| Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | HIGINA CASTELO | ||
| Descritores: | COMODATO ARRENDAMENTO DENÚNCIA | ||
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| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/23/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
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| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PROCEDENTE | ||
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| Sumário: | Sumário: I. Quanto um tribunal afirma por sentença a existência de um contrato de arrendamento que, até essa afirmação, era incerta por as parte não concordarem sobre a existência de um contrato ou sobre a sua natureza, o tribunal tem de estabelecer também qual o conteúdo essencial desse contrato de arrendamento para que, de futuro as parte saibam que regime se lhe aplica. II. Tratando-se de contrato de arrendamento urbano para habitação, é fundamental explicitar o tipo de contrato quanto à duração – se com prazo certo ou por duração indeterminada – porque desse tipo depende o regime a aplicar às questões suscitadas nos autos e, a manter-se a relação arrendatícia, no futuro; no silêncio das partes, há que atender à norma contida no art. 1094.º, n.º 3, do CC, segundo a qual o contrato considera-se celebrado por prazo certo, pelo período de 5 anos. III. Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art. 1097.º do CC, o senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima de 120 dias (reportada ao termo do prazo em curso), se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos, como é o caso; se o senhorio, por carta registada dirigida ao arrendatário, comunica a vontade de pôr termo ao contrato para uma data anterior ao termo do prazo em curso, e o arrendatário não aceita – não entrega o arrendado na data pretendida pelo senhorio –, deve entender-se que o contrato termina no fim do prazo em curso (sem necessidade de outra comunicação). | ||
| Decisão Texto Parcial: |  | ||
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| Decisão Texto Integral: | Acordam as abaixo identificadas juízas do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório “A”, autor na presente ação declarativa de condenação que move a “R”, notificado da sentença que a julgou improcedente (e que julgou procedente a ação apensa, movida pela aqui ré ao aqui autor, e improcedente o pedido reconvencional nela deduzido), e com essa sentença não se conformando, interpôs o presente recurso. Na petição inicial dos presentes autos, o autor pediu a condenação da ré a: a) reconhecer o autor como único e legítimo proprietário da fração autónoma designada pela letra C, correspondente ao 1.º andar do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alcabideche sob o artigo …95, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha n.º …26 da freguesia de Alcabideche; b) restituir a aludida fração, deixando-a livre e desocupada e abster-se de aí praticar qualquer ato; c) pagar ao autor uma indemnização no valor de € 500,00 por cada mês que subsista a ocupação indevida da mencionada fração. Alegou, em síntese, ser dono da fração objeto do pedido por a ter adquirido por sucessão hereditária e partilha, encontrando-se esta registada a seu favor na Conservatória do Registo Predial. Em 2015, celebrou com a ré um contrato de comodato relativo à dita fração, acordando as partes que o comodato caducaria no prazo de 30 dias a contar da receção de carta a comunicar a respetiva cessação. No entanto, e apesar de o autor ter enviado à ré, em 29-08-2022, uma carta a denunciar o contrato e a solicitar a restituição do imóvel livre de pessoas e bens, com efeitos no final do mês seguinte, por necessitar da casa para sua habitação, a ré não procedeu à sua entrega e tem vindo a ocupar outras áreas do prédio com diversos bens. Finalmente, alegou que a ré, com a sua conduta se encontra a causar-lhe diversos prejuízos, que justificam a sua condenação no pagamento da indemnização mensal peticionada enquanto durar a ocupação indevida e sem título. A ré contestou, alegando que o contrato de comodato foi simulado, pretendendo as partes celebrar um contrato de arrendamento habitacional e com vista a iludir o pagamento de impostos pelo autor, tendo a ré apenas assinado o contrato de comodato pela urgência em ter um local para morar e por o autor o ter exigido. Mais disse que os mesmos factos são objeto de uma ação declarativa por si intentada contra o aqui autor, na qual peticiona a declaração de nulidade do contrato simulado e o reconhecimento da existência de um contrato de arrendamento, pedindo a apensação das ações por forma a evitar casos julgados contraditórios. Mais alegou que pela utilização da fração, para além do valor dos consumos, pagava uma renda mensal de € 300,00, sendo o referido valor entregue ou transferido para uma intermediária do senhorio, até ao momento em que o autor se recusou a receber essa quantia, passando a ré a depositar à ordem do autor o respetivo montante. Pediu, ainda, a condenação do autor como litigante de má-fé em multa e indemnização no valor de € 7.500,00, por se furtar à citação na ação por si proposta e a receber as cartas comprovativas da realização dos depósitos, bem como por deduzir uma pretensão falsa com vista a obter um fim proibido por lei, quando sabia não ter celebrado qualquer contrato de comodato, mas antes um arrendamento. Notificado o autor para se pronunciar quanto à matéria de exceção, veio defender ter sido a ré a propor a celebração de um contrato de comodato – quando o autor anteriormente sempre havia procedido ao arrendamento da sua propriedade –, tendo informado a ré da sua disponibilidade para celebrar um contrato de arrendamento pelo prazo de um ano mediante uma renda de € 450,00. Contudo, alegando a ré não ter possibilidades de pagar tal renda, e informando que estaria disponível para celebrar um contrato de comodato e para entregar mensalmente uma quantia inferior como compensação pelo desgaste do imóvel, acabou por aceder a tal sugestão sem que tenha tido qualquer intenção de enganar fosse quem fosse. A referida cedência foi feita sabendo a ré que apenas se referia à utilização do imóvel por um período de tempo limitado, uma vez que sempre foi sua intenção voltar a viver na fração, depois de se reformar, tendo sido esse o motivo da denúncia do contrato de comodato e da carta por si enviada. Entende, no mais, que a invocação da nulidade do contrato pela autora, quando foi a própria a propor a celebração de um comodato, corresponde a um abuso do direito por venire contra factum proprium, sem que exista, consequentemente, qualquer litigância de má fé da sua parte uma vez que atuou na convicção do direito a ser-lhe restituído o imóvel, sem que a diferente interpretação da factualidade e normas aplicáveis mereça tal juízo de censura. O Juízo Local Cível de Cascais Juiz 1, onde a ação havia sido instaurada, fixou oficiosamente o valor da causa principal em € 56.869,64, com a consequente declaração da respetiva incompetência e remessa dos autos a este Juízo Central Cível de Cascais Juiz 4. Entretanto, o mesmo Juízo Local Cível de Cascais tinha determinado a apensação aos presentes autos da ação n.º 3128/22.2T8CSC, que agora constitui o apenso A dos presentes autos. Na referida ação apensa – intentada pela aqui ré contra o aqui autor –, foi pedido o reconhecimento da nulidade do contrato de comodato, por simulação, e a declaração da existência e validade do contrato de arrendamento para habitação permanente. Alegou a aqui ré, na ação apensa, os mesmos factos que coincidem com a defesa deduzida nos presentes autos, relativos à celebração, em 11-05-2015, de um contrato de arrendamento para habitação, mediante uma renda mensal, contrato intitulado de comodato, com o fim de o aqui autor enganar o Fisco. O aqui autor deduziu contestação na qual alegou a mesma factualidade invocada na p.i. apresentada nos presentes autos, tendo peticionado a título reconvencional, para o caso de vir a ser julgado procedente o pedido de reconhecimento do contrato de arrendamento, que seja reconhecida a caducidade do contrato celebrado entre as partes e condenada a ali autora-reconvinda a proceder à restituição da posse do imóvel em causa nos autos. Sustentou, para tanto, que, considerando os factos alegados nos autos, a vontade das partes foi a de que contrato celebrado tivesse prazo de duração de um ano, o qual teria caducado em maio de 2023, face à denúncia por si operada pela missiva de 29-08-2022, com a consequente obrigação de restituição da fração, livre e devoluta, até 31-05-2023. Mais alegou que, caso não se prove que o contrato foi celebrado pelo prazo de um ano renovável por iguais períodos, sempre teria aplicação o prazo supletivo legal de 5 anos, previsto no art. 1094.º do CC, pelo que, atenta a denúncia do contrato já operada pelo proprietário, deveria a inquilina ser condenada a proceder à sua entrega no termo do prazo. A ré veio replicar questionando a admissibilidade da dedução do pedido reconvencional, defendendo, em todo o caso, serem falsos os factos em causa, pelo que também nesta ação peticionou a condenação da contraparte em multa e indemnização por litigância de má-fé. Foi realizada audiência prévia sem que tenha sido conseguida a conciliação das partes, tendo-se seguido a prolação de despacho saneador no qual foram admitidos os pedidos reconvencionais, fixados os valores de cada uma das causas, bem como identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, após a qual foi proferida sentença que julgou improcedente a presente ação, procedente a ação apensa, e improcedente a reconvenção ali deduzida, decidindo, em consequência: - reconhecer o autor como único e legítimo proprietário da fração autónoma designada pela letra C, correspondente ao 1.º andar do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alcabideche sob o artigo …95, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha n.º …26 da freguesia de Alcabideche; - julgar nulo, por simulação, o contrato de comodado da mencionada fração celebrado entre as partes; - considerar válido o contrato dissimulado de arrendamento urbano para habitação celebrado entre as partes com referência à mencionada fração. No mais, julgou improcedentes os demais pedidos formulados na presente ação e na reconvenção deduzida na ação apensa, bem como o pedido de condenação do autor e reconvinte como litigante de má-fé. O autor não se conforma e recorre, terminando com as seguintes conclusões: «I - A douta sentença recorrida aplicou indevidamente a lei aos factos, violando, por erro de interpretação o disposto nos artigos 1094º, 1097º nº1, 236º e 238º do Código Civil. II - Verifica-se pois uma manifesta contradição entre a matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida e a decisão de julgar improcedente o pedido reconvencional deduzido pelo ora recorrente. III - A douta sentença deu como provado que as partes, sob a aparência do negócio celebrado (comodato), pretenderam antes celebrar um outro contrato, designadamente um contrato de arrendamento urbano para habitação. IV - Tendo sido dado como provado que a cedência a título de arrendamento seria temporária, pelo que deveria aplicar-se a regra geral do artigo 1094 nº 3 do Código Civil. V - Ou seja, o contrato de arrendamento objeto dos presentes autos tem que ser considerado como celebrado por prazo certo e pelo período de cinco anos. VI - Foi dado como provado (no ponto 17 da matéria dada como provada) que a Ré ficou de restituir ao autor a fração quando este o solicitasse. VII - Conforme resulta provado nos autos (ponto 12 da matéria dada como provada) o ora recorrente em 29 de Agosto de 2022 comunicou à inquilina que pretendia proceder à denúncia da relação contratual existente. VIII - Tal comunicação não pode deixar de ser interpretada como uma declaração inequívoca de que o ora recorrente se opunha a qualquer renovação do contrato de arrendamento e que pretendia a restituição do locado. IX - Face à matéria de facto dada como provada e atenta a decisão de considerar válido o contrato de arrendamento celebrado pelas partes, não pode deixar de se considerar que assistia ao senhorio o direito de impedir a renovação automática do contrato mediante mera comunicação ao arrendatário, nos termos do disposto no artigo 1097 nº1 do Código Civil. X - Atenta a matéria dada como provada nos pontos 12, 17, 21 e 22, não pode deixar de se considerar que em Agosto de 2022 o Réu-reconvinte/senhorio comunicou à Autora/inquilina que se opunha a qualquer renovação do contrato de arrendamento vigente e que legitimamente pretendia a cessação da relação contratual existente. XI - Atento o acordado entre as partes e dado como provado nos presentes autos não pode deixar de se concluir que a declaração negocial emitida pelo senhorio com a carta enviada à inquilina apenas pode ser interpretada como a vontade expressa e inequívoca de por termo ao contrato de arrendamento e não permitir qualquer renovação. XII - Não podia a douta sentença recorrida deixar de ter em consideração a matéria de facto que deu como provada (nomeadamente nos pontos 12, 17, 21 e 22) e assim julgar procedente o pedido reconvencional formulado pelo Réu-Reconvinte, reconhecendo a caducidade do contrato de arrendamento celebrado pelas partes com efeitos a partir do termo da renovação operada em 11 de Maio de 2020 e como tal condenar a autora (ora recorrida) a proceder à restituição do locado ao seu proprietário até ao dia 11 de Maio de 2025, atenta a vontade expressa e comunicada do senhorio de se opor a qualquer nova renovação e pedido de entrega da fração objeto dos presentes autos. XIII - Deve pois ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que atento a matéria de facto dada como provada, julgue procedente o pedido reconvencional deduzido pelo Réu-Reconvinte e reconheça a caducidade do contrato de arrendamento celebrado pelas partes por oposição à sua renovação e condene a inquilina a proceder à restituição do locado verificada a caducidade do contrato em 11 de Maio de 2025. Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e consequentemente revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que julgue procedente o pedido reconvencional formulado nos autos com as legais consequências, com o que se fará JUSTIÇA!» A aqui ré respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência. Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito. Objeto do recurso Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC). Tendo em conta o teor daquelas, importa aferir o regime jurídico aplicável à cessação do contrato celebrado entre as partes e a aptidão da carta de 29 de agosto de 2022 para produzir os efeitos nela pretendidos (pôr fim à referida relação contratual). II. Fundamentação de facto Mostram-se provados os seguintes factos: 1. O autor “A” é dono e legítimo proprietário da fração autónoma designada sob a letra “C”, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º …26, da freguesia de Alcabideche. 2. A referida fração faz parte de um prédio urbano constituído em propriedade horizontal denominado “Vivenda…”, correspondente a uma moradia, composta de quatro pisos e um anexo com dois pisos, sendo o primeiro piso em cave (piso um), e o último em sótão. 3. A fração designada pela letra “C” corresponde ao piso 3, sito no 1.º andar da Rua… n.º …, em Alvide, concelho de Cascais, com a tipologia T2, tendo uma área bruta privativa de 75 m2 e uma área bruta dependente de 55 m2. 4. A fração designada pela letra “C” encontra-se inscrita a favor do autor na Conservatória do Registo Predial pela Ap. 1 de 15-01-2004, por aquisição por partilha. 5. O autor, por si e antepossuidores, vem utilizando, pagando contribuições e retirando utilidades da referida fração, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma pública e pacífica, convencido de exercer um direito próprio, como proprietário e tendo título para tal, de forma ininterrupta há mais de 20 anos. 6. A ré “R” nasceu no dia 16-08-1948, e encontra-se reformada. 7. Em 2015, por escrito datado de 11-05-2015, assinado pelo autor e pela ré “R”, denominado “Contrato de Comodato”, os aí outorgantes, aí denominados, respetivamente, como “comodante” e “comodatário” emitiram as seguintes declarações: «(…) Celebram um contrato de comodato nos seguintes termos: O Senhor “A” cede à Senhora D. “R”, em regime de comodato o primeiro andar do prédio urbano situado na Rua…, … em Alvide, Freguesia de Alcabideche, Concelho de Cascais, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo n.º …95, conforme licença de construção/utilização n.º ...5, emitida pela C.M. Cascais, com as seguintes cláusulas: 1º - O Sr. “A” empresta a título gratuito à Sra. D. “R”, o primeiro andar atrás indicado, para esta residir e por isso terá direito ao uso e habitação do referido andar. 2.ª - Durante a vigência do contrato o comodatário obriga-se a: a) Guardar e conservar em bom estado o espaço emprestado; b) Não aplicar o espaço a fim diferente do autorizado; c) Não ceder a outrem, a qualquer título, o uso ou posse do espaço emprestado; d) Permitir, após aviso prévio, a realização de quaisquer benfeitorias que o comodante queira fazer no espaço, se entender conveniente e de melhor utilidade para o fim a que se destina; d) Durante a vigência do contrato, suportar as despesas habituais de manutenção, eletricidade, água, telefones, TV/internet, etc. 3.ª - O presente contrato caduca trinta dias após a receção pelo comodatário de carta registada com aviso de receção enviada pelo comodante. 4º - O presente contrato regula-se em tudo quanto não estiver especialmente regulado neste documento, pelo disposto nos artigos 1129º a 1141º do Código Civil.» 8. Desde maio de 2015, a ré habita na fração designada pela letra “C”, fazendo da mesma a sua residência, liquidando mensalmente como contrapartida pelo seu uso a quantia de € 300,00. 9. Tal quantia destinada ao autor era habitualmente entregue pela ré, em numerário, em mão, à ex-mulher do autor, “B”, residente num anexo sito no logradouro da moradia referida em 2., a qual entregava à ré um escrito com os dizeres “Recebi 300 €”, seguidos da data respetiva, coincidindo, normalmente, com uma data anterior ao dia 8 de cada mês, e no qual apunha uma rubrica. 10. Noutras ocasiões, nomeadamente, por a ré se encontrar temporariamente em Espanha, esse valor destinado ao autor era transferido pela ré para uma conta bancária titulada e de que era beneficiária a referida “B”. 11. Para além disso, a ré suportava a quantia mensal relativa ao consumo de eletricidade da luz da escada comum da moradia, com uma periodicidade bimestral, correspondente a 1/3 do valor da fatura, no valor aproximado de cerca de € 2,00, que o autor recolhia na caixa de correio onde a ré deixava tal quantia. 12. Por carta registada datada de 29-08-2022, remetida pelo autor e dirigida à ré, com o assunto “Denúncia de contrato de comodato celebrado em 11.05.2015”, o autor declarou o seguinte: «Exmª Senhora, Serve a presente para na qualidade de proprietário do imóvel sito na Rua… nº … em Alvide comunicar a V. Exªs que de acordo com o disposto na clausula terceira do contrato de comodato celebrado em 11.05.2015, venho por este meio proceder à denuncia do contrato com efeitos a partir de 30 de Setembro de 2022, dando assim cumprimento ao prazo de aviso prévio previsto contratualmente e bem assim ao formalismo fixado. Até à data de 30 de Setembro de 2022 deverá V. Exº proceder assim à entrega da supra referida fração autónoma livre de pessoas e bens e no estado em que se encontrava aquando do início do contrato. Com efeito, o signatário tem necessidade de voltar a habitar no seu imóvel, daí a presente denuncia do contrato de comodato. Sem outro assunto de momento, subscrevo-me Com os melhores cumprimentos,» 13. A ré, não obstante ter recebido essa carta, não procedeu à desocupação e entrega da fração ao autor no prazo por este indicado, nem o fez até à presente data. 14. A ré, face à subsequente recusa do autor em receber a quantia de € 300,00 relativa à contrapartida pela utilização da fração, passou a proceder ao seu depósito na Caixa Geral Depósitos, a título de “depósito de renda”, indicando o autor como senhorio e a própria como arrendatária. 15. O autor e a ré, emitiram as declarações a que se refere o documento denominado “contrato de comodato referido em 7., com vista a criarem a aparência de celebração de um contrato de comodato da fração, quando não era sua vontade que o uso do imóvel pela ré fosse a título gratuito. 16. O autor e a ré, de comum acordo, decidiram emitir tais declarações e criar essa aparência, por forma a que o rendimento obtido pelo autor a título de contrapartida pela utilização do imóvel não fosse sujeito a tributação em sede de IRS, nomeadamente, mediante a aplicação de uma taxa liberatória de 28%, assim prejudicando o Estado, beneficiando a ré, por sua vez, de uma redução na renda inicialmente proposta de € 450,00 para € 300,00, mensais. 17. O autor e a ré acordaram, ao invés e apesar da aparência criada com a emissão das referidas declarações, que o autor dava de arrendamento à ré a referida fração, destinada à sua habitação, por um período temporário, com início em Maio de 2015, pela renda mensal de € 300,00, ficando a ré de restituir ao autor a fração quando este o solicitasse. 18. O autor anteriormente ao acordado com a ré, sempre havia procedido ao arrendamento da fração a terceiros mediante a celebração de contratos de arrendamento. 19. O autor aceitou atuar nos termos referidos em 7., 15., 16. e 17., no seguimento da ré ter declarado não poder pagar o valor de € 450,00 mensais a título de renda, tendo esta sugerido a emissão de declarações como constam do documento referido 7., com a fixação de uma renda mensal de € 300,00, sem haver lugar a tributação de IRS, no que este anuiu. 20. O autor e a ré não se conheciam anteriormente, tendo a ré tomado conhecimento da fração se encontrar para arrendar, através de terceiros. 21. O autor remeteu a missiva referida em 14. a solicitar à ré a entrega da fração, por pretender voltar a residir em Alvide, e assim estar mais próximo a zona de Lisboa onde tem familiares. 22. O autor pretendia regressar à fração, onde anteriormente morara, após a respetiva passagem à reforma, e deixar de habitar em Quiaios, na Figueira da Foz, onde viveu durante vários anos. 23. A fração designada pela letra “C” tem, pelo menos desde setembro de 2022, um valor locativo não inferior a € 500,00 mensais. III. Apreciação do mérito do recurso III.1. Do contrato celebrado entre as partes Ficou decidido em 1.ª instância que o contrato celebrado entre as partes em 11 de maio de 2015 foi um contrato de arrendamento urbano para habitação, situação que está definitivamente decidida, não sendo objeto da presente apelação. Na sentença, o tribunal a quo apreciou, e bem, ter sido celebrado e vigorado entres as partes um contrato de arrendamento urbano para habitação, com prazo certo de cinco anos. Quanto um tribunal afirma por sentença a existência de um contrato de arrendamento que, até essa afirmação, era incerta por as partes não concordarem sobre o tema e inexistir um contrato de arrendamento escrito (podendo existir um contrato verbal ou um escrito com outro conteúdo), o tribunal tem de estabelecer também qual o conteúdo essencial desse contrato de arrendamento para que, de futuro as parte saibam que regime se lhe aplica. Tratando-se de contrato de arrendamento urbano para habitação, é fundamental explicitar o tipo de contrato quanto à duração – se com prazo certo ou por duração indeterminada – porque desse tipo depende o regime a aplicar às questões suscitadas nos autos e, a manter-se a relação arrendatícia, no futuro. O tribunal a quo fê-lo na parte da sentença intitulada «Do contrato dissimulado e respectiva validade» (pp. 17 a 21), da qual passamos a extratar o essencial: «Ao contrato dissimulado de arrendamento aplica-se, pois, o regime legal previsto nos arts. 1022.º e ss., 1064.º, 1067.º, 1075.º, e 1094.º e ss. do CC, por força da salvaguarda contida no art. 241.º, n.º 1, do CC, que manda aplicar as respectivas regras legais a esse contrato, sendo certo que, tendo-se apenas provado, terem acordado que essa cedência seria temporária, deverá aplicar-se a regra geral do art. 1094.º, n.º 3, do CC, que, relativamente a contratos de arrendamento para habitação, dispõe que «no silêncio das partes, o contrato considera-se celebrado por prazo certo, pelo período de 5 anos». Assim, no caso presente, encontrando-se reunidos todos os elementos característicos desde contrato, quais sejam, a concessão do uso da coisa imóvel, o fim a que se destina, e o valor da contrapartida devida pelo locatário correspondente à renda, forçoso é concluir-se pela celebração de um contrato de arrendamento, conforme alegado na acção apensa. No entanto, ainda que se verifique, pela reunião dos respectivos elementos substantivos, a existência de um contrato dissimulado de arrendamento e a sua sujeição ao correspondente regime legal aplicável, daí não decorre necessariamente a sua validade. Esta sempre dependerá, no caso de se tratar de um contrato de natureza formal, de ser observada a forma legalmente exigida para esse negócio (cfr. art. 220.º do CC), sendo a este respeito, e a propósito das exigências de forma do contrato dissimulado, pertinente convocar a interpretação que tem sido dada pela doutrina e pela jurisprudência ao repectivo regime legal. Com efeito, dispõe o art. 241.º, n.º 2, do CC, que: «Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.» (…) Quer isto dizer que, apesar da fórmula legal adoptada, “não se impõe, no entanto, a observância da forma legalmente exigida para a celebração do negócio dissimulado. Para a validade do negócio dissimulado de natureza formal, cabe indagar acerca do possível aproveitamento da forma observada na celebração do negócio simulado. Releva, para este efeito, apelar ao sentido da exigência de forma, isto é, esclarecer o que deve estar abrangido pela forma e o que não se justifica que fique a coberto desta” (cfr. Ana Filipa Morais Antunes, ob. cit., pág. 559). (…) Ora, no caso presente, estando em causa um negócio simulado de comodato de uma fracção, com cedência do uso da mesma, que não se encontra sujeito a forma escrita, nos termos do art. 219.º, do CC, e um contrato dissimulado de arrendamento urbano, que, na data da sua celebração (Maio de 2015), encontrava-se, qualquer que fosse o seu prazo, sujeito a forma escrita, nos termos do art. 1069.º do CC (na redacção da Lei n.º 31/2012, de 14-08, sem estar consagrada a possibilidade do mesmo ser demonstrado por outra prova, nos termos do n.º 2, aditado pela Lei n.º 13/2019, de 12-02), entende-se que a validade formal deste se encontra assegurada pela forma escrita que foi adoptada para o contrato simulado, sem que seja, efectivamente, necessária a emissão de uma contra-declaração que respeitasse a forma legal (v.g. um outro documento contendo as declarações do negócio dissimulado). Com efeito, mesmo para quem não adopte a tese mais “radical” de acordo com a qual “Os elementos do contrato real (dissimulado) que não estejam cobertos pela forma do negócio aparente (simulado) ficam inevitavelmente expressos, e tornam-se assim aparentes e cognoscíveis, na sentença que declara a simulação, cuja forma é mais solene (…)”, recusando a respectiva nulidade por apelo ao princípio do favor negotii (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., pág. 688), sempre se terá de concluir que as exigências de forma previstas para o contrato de arrendamento, se encontram asseguradas pelos elementos que constam do documento escrito formalizado pelas partes. (…) Concluímos, pois, que no caso presente, encontra-se preenchida a exigência de que “para que o negócio dissimulado seja válido, os elementos essenciais ou identitários do negócio devem estar abrangidos pela forma observada na celebração negócio simulado (…)” (cfr. Ana Filipa Morais Antunes, ob. cit., pág. 559). E, com efeito, encontrando-se asseguradas pela forma adoptada no contrato simulado, as exigências de forma que justificam que o contrato dissimulado tenha tal formalidade, e abrangendo esta os elementos do negócio que justificariam essa forma escrita, concluímos pela validade do contrato dissimulado, nos termos e para os efeitos de preenchimento dos requisitos do art. 241.º, n.º 2, do CC» (negritos e sublinhados acrescentados). Ou seja, o tribunal apreciou vigorar entre as partes um válido contrato de arrendamento urbano para habitação com prazo certo de cinco anos. Como começou por afirmar, tendo-se apenas provado que as partes acordaram que a cedência do imóvel seria temporária, deverá aplicar-se a regra geral do art. 1094.º, n.º 3, do CC, que, relativamente a contratos de arrendamento para habitação, dispõe que «no silêncio das partes, o contrato considera-se celebrado por prazo certo, pelo período de 5 anos». Esta norma foi aditada pela Lei 31/2012, de 14 de agosto (até aí e desde NRAU-2006, a regra era a inversa, no silêncio das partes, o contrato tinha-se como celebrado por duração indeterminada), determinando na sua redação originária que o contrato se considerava celebrado com prazo certo, pelo período de dois anos. Com a Lei 43/2017, de 14 de junho, o prazo passou a cinco anos. Importa, ainda, ter em consideração que, ressalvada estipulação em contrário (que, in casu, não existiu), o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração (art. 1096.º, n.º 1, do CC). III.2. Da aptidão da carta de 29-08-2022 para produzir os efeitos nela pretendidos Se a apreciação do contrato foi certeira, já na da cessação do contrato de arrendamento efetivada pelo autor, a sentença recorrida errou. Está assente que vigorou entre as partes um contrato de arrendamento urbano para habitação com prazo certo de cinco anos, que teve início em 11-05-2015, contrato que se renovou automaticamente em 11-05-2020, por novo período de cinco anos, por força do disposto no n.º 1 do art. 1096.º do CC. Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art. 1097.º do CC, o senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima de 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos, como é o caso. A antecedência referida reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação (assim se clarifica no n.º 2 do mesmo artigo e diploma). Para que o contrato termine no termo do prazo em curso basta que o senhorio comunique com a referida antecedência de 120 dias a sua intenção de lhe pôr termo. Se o fizer, estará a opor-se à renovação do contrato (ou à prorrogação do prazo do mesmo) e o contrato terminará no termo do prazo. Discute-se se termina por denúncia – por a cessação decorrer de um direito potestativo extintivo, de exercício livre e incondicional, que produz efeitos ex nunc (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 9.ª ed., Almedina, 2001, reimp. 2003, pp. 288-289, Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, 3.ª ed., Almedina, 2015, pp. 307-313, João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, II, 5.ª ed., Almedina, 1992, pp. 278-279) –, se por uma atípica caducidade (Joaquim de Sousa Ribeiro, «O novo Regime do Arrendamento Urbano: Contributos para uma análise», in Direito dos Contratos – Estudos, Coimbra Editora, 2007, p. 335), se por uma causa autónoma, um tertiun genus, entre denúncia e caducidade (Jorge Pinto Furtado, Comentário ao regime do arrendamento urbano, 4.ª ed., Almedina, 2022, pp. 438-445). Certo é que a esta forma de cessação se chama com frequência denúncia, digamos num sentido impróprio, reservando a denúncia em sentido técnico (próprio ou estrito) para a cessação unilateral e discricionária de contratos de duração indeterminada. Segundo entendemos, a oposição à renovação consiste numa declaração potestativa extintiva, unilateral e discricionária, como a denúncia, mas que gera a extinção de um contrato com termo automaticamente prorrogável, para operar no fim do prazo em curso. Por carta registada de 29-08-2022, remetida pelo autor e dirigida à ré, com o assunto “Denúncia de contrato de comodato celebrado em 11.05.2015”, o autor declarou, entre o mais, «proceder à denuncia do contrato com efeitos a partir de 30 de Setembro de 2022». Trata-se de uma inequívoca vontade de pôr fim à relação contratual, quanto antes. Fê-lo para uma data em que não lhe era lícito fazê-lo e, quando assim é, só pode entender-se que o faz para o momento em que por lei lhe é permitido fazê-lo. Claro que, na sua missiva, o autor referiu denunciar o «contrato de comodato» celebrado em 11 de maio de 2015. Formalmente, para as partes, o contrato que tinham formalizado era um contrato de comodato, pelo que apenas assim o autor se lhe podia referir. Porquanto acima exposto, esse contrato de comodato corporizou-se, na realidade, num contrato de arrendamento, sendo esta a única relação que as partes mantiveram. A relação contratual entre as partes sempre foi apenas uma, pelo que a missiva de 29 de agosto de 2022 é unívoca quanto ao contrato a que põe termo, independentemente do nome que lhe atribuiu. Ao recebê-la, a ré sabia que o contrato cessava, se não na data que o autor referiu, na data de termo do prazo em curso, ou seja, a 11 de maio de 2025. IV. Decisão Face ao exposto, julgamos a apelação totalmente procedente e, como tal, procedente o pedido reconvencional formulado na ação apensa, reconhecendo que o contrato que vigorou entre as partes terminou em 11/05/2025 e condenando a aqui ré e apelada a entregar ao aqui autor e apelante a fração autónoma designada pela letra “C”, sita no 1.º andar da Rua… n.º …, em Alvide, freguesia de Alcabideche, concelho de Cascais. Custas pela apelada. Lisboa, 23/10/2025 Higina Castelo Susana Maria Mesquita Gonçalves Rute Sobral |