Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
36/17.2GCTVD.L1-3
Relator: CONCEIÇÃO GONÇALVES
Descritores: AMEAÇA
CRIME DE PERIGO ABSTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1. O crime de ameaça previsto e punido pelo art.º 153º do Código Penal é um crime de perigo abstracto-concreto, em que a mensagem comunicada ao destinatário tem de ser “adequada a provocar-lhe medo ou inquietação”, não sendo necessário que o destinatário tenha efectivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação, bastando que as palavras proferidas tenham essa potencialidade à luz das regras da experiência, atendendo às circunstâncias concretas que rodearam os factos.

2. Quanto ao elemento objectivo do “anúncio de um mal futuro”, tal significa que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, e no caso em apreço configura-se esse “anúncio do mal futuro” já que o arguido não praticou qualquer acção concretizadora ou iminente do mal ameaçado.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.

I. RELATÓRIO.

1. No processo comum com intervenção de Tribunal Singular, procedente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte -Juízo Local Criminal de Torres Vedras -Juiz 2, com o número supra indicado, o arguido VFS..., com os sinais dos autos, por sentença proferida em 26/02/2018, foi condenado pela prática, como autor material e em concurso efectivo, dos seguintes crimes:
a) dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos nos termos do art.º 153º, nº 1, com referência aos artigos 155º, nº 1, al. a) e 131º, todos do Código Penal, na pena respectiva e para cada um, de 120 dias e 100 dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros).
b) Operando o Cúmulo Jurídico destas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à mesma taxa diária de €7,00, no montante global de €1.120,00 (mil cento e vinte euros)

2. O arguido não se conformando com a decisão veio interpor recurso, terminando a motivação com a formulação das seguintes conclusões:
“A. É posição unânime da Jurisprudência e da doutrina que a ameaça é uma prenunciação de um mal futuro.
B. Se o mal for presente, iminente e com consumação no momento em que é declarado deixando de estar perante um crime de ameaça.
C. Extrai-se do depoimento da ofendida que as palavras proferidas pelo arguido tiveram um significado claro, a saber, que o mal por si anunciado seria infligido nesse exacto momento (nas palavras da ofendida, “logo nessa hora”) e não no futuro.
D. São diversos os dispositivos jurídicos e jurisprudenciais atinentes a esta matéria (cfr. Ac. RP de 24/10/01, publicado em www.dgsi.pt e Ac. de 17.11.2004, publicado em www.dgsi.pt e doutrina in Comentário Conimbricense do Código Penal de Taipa de Carvalho, Tomo I, p. 342), nas quais são tomadas decisões consentâneas com a defendida no presente recurso.
E. A título de exemplo, saliente-se que no Acórdão da Relação do Porto, de 17/11/2004, se decidiu que a expressão “eu mato-te”, estando no presente não integra a prática do crime de ameaça.
F. In casu, considerando que não estava verificado o elemento do tipo objectvo do crime de ameaça “anúncio de um mal futuro”.
G. Pelo que se impõe a absolvição do arguido.

Termos em que (...) deverá o arguido ser absolvido da prática do crime de ameaça qualificado praticado na pessoa da ofendida H… e L…”.

3. O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo (cfr. despacho de fls. 133).

4. O Ministério Público veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência, alegando, em síntese, que com a revisão do Código Penal de 1995 ao crime de ameaça deixou de se exigir que a ameaça cause efectiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, bastando que, de acordo com a experiência comum, seja adequada a provocar-lhe essas situações ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, deixando assim de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera acção e de perigo.
 O mal tem de ser futuro, significando apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois, que neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.
A expressão proferida pelo arguido e dirigida aos ofendidos dizendo-lhes que “ia acabar com a vida dos mesmos (pretendendo com isto dizer que os ia matar), se não fosse ele próprio a fazê-lo, ia contratar alguém”, configura um mal futuro já que não é seguida de qualquer acção concretizadora de execução imediata ou iminente do mal ameaçado, pois, o recorrente não praticou qualquer acção de execução no momento do crime anunciado.
Dúvidas não subsistem que a expressão dirigida pelo arguido aos ofendidos, sem que o recorrente concretize qualquer acto de execução no sentido de concretizar a ameaça anuncia um mal futuro, sendo a mesma susceptível de integrar a prática do crime de ameaça.
Termos em que deverá o recurso ser julgado improcedente.

5. Neste Tribunal, a Exmª Procuradora Geral Adjunta apôs Visto.
 
6. Colhidos os Vistos procedeu-se à Conferência nos termos legais.

                                                       *
II-Fundamentação.

1. O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, coloca uma única questão: saber se a matéria de facto apurada preenche o elemento objectivo do crime de ameaça, in casu, o anúncio de um mal futuro.

2. Da decisão

2.1. O tribunal considerou como provado o seguinte:

“1. Durante cerca de três anos, os ofendidos H... e J... residem numa habitação pertencente ao arguido VFS... sita na Rua ...., nº...,  em Serra da Vila.
2. Durante aquele período, o ofendido J... desempenhou funções como taxista ao serviço do arguido.
3. No início do ano de 2017, o ofendido J... comunicou ao arguido que ia deixar de trabalhar para ele.
4. Desagradado, o arguido exigiu que os ofendidos abandonassem a habitação.
5. No dia 17 de janeiro de 2017, em hora não concretamente apurada, mas após as 20h30, a ofendida H... dirigiu-se à Rua ...., nº ..., em Serra da Vila, ao 1º andar esquerdo, com o intuito de retirar alguns dos seus objectos pessoais do interior da habitação.
6. A dada altura, surgiu o arguido e ao se aperceber da presença da ofendida no local, iniciou uma discussão.
7. No decurso da a mesma em voz alta e em tom intimidatório, por diversas vezes, o arguido disse para a ofendida que ia acabar com a vida da mesma (pretendendo dizer com isto que a ia matar), se não fosse ele próprio a fazê-lo, ia contrata alguém.
8. Em dia não concretamente apurado, entre o dia 18 de janeiro e 10 de Fevereiro de 2017, o ofendido J... telefonou ao arguido.
9. No decurso da conversa mantida, exaltado, o arguido disse ao ofendido que ia acabar com a vida do mesmo e que lhe ia arrancar a cabeça (pretendendo com isto dizer que o ia matar).
10. O arguido agiu com pleno conhecimento de que as expressões que proferiu nas circunstâncias supra referidas eram meio adequado a produzir, como produziram nos ofendidos, profundo receio que o arguido concretizasse o que anunciava, sendo certo que com a sua conduta pretendia precisamente dar-lhes a entender que os ia atingir na sua integridade e retirar-lhe a vida.
11. Agiu o arguido de forma livre e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”

                                                    *
3. Apreciando.

3.1. O recorrente, como vimos, não coloca em causa a matéria de facto vertida na decisão, e da sua análise também se não vislumbra a ocorrência de qualquer um dos vícios elencados no art.º 410º, nº 2, do CPP, assim como não ocorre qualquer nulidade de conhecimento oficioso, donde se tem por assente aquela matéria de facto.

3.2. A questão que vem colocada no recurso é a de saber se a matéria de facto apurada preenche o elemento objectivo do crime de ameaça, in casu, “o anúncio de um mal futuro”.

Vejamos, antes de mais, a fundamentação da sentença recorrida nesta matéria.
“(...).
São elementos essenciais do ilícito o anúncio de que o agente pretende infligir a outra pessoa um mal futuro, que constitua crime, que esse anúncio provoque ou seja adequado a provocar, medo ou inquietação ou lhe prejudique a liberdade de determinação, sendo necessário a existência de um nexo de causalidade entre aquela conduta e este resultado, e que o agente tenha actuado com dolo.
Na actual redacção e ao contrário do que acontecia no Código Penal de 1982, em que era um crime de resultado, actualmente trata-se de um crime de perigo dado que desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime.
Efectivamente, da expressão “de forma adequada a provocar-lhe” retira-se que na perpectiva do agente e à luz das regras da experiência, tomando como referência a capacidade de entendimento e decisão do homem médio, o anúncio de um mal futuro que corresponda a um crime, em que se traduz a ameaça, seja apto a causar medo ou perturbação da liberdade de determinação.
O critério a ter em conta é assim o do “homem médio”, tendo em atenção as características do ameaçado
É assim indiferente a forma de praticar o acto, podendo ser oral, escrita, gestual.
(...).
Assim, efectivamente se constatou que o arguido dirigiu-se a ambos os ofendidos, ameaçando a integridade física e vida. Mais, o clima de agressividade em que proferiu tais agressões, o seu contexto é apto e susceptível de causar receio, como aconteceu. Mias se provou que o arguido quis e conseguiu proferir tal expressão.
Igualmente e para além da forma como as expressões foram proferidas e do seu teor, mas igualmente perante o contexto de tensão e agressividade latente existente entre arguido e ofendidos permitem ao tribunal concluir que o meio foi adequado ao objectivo do arguido, que foi alcançado, indicando o contexto em que tais expressões foram proferidas de forma adequada a atemorizar ambos os ofendidos, tendo em consideração o critério do homem comum.
“O que se exige para o preenchimento do tipo é que a acção reúna certas circunstâncias, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação” (Figueiredo Dias, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, acta nº 45, p. 500).
(...).
Assim, impõe-se a condenação do arguido pela prática de dois crimes de ameaça agravada, existindo todas as condições de punibilidade e na ausência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa”.

Vejamos

A questão que o recorrente vem colocar é a de saber se a matéria de facto apurada preenche o elemento objectivo do crime de ameaça, in casu, “o anúncio de um mal futuro”.
O recorrente pugna pela sua absolvição considerando que o mal infligido foi presente, iminente e com consumação no momento em que foi declarado deixando de estar perante um crime de ameaça.
Entende que da matéria de facto se extrai que o mal por si anunciado seria infligido nesse exacto momento e não no futuro.

Mas não tem manifestamente razão o recorrente.

Importa antes de mais ter presente a alteração introduzida no artigo 153º, nº 1 do Código Penal com a revisão do Código Penal de 1995, em que a ameaça deixou de ser um crime de dano e de resultado, substituindo-se a expressão “provocando-lhe receio, medo e inquietação” pela expressão da nova redacção “de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação...”, passando a ser um crime de perigo abstracto-concreto, em que a mensagem comunicada tem de ser “adequada a provocar-lhe medo ou inquietação”, ou seja, não é necessário que o destinatário tenha efectivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação, bastando que as palavras proferidas tenha essa potencialidade, à luz das regras da experiência, tomando como referência a capacidade de entendimento e decisão do homem médio, e atendendo às circunstâncias concretas que rodearam os factos.
E tal como se refere na decisão recorrida que pelo acerto e bondade das suas considerações aqui se transcrevem “...para além da forma como as expressões foram proferidas e do seu teor, mas igualmente perante o contexto de tensão e agressividade latente existente entre arguido e ofendidos permitem ao tribunal concluir que o meio foi adequado ao objectivo do arguido, que foi alcançado, indicando o contexto em que tais expressões foram proferidas de forma adequada a atemorizar ambos os ofendidos, tendo em consideração o critério do homem comum.

E quanto ao elemento objectivo do “anúncio de um mal futuro”, tal significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois, que neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.
Neste caso, em face do contexto apurado, o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe que ia acabar com a vida da mesma (pretendendo dizer com isto que a ia matar), se não fosse ele próprio a fazê-lo, ia contratar alguém (ponto 7 dos factos provados), dizendo ao ofendido que ia acabar com a sua vida e que lhe ia arrancar a cabeça (pretendendo com isto dizer que o ia matar (ponto 9 dos factos provados).
Neste caso, tais expressões configuram indubitavelmente um mal futuro já que não são seguidas de qualquer acção concretizadora de execução imediata ou iminente do mal ameaçado, antes projetando o arguido a sua conduta para o futuro, não tendo, pois, praticado qualquer acção de execução no momento do crime anunciado.
Assim, as expressões proferidas pelo arguido aos ofendidos são susceptíveis de integrar a prática do crime de ameaça e verificando-se os demais elementos objectivos e subjectivo do crime de ameaça, nenhuma censura nos merece o enquadramento jurídico a que procedeu o tribunal a quo, decidindo com acerto.

Termos em que improcede o recurso

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III. Decisão.
Termos em que as Juízas da 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão proferida.
Custas pelo recorrente, fixando em 4UC a taxa de justiça.
Notifique.
                                                  *
                                                                     
Lisboa, 4/07/2018.

Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceição Gonçalves e assinado pela Exmª Srª Desembargadora Maria Elisa Marques.