Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
330/21.8PBFUN.L1-5
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
TRATAMENTO AO ALCOOLISMO
AFASTAMENTO DA VÍTIMA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O circunstancialismo de o arguido não ter antecedentes criminais, possuir apenas a 2.ª classe, ter atuado sob o efeito de consumos excessivos de álcool e ter deixado de molestar a vítima há praticamente dois anos, não consubstancia a existência de factualidade que permita ao Tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento, não permite ao tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, com vista à suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.
II. Quando o próprio arguido não reconhece o seu problema de alcoolismo, não reconheceu, sequer, que se embriagava, perante prova efetuada nesse sentido, não se descortina qualquer facto, ainda que indiciário, suscetível de sustentar o êxito do tratamento ao alcoolismo, como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
III. Ao arguido é permitido não falar a verdade e até pode remeter-se ao silêncio, mas, a total ausência de arrependimento, aliada à negação do seu problema de alcoolismo [ainda que, no final da audiência de julgamento, interpelado pelo tribunal a quo, tenha verbalizado aceitar submeter-se a tratamento], vivenciado há mais de 30 anos, não permite apreender qualquer esperança fundada na mudança do seu comportamento.
IV. A baixa instrução do arguido não pode servir para justificar a prática de atos desta jaez e o seu afastamento da vítima revela-se de pouca importância, pois com a tipologia do crime de violência doméstica não pretendeu o legislador proteger apenas esta vítima, mas também outras companheiras/cônjuges de o virem a ser - vítimas -.
V. O crime de violência doméstica [in casu ocorrido durante mais de 30 anos], que integra o padrão de criminalidade violenta [cfr. artigo 1º, alínea j), do Código de Processo Penal], impõe elevadíssimas exigências de prevenção geral, que demandam firmeza na punição, situando-se o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico [abaixo do qual se colocaria em causa a crença da comunidade na efetiva proteção/tutela dos bens jurídicos], num nível muito elevado, quanto a este tipo de crime.
[sumário elaborado pela relatora]
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 330/21.8PBFUN que corre termos pelo Juízo Local Criminal do Funchal - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, a 06 de fevereiro de 2023, foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“Por tudo o exposto, julga-se a acusação totalmente procedente, condenando-se o arguido AA, pela autoria do crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152º, nºs 1, al. a) e 2, al. a) do C. Penal, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 5 (cinco) anos, com sujeição a regime de prova, onde se incluirão entrevistas regulares de técnico de reinserção social com o arguido, destinadas a sensibilizá-lo para o sofrimento das vítimas de violência doméstica e a contactos regulares do técnico com a actual ou futuras companheiras ou cônjuges do arguido e uma avaliação permanente da respectiva dinâmica familiar, ficando a suspensão ainda subordinada ao dever de o arguido se sujeitar ao imediato tratamento do alcoolismo, bem como a retomá-lo, sempre que o técnico de reinserção social entenda, em face da conduta que constatar do arguido, que assim se justifica.”.

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I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o MP para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“1- Por sentença de 06-02-2023, o Tribunal a quo decidiu suspender por 5 anos, com sujeição a regime de prova, a pena de prisão de três anos e oito meses de prisão, aplicada ao arguido AA, pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152. º, n.º 1, al. a), e n.º 2, al. a), do Código Penal.
2- O Ministério Público discorda da decisão de suspender a execução da referida pena de prisão por se considerar que não foram provados quaisquer elementos que nos permitam concluir que se mostram verificados os pressupostos previstos no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.
3- Como é consabido, é pressuposto da suspensão da execução da pena de prisão a formulação, pelo julgador, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de, quanto a ele, a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes.
4- Cumpre, pois, considerar os seguintes fatores:
a) O arguido praticou os factos descritos na acusação durante cerca de 30 anos;
b) Os factos praticados foram gravíssimos, denotando um desmesurado desrespeito pela dignidade humana da vítima e de humilhação. Veja-se que o arguido agrediu, por várias vezes, a vítima com socos, pontapé e puxões de cabelo até a mesma ficar inanimada no chão, sujeitando os filhos a ouvir os gritos da mãe;
c) O arguido não apresenta o mínimo sentido crítico, nem arrependimento face aos factos pelos quais, em concreto, foi condenado, negando, inclusive, todos os factos imputados e “queixando-se” de ser ele a “vítima” da relação, tecendo sobre a vítima comentários depreciativos;
d) O arguido não reconhece que tenha qualquer problema de alcoolismo, pelo que mal se compreende que o Tribunal considere que o arguido irá cumprir com o zelo devido um tratamento à sua dependência do álcool, quando, na verdade, a sua “aceitação” foi antecedida de uma negação perentória do problema que se pretende obliterar. A “aceitação” do arguido mais não foi do que uma forma de evitar a inviabilização imediata da suspensão da execução da pena de prisão, e, por via disso, o cumprimento de prisão efetiva.
5- Importa, ainda, considerar que, as exigências preventivas gerais são elevadíssimas neste tipo de crime. Seria, a nosso ver, um péssimo sinal que a justiça enviaria à sociedade que, no presente caso, um arguido que praticou os factos provados descritos na sentença, durante longos anos, que não revela qualquer arrependimento e que não reconhece o seu prolema de alcoolismo possa ver a sua pena ser suspensa na sua execução.
6- O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de suspensão da execução da pena de prisão no facto de o arguido não ter contacto com a vítima há cerca de 2 anos, não ter antecedentes criminais e ter pouca instrução, pertencendo a um meio social que não lhe permitiu interiorizar o desvalor dos seus comportamentos, mais precisamente a problemática da violência doméstica.
7- Quanto ao primeiro argumento aduzido pelo Tribunal, importa fazer notar que, de facto, o arguido cessou as suas condutas violentas para com a vítima, porém fê-lo quando logrou um dos seus intentos, que era expulsar a vítima da residência comum.
8- Mas, como se tal não bastasse, durante quase dois meses, após a vítima ter saído, de forma forçada, da sua residência, o arguido ainda lhe telefonou e fez-lhe ameaças de morte, ao ponto de a vítima ter que mudar de telefone para cortar definitivamente os contactos com o arguido.
9- Com efeito, a simples separação do arguido e da ofendida, nas circunstâncias específicas do presente caso, nada revela, a nosso ver, acerca da capacidade daquele de manter, no futuro, um comportamento normativamente adequado.
10- Por outro lado, não se desconhece que a aplicação de pena de prisão efetiva a arguido sem antecedentes criminais pela prática de crime da mesma natureza é sempre muito excecional, e de evitar, quando possível.
11- Porém, no presente caso, se é certo que o arguido não possui antecedentes criminais, não é menos verdade que nenhum outro facto dado como provado permite um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido, mesmo com sujeição a regime de prova.
12- Por fim, o contexto social e económico do arguido serve para fundamentar o seu nível de culpa, à data da prática dos factos, e, consequentemente, influenciar a medida da pena, mas não pode justificar a sua conduta posterior manifestada em audiência de discussão e julgamento de completa falta de arrependimento sobre a gravidade dos seus comportamentos.
13- Convém fazer notar que, o arguido decidiu prestar declarações já depois de ter ouvido o relato da vítima e dos filhos, que, conforme bem referiu o Tribunal, foram depoimentos bastante emotivos e, mesmo assim, demonstrou uma total frieza e desconsideração perante todo o sofrimento relatado.
14- O juízo de prognose favorável reporta-se ao momento em que a decisão é tomada e pressupõe a valoração conjunta de todos os elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, no sentido de que irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando o eventual cometimento de novos crimes prevenido com a ameaça da prisão.
15- A comunidade dificilmente compreenderia que alguém que pratica factos da natureza e gravidade dos que o arguido praticou, de forma reiterada e ao longo de cerca de 30 anos, revelando uma personalidade violenta e avessa à observância das normas jurídico-penais fosse punido com uma pena diversa da pena de prisão.
16- Como se tal não bastasse, o mesmo arguido não demonstrou qualquer arrependimento pela prática dos factos que resultaram provados, revelador que ainda não interiorizou o desvalor, a gravidade e censurabilidade da sua conduta.
17- Tendo decidido como decidiu, a douta sentença incumpriu os artigos 40.º, nº 1 e 2, e 71. º, n.º 1 e 2, e violou o disposto no artigo 50. º, todos do Código Penal.

Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente,
devendo Vªs. Exªs. revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que
condene o arguido numa pena de prisão efetiva entre os três e quatro anos.”
 
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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 09-03-2023.

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I.3 Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, veio o arguido responder ao recurso interposto pelo Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição].
a) O recurso interposto pelo Ministério Público, ora recorrente, está centrado na impugnação da matéria de direito, relativamente à decisão do douto tribunal a quo de suspender a pena de prisão efectiva que foi aplicada ao arguido pelo período de 3 anos e 8 meses, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos sujeito a regime de prova;
b) Entende o recorrente que deve ser revogada a execução da suspensão da pena de prisão, devendo ser proferido acórdão que condene o arguido numa pena situada entre os 3 e  4 anos de prisão efetiva;
c) Ora, salvo devido respeito, não pode o arguido concordar com o recorrente porquanto a decisão do douto tribunal a quo foi integralmente acertada;
d) Segundo o recorrente não foram provados elementos que permitam concluir que se mostram verificados os pressupostos do artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, enunciando os seguintes fundamentos pelos quais não se deverá suspender a pena ao arguido:
e) “a) O arguido praticou factos gravíssimos, que incluem um desmesurado desrespeito pela dignidade humana da vítima e de humilhação, como seja agredir, por várias vezes, a vítima com socos, pontapé e puxões de cabelo até a mesma ficar inanimada no chão, sujeitando os filhos a ouvir os gritos da mãe, impotentes face ao comportamento do arguido; 
f) b) Os factos perpetuaram-se durantes muitos e longos anos (30 anos) sem que o arguido tivesse emendado, ainda que minimamente, a sua conduta, ou sequer tivesse atendido aos apelos dos filhos para tratar a sua dependência do álcool; 
g) c) O arguido não apresenta o mínimo sentido crítico, nem arrependimento face aos factos pelos quais, em concreto, foi condenado, negando, inclusive, todos os factos imputados e “queixando-se” de ser ele a “vítima” da relação. Convém fazer notar que, o arguido decidiu prestar declarações já depois de ter ouvido o relato da vítima e dos filhos, que, conforme bem referiu o Tribunal, alguns desses depoimentos foram bastante emotivos e, mesmo assim, demonstrou uma total frieza e desconsideração perante todo o sofrimento relatado; 
h) d) O arguido negou qualquer problema relacionado com o consumo excessivo de álcool, pelo que mal se compreende que o Tribunal a quo considere que o arguido irá cumprir com o zelo devido um tratamento à sua dependência do álcool, quando, na verdade, a sua “aceitação” foi antecedida de uma negação perentória do problema que se pretende obliterar. A “aceitação” do arguido mais não foi do que uma forma de evitar a inviabilização imediata da suspensão da execução da pena de prisão, e, por via disso, o cumprimento de prisão efetiva; 
i) e) As exigências preventivas gerais são elevadíssimas neste tipo de crime. Seria, a nosso ver, um péssimo sinal que a justiça enviaria à sociedade - tão preocupada hodiernamente com o flagelo social que a violência doméstica representa, associado ao número assustador de mortes em contexto de violência doméstica – que, no presente caso, um arguido que praticou os factos provados descritos na sentença, durante longos anos, que não revela qualquer arrependimento e que não reconhece um dos principais problemas para a prática de tais factos (alcoolismo) possa ver a sua pena ser suspensa na sua execução.
e) O recorrente não pormenoriza, nem correlaciona os seus fundamentos factuais, os factos dados como provados em conjunto com a prova que serviu de base à correspondente decisão para concluir com a pretensão de revogação da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido; 
f) o recorrente pretendendo recorrer com base na impugnação da matéria de facto utilizando-a, seja no seu sentido restrito ou amplo, com recurso à matéria da prova gravada ou não, não respeitou as regras do artigo 412.º, n.º 3 do CPP;
g) atendendo a que o recurso se circunscreve à matéria de direito, no que tange à apreciação da matéria de facto não poderá a mesma ser atendida pelo tribunal ad quem por falta de observação daquele predito legal;
h) a recorrente invoca factos falsos que não ficaram provados na douta sentença recorrida quando invoca que “30 anos” de factos perpetrados contra a assistente/vítima, relacionados com violência doméstica;
i) não pode o arguido concordar com o invocado na al. d) do ponto) das presentes conclusões por parte do recorrente, porquanto o arguido aceitou o tratamento ao álcool apenas porque lhe foi aplicado pelo tribunal a quo, ao que o mesmo aceitou livre e voluntariamente não utilizando qualquer estratégia maliciosa para se furtar ao cumprimento da pena;
j) a recorrente usa ilações tiradas por próprio arbítrio, os quais não foram tomados em conta pelo tribunal para aplicação da suspensão da pena, nem sequer foram dados como provados;
k) não entende o arguido a razão pela qual a recorrente refere nas suas motivações que “(...) convém fazer notar que o Arguido decidiu prestar declarações já depois de ter ouvido o relato da vítima e dos filhos, que, conforme bem referiu o Tribunal alguns desses depoimentos foram bastante emotivos e, mesmo assim, demonstrou uma total frieza e desconsideração perante todo o sofrimento relatado”;
l) o recorrente esqueceu-se que o arguido tem o direito ao silêncio o qual não o pode desfavorecer como comanda o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, fazendo tábua rasa do mesmo e das garantias legais ínsitos no Código do Processo Penal e consagradas na Constituição da República Portuguesa;
m) segundo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 22/06/2022, proc.  N.º 172/21.0GAVLC.P1 “I – Ao falarmos de arrependimento, estamos a referir-nos a um facto imaterial, a um facto subjectivo que pode ser extraível dos factos materiais, objectivos, considerados provados (v.g. a reparação do mal do crime), e/ou da sua conduta processual (v.g. a confissão, desde que relevante para a prova dos factos);
II- Se integrado nos factos provados pode e deve constituir um factor atenuante da pena (o seu maior ou menor valor atenuante, derivará da conjugação com a natureza do crime, os bens jurídicos violados, e os restantes factores de medida da pena);
III– No pólo oposto, a “ausência de arrependimento” não pode funcionar como factor agravante da pena ou como fundamento para a sua não suspensão;
IV- Tal contraria o princípio estabelecido no art.º 32º, nº 2, da CRP, de que deriva o direito do acusado a não se auto-incriminar (também denominado de “direito ao silêncio”.
n)os juízos de valor dirigidos ao arguido pela recorrente nas alegações apresentadas, afiguram-se pessoais, depreciativos e desprovidos de qualquer fundamentação legal;
o) o recorrente apenas pretendia uma confissão forçada por parte do arguido no crime de que foi condenado;
p) o recorrente mais não quer do que justificar que o facto do arguido “não ter confessado o crime” e “demonstrado total frieza” e “desconsideração perante todo o sofrimento relatado”, não deveria ter sido aplicada a suspensão da execução da pena de prisão;
q) segundo Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 11/10/2006, proc. 06P2545 “IV – A ausência de confissão do crime não significa necessariamente que não houve interiorização do mal do crime e que o agente não reconheceu que a sua conduta merece ser censurada; o agente não pode ser penalizado por não confessar o crime (...)
V – Assim, admitindo-se que a protecção dos bens jurídicos se mostra suficientemente assegurada com a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução, a ausência de confissão do crime não impede a aplicação da pena de substituição desde que se verifiquem os requisitos do artigo 50.º, n. º 1, do CP”.
r) na ponderação para aplicação da pena suspensa na execução, fundamentou e bem o douto tribunal a quo que: “Em contrapartida, não pode deixar de se ponderar que, há quase dois anos que cessaram definitivamente as condutas violentas do arguido para com a assistente e que o arguido, inclusivamente, já refez a sua vida conjugal, tendo uma nova companheira, com que já vive há cerca de 4 meses.  (...) Por outro lado, numa vertente prospectiva da pena, em que se pondera que, além do arguido não ter (até há bem pouco tempo, em que foi condenado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, mas de pouca relevância para a actual ponderação) antecedentes  criminais, ter sido condicionado pelos atavismos de uma instrução formal praticamente ao nível do analfabetismo (2.ª classe), pelo consumos excessivos de álcool, há praticamente dois anos ter findado a sua relação com a assistente, ter encerrado esse capítulo da sua vida, não a voltando a perturbar, e ter iniciado outro.”
s) o douto tribunal a quo considerou ainda que “a mera confrontação do arguido com uma condenação criminal, onde se imbrica inequívoca censura da sua conduta, associada a um pesado “caderno de encargos”, pode ser o suficiente para o fazer regressar ao direito, ao invés de cortar cerce a sua inserção social que, tememos, opção mais prejudicial do que vantajosa, quer para ele, quer para a sociedade onde se insere. Note-se que um longo período de suspensão de execução da prisão com regime de prova permite manter uma vigilância sobre o arguido que dá, a todo o tempo, oportunidade e “emendar a mão” quanto a este juízo de prognóstico minimamente favorável que agora se lhe concede. (...) Em suma, considera o Tribunal que, tudo ponderado, se o arguido juntar aos dois anos que já leva de bom comportamento conhecido, outros cinco, correspondentes ao período da suspensão de execução da pena, de igual bom comportamento, o interesse da justiça ficará adequadamente servido e, se assim não o for, o seu encarceramento nada perde pela demora, se vier a desmerecer esta oportunidade”.
t) fundamentadamente o douto tribunal a quo preencheu os pressupostos a que alude o  n.º 1 do artigo 50.º do CP, utilizando factos provados que conjugados com a ausência de antecedentes criminais da mesma natureza, permitiram concluir um prognóstico favorável ao comportamento futuro do arguido, sujeito a um regime de prova pesado e logo, tendo sentido, claramente o arguido a suspensão da execução da pena de prisão como uma solene e séria condenação, satisfazendo assim as exigências da prevenção geral e especial;
u) na ponderação da aplicação da suspensão da pena de prisão o tribunal a quo observou que tal suspensão satisfaz as finalidades das penas a que alude o artigo 40.º, n.º 1 e 2 do CP, através de uma fundamentação esclarecedora e concisa, não havendo qualquer incumprimento daquele predito legal;
v) Em nada infirmando aquele preceito legal, já que, para a chegada de uma pena concreta, para efeitos do artigo 71.º do CP, terá que percorrer esse trilho, e quando chegado “à luz do túnel” considerará, em caso de condenação numa pena de prisão efetiva, pela suspensão da mesma, o que é coincidente com a própria política criminal, que vê as penas de prisão – nomeadamente no que concerne ao seu regime de execução – como uma medida de última ratio.
x) caso o douto tribunal decidisse nos termos em que o recorrente pretende, estaríamos perante uma violação atentatória e grosseira do princípio da proporcionalidade plasmado no n.º 2 do artigo 18.º da CRP;
z) na ponderação entre a pena de prisão e a suspensão de execução da pena, o tribunal a quo atendeu ao facto de o arguido ser primário (não tem antecedentes por crime da mesma natureza), já ter seguido com a sua vida, ter outro relacionamento e não haver qualquer indício ou interesse por parte do arguido em reatar com a vítima e vice-versa, tendo decidido e bem dar preferência a uma medida não restritiva da liberdade (na sua execução); aa) o tribunal a quo observou corretamente o princípio da culpa previsto no artigo 40.º, n.º 2 do CP, ao contrário do que entende o recorrente;
aa) em caso algum o tribunal a quo podia deixar de considerar pela suspensão da pena de prisão atento a todos os elementos factuais e probatória carreados para os autos, sob pena de violação do artigo 40.º, n.º 2 do CP;
bb) é o próprio recorrente que refere nas suas alegações que “o arguido cessou as suas condutas violentas para com a vítima, porém, fê-lo quando logrou um dos seus intentos, conforme resultados dos factos provados, que era expulsar a vítima da residência comum”, contudo, tal fundamento não ficou provado na matéria de facto dada como provada;
cc) não pode o recorrente querer desenfreadamente, obter uma condenação com a utilização de mecanismos dilatórios;
dd)os argumentos trazidos pelo recorrente para obter a revogação da douta sentença condenatória é de má prática judicial, assente em juízos valorativos, opinativos e sociais, destituídos de fundamentação legal, factual, probatória e científica exigida para ser considerada pro este tribunal a quem; 
ee) não basta a mera generalização, é necessário pormenorizar e concretizar com base na prova produzida em audiência de julgamento;
ff) a douta sentença não incumpriu a norma do artigo 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP, porquanto após chegar à medida concreta da pena, não colidiu com a norma do artigo 50.º do CP, uma vez que ambas são autónomas;
gg) verificados os pressupostos do artigo 50.º do CP, os quais se consubstanciaram em factos dados como provados, não haveria outra alternativa senão a opção pela suspensão da execução da pena de prisão;
hh) tal opção apresenta-se apta a promover a reintegração do arguido, combatendo a dessocialização, garantindo as finalidades da pena e, através delas, a confiança na norma violada e proteção do bem jurídico;
ii) face ao exposto, tendo em conta a factualidade provada na sentença, o quadro legal de referência, os princípios constitucionais da necessidade e proporcionalidade, decidiu bem o tribunal a quo ao aplicar a suspensão da execução da pena de prisão ao arguido, pois não gouve qualquer violação do artigo 50.º do CP, devendo V. Exas.  manter a decisão recorrida.

Termos em que e nos demais de direito de V. Exas. deve a sentença impugnada proferida pelo tribunal a quo ser mantida, por não padecer de qualquer violação de normas de direito nos termos em que o recorrente vê ser conhecida, negando-se provimento ao recurso interposto.
(…)”.

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I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, não aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público recorrente, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto pela mesma, o que fez nos termos seguintes [transcrição]:
“(…) A Exmª PR recorrente dissente da douta Decisão final quanto ao modo de execução da pena, por reputar inexistentes as condições para a emissão do juízo de prognose positivo (relativamente ao comportamento futuro do arguido) formulado pela Mmª Juíza, que foi, exuberantemente, além do “risco prudencial” que sempre o direito penal reeducativo-pedagógico acarreta, prognóstico judicial fundeado na tripla circunstância de ser primário o agente activo do delito, ter-se abstido, desde há dois anos, da reiteração criminosa, e, por fim, ter reduzido grau de literacia.
Lendo a Sentença recorrida, perpassa à evidência a hesitação que se instalou no espírito da Julgadora quanto à concessão desse regime (art.º 50º, 1, CP), simbolizada na verdadeira (e insólita) advertência escrita quanto à revogação da “pena substitutiva” (art 56º, 1 a) e b), CP), cominação inusitada no próprio texto condenatório, convenhamos, mas que o Tribunal “a quo” sentiu necessidade de plasmar.
Por seu turno, nos antípodas, a Srª Magistrada recorrente enfatiza, com propriedade, antecipe-se, o tempo/duração dos actos criminosos (praticamente durante todo o matrimónio, entre 1987 e 2021), a forte energia evidenciada nessas ocasiões delitivas, que vitimaram a sua ora ex-mulher, mãe dos filhos comuns, os quais presenciaram (penosamente) as condutas por que veio a ser condenado, comportamentos caracterizados e incrementados por forte adição ao álcool, cuja problemática negligencia, preocupantemente, a ausência de interiorização e consciencialização do gravoso desvalor das acções cometidas, bem como do sentido e capacidade auto-críticos, para lá, muito prejudicialmente, da atitude desculpabilizante e auto-centrada exibida nas suas declarações em Audiência, legitimamente depois da produção da demais prova (art 343º,1.CPP), mas também muito convenientemente, admitamos, sem a espontaneidade que poderia transportar um sentimento genuíno de arrependimento.
Noutro plano, com particular interesse para o que nos ocupa, trata-se de fenómeno de enorme sensibilidade social, tipologia que se inscreve no conceito de “criminalidade violenta” (art 1º, j), CPP) e é objecto de relevantes propósitos de política criminal (art.ºs 4º e 5º , L 55/20, 27.08), por natureza impondo elevadas e indeclináveis exigências preventivas gerais, pela sua frequência e transversalidade, para lá das necessidades preventivas especiais, também intensas, pese a primariedade à data dos factos (sem descurar que tem averbada condenação por crime rodoviário, por condução sob embriaguez, corroborante da propensão para a ingestão de bebidas alcoólicas: art 292º, CPP), se atentarmos na sua impulsividade, descontrolo e insensibilidade para com o “outro” (justamente os membros seu agregado familiar nuclear, a quem devia, contrariamente, sentimentos securitários e afectos, que aviltou repetida e intensamente.
Aqui chegados, estamos e sentimo-nos no mesmo dilema judicial, qual seja o de saber se será possível, ainda, neste quadro (inegavelmente vertido na factualidade assente, notando-se que a vítima e um dos filhos tiveram que sair da casa de família e mudar de número telefónico para recuperarem a tranquilidade e conter o medo e ansiedade que os assolaram) a ressocialização em liberdade, ou se, diferentemente, há inevitabilidade dela se obter com reforço da consciencialização em meio penitenciário, para aquisição de competências, pessoais e cívicas, de que está desprovido, e de que dá largos sinais de não estar empenhado em adquirir.
Dito doutro modo, a mesma ideia: é ainda possível, mesmo no limite, garantir as finalidades próprias da punição, através da assumpção dum “risco prudencial”, calculado, ou, por exclusão, há insusceptibilidade, sob pena de se renunciar àqueles fins últimos (art.ºs 40º, 1, e 50º, 1, CP)?
O argumentário/fundamentação judicial traduz a dificuldade da resposta, sem deixar de impressionar a cessação (ou suspensão?) dos comportamentos ilícitos, sobre a vítima, desde meados de 2021, mas, aí, devendo temperar-se/esfriar-se esse aspecto com a circunstância de ter sido em 20 de Abril desse ano que foi constituído arguido e ficou conhecedor da pendência deste processo, como foi em Março do ano seguinte (2022) que lhe foi comunicada a Acusação, sendo razoável pensar que ficou (até ver?) mais cauteloso, centrado nas consequências para a sua esfera de interesses (liberdade).
Em todo o caso, e com relevante peso na nossa opção, que será a de nos resignarmos com a solução ora sob censura, diremos que o arguido surgiu em Julgamento sob mero TIR, e que sobre ele o MºPº, durante a fase de inquérito só não aplicou o regime de SPP (art 280º, CPP), por oposição da Assistente, nessa fase gizando, afinal, um juízo de “risco” semelhante ao que agora rebate, justamente.
Em apertada síntese, diremos que reconhecendo a ser a hipótese um “caso limite”, mas rodeando-se a punição dos necessários mecanismos (duração máxima do regime de suspensão- art 50º,5, CP- monitorização permanente e muito próxima do percurso diário do arguido, através dos serviços de reinserção social e do complementar apoio médico -art.º 50º, 2, e 52º a 54º, CP), ainda assim é sustentável a manutenção dum voto de confiança”, podendo a nova união para- conjugal do arguido constituir um factor contentor e inibidor de recidiva comportamental.
Pelo que sugerimos se valide o juízo positivo emitido, podendo a mera ameaça de prisão (de 3 A e 8M, bem acima do limite mínimo da baliza abstracta da norma incriminadora) e a solene advertência (bastante assertiva, recorde-se) habilitar eficazmente a concretização do desiderato punitivo (art.ºs 40º, 1, e 50º,1, CP).”.

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I.5. Resposta
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao dito parecer.

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I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:

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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a apreciar e decidir é a seguinte:
--> Saber se a pena de prisão em que o arguido foi condenado nestes autos deve, ou não, ser suspensa na sua execução.

»

II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
“(…)
FACTOS PROVADOS
O arguido e BB, doravante “a assistente”, contraíram matrimónio civil em 29 de abril de 1987.
Desse casamento nasceram sete filhos comuns, hoje todos maiores de idade: ..., ..., ..., ..., ..., ..., ....
Ao longo de todos os anos dessa relação matrimonial, o arguido, em inúmeras ocasiões, em datas não rigorosamente apuradas, sempre que se encontrava embriagado, agredia a assistente com empurrões, socos, pontapés, puxões de cabelo, arrastava-a pelo chão da casa e atirava-lhe objectos domésticos, designadamente cadeiras, chegando ela, em mais do que uma ocasião, a ficar inconsciente no chão.
Numa dessas ocasiões, o arguido virou a mesa da cozinha, com tudo o que estava em cima dela.
Noutra dessas ocasiões, o arguido virou a cama do casal, partindo-a.
Tais condutas aconteciam no interior do domicílio comum, sito no ..., Funchal, área desta comarca, designadamente, mas não só, no interior do quarto de dormir de ambos.
Os filhos ouviam, por vezes, a assistente a gritar de dor e viam a assistente, posteriormente, com inúmeros hematomas por todo o corpo, devido às pancadas desferidas pelo arguido.
Excepto numa ocasião, em que foi ao Hospital receber assistência médica, por ter ficado com uma ferida na cabeça, vulgo “cabeça rachada”, a assistente recusou sempre ser assistida medicamente, sobretudo por vergonha.
Mais recentemente, no dia 17 de fevereiro de 2021, em hora não concretamente apurada, mas durante o dia, o arguido, no interior damencionada residência, dirigiu- se à assistente e proferiu a seguinte expressão: “ou sais desta casa ou vou-te matar!”
No dia 23 de fevereiro de 2021, pelas 22 horas, após uma altercação entre o arguido e o filho ..., o arguido dirige-se à assistente, com uma navalha na mão, que lhe exibiu, e proferiu-lhe a expressão: “vais ver, vou-te matar!
As expressões mencionadas nos parágrafos anteriores eram, por essa altura, regularmente proferidas pelo arguido à assistente, perturbando o dia-a-dia desta.
Com receio pela sua vida e a sua integridade física, a assistente saiu, nesse mesmo dia 23 de fevereiro de 2021, da casa comum do casal, e foi residir com a sua filha ..., onde permanece até à presente data.
Durante cerca de dois meses, após essa data em que a assistente se separou do arguido, ele ainda lhe telefonou, fazendo-lhe ameaças de morte, tanto que ela teve de mudar de número de telefone, para deixar de ser por ele importunada.
Desde então, não mais a voltou a interpelar ou a importunar de nenhum modo.
O Arguido quis dirigir e dirigiu as palavras supra descritas à assistente, estando ciente que as mesmas iam causar-lhe receio pela sua vida e integridade física, limitando-a na sua liberdade de agir, o que conseguiu
O arguido quis, com a sua conduta infligir maus tratos físicos e psíquicos à assistente, atemorizando-a e causando-lhe uma permanente sensação de medo e insegurança, bem sabendo que a mesma era sua cônjuge e progenitora dos seus filhos, e merecia-como merece - respeito e consideração próprios dessas qualidades.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
O arguido e a assistente acabaram por se divorciar em dezembro de 2021.
O arguido trabalhou, durante cerca de 22 anos, como operário numa fábrica de produção de blocos de cimento.
Mais recentemente, trabalhava como pedreiro da construção civil, estando, há cerca de seis meses, de “baixa médica”, em virtude de um acidente de trabalho.
Estudou até ao segundo ano de escolaridade (antiga segunda classe).
Vive em casa própria, designadamente a mencionada supra, com uma companheira, com quem iniciou, há cerca de quatro meses, um novo relacionamento análogo ao dos cônjuges.
O arguido tem como antecedente criminal a condenação por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, cometido em 23/05/21, tendo sido condenado em 70 dias de multa e 4 meses e 15 dias de proibição de condução de veículos motorizados.
(…)
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Para prova dos factos provados nos dois primeiros parágrafos relevaram os assentos de fls. 133 e ss., não tendo sido, de resto, factualidade controvertida.
Relativamente à restante factualidade provada constante da acusação, começa por se salientar que o seu fundamento probatório essencial foi o depoimento da assistente.
De facto, foi, sobretudo, no depoimento dela, que se reputou globalmente credível, que o Tribunal considerou assente a generalidade dos factos descritos na acusação sobre a dinâmica deste casal ao longo do seu casamento. Deve notar-se que a assistente aparentou ser uma pessoa socialmente “humilde”, sem grandes requintes de exposição, que, por vezes, debitou a sua descrição factual em catadupa e de forma algo caótica, ora como muitos pormenores ora fragmentariamente, mas que o Tribunal entendeu como sendo característicos de algum desconforto pela posição em que que se encontrava e algum nervosismo por se ver no centro das atenções de uma sala de audiências e não por falta de convicção naquilo que dizia. Estava, aliás, constantemente a dar novos pormenores de condutas agressivas do arguido não constantes da acusação, que o Tribunal foi comunicando a este último, em sede do instituto de alteração factual da acusação. Em síntese, a assistente declarou que o arguido foi violento para com ela ao longo do casamento todo, ora lhe batendo, ora a arrastando pelo chão, ora lhe atirando objectos, designadamente cadeiras, ora a ameaçando, ora destruindo coisas lá em casa, etc. Não é demais salientar que, neste tipo de crime, pela sua natureza, a credibilidade do depoimento da vítima assume uma importância decisiva. Ora, deve deixar-se bem claro que o modo como a assistente depôs, na sua simplicidade e emotividade, se afigurou ao Tribunal como, no essencial, muito credível. Foi muito esclarecedora e deu pormenores abundantes às instâncias. Reitere-se que a depoente se afigurou ser uma pessoa de inserção social humilde e de literacia manifestamente limitada, pelo que não se pode ser particularmente exigente com a clareza e ordenação da sua exposição.
De qualquer modo, não foi apenas nas declarações da assistente - muito pelo contrário - que se baseou a prova dos factos. Também o depoimento das testemunhas ... e ..., filhos do arguido e da assistente, conferiram uma forte credibilidade acrescida à globalidade do depoimento da mãe. Deram estas testemunhas o retrato inequívoco de um pai que, durante a constância do seu matrimónio, se embriagava frequentemente e que quando, nesse estado, partia as coisas da casa, batia na assistente e a ameaçava, sendo que esta, tradicionalista e por respeito ao statu quo, ia aguentando e tentando esconder dos filhos as condutas mais agressivas do marido, até ao dia em que não aguentou mais e saiu de casa. Destaca-se que o depoimento do filho ..., que foi genuinamente emotivo, deixou-lhe mesmo a voz embargada. Igual retrato familiar “pintou” a testemunha ... Abreu, também filha do casal, dando conta de um pai que se embriagava, de um pai que batia na mãe (a testemunha menciona um soco na cara), que atirava cadeiras, de uma mãe que gritava, de uma mãe que desmaiava, e que, apesar de tudo, não queria ir ao hospital nem participar às autoridades policiais, apesar de, frequentemente, ficar com hematomas, que esta filha lhe viu. Também o já mencionado filho ... havia confirmado que o pai ameaçava a mãe de morte e que lhe batia, pela casa toda, pois lhe via os hematomas, apesar de ela pretender esconder muita coisa dos filhos. Também o ... ... havia confirmado ter ouvido a mãe diversas vezes a gritar e, posteriormente, com hematomas, bem como a ser ameaçada de morte. Já na segunda sessão da audiência de julgamento, onde o arguido decidiu, pela primeira vez, prestar depoimento, tendo declarado que tinha, um melhor relacionamento com o filho ... (e estando este presente na sala), logo o Tribunal, oficiosamente, chamou este a depor, para confirmar se este filho dava do pai uma versão diferente - eventualmente, para melhor, em relação aos mencionados irmãos - mas, também esta testemunha confirmou, grosso modo, com as lágrimas nos olhos, as versões dos anteriores irmãos, a saber, um pai que abusava das bebidas alcoólicas e um matrimónio pautado pela violência do pai, onde viu a mãe uma vez com os olhos negros, em que a ouviu gritar, em que o ouviu ameaçá-la de morte e ainda outras condutas reprováveis, que pormenorizou.
Em suma, ficou patente e perpassou perante o Tribunal, como toda a clareza, uma vida inteira matrimonial da assistente a aguentar os constantes desmandos comportamentais de um marido ébrio.
O arguido arrolou como testemunhas o seu irmão ..., a mulher e a filha destes. O depoimento destes familiares do arguido foi praticamente unânime: o arguido foi, afinal, não o algoz, mas sempre a injustiçada vítima da permanente agressividade da mulher e dos seus filhos. Afirmam estas testemunhas que quem ofendia o arguido era a assistente e que quem era agressivo para com o arguido eram os filhos dele e que, se havia discussões lá em casa, eram os filhos quem as provocava. Quer o irmão, quer a cunhada do arguido sublinham que nunca viram atitudes agressivas do familiar, seja para com a ex-mulher, seja para com os filhos. Quando instadas as testemunhas a esclarecerem o Tribunal das razões pelas quais o arguido, se tão cordato, conciliador, bom marido e bom pai, tem todos os filhos “contra ele” (os quatro ouvidos na audiência, seguramente e, de acordo com estes e com a assistente, também os irmãos não ouvidos), estas testemunhas já tergiversaram, colocando a ênfase na perspectiva no facto de o arguido sempre ter sido uma pessoa trabalhadora e que providenciava para a família, como se isso lhes bastasse para desculpar tudo o demais.
O depoimento do arguido, na segunda sessão da audiência de julgamento, afinou por este diapasão, negando, em síntese, alguma vez ter batido na assistente e que o que ela afirma “é tudo mentira” e queixando-se de que o agredido era ele e afirmando que não se embriagava e que não tem qualquer problema de alcoolismo.
Em suma, pela forma como foram prestados, considerou o Tribunal amplamente credíveis os depoimentos da assistente e dos filhos e totalmente incredíveis os depoimentos, em sentido totalmente antagónico ao daqueles, do arguido, seu irmão e cônjuge e filha deste, estes últimos mesmo grosseiramente parciais.
Do depoimento do arguido apenas acabou por relevar, para a convicção do Tribunal, o segmento dos dados apurados sobre a sua situação social.
Foi, por fim, visto o CRC do arguido, autuado a fls. 200.
(…).
DA ESCOLHA E MEDIDA DAS PENAS
O crime de violência doméstica agravada é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)
Começa por se salientar que a ilicitude e culpa do comportamento do arguido são muito elevadas. Estamos perante uma reiteração de condutas graves, que se prolongaram por um enorme período de tempo.
As exigências de prevenção geral são das mais elevadas que este país conhece, mormente nesta comarca da Madeira, onde abunda este tipo de ocorrência criminal.
As exigências de prevenção especial são também significativas.
Tudo ponderado, impõe-se a aplicação de uma pena de prisão que acomode este elevado grau de culpa e de exigências preventivas gerais, bem como um elevado grau de ilicitude da conduta global do arguido. Justifica-se, por isso, a fixação de uma pena concreta já com algum distanciamento do mínimo da moldura penal abstracta referida supra, considerando-se adequada e proporcional a pena de três anos e oito meses de prisão.
Importa ponderar se esta pena deverá ser efectiva ou suspensa na sua execução.
(…)
Pondera-se que, por um lado, o arguido não demonstrou arrependimento nem interiorização da gravidade das suas condutas, o que, tem de se reconhecer, não é bom indício prognóstico. Em contrapartida, não pode deixar de se ponderar que, há quase dois anos que cessaram definitivamente as condutas violentas do arguido para com a assistente e que o arguido, inclusivamente, já refez a sua vida conjugal, tendo uma nova companheira, com quem vive há cerca de 4 meses.
Ou seja, o Tribunal confronta-se e debate-se com o seguinte dilema: por um lado, numa perspectiva retrospectiva da pena, não pode deixar de se admitir que estamos perante uma vida conjugal de três décadas de violência e de sofrimento da vítima, o que reclama a aplicação de uma pena efectiva de prisão; por outro lado, numa vertente prospectiva da pena, em que se pondera que, além de o arguido não ter (até há bem pouco tempo, em que foi condenado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, mas de pouca relevância para a actual ponderação) antecedentes criminais, ter sido condicionado pelos atavismos de uma instrução formal praticamente ao nível do analfabetismo (2a classe), pelos consumos excessivos de álcool, há praticamente dois anos ter findado a sua relação com a assistente, ter encerrado esse capítulo da sua vida, não a voltando a perturbar, e ter iniciado outro. Deve, questiona-se este Tribunal, ser o arguido castigado por todo o mal que causou à assistente, assim satisfazendo amplamente as exigências preventivas gerais, mas causando, na nossa perspectiva, um manifesto dano à sua ressocialização, ou deve privilegiar-se esta perspectiva da ressocialização, com a imposição de um plano probatório, com a imposição de um tratamento do alcoolismo, com acompanhamento e orientação de técnico de reinserção social, dando ao arguido uma oportunidade para “fazer melhor” e para que seu actual relacionamento não redunde na adopção das mesmas condutas? Embora este Tribunal admita que os argumentos para uma ou outra das mencionadas perspectivas sejam igualmente válidos, irá optar-se pela segunda, pois que se considera que a mera confrontação do arguido com uma condenação criminal, onde se imbrica inequívoca censura da sua conduta, associada a um pesado “caderno de encargos”, pode ser o suficiente para o fazer regressar ao direito, ao invés de cortar cerce a sua inserção social que, tememos, opção mais prejudicial do que vantajosa, quer para ele, quer para a sociedade onde se insere. Note-se que um longo período de suspensão de execução da prisão com regime de prova permite manter uma vigilância sobre o arguido que dá, a todo o tempo, a oportun idade de “emendar a mão” quanto a este juízo prognóstico minimamente favorável que agora se lhe concede. Esta opção não é imune à critica suportada na alegação de que quem se comportou durante trinta anos de uma determinada forma já não irá mudar e que a própria ausência de assunção dos factos pelo arguido poderá ser indício disso. Ainda assim, sempre se dirá que a sensibilidade para a violência doméstica encontrará campo pouco fértil para medrar, sem a devida orientação, numa pessoa semianalfabeta com quase sessenta anos, onde o peso de algum atavismo comportamental - que nenhum prévio contacto com o sistema de justiça formal permitiu alguma vez moderar ou conformar - pesa mais significativamente. Em suma, considera o Tribunal que, tudo ponderado, se o arguido juntar aos dois anos que já leva de bom comportamento conhecido, outros cinco, correspondentes ao período da suspensão de execução da pena, de igual bom comportamento, o interesse da justiça ficará adequadamente servido e, se assim não for, o seu encarceramento nada perde pela demora, se vier a desmerecer esta oportunidade.
Assim, julgando verificados os pressupostos do art.º 50º, nº 1 do C. Penal, a pena de prisão ficará suspensa na sua execução, pelo período de cinco anos.
Considera o Tribunal que não se justifica por desnecessidade, a fixação das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas ou a obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. De facto, já estão separados há dois anos e nem da audição da assistente nem do arguido ficou a menor impressão de que este tenha qualquer interesse de se voltar a relacionar ou reaproximar da vítima, tanto mais que já tem uma relação estável com outra companheira (no limite, maiores indícios desse interesse foram dados pela assistente). Os factos provados também não justificam materialmente a aplicação da pena de inibição do exercício de responsabilidades parentais.
A suspensão da pena de prisão ficará sujeita a regime de prova. Nesse regime de prova se incluirão entrevista regulares de técnico de reinserção social com o arguido, destinadas a sensibilizá-lo para o sofrimento das vítimas de violência doméstica e contactos regulares do técnico com a actual ou futuras companheiras ou cônjuges do arguido e uma avaliação permanente da respectiva dinâmica familiar.
Esta suspensão ficará ainda sujeita ao dever de o arguido se sujeitar ao imediato tratamento do alcoolismo, bem como a retomá-lo sempre que o técnico de reinserção social entenda, em face da conduta que constatar do arguido, que assim se justifica.
(…)”.

»

II.3- Apreciação do recurso
O arguido AA foi condenado nestes autos, pela prática do crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2, al. a) do Código Penal, na pena de 3 [três] anos e 8 [oito] meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 5 [cinco] anos, com sujeição a regime de prova, com inclusão de entrevistas regulares de técnico de reinserção social com o arguido, destinadas a sensibilizá-lo para o sofrimento das vítimas de violência doméstica e a contactos regulares do técnico com a actual ou futuras companheiras ou cônjuges do arguido e uma avaliação permanente da respectiva dinâmica familiar, ficando a suspensão ainda subordinada ao dever de o arguido se sujeitar ao imediato tratamento do alcoolismo, bem como a retomá-lo, sempre que o técnico de reinserção social entenda, em face da conduta que constatar do arguido, que assim se justifica.
Recorre o Ministério Público por discordar da decisão de suspender a execução da referida pena de prisão, considerando inexistirem quaisquer elementos provados que permitam concluir pela verificação dos pressupostos previstos no artigo 50.º, n.º1, do Código Penal, concretamente, que permitam formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de, quanto a ele, a simples censura do facto e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes, além de que a comunidade dificilmente compreenderia tal decisão, perante a violência dos atos perpetrados pelo arguido, ao longo de cerca de 30 anos.
Vejamos:
Dentro das penas de substituição da prisão encontra-se a suspensão da sua execução, que o Tribunal a quo apreciou e considerou ser de aplicar.
Sobre os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão rege o artigo 50.º, n.º1, do Código Penal, nos seguintes termos:
“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
(…)”.
Impõe-se, portanto, para a sua aplicação, a verificação de:
--> Um pressuposto formal: a medida concreta da pena aplicada ao arguido não pode ser superior a 5 anos; e
--> Um pressuposto material: a existência de factualidade que permita ao Tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A aplicação desta pena de substituição só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, as quais se circunscrevem, de acordo com o artigo 40.º do Código Penal, à proteção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, sendo em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa. Como refere Figueiredo Dias[3] pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade”. E acrescenta: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
Por outro lado, há que ter em conta que na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.
Adverte ainda[4] que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime». Reafirma que “estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa”. [sublinhado nosso].
Aqui chegados, analisemos o caso concreto:
Da análise da sentença recorrida, constata-se que o tribunal a quo fundamentou a suspensão da execução da pena de prisão que aplicou ao arguido da seguinte forma:
“(…) Ou seja, o Tribunal confronta-se e debate-se com o seguinte dilema: por um lado, numa perspectiva retrospectiva da pena, não pode deixar de se admitir que estamos perante uma vida conjugal de três décadas de violência e de sofrimento da vítima, o que reclama a aplicação de uma pena efectiva de prisão; por outro lado, numa vertente prospectiva da pena, em que se pondera que, além de o arguido não ter (até há bem pouco tempo, em que foi condenado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, mas de pouca relevância para a actual ponderação) antecedentes criminais, ter sido condicionado pelos atavismos de uma instrução formal praticamente ao nível do analfabetismo (2.ª classe), pelos consumos excessivos de álcool, há praticamente dois anos ter findado a sua relação com a assistente, ter encerrado esse capítulo da sua vida, não a voltando a perturbar, e ter iniciado outro. Deve, questiona-se este Tribunal, ser o arguido castigado por todo o mal que causou à assistente, assim satisfazendo amplamente as exigências preventivas gerais, mas causando, na nossa perspectiva, um manifesto dano à sua ressocialização, ou deve privilegiar-se esta perspectiva da ressocialização, com a imposição de um plano probatório, com a imposição de um tratamento do alcoolismo, com acompanhamento e orientação de técnico de reinserção social, dando ao arguido uma oportunidade para “fazer melhor” e para que seu actual relacionamento não redunde na adopção das mesmas condutas? Embora este Tribunal admita que os argumentos para uma ou outra das mencionadas perspectivas sejam igualmente válidos, irá optar-se pela segunda, pois que se considera que a mera confrontação do arguido com uma condenação criminal, onde se imbrica inequívoca censura da sua conduta, associada a um pesado “caderno de encargos”, pode ser o suficiente para o fazer regressar ao direito, ao invés de cortar cerce a sua inserção social que, tememos, opção mais prejudicial do que vantajosa, quer para ele, quer para a sociedade onde se insere. Note-se que um longo período de suspensão de execução da prisão com regime de prova permite manter uma vigilância sobre o arguido que dá, a todo o tempo, a oportunidade de “emendar a mão” quanto a este juízo prognóstico minimamente favorável que agora se lhe concede. Esta opção não é imune à critica suportada na alegação de que quem se comportou durante trinta anos de uma determinada forma já não irá mudar e que a própria ausência de assunção dos factos pelo arguido poderá ser indício disso. Ainda assim, sempre se dirá que a sensibilidade para a violência doméstica encontrará campo pouco fértil para medrar, sem a devida orientação, numa pessoa semianalfabeta com quase sessenta anos, onde o peso de algum atavismo comportamental - que nenhum prévio contacto com o sistema de justiça formal permitiu alguma vez moderar ou conformar - pesa mais significativamente. Em suma, considera o Tribunal que, tudo ponderado, se o arguido juntar aos dois anos que já leva de bom comportamento conhecido, outros cinco, correspondentes ao período da suspensão de execução da pena, de igual bom comportamento, o interesse da justiça ficará adequadamente servido e, se assim não for, o seu encarceramento nada perde pela demora, se vier a desmerecer esta oportunidade.
Assim, julgando verificados os pressupostos do art.º 50º, nº 1 do C. Penal, a pena de prisão ficará suspensa na sua execução, pelo período de cinco anos.”.
Ou seja, o tribunal a quo sustentou a suspensão da execução da pena de prisão que aplicou ao arguido em quatro pilares:
--> não ter (até há bem pouco tempo, em que foi condenado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, mas de pouca relevância para a actual ponderação) antecedentes criminais;
--> ter sido condicionado pelos atavismos de uma instrução formal praticamente ao nível do analfabetismo (2.ª classe);
--> ter sido condicionado pelos consumos excessivos de álcool; e
--> há praticamente dois anos ter findado a sua relação com a assistente, não mais a tendo molestado.
Porém, salvo o devido respeito, que é muito, por tal posição, entendemos que tal circunstancialismo não permite concluir pela observância do pressuposto material apontado, exigido pela lei para que se possa suspender a execução da pena de prisão, ou seja, tal circunstancialismo não consubstancia a existência de factualidade que permita ao Tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, não permite ao tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Vejamos porquê:
Estamos perante um caso em que arguido usou de violência física e psicológica para com a vítima, durante mais de 30 anos de vivência em comum, enquanto casal.
Tal como o refere a Digna Magistrada do Ministério Público/recorrente, os factos praticados são gravíssimos, denotando o arguido um desmesurado desrespeito pela dignidade humana da vítima, traduzido na sujeição desta, repita-se, em mais de três décadas de vivência conjugal, a ser empurrada, socada, pontapeada, puxada pelos cabelos, arrastada pelo chão da casa e alvo de arremesso de objetos domésticos, designadamente cadeiras, ao ponto de, em mais do que uma ocasião, deixar a vítima inconsciente no chão e numa delas com a “cabeça rachada”. Além disso, sujeitou os seus próprios filhos a vivenciar o sofrimento da mãe, que gritava de dor e viam, posteriormente, os inúmeros hematomas por todo o seu corpo, devido às pancadas que lhe desferia.  
O seu comportamento traduziu-se num crescendo de gravidade, que culminou com ameaças de morte, designadamente com a exibição de uma navalha, acabando por fazer com que a vítima tivesse de sair da sua própria casa, por temer perder a vida.
E, pese embora tal separação do casal, ainda não satisfeito, o arguido continuou a perturbar a tranquilidade da vítima, durante cerca de dois meses, fazendo-lhe ameaças de morte por telefone, tanto que ela teve de mudar de número telefónico para deixar de ser importunada. Só desde então, parou de a interpelar e importunar.
Não se esquece que o arguido praticou os factos quando se encontrava embriagado e até se compreende a tolerância do Tribunal a quo ao suspender a execução da pena de prisão que lhe aplicou, sujeita a tratamento ao alcoolismo, na esperança de, uma vez tratado da respetiva adição, poder “fazer melhor”. Porém, o próprio arguido não reconhece o seu problema de alcoolismo, não reconheceu, sequer, que se embriagava, quando quer a vítima quer os filhos de ambos foram unânimes e convictos em afirmá-lo [o tribunal ouviu os seus depoimentos], pelo que não se descortina qualquer facto, ainda que indiciário, suscetível de sustentar o êxito de tal tratamento.
Acresce que a descrita atuação do arguido para com a vítima não se justifica pela falta de discernimento toldada pelo álcool, demonstrando, antes, com o seu comportamento, uma personalidade mal formada, destituída de qualquer respeito pelo ser humano, impregnada de instinto de malvadez, revelado pela brutalidade e crueldade que acompanharam os descritos factos, ao longo de mais de 30 anos.
Aliás, diga-se, não consta que o arguido estivesse embriagado no decurso da audiência de julgamento, que o seu discernimento estivesse de alguma forma toldado, e, mesmo assim, negou alguma vez ter batido na vítima, afirmou que o que ela disse em tribunal “é tudo mentira” e queixou-se que agredido foi ele, envergando a veste de vítima, num distanciamento dos factos aqui em apreço.
E não se esquece que ao arguido é permitido não falar a verdade e até podia ter-se remetido ao silêncio, mas, a realidade é que não podemos deixar de constatar a total ausência de arrependimento. Ora, aliando tal facto à negação do seu problema de alcoolismo [ainda que, no final da audiência de julgamento, interpelado pelo tribunal a quo, tenha verbalizado aceitar submeter-se a tratamento], vivenciado há mais de 30 anos, não compreendemos como se possa ter esperanças fundadas na mudança do seu comportamento.
Exemplo de uma personalidade mal formada é ainda a sua postura em julgamento, de indiferença perante o depoimento emotivo dos próprios filhos, que pese embora, como o refere o Mm.º Juiz a quo, “com as lágrimas nos olhos”, o tenham descrito como um pai que abusava das bebidas alcoólicas e descrito um matrimónio pautado pela violência do pai [ouviam a mãe a gritar, viam-na com hematomas e ouviam-na a ser ameaçada de morte, entre outras condutas reprováveis], não foi suficiente para o sensibilizar a inverter a sua postura de vitimização.
Assim sendo, e pese embora não se esqueça que apresenta apenas uma condenação recente pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez; que tem mantido hábitos de trabalho [atualmente de “baixa médica” em virtude de um acidente de trabalho]; que apenas possui a 2.ª classe; que surgiu em julgamento sob mero TIR; que o Ministério Público só não aplicou o regime de suspensão provisória do processo por oposição da vítima; e que há mais de dois anos que não perturba a assistente, tendo já refeito a sua vida com outra companheira [há cerca de 4 meses], o facto é que, ante o analisado, as necessidades de prevenção especial são significativas [tal como o concluiu, aliás, o tribunal a quo], sendo de notar que a falta de instrução não pode servir para justificar a prática de atos desta jaez; que o afastamento da vítima por parte do arguido revela-se de pouca importância, pois com a tipologia do crime de violência doméstica não pretendeu o legislador proteger apenas esta vítima, mas também outras companheiras/cônjuges de o virem a ser - vítimas - e o facto de o arguido ter concordado com uma possível suspensão provisória do processo nada revela a seu favor, como o demonstra a sua postura processual posterior, já descrita, até porque este apenas foi questionado, de forma genérica, se concordava com uma possível suspensão provisória do processo, mediante condições impostas pelo tribunal, sem lhe ter sido dado conhecimento do teor de qualquer injunção a que tivesse de ficar sujeito.   
De qualquer forma, não se pode esquecer que não estamos perante um crime de pequena gravidade, mas sim perante um crime de violência doméstica [in casu ocorrido durante mais de 30 anos], que integra o padrão de criminalidade violenta [cfr. artigo 1º, alínea j), do Código de Processo Penal], impondo elevadíssimas exigências de prevenção geral.
In casu, em que a execução do crime decorreu ao longo de mais de 30 anos, abarcando, portanto, praticamente toda a vida da vítima, uma vida de sofrimento decorrente da crueldade e brutalidade dos comportamentos do arguido, que a agredia ao ponto de a deixar inanimada e com a cabeça aberta [vulgo “cabeça rachada”], e a levou a ter de deixar a sua própria casa, perante o medo de ser morta, mal compreenderia a sociedade que o arguido ficasse em liberdade, a viver tranquilamente a sua vida.
As exigências de prevenção geral são elevadíssimas, dada a repetição destes desvios sociais e, sobretudo, a elevada carga de desvalor social que está associada à acção. Aliás, assim o recolhesse o tribunal a quo quando faz constar da decisão recorrida que “as exigências de prevenção geral são das mais elevadas que este país conhece, mormente nesta comarca da Madeira, onde abunda este tipo de ocorrência criminal” [sublinhado nosso].
O crime de violência doméstica merece forte repulsa social, sendo muito frequentes estes tipos de ilícitos, por vezes com consequências dramáticas, incluindo a perda de vidas humanas, realidade que tem merecido sucessivas intervenções por parte do legislador, não só no alargamento das margens de punibilidade do tipo incriminador, como também na maior proteção das vítimas.
A criminalização da violência doméstica resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social e da necessidade de prevenção das condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas presenciais, inflige, designadamente ao cônjuge, que consigo coabita, maus tratos físicos ou psíquicos, sendo fortes as necessidades de prevenção geral.
O ilícito de violência doméstica, pela frequência preocupante que assume na atualidade, e especialmente na comarca da Madeira, gera na comunidade um forte sentimento de repulsa, exige uma musculada punição do agente, a fim de ser recuperada a confiança na vigência e validade da norma violada.
As exigências de prevenção geral são exacerbadas (positiva, de integração), dado que a violência, em geral, exercida sobre as mulheres, as mais das vezes pelos maridos/companheiros, como foi o caso, assumiu contornos de flagelo social, sendo impressionantes, em especial, o número de homicídios, tentados e consumados resultantes dessa violência, como, diariamente, nos é dado a conhecer através dos meios de comunicação social.
Tais exigências demandam firmeza na punição pelo que o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico (abaixo do qual se colocaria em causa a crença da comunidade na efetiva proteção/tutela dos bens jurídicos) se situa num nível muito elevado quanto ao crime de violência doméstica.
Aqui chegados, só nos resta concluir que, da factualidade provada, conjugada com a personalidade do arguido que aquela factualidade e a sua postura em julgamento nos permite apreender, não é de esperar que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, mormente a proteção dos bens jurídicos em causa e reintegração do agente na sociedade, que o instituto da suspensão da execução da pena de prisão pretende alcançar.
Dito de outra forma, não dispõe o tribunal de qualquer facto concreto que permita efetuar, com o mínimo de segurança, um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, exigido para a escolha da pena de substituição, mostrando-se infundado o juízo de que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, antes se impondo na situação concreta, quer por exigências de prevenção especial, quer, sobretudo, por exigências de prevenção geral, o cumprimento efetivo da pena que foi aplicada ao arguido pelo tribunal a quo.
Consequentemente, o presente recurso terá de proceder.

Só uma nota final para dizer que o Ministério Público termina as suas conclusões recursivas pugnando pela condenação do arguido numa pena de prisão efetiva entre os três e quatro anos de prisão, quando este já foi condenado numa pena que se situa nessa amplitude, concretamente numa pena de três anos e oito meses.
Assim sendo, quer porque o Ministério Público/recorrente nada mais diz a esse respeito que possa ser objeto de apreciação por este tribunal, quer porque o arguido se conformou com a medida da pena aplicada, pois da mesma não recorreu, esta será de manter. 

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III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
A. Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, determina-se que a pena de 3 [três] anos e 8 [oito] meses de prisão, que foi aplicada ao arguido AA pelo tribunal a quo, seja cumprida em reclusão [prisão efetiva].

B. No mais, confirma-se a sentença recorrida.

Sem custas.
Notifique.
Comunique, de imediato, à primeira instância.

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Lisboa, 13 de julho de 2023
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Isilda Pinho
Maria da Graça dos Santos Silva
Anabela Cardoso
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[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518.
[4] Obra citada, § 520.