Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE) | ||
| Descritores: | SUSPEIÇÃO ACTOS PROCESSUAIS DISCORDÂNCIA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 05/24/2024 | ||
| Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | SUSPEIÇÃO | ||
| Decisão: | INDEFERIMENTO | ||
| Sumário: | O incidente de suspeição não é o mecanismo adequado para expressar a discordância jurídica ou processual de uma parte sobre o curso processual ou sobre os atos jurisdicionais levados a efeito pelo julgador. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | * I. 1. “A”, requerida na ação tutelar comum que, com o n.º 30871/21.0T8LSB-B, corre termos no Juízo de Família e Menores de Lisboa – Juiz (…), veio, por intermédio do seu Advogado e por requerimento apresentado em juízo em 21-12-2023, requerer incidente de suspeição, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CPC. Para tanto invocou que: “a) O caso em presença é o de uma criança nascida em Portugal, filha de mãe portuguesa, agora com dois anos e meio, nascida com problema renal congénito, a inspirar cuidados e a exigir vigilância clínica e tratamento, sempre feitos em Portugal, que passou a viver em quadro de ruptura conjugal dos pais, à chegada à Holanda, um mês depois de nascer, onde a mãe se deslocou por ter actividade profissional a encerrar naquele país, b) A mãe manteve até hoje o tratamento em Portugal que havia sido acordado por ambos os progenitores, seja porque o equipamento auxiliar de diagnóstico na Holanda não permitia tratar os valores obtidos pelo equipamento usado em Portugal, seja porque a qualidade dos serviços hospitalares holandeses é péssima (encurtando razões e mais adiante poderemos explicar porquê) c) Na pendência deste período ocorreram novas complicações clínicas no estado de saúde da criança, entre as quais uma otite interna - em conexão com o aparecimento da dentição - que não se conseguiu resolver, embora se tenha controlado, e a ocorrência de crises cardiorrespiratórias que exigiam observação e diagnóstico, d) Veio, entretanto, a detectar-se uma severa alergia à lactose que foi evidentemente e cuidadosamente respondida, e) Aguardando-se, sob cuidada observação, a fase de maturação adequada à intervenção cirúrgica para a solução do problema renal, f) O tribunal holandês, em decisão de rara brutalidade, sentindo-se talvez agastado pela preferência dada à clínica dos portugueses, decide que a Holanda também é capaz de tratar tais problemas e determina que os tratamentos em Portugal sejam interrompidos por serem incómodos para o pai (e apenas por isso, muito embora todas as despesas de deslocação do pai - como todas as demais - corressem a expensas da mãe), decisão só formalmente possível pela falta de vinculação da Holanda à Convenção de Oviedo (a Holanda recusou vincular-se ao respeito pelos Direitos Fundamentais em contexto hospitalar, motivo pelo qual se está mais seguro num hospital albanês do que ali) g) O tribunal holandês acaba por decidir que a mãe só pode manter a guarda do seu filho se fixar a residência na Cidade de Haia, dali trabalhando por via informática, sem se afastar da cidade, decisão que evidentemente colide com o Direito dos Tratados, designadamente, quanto às liberdades de trabalho, circulação e estabelecimento, devendo dizer-se que, talvez agastados pelo curriculum universitário e profissional da mãe, os juízes decidem sobre o que não sabem nem quiseram saber, não tendo feito uma única referência à natureza do trabalho da mãe, nem à sua profissão e, menos, à sua graduação (como se as portuguesas devessem ser mulheres da limpeza, ou equivalente e aos juízes, fosse difícil suportar a presença de uma portuguesa com graduações superiores) h) Durante o período em que a criança tem estado em Portugal, três coisas ocorreram que impediam (e duas ainda impedem) que se regresse ao pântano dos Países Baixos (para usar Taine como referência), i) A primeira foram as restricções de viagens aéreas em pandemia - facto público e notório - a segunda, dada pela sequência de afecções clínicas da criança, que tornaram e ainda tornam imprevisíveis os riscos da viagem, e a terceira é o tratamento judiciário holandês dado a tal caso, j) Ao intervir o tribunal português, vem este aplicar o Regulamento de Bruxelas II sem responder às questões que lhe foram postas nessa matéria (como noutras) e oito meses depois de interposto o recurso executa o despacho nulo com mandado que nem sequer corresponde à decisão (nula embora) Senhores Desembargadores 1. O Juiz (…) de Família notificou o mandatário para dizer se pretendia ou não manter o incidente de suspeição contra a senhora juiz anterior, 2. Uma vez que esta senhora tinha sido promovida e a titularidade neste juiz tinha sido alterada 3. Em simultâneo fez subir a reclamação contra o indeferimento do recurso que pendia desde 24 de Maio, uma vez que, pelos vistos, a senhora juiz preferiu em nada mexer antes de se consumar a sua promoção à Relação, 4. A Reclamação sobe em Outubro e dias depois, recebe provimento com ordem para a subida do recurso, 5. E o Recurso continuou sem subir até meados de Dezembro, 6. Enquanto o tribunal procurava executar o mandado (mas não o despacho) da juiz anterior que, assim, com mandado de teor não notificado, mantinha a intervenção em processo pelo facto do mandatário ter sido persuadido de que essa intervenção havia cessado e portanto podia cessar a suspeição, 7. Que devia ter continuado, pelos vistos, uma vez que a intervenção se manteve... 8. O mandado teve o seu teor conhecido apenas no dia da execução, 9. E não corresponde ao despacho que determina a entrega, Na verdade, 10. Esse despacho determina (sob a nossa crítica, é verdade) que a mãe pode acompanhar a criança seja na entrega, seja, até, na viagem para os Países Baixos 11. O mandado não diz isso, 12. Constituindo, portanto, uma nova decisão e uma decisão nova sem notificação, ordenando apenas a entrega ao pai, 13. A mãe não foi, pois, sequer contactada, 14. E esse contacto era imprescindível, desde o problema da medicação, de esclarecimento da fase clínica, da entrega de roupa de inverno - porque a criança foi para um país frio e com a roupa que trazia no corpo - 15. Sendo certo que o despacho que pretendidamente se executava não foi alterado e o mandado não lhe corresponde, 16. Embora tenha sido conformado pela polícia junto do tribunal se era ainda para executar e se era para executar naqueles termos, o tribunal respondeu que sim... 17. A criança foi, portanto, seguida e emboscada, sendo na escola infantil levantada da cama - onde fazia a sesta depois de almoço - e entregue ao pai, meio a dormir, 18. A criança não fala a Língua dos Países Baixos, como a maior parte do mundo, uma vez que, se nos não falha a memória, só no Suriname se fala tal língua; 19. O pai não fala Português, 20. E, portanto, quanto se fez foi entregar uma criança de menos de três anos a um estranho (para ela) com quem não tem a menor possibilidade de se fazer entender, 21. Foi levada para uma terra impossível, para uma casa onde a esperam uma avó sem uma perna, que fuma desalmadamente, com dois gatos doentes, não vacinados e maltratados, cujas bactérias já provocaram, há dois anos, uma infecção urinária na criança que tem problemas renais sérios; 22. A criança foi levada com a roupa que tinha no corpo e 23. Sem medicamentos, 24. A criança estava em fase clínica muito favorável, tendo concluído com êxito na semana anterior uma antibióticoterapia e estava agora apenas com anti-histamínicos e anti- inflamatórios, 25. Detectada uma intensa alergia alimentar, ainda em estudo, com os problemas cardiorrespiratórios atenuados mas não desaparecidos, a criança mantém-se sob observação atenta, tendo contado até agora com a atenção da mãe e avó materna com formação na área das biomédicas e com a tia materna que tem formação médica, 26. Foi entregue aos critérios de um empregado de distribuidora de papel higiénico que já se pôs a comentar os medicamentos mandados pela mãe em termos que fazem supor uma desgraça iminente, 27. Impedindo qualquer contacto da mãe com a criança, mesmo por vídeo-chamada (o que nunca ninguém lhe impôs a ele), 28. Refugiando-se num discurso revanchista, com marcas acentuadas de sentimentos de inferioridade, recusando falar com a mãe da criança a não ser através de advogados e, pior, exigindo que a mãe fixe residência na Holanda para ver o filho (era o que faltava!), 29. Os tribunais não podem violar a disciplina a que estão vinculados, 30. E tendo sido ordenada à primeira instância a subida do Recurso, o Recurso deveria ter subido ao invés de ficar retido por mais dois meses na primeira instância, 31. Nesse recurso, de resto, comporta-se o exame de matéria da própria competência dos tribunais portugueses, porque, ocorrendo, como ocorre, causa de justificação para a presença da criança em Portugal, de onde é aliás originária, contra a vontade arbitrária dos tribunais holandeses, a criança está há mais de dois anos, sem ilicitude nenhuma, no território do país onde nasceu e, portanto, nos termos do próprio regulamento de Bruxelas II (nada concedendo) a competência é dos tribunais portugueses, 32. Apenas em 11 de Dezembro se elabora o ofício de remessa do Recurso... 33. No quadro, insistamos, de ordem do Tribunal Superior a ordenar a subida dois meses antes; 34. O Recurso fora interposto em Abril de 2023 (!) 35. O tribunal manda executar um mandado que não corresponde à decisão, nulo, portanto, sendo certo que a decisão a que se reporta não é menos nula, como oportunamente se arguiu, 36. Há, pois, aqui uma gravíssima denegação de direitos, com o prolongamento por outros meios da frustração do direito de recorrer e subtracção de criança portuguesa à protecção dos tribunais portugueses, que não pode deixar de se assinalar, no mínimo, como ruptura radical da equidistância exigida, Devendo entender-se, nos termos do art° 6°/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que a independência -i.e., a imparcialidade - do decisor jurisdicional é condição da própria existência do processo (e não menos) as quebras de equidistância apontadas não podem deixar de integrar “motivo sério e grave” usando a expressão do art. 120° CPC, muito embora não esteja entre as causas exemplificativamente enunciadas Termos em que se requer a remoção do Ex.mo Juiz responsável pelos actos que aqui fraudaram o direito de recurso, acima apontados, com a desproteção da criança a quem se reportam os autos e que fará três anos no próximo mês Requer-se para instrução do presente requerimento (…)”. 2. A requerente da suspeição havia apresentado em juízo, em 10-08-2023, requerimento no qual deduziu incidente de suspeição, nos termos e com os fundamentos nele constantes (e que deram origem ao apenso E). 3. Nesses autos – apenso E – a então juíza titular, “B”, proferiu despacho, em 17-08-2023, admitindo liminarmente o pedido de suspeição, determinando a autuação do requerimento de suspeição por apenso, respondendo, nomeadamente, que “não encontra qualquer fundamento de facto ou de direito para o mesmo, desde logo, porque não se encontram preenchidos nenhuma das circunstâncias previstas no artigo 120º do Código de Processo Civil, nem qualquer outra razão que justifique qualquer juízo de suspeição quanto ao exercício de funções nestes autos. Deste modo, entende não haver qualquer fundamento para a sua suspeição. Não obstante, sempre se acrescenta que o presente incidente é inútil uma vez que a Signatária se encontra em serviço de turno e será movimentada para outro Tribunal em Setembro de 2023, na data em que vier a ser publicado o Movimento Judicial Ordinário, pelo que não estará em situação de voltar a proferir qualquer despacho nestes autos”, tendo determinado a notificação da parte contrária, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 122.º, n.º 4, do CPC. 4. Por despacho de 26-09-2023, da Sra. Juíza de Direito “C”, prolatado no mencionado apenso E, foi determinado o seguinte: “Notifique a requerente para, em prazo legal, indicar se mantém interesse no incidente, mais se pronunciando, querendo, quanto à utilidade da lide, porquanto o presente Juízo (…) do Tribunal de Família e Menores de Lisboa passou, desde este setembro de 2023, a ser titulado pela agora signatária - e já não pela Mma. Juíza, agora Sra. Desembargadora, em causa no vertente incidente, a qual se encontra já em exercício de funções noutra instância”. 5. A requerente do incidente de suspeição foi notificada por notificação expedida em 09-10-2023. 6. Por requerimento apresentado no mencionado apenso E em 27-10-2023, a requerente da suspeição veio informar, nomeadamente, que “dando-se a circunstância da promoção da anterior senhora juiz titular ao desembargo, cessa o interesse na suspeição cujo requerimento visava pelas razões então expostas o seu (dessa Ex.ma Senhora) afastamento dos autos”. 7. Por despacho de 03-11-2023 – no mencionado apenso E – foi determinada a notificação dos demais intervenientes do requerimento, notificação expedida em 07-11-2023. 8. Por requerimento de 17-11-2023, apresentado no mencionado apenso E, a requerente da suspeição veio referir que: “O requerimento de suspeição não comporta quaisquer intuitos vexatórios, mas apenas o pedido que a Ex.ma Senhora juiz de cuja recusa se tratava não connuasse a intervir no processo, em razão das irregularidades enunciadas e do significado que objecvamente comportavam, a nossos olhos. Cessando a intervenção, por promoção aos Colégios dos Tribunais Superiores, isso é suficiente para perdermos o interesse no incidente. (Estávamos convencidos que o havíamos dito já) Agradece-se a prudência da audição prévia”. 9. Em 13-12-2023, no mencionado apenso E foi proferida a seguinte decisão: “Atento o teor do requerimento junto e ouvido o requerente, nos termos do artigo 287º, alínea e) do Código de Processo Civil, julga-se extinta a presente instância, por inutilidade superveniente da lide. Sem custas, face ao fundamento da inutilidade e à superveniência. Notifique”. 10. Na sequência do referido em 1., a Sra. Juíza de Direito “C”, por despacho datado de 01-02-2024, veio responder – nos presentes autos (apenso G) - que: “O requerente de fls. 525 ss veio requerer a remoção do Exmo. Juiz responsável pelos actos que aqui fraudaram o direito de recurso, acima apontados, com a desproteção da criança a quem se reportam os autos (..) . Ora: - o requerente havia já deduzido Incidente de Suspeição contra a Antecessora da Signatária do presente despacho, Sra. Dra. “B”, incidente este que corre sob o apenso E aos autos; - entretanto, a Sra. Dra. “B” assumiu funções no Tribunal da Relação e a Signatária do presente despacho passou a titular este J(…) e a aqui prestar funções em Setembro de 2023; - posto isto, verificada a existência de Incidente de Suspeição que corre sob o apenso E, logo informou o requerente, questionando do interesse em fazer prosseguir o incidente, tendo o mesmo declaro ter perdido nele interesse, pelo que julgou extinta a instância incidental em 13.12.2023; - em 21.12.2023 veio o então requerer nos termos constantes a fls. 525 ss a remoção do Exmo. Juiz responsável pelos actos que aqui fraudaram o direito de recurso, acima apontados, com a desproteção da criança a quem se reportam os autos (..) ; - com franca dúvida sobre quem entendia ser o Exmo. Juiz responsável pelos actos que aqui fraudaram o direito de recurso notificou-se o requerente para proceder à indicação do concreto Juiz de que pretende a remoção, para que não haja dúvidas se se tratava da signatária ou da sua antecessora; - até ao dia de hoje, nada foi esclarecido pelo requerente. *** Ora, pese embora essa falta de esclarecimento, que muito se lamenta, a Signatária não pode de fazer correr Incidente de Suspeição entendendo que se trata de novo incidente, e que, na ausência de maiores explicações, contra si movido, posto que é a atual titular do processo. *** Assim, admito o requerimento enquanto Incidente de Suspeição, contra a Signatária, determinando-se que se autue em conformidade com o disposto no art. 122º, nº 1 do CPC, com cópia do presente despacho que aí deverá ser cumprido. A Signatária, Juíza relativamente à qual foi suscitado o presente incidente, não encontra qualquer fundamento de facto ou de direito para o mesmo, desde logo, porque não se encontram preenchidos nenhuma das circunstâncias previstas no artigo 120º do Código de Processo Civil, nem qualquer outra razão que justifique qualquer juízo de suspeição quanto ao exercício de funções nestes autos, designadamente, não corre nenhuma das situações típicas a que alude o artigo agora citado, ou outras de onde se retire que o requerente tem motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade . Deste modo, entende não haver qualquer fundamento para a sua suspeição. Em obediência ao disposto no artigo 122º, nº2, do Código de Processo Civil, logo que autonomizado o apenso de suspeição, determina-se a junção ao mesmo de certidão eletrónica da totalidade dos autos e respetivos apensos como forma de instrução do presente incidente. Notifique a parte contrária, nos termos e para os efeitos do artigo 122º, n.4 do mesmo artigo, isto é para querendo se intervir como assistente, fixando-se para tal, o prazo de dez dias. Decorrido esse prazo caso nada seja requerido, desapense o referido apenso e remeta-o à Exma. Sra. Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa. Notifique.” * II. Vejamos: Nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 120.º do CPC, as partes podem opôr suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, o que ocorrerá, nomeadamente, nas situações elencadas nas suas alíneas a) a g). Com efeito, o juiz natural, consagrado na CRP, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas. O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ). Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade. A dedução de um incidente de suspeição, pelo que sugere ou implica, deve ser resguardado para casos evidentes que o legislador espelhou no artigo 120.º do CPC, em reforço dos motivos de escusa do juiz, a que se refere o artigo 119.º do CPC. A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo. “A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-02-2013, Pº 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, rel. SANTOS CABRAL). O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça. Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa. Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo. Sintetizando, referiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-11-2022 (Pº 38/18.1TRLSB-A, rel. ORLANDO GONÇALVES) que “de um modo geral, pode dizer-se que a causa da suspeição há de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com alguns dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o processo”. * III. Colocados os parâmetros enunciados que importa observar, analisemos a situação concreta apreciando se o incidente de suspeição deverá proceder ou improceder. No seu requerimento de suspeição em apreço, a respetiva requerente invocou – tal como o tinha feito, aliás, no precedente requerimento de suspeição – diversas circunstâncias inerentes à tramitação dos vários apensos que compõem o processo n.º 30871/21.0T8LSB e às vicissitudes dos mesmos, concluindo que, em face de tal exposição, ocorre “uma gravíssima denegação de direitos, com o prolongamento por outros meios da frustração do direito de recorrer e subtracção de criança portuguesa à protecção dos tribunais portugueses, que não pode deixar de se assinalar, no mínimo, como ruptura radical da equidistância exigida”. A Sra. Juíza de Direito contrapôs, em suma, que, quanto ao anterior incidente de suspeição, a instância foi julgada extinta em 13-12-2023 e, que, perante o requerimento de 21-12-2023 – visando o “Exmo. Juiz responsável pelos actos que aqui defraudaram o direito de recurso” – notificou a requerente da suspeição para indicar qual o concreto juiz de que era pretendida a remoção, sem que nada tenha sido esclarecido pela requerente da suspeição. Negou, igualmente, a Sra. Juíza, pertinência à pretensão de suspeição. Liminarmente, importa salientar que a apreciação sobre se a situação invocada pela requerente da suspeição se enquadra, ou não, na previsão legal do artigo 120.º do CPC, prende-se, tão só, com a materialização ou não dos requisitos do incidente, e não, com qualquer apreciação de natureza jurisdicional ou substantiva, relativamente ao mérito da pretensão esgrimida por qualquer dos sujeitos processuais, a qual, não nos incumbe decidir, nem o poderemos efetuar. Depois, cumpre salientar que não se patenteia qualquer das circunstâncias a que se referem as alíneas a) a f) do n.º 1, do artigo 120.º do CPC. Quanto à alínea g) – existência de inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários – tem-se entendido que “não constitui fundamento específico de suspeição o mero indeferimento de requerimento probatório (RL, 7-11-12, 5275/09) nem a inoportuna expressão pelo juiz sobre a credibilidade das testemunhas (RG 20-3-06, 458/06)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 148). Do facto de um juiz ter proferido decisões desfavoráveis a uma das partes não pode extrair-se qualquer ilação quanto a eventuais sentimentos de amizade ou inimizade ou, até, de mera simpatia ou antipatia por uma delas, ou ainda de parcialidade (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-05-2002, Pº 01P3914, rel. SIMAS SANTOS). Efetivamente, a função jurisdicional “implica, pela sua própria natureza e quase sem excepções, a necessidade de dar razão a uma das partes e negá-la à outra, rejeitando as suas pretensões e sacrificando os seus interesses concretos. Daí que não seja possível retirar do facto de alguma, ou algumas, das pretensões formuladas por uma das partes terem sido rejeitadas a conclusão de que o julgador está a ser parcial ou a revelar qualquer inimizade contra a parte que viu tais pretensões indeferidas" (despacho do Presidente da Relação de Lisboa de 14-06-1999, in CJ, XXIV, 3.º, p. 75). No seu requerimento, a requerente da suspeição invoca, tão-só, questões de natureza jurisdicional, manifestando a sua discordância com as decisões jurisdicionais tomadas no processo (sem se assinalar, inclusive, qualquer correspondência com alguma concreta atuação da Sra. Juíza de Direito, atual titular do processo), mas este descontentamento não pode ser apreciado em incidente de suspeição, cujo escopo não se destina a apreciar questões técnicas relacionadas com o mérito de uma pretensão apresentada em juízo. Não se conformando com as decisões judiciais proferidas, a requerente da suspeição tem ao seu dispor todos os mecanismos legais de impugnação que sejam processualmente admissíveis. De facto, os recursos (ou as reclamações ou outros meios impugnatórios) são os mecanismos legais para se poder reagir em tais situações e para se aquilatar da correta ou incorreta aplicação da lei. A Justiça é feita caso a caso, tendo em consideração a real e objetiva situação a dirimir. O Juiz não é parte nos processos, devendo exercer as suas funções com a maior objetividade e imparcialidade. Com efeito, os juízes têm por função ser imparciais e objetivos, fundando as suas decisões na lei e na sua consciência. Como dispõe o artigo 4.º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores. De acordo com o n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a independência dos magistrados judiciais manifesta-se na função de julgar, na direção da marcha do processo e na gestão dos processos que lhes forem aleatoriamente atribuídos. Podemos entender que a requerente da suspeição não se reveja no conteúdo de posições tomadas no processo pela Sra. Juíza, mas tal descontentamento não implica a constatação de alguma parcialidade do julgador. O incidente de suspeição não é, de facto, o mecanismo adequado para expressar a discordância jurídica ou processual de uma parte sobre o curso processual ou sobre os atos jurisdicionais levados a efeito pelo julgador. A jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem, de forma constante, evidenciado esta asserção (disso são exemplo as decisões expressas nos seguintes acórdãos: TRL de 11-10-2017, Pº 6300/12.0TDLSB-A-3, rel. JOÃO LEE FERREIRA; TRP de 21-02-2018, Pº 406/15.0GAVFR-A.P1, rel. ELSA PAIXÃO; TRP de 11-11-2020, Pº 1155/18.3T9AVR-A.P1, rel. JOSÉ CARRETO; TRE de 08-03-2018, Pº 13/18.6YREVR, rel. JOÃO AMARO). De todo o modo, não logramos descortinar na invocação da requerente da suspeição ora em apreço nenhuma circunstância que possa conduzir ao afastamento da Sra. Juíza, não se demonstrando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador (quer relativamente à titular atualmente em funções, quer relativamente à anterior, tanto mais que, quanto a esta última, a requerente da suspeição manifestou, aliás, no apenso E, não ter mais interesse na prossecução do primitivo incidente de suspeição que desencadeara). Observando os factos tal como o faria um cidadão médio, não se deteta nos atos processuais em que teve intervenção a Sra. Juíza, qualquer atitude pessoal reveladora de suspeita grave da sua imparcialidade, nem as imputadas “gravíssima denegação de direitos” e “ruptura radical da equidistância exigida”. Assim sendo, entendemos não se encontrarem reunidos os pressupostos que materializam o incidente, o que conduz à sua improcedência. Não se nos afigura a existência de litigância de má-fé da requerente da suspeição, não se patenteando alguma das circunstâncias a que se reporta o n.º 2 do artigo 542.º do CPC. * IV. Face ao exposto, indefiro a suspeição deduzida relativamente à Sra. Juíza de Direito “C”. Custas a cargo da requerente do incidente. Notifique. Lisboa, 24-05-2024, Carlos Castelo Branco. (Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março). |