse em Juízo;
26. A admitir-se tal faculdade à Recorrida de eleger contra quem e de quem pretende demandar a indemnização e a verificar-se uma condenação, estar-se-ia a determinar uma futura ação de regresso contra a chamada S Participações Ltda., por parte da Recorrente, hipótese que apenas frustraria o efeito útil da Sentença, e que em nada impediriam o Autor de interpor nova ação contra a chamada, bastando-lhe para tal uma sofisticada camuflagem jurídica do pedido nestas novas ações hipotéticas;
27. Pois tal como já exposto entende a Recorrente que uma eventual condenação, que apenas por mera cautela se admite, poderá intitulá-la de um direito de interpor uma ação pelo direito de regresso;
28. Donde que, face ao facto do interesse da chamada S Participações Ltda. ter sido desconsiderado pelo Tribunal a quo, mas face aos direitos da Recorrente enquanto Ré, a única orientação que poderia ter sido adotada pelo Tribunal a quo seria a intervenção acessória, dado o óbvio direito de regresso que assistirá à Recorrente;
29. O Tribunal “quo” violou, entre outras, as normas constantes dos Artigos 316.º 2 e 3, 317º, 318º, 319º, 321º 1 e 2 do Código de Processo Civil;
30. Em face de tudo o quanto acima se referiu, deve a decisão de indeferimento do incidente de intervenção de terceiros da chamada S Participações Ltda. proferida pelo Tribunal a quo ser revogada;
31. E, por conseguinte, deve ser admitido e deferido o incidente de intervenção de terceiros da chamada S Participações Ltda. na modalidade de intervenção principal provocada ou, caso assim não se entenda, na modalidade de intervenção acessória provocada, prosseguindo os autos os seus termos subsequentes.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-se por uma outra que determine a admissão do incidente de intervenção de terceiros da chamada S Participações Ltda. na modalidade de intervenção principal provocada ou, caso assim não se entenda, na modalidade de intervenção acessória provocada, prosseguindo os autos os
seus termos subsequentes.».
*
A autora contra-alegou, invocando ser inadmissível recurso da decisão de indeferimento da intervenção acessória provocada, nos termos do artigo 322.º, n.º 2 do CPC e defendendo a confirmação da decisão recorrida.
*
Após, a 1ª instância proferiu o seguinte despacho:
«Por ser legalmente admissível (considerando que do teor do despacho recorrido resulta que o mesmo decidiu julgar improcedente o incidente de intervenção de terceiros), ter sido interposto por quem tem legitimidade e ser tempestivo, admite-se o recurso interposto que é de apelação, com subida em separado e com efeito meramente devolutivo (arts. 627º, 629º, nº1, 631º, nº1, 637º, 638º, nº1 e nº3, 639º, 641º, nº1 e nº5, 644º, nº 1, al. a), 645º, nº2 e 647º, nº1 do C.P.C.).».
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- se deve ser admitida a intervenção principal provocada ou então a intervenção acessória provocada de S Participações Ltda
*
III – Fundamentação
1. Do incidente de intervenção acessória provocada
O art.º 322º do CPC (Código de Processo Civil) estatui:
«(…)
2 - O juiz, ouvida a parte contrária, aprecia, em decisão irrecorrível, a relevância do interesse que está na base do chamamento, deferindo-o quando a intervenção não perturbe indevidamente o normal andamento do processo e, face às razões invocadas, se convença da viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na causa principal.».
O art.º 628º do CPC prevê:
«A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.».
Portanto, transitou em julgado a decisão da 1ª instância na parte em que não admitiu a intervenção acessória de S Participações Ltda.
*
2. Do incidente de intervenção principal provocada
O art.º 316º do CPC estabelece:
«1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.».
Não invoca a apelante a preterição de litisconsórcio necessário passivo, que seria causa de ilegitimidade, sendo manifesto, aliás, que tal não se verifica.
Mas, segundo a apelante, a chamada - Vendedora S Participações Ltda é contitular do alegado direito da A..
Porém, na petição inicial vem alegado que a vendedora S Participações Ltda incumpriu o contrato de compra e venda de acções celebrado com a autora, pelo que não faz sentido sustentar que aquela é contitular do mesmo direito que esta se arroga. Afastada fica assim a possibilidade de admitir a intervenção ao abrigo do nº 3 al. b) do art.º 316º.
Vejamos então se a situação é subsumível à figura do litisconsórcio voluntário passivo, impondo-se saber se a chamada é sujeito passivo da relação material controvertida.
Na petição inicial vem alegado, em resumo:
- em 2005, o grupo português SO, decidiu vender os seus activos da distribuição no Brasil ao Grupo norte-americano W,
- para concretizar essa operação, em 13/12/2005, a M, S.A. (atualmente S Participações LTDA., (“Vendedora”) e a H Participações LTDA. (atualmente a autora W) (“Compradora”) celebraram um contrato de compra e venda  nos termos do qual a primeira vendeu à segunda, que comprou para si, as ações representativas de 98,45% do capital social da So S.A. (“Contrato”),
- neste Contrato, a Vendedora obrigou-se a reembolsar a Compradora por custos e despesas incorridos em processos judiciais (civis, laborais ou fiscais) pendentes ou referentes a factos anteriores ou contemporâneos à data do Contrato;
- os prejuízos sofridos pela autora podem referir-se a uma das quatro situações seguintes, geradoras da obrigação de a indemnizar/reembolsar: processos judiciais que estavam pendentes à data da celebração do Contrato, mas que não foram incluídos no Anexo V52; processos judiciais incluídos no Anexo V53; processos judiciais que deram entrada depois da celebração do Contrato, mas que se referem a factos anteriores ou contemporâneos a ela; prejuízos tributários, tal como definidos no Contrato;
- em paralelo com a celebração do Contrato, também em 13/12/2005, a ré (na altura denominada M, S.G.P.S., S.A.) assinou uma carta de conforto a favor da Compradora — denominada Binding Comfort Letter ou, em
português, Carta de Conforto Vinculativa — (“Carta de Conforto”), nos termos da qual irrevogável e incondicionalmente garantiu, inter alia, o integral e pronto cumprimento de todas as obrigações, acordos, compromissos, representações e garantias da Vendedora ao abrigo do Contrato, incluindo e sem limite, as obrigações de indemnização e reembolso previstas na Cláusula 8 do Contrato perante as “Partes Reembolsadas da Compradora”;
- apesar de várias vezes instada para cumprir, a Vendedora incumpriu várias das obrigações de reembolso a que se obrigou,
- ficando assim conferido à autora o direito de agir contra a ré ao abrigo da Carta de Conforto;
- a autora reclama nesta ação a quantia de 8.820.437,21 € acrescida de juros vencidos e vincendos, nos termos da Cláusula 8.2. do Contrato.
Portanto, na tese da autora trazida à petição inicial são duas as devedoras da referida quantia: a vendedora, na qualidade de devedora principal, porque incumpriu obrigações assumidas no contrato de compra e venda; e a ré na qualidade de garante do cumprimento dessas obrigações, em conformidade com a Carta de Conforto.
Ora, como a carta de conforto tem a sua razão de ser naquele contrato de compra e venda e está em causa o alegado incumprimento de obrigações assumidas naquele, a vendedora é também titular da relação material controvertida.
Assim, a vendedora/devedora principal é também titular da relação material controvertida.
Além disso, mostra-se atendível o interesse da ré/garante em chamar a intervir a devedora principal quer para esta a auxiliar na defesa, quer para melhor poderem ser discutidas as questões que possam ter repercussão em eventual acção de regresso ou de indemnização.
Concluindo, preenchidos estão os requisitos para ser admitida a intervenção principal provocada da S PARTICIPAÇÕES LTDA.
*
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida na parte referente ao incidente de intervenção principal provocada da S PARTICIPAÇÕES LTDA, que vai admitido.
Custas pela apelada.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2025
Anabela Calafate
Gabriela de Fátima Marques
Teresa Pardal