Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10046/2008-1
Relator: FOLQUE DE MAGALHÃES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
CLÁUSULA GERAL
NULIDADE
REDUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. Apesar da declaração de nulidade da reserva de propriedade, em face do direito substantivo, não pode desconsiderar-se o facto de tal direito estar registado, já que, nos termos do art. 7º do C.R.P., o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
2. Nos termos do art. 8º seguinte, seu nº 1, os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo, pelo que não tendo sido pedido o cancelamento do registo, o facto constante do registo não pode ser impugnado..
3. Consideram-se excluídas dos contratos singulares as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes (art. 8º d) do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro).
4. Por força do disposto no art. 292º do C.Cv. e porque a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio (salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada), considera-se válida a parte do Contrato relativa às condições especiais desde que não resulte provado nenhum facto que permita concluir que a R. não teria contratado se soubesse que a parte das Condições Gerais se encontrava invalidada.
FG
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO:
1.1. Das partes:
1.1.1. Autora:
1º - S, S.A.
1.1.2. Ré: 1º - C.
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1.2. Acção e processo:
Acção declarativa com processo ordinário.
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1.3. Objecto da apelação:
1. A sentença de fls. 146 a 159, pela qual a acção foi julgada procedente.
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1.4. Enunciado sucinto das questões a decidir:
1. Da nulidade da cláusula de reserva de propriedade.
2. Da nulidade das cláusulas insertas no contrato após a assinatura da R.
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2. SANEAMENTO:
Foram colhidos os vistos.
Não se vislumbram obstáculos ao conhecimento do mérito do recurso, pelo que cumpre apreciar e decidir.
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3. FUNDAMENTOS:
3.1. De facto:
Factos que este Tribunal considera provados:
Os constantes de fls. 150 e 151, para os quais se remete, nos termos do art. 713º nº 6 do C.P.C., por não terem sido impugnados nem serem de alterar, oficiosamente.
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3.2. De direito:
1. Da nulidade da cláusula de reserva de propriedade.
2. Apoda a Recorrente de nula a cláusula de reserva de propriedade, por não ter sido a A. quem vendeu o veículo à R., e, assim sendo, não poder reservar para si um direito de que não é titular.
3. Importa ver se é assim.
4. Na verdade, por força do disposto no art. 408º nº 1 do C.Cv., em regra, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato.
5. Entre outras excepções, encontra-se a referida logo no art. 409º seguinte, apodada de reserva de propriedade. Segundo o seu nº 1, nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
6. Resulta, assim, do exposto que é pressuposto estrutural da figura da reserva de propriedade o alienante ser titular do direito de propriedade sobre a coisa a alienar. Só nesse caso, o alienante pode manter, reservar, para si, o direito de propriedade na sua esfera jurídica, alterando a consequência normal dos actos translativos de propriedade que é, como se disse e resulta do disposto no art. 408º, dar-se a dita transferência por mero efeito do contrato.
7. No caso dos autos, ficou provado que a A. apenas financiou a compra do veículo pela R., tendo o mesmo sido fornecido (entenda-se, vendido) por P … (não legível) (ver doc. de fls. 13 Contrato de Financiamento, no apenso Cautelar). Ou seja, a A. não alienou veículo que se encontrasse na sua titularidade.
8. Assim sendo, consentaneamente com o que acima se disse, substantivamente, não podia reservar para si o respectivo direito de propriedade.
9. Por isso, a cláusula de reserva de propriedade inserta no contrato de fls. 13 é nula, por contrária à lei, nos termos do nº 1 do art. 280º do C.Cv.
10. Em prol da posição contrária defendida nas alegações da Recorrente, não colhe a invocação do disposto na alínea f) nº 3 do art. 6º do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro, porquanto, dada a estrutura inabalável da figura da reserva pressupor a titularidade do direito reservado, aquele dispositivo apenas tem aplicação nos casos em que a entidade financiadora é simultaneamente titular do direito de propriedade sobre o bem em causa.
11. É este o entendimento acolhido no recentíssimo Acórdão Unificador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 10/2008, publicado na I Série do Diário da República de 14 de Novembro de 2008 98 (embora não seja essa a parte sumariada).
12. Também, não se verificou a sub-rogação do direito à reserva de propriedade por parte do alienante em favor da A., a financiadora do negócio.
13. Não se provou nenhum facto nesse sentido.
14. Apesar da declaração de nulidade da reserva de propriedade, em face do direito substantivo, poder-se-á desconsiderar o facto de tal direito estar registado?
15. Nos termos do art. 7º do C.R.P., o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
16. Por outro lado, nos termos do art. 8º seguinte, seu nº 1, os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo.
17. Do exposto resulta que, enquanto se mantiver o registo da reserva de propriedade, há que considerar que o direito à reserva existe e que é seu titular a A.
18. Como não foi pedido o cancelamento do registo, o facto constante do registo não pode ser impugnado.
19. Por isso, em resumo, por força do direito registal, há que reconhecer que a A. é titular do direito de propriedade reservado sobre o veículo dos autos.
20. E, assim sendo, uma vez que se provou a falta de pagamento definitivo da quantia mutuada, há que reconhecer à A. o direito de reaver o veículo para si, isto é, de retomar a posse efectiva sobre o mesmo, condenando-se a R. à entrega do mesmo à A.
21. Julga-se, assim, improcedente a posição da Recorrente quanto a esta questão.
22. Da nulidade das cláusulas insertas no contrato após a assinatura da R.
23. Invoca a Recorrente a nulidade das cláusulas contratuais insertas após o local onde procedeu à assinatura do Contrato, por violação do disposto no art. 8º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.
24. Compulsando o Contrato (fls. 13 e 14 do Apenso), verifica-se que a R. assinou o mesmo na fl. 13, em baixo, à esquerda.
25. Nessa folha, contêm-se apenas as cláusulas especiais (embora dela não conste tal referência expressa).
26. Porém, o Contrato segue para a fl. 14, onde constam (agora expressamente enunciadas) as Condições Gerais do Financiamento para Aquisição a Crédito.
27. Nesta folha, a R. não apôs a sua assinatura.
28. As Condições Gerais encontram-se pré-impressas totalmente em letra de máquina, de tamanho reduzido.
29. Ora, dispõe o art. 8º d) do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, que se consideram excluídas dos contratos singulares as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes.
30. É manifestamente o caso dos autos. Ambos os contratantes assinaram o Contrato na folha 13, seguindo-se a folha 14, sem qualquer assinatura, folha essa que deve ser considerada como formulário, dado o seu carácter pré-impresso.
31. Assim sendo, todas as cláusulas constantes de fls. 14 consideram-se excluídas do Contrato, por força da disposição acima referida.
32. Com isso, há que considerar completamente inaproveitável o Contrato?
33. Crê-se que não, por força do disposto no art. 292º do C.Cv.
34. Diz esta disposição que a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.
35. No caso dos autos, a parte válida do Contrato é a relativa às condições especiais do contrato, e não resulta provado nenhum facto que permita concluir que a R. não teria contratado se soubesse que a parte das Condições Gerais se encontrava invalidada.
36. Deste modo, nos termos da disposição referida há apenas que reduzir os termos do contrato ao constante antes da assinatura da R., ou seja, ao que consta de fls. 13.
37. Esta consequência, porém, não implica que se postergue o núcleo essencial das cláusulas contratais, nomeadamente, aquelas donde consta a obrigação da R. pagar o montante emprestado em sessenta prestações mensais, nem a referência à constituição da reserva de propriedade, sem prejuízo da declaração de nulidade dessa cláusula.
38. Em face dos pedidos formulados pela A. na petição inicial de resolução do contrato de financiamento, de condenação da R. a reconhecer que o referido veículo pertence à A., bem como na condenação da sua restituição a esta, cancelando-se a menção de registo a favor da R., a invalidade das cláusulas constantes de fls. 14 não afecta a procedência dos mesmos.
39. Julga-se, por isso, quanto às suas consequências, improcedente a posição da Recorrente quanto a esta questão.
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4 DECISÃO:
1. Por tudo o exposto, nega-se provimento à apelação, e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
2. Custas pela parte Recorrente (art. 446º nº 2 CPC).
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Lisboa, 9.12.2008
Relator (Eduardo Folque de Sousa Magalhães)
1º Adjunto (Maria Alexandrina de Almeida Branquinho Ferreira)
2º Adjunto (Eurico José Marques dos Reis)