Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12854/22.5T8LSB.L1-6
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PAGAMENTO DO PREÇO
FIXAÇÃO DE PRAZO
EFICÁCIA
CÔNJUGES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: No âmbito de um contrato de compra e venda, a fixação pelo vendedor marido de um prazo razoável para pagamento do preço mediante comunicação dirigida apenas ao comprador marido, é ineficaz relativamente à compradora mulher, em termos de se considerar para todos os efeitos não cumprida a obrigação (art.º 808.º, do Código Civil), quando se desconhece se, quando e como poderá ter sido conhecida por esta.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
1.1. Os autores AA e BB demandaram os réus CC e DD, peticionando o seguinte:
a) Ser decretada a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, com os devidos efeitos;
b) Determinar-se o cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR.;
c) Serem os RR. condenados a desocupar imediatamente os imóveis livres e devolutos;
d) Serem os RR. condenados ao pagamento de indemnização pela ocupação dos imóveis desde junho de 2021 até a data da efetiva entrega dos mesmos, em quantia não inferior a € 1.000,00 por mês, € 500,00 por cada um;
e) Serem os RR. condenados a proceder aos reparos necessários, assim como às reposições de todas as coisas existentes nos prédios, à data da ocupação dos imóveis ou, em alternativa,
f) Pagarem todas as despesas que os AA. tiverem de efetuar de forma a reporem os imóveis, assim como todas as benfeitorias e bens que existiam nos imóveis e de que são legítimos proprietários, no mesmo estado em que se encontravam à data da ocupação, ressalvadas as deteriorações inerentes a prudente utilização.
Alegaram para o efeito que venderam aos réus dois prédios urbanos, com reserva de propriedade. Sucede que os compradores não pagaram o preço aos vendedores no prazo combinado. Os vendedores intimaram os compradores a pagarem o preço, no prazo de 15 dias, sob pena de considerarem como definitivo o incumprimento.
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1.2. Os réus contestaram, impugnando os factos centrais da petição e pedindo a sua absolvição dos pedidos. Em reconvenção, peticionaram a condenação dos autores a pagarem, a título indemnizatório:
a) € 80.128,00 (oitenta mil cento e vinte e oito euros) a título de lucros cessantes dos anos de 2022, 2023 e 2024, pelo não exercício da actividade legal de acolhimento de idosos nos imóveis;
b) € 10.901,78 (dez mil novecentos e um euros e setenta e oito cêntimos), correspondentes ao valor suportados pelos Réus com a criação da sociedade e com as diversas obras de benfeitorizarão, adaptação, pintura e outras reparações realizadas nos imóveis;
c) € 897,32 (oitocentos e noventa e sete euros e trinta e dois cêntimos), correspondente às despesas com a escritura de compra e venda e registos subsequentes, suportadas pelos Réus;
d) € 2.951,86 (dois mil novecentos e cinquenta e um euros e oitenta e seis cêntimos), referente ao pagamento, pelos Réus, do Imposto Municipal sobre as Transmissões; e
e) € 1.200,00 (mil e duzentos euros), no valor suportado pelos Réus com o pagamento do Imposto de Selo devido pela compra e venda dos imóveis.
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1.3. Os autores impugnaram a reconvenção.
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1.4. No dia 19/6/2023, os autores requereram a junção aos autos da comunicação enviada, em 20 de janeiro de 2022, aos RR. por carta registada com aviso de receção, melhor invocada como “Doc.2” no artigo 12.º e seguintes da petição inicial. Porquanto, só agora foi detetado que documento não seguiu juntamente à p.i. por lapso do mandatário ou, porventura, falha no carregamento do ficheiro na plataforma CITIUS aquando da apresentação da p.i. em juízo.
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1.5. Os autos foram saneados. Após julgamento, foi decidido julgar a ação improcedente e a reconvenção improcedente, absolvendo-se os RR. do pedido e os AA. da reconvenção. Mais foi decidido absolver os RR. do pedido de condenação por litigância de má fé formulado pelos AA..
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1.6. Os autores recorrem da sentença e apresentam as seguintes conclusões:
A. Foi decidido na sentença ora em crise dar como não provado que:
a) Em 20.01.2022, os AA. enviaram aos RR. uma carta registada com aviso de receção, subscrita por Advogado em representação dos AA., intimando os RR. para, no prazo de 15 dias após a receção da carta, procederem ao pagamento da totalidade do preço (12º p.i.).
b) Nessa carta, que foi recebida pelos RR., os AA. deram conhecimento aos RR. que o não pagamento da totalidade do preço no prazo fixado na carta teria como efeito considerar-se como definitivo o incumprimento da obrigação, “com as necessárias consequências legais” (13º p.i.).
c) Os AA. declararam ainda, nessa carta, que após o termo do referido prazo de 15 dias, sem que fosse liquidado o valor em dívida, os RR. deveriam desocupar os prédios, no prazo máximo de 5 dias úteis, entregando aos AA. as respetivas chaves e meios de acesso, mantendo todos os bens móveis propriedade dos AA. “de igual modo e condições às existentes antes do início do usufruto” (15º p.i.).”
B. Na motivação dessa decisão o Tribunal “a quo” invoca que a “A carta aludida pelos AA. é o doc. 2 indicado na p.i., que foi junto a fls. 91 a 92.
Porém, este facto mostra-se impugnado pelos RR. na sua contestação e não foram juntos
aos autos os respetivos registo e aviso de receção, pelo que não existe nos autos prova do envio, nem da receção da carta.
Acresce que a carta que os RR. enviam aos AA. em fevereiro não faz qualquer referência a esta carta dos AA., sendo que o R. contextualizou esta carta na dinâmica do pedido de empréstimo formulado junto da Caixa Geral de Depósitos, esclarecendo que recebeu a resposta a este pedido em fevereiro de 2022.
Em face de todo o exposto, não se julgou provado o envio e receção da carta dos AA. de
que aqui se cura.”
C. Sucede, porém, essa decisão, e a respetiva motivação, merecem, com todo o respeito, total censura, porquanto o envio e a receção da comunicação (admonitória) que os Recorrentes enviaram aos Recorridos, em 20-01-2022, e, bem assim, o próprio teor da mesma, encontra-se devidamente provados por prova documental junta aos autos (carta junta aos autos em 19-06-2023, e talão de registo dos CTT e aviso de receção assinado pelos Recorridos juntos à p.i.).
D. Os Recorrentes alegaram, nos artigos 12.º, 13.º e 14.º, da p.i. (petição inicial), o envio, em 20-01-2022, de uma carta registada com aviso de receção dirigida aos Recorridos, que foi devidamente rececionada pelos mesmos, e que serviu, em suma, para comunicar a mora dos Recorridos no cumprimento da obrigação a que se vincularam (pagamento do preço de compra e venda dos imóveis), e, por sua vez, o incumprimento definitivo da obrigação com a consequente resolução do contrato de compra e venda dos imóveis, caso os Recorridos não efetuassem o pagamento do preço em falta no prazo máximo de 15 (quinze) dias úteis a contar da receção dessa comunicação.
E. Para prova dos factos alegados nos artigos 12.º, 13.º e 14.º, da p.i., os Recorridos juntaram à p.i., sob a designação de “Doc. 2”, o Talão dos CTT e o aviso receção respetivo, devidamente assinado pelos Recorridos, alusivos à carta enviada pelos Recorrentes, em 20-01-2022, para os Recorridos, conforme se comprova com cópia dos mesmos juntos à p.i. com a ref.ª 41934642. (Cfr. documentos juntos à p.i com a ref.ª 41934642).
F. Em 19-06-2023, certamente por mero lapso do mandatário ou, porventura, falha no carregamento do ficheiro na plataforma CITIUS aquando da apresentação da p.i. em juízo, foi detetado que não foi junto aos autos a cópia da mencionada comunicação/carta, e, como tal, o mandatário dos Recorrentes requereu a junção da mesma nessa data (19-06-2023), conforme se comprova por requerimento junto aos autos com a ref.ª 45888032
(ref.ª CITIUS 36290124).
G. Junção essa que, atente-se, após devidamente notificada aos Recorridos, não foi objeto de qualquer tipo de impugnação, nomeadamente sobre o teor e a genuinidade da carta, e sobre o envio e a receção da mesma por parte dos Recorridos.
H. Quando o Tribunal “a quo” alega na sua motivação que “este facto mostra-se impugnado pelos RR. na sua contestação e não foram juntos aos autos os respetivos registo e aviso de receção, pelo que não existe nos autos prova do envio, nem da receção da carta”, está a referir-se a uma mera impugnação genérica, sem qualquer posição definida perante esse facto, como é imposto pelo disposto no n.º 1, do art.º 574.º, do CPC, sob a epígrafe “Ónus de impugnação”.
I. E a verdade é que, na contestação, os Recorridos deduziram uma mera impugnação genérica sobre esse facto, ou seja, como já se disse, sem impugnar o envio, a receção, a letra e/ou a genuinidade desse documento (carta enviada pelos Recorrentes) ao abrigo do disposto no art.º 444.º, do CPC, e, bem assim, sem qualquer referência a essa prova documental, uma vez que se limitaram a alegar no artigo 1.º da contestação que “Os Réus impugnam toda a factualidade alegada nos artigos 1.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 24.º, 26.º, 27.º, 28.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, 44.º e 45.º da Douta Petição Inicial, uma vez que a mesma não corresponde à realidade.”
J. É manifesto que não assiste razão ao Tribunal “a quo” quando julgou como não provado os factos ínsitos nas als. a), b) e c), da secção “B) Factos Não Provados”, porquanto esses factos estão, devida e inequivocamente, provados por prova documental cabal constante no processo – Doc. 2 da p.i. composto por carta, talão de registo dos CTT e aviso de receção assinado pelos Recorridos –, a qual impõem uma decisão sobre esses pontos de facto ora impugnados – als. a), b) e c), da secção “B) Factos Não Provados” – diversa da recorrida.
K. A missiva propriamente dita, junta aos autos em 19-06-2023, o talão de registo dos CTT e o aviso de receção assinado pelos Recorridos, juntos aos autos com a p.i, comprovam, sem margem para dúvidas, que em 20-01-2022, os Recorrentes enviaram aos Recorridos uma carta registada com aviso de receção a intimar os Recorridos para, no prazo de 15 dias após a receção da carta, procederem ao pagamento da totalidade do preço dos imóveis, e, concomitantemente, deram conhecimento aos Recorridos que o não pagamento da totalidade do preço no prazo fixado teria como efeito considerar-se como definitivo o incumprimento dessa obrigação, com as necessárias consequências legais (resolução do contrato e entrega do imóvel), e que após o termo do referido prazo, sem que fosse liquidado o valor em dívida, os Recorridos deveriam desocupar os imóveis, no prazo máximo de 5 dias úteis, entregando aos Recorrentes as respetivas chaves e meios de acesso, mantendo todos os bens móveis propriedade dos Recorridos de igual modo e condições às existentes antes do início do usufruto dos mesmos.
L. Ao invés do decidido pelo douto Tribunal “a quo”, a decisão que, no entender dos Recorrentes, deve ser proferida sobre as questões de facto ora impugnadas, deve ser a de considerar como provados, como todas as consequências legais, os seguintes pontos de facto, por estarem devidamente corroborados pela prova documental supra invocada, a saber:
“a) Em 20.01.2022, os AA. enviaram aos RR. uma carta registada com aviso de receção, subscrita por Advogado em representação dos AA., intimando os RR. para, no prazo de 15 dias após a receção da carta, procederem ao pagamento da totalidade do preço (12º p.i.).
b) Nessa carta, que foi recebida pelos RR., os AA. deram conhecimento aos RR. que o não pagamento da totalidade do preço no prazo fixado na carta teria como efeito considerar-se como definitivo o incumprimento da obrigação, “com as necessárias consequências legais” (13º p.i.).
c) Os AA. declararam ainda, nessa carta, que após o termo do referido prazo de 15 dias, sem que fosse liquidado o valor em dívida, os RR. deveriam desocupar os prédios, no prazo máximo de 5 dias úteis, entregando aos AA. as respetivas chaves e meios de acesso, mantendo todos os bens móveis propriedade dos AA. “de igual modo e condições às existentes antes do início do usufruto” (15º p.i.).”
M. Considerados provados esses factos, a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” deve ser totalmente revogada, porquanto esses pontos de facto alteram, por completo, o fundamento factual e de direito da mesma, na medida em que fica provada a comunicação, que os Recorrentes dirigiram aos Recorridos, de incumprimento definitivo do contrato de compra e venda dos imóveis e, por conseguinte, de resolução do mesmo,
N. Devendo, assim, em seu lugar, ser proferida douta decisão pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que declare integralmente como procedente e como provado o pedido vertido pelos Recorrentes na sua p.i., a saber:
a) Ser decretada a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, com os devidos efeitos;
b) Determinar-se o cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR.;
c) Serem os RR. condenados a desocupar imediatamente os imóveis livres e devolutos;
d) Serem os RR. condenados ao pagamento de indemnização pela ocupação dos imóveis desde junho de 2021 até a data da efetiva entrega dos mesmos, em quantia não inferior a € 1.000,00 por mês, € 500,00 por cada um;
e) Serem os RR. condenados a proceder aos reparos necessários, assim como às reposições de todas as coisas existentes nos prédios, à data da ocupação dos imóveis ou, em alternativa,
f) Pagarem todas as despesas que os AA. tiverem de efetuar de forma a reporem os imóveis, assim como todas as benfeitorias e bens que existiam nos imóveis e de que são legítimos proprietários, no mesmo estado em que se encontravam à data da ocupação, ressalvadas as deteriorações inerentes a prudente utilização.”
O. Devendo ainda ser declarada a condenação dos Recorridos no pedido de condenação em litigância de má-fé deduzido na réplica, e, por seu turno, condenados ao pagamento de uma multa a fixar pelo douto Tribunal, por terem deduzido, contra os Recorrentes, um pedido de pagamento de indemnização quando sabem que a mesma é infundada e, como tal, não terem direito à mesma.
Nestes termos, nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., o presente recurso de apelação deve ser considerado totalmente procedente e por provado e, em consequência, ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” e, em sua substituição, proferida douta decisão pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que:
a) Declare como provados os seguintes factos:
Em 20.01.2022, os AA. enviaram aos RR. uma carta registada com aviso de receção, subscrita por Advogado em representação dos AA., intimando os RR. para, no prazo de 15 dias após a receção da carta, procederem ao pagamento da totalidade do preço (12º p.i.); Nessa carta, que foi recebida pelos RR., os AA. deram conhecimento aos RR. que o não pagamento da totalidade do preço no prazo fixado na carta teria como efeito considerar-se como definitivo o incumprimento da obrigação, “com as necessárias consequências legais” (13º p.i.); e
Os AA. declararam ainda, nessa carta, que após o termo do referido prazo de 15 dias, sem que fosse liquidado o valor em dívida, os RR. deveriam desocupar os prédios, no prazo máximo de 5 dias úteis, entregando aos AA. as respetivas chaves e meios de acesso, mantendo todos os bens móveis propriedade dos AA. “de igual modo e condições às existentes antes do início do usufruto” (15º p.i.),
E, por conseguinte,
b) Declare integralmente como procedente, e por provado, o pedido vertido pelos Recorrentes na sua p.i. e na réplica, respetivamente, a saber:
• Ser decretada a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, com os devidos efeitos;
• Determinar-se o cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR.;
• Serem os RR. condenados a desocupar imediatamente os imóveis livres e devolutos;
• Serem os RR. condenados ao pagamento de indemnização pela ocupação dos imóveis desde junho de 2021 até a data da efetiva entrega dos mesmos, em quantia não inferior a € 1.000,00 por mês, € 500,00 por cada um;
• Serem os RR. condenados a proceder aos reparos necessários, assim como à reposições de todas as coisas existentes nos prédios, à data da ocupação dos imóveis ou, em alternativa;
• Pagarem todas as despesas que os AA. tiverem de efetuar de forma a reporem os imóveis, assim como todas as benfeitorias e bens que existiam nos imóveis e de que são legítimos proprietários, no mesmo estado em que se encontravam à data da ocupação, ressalvadas as deteriorações inerentes a prudente utilização; e
• Ser declarada a condenação dos Recorridos em litigância de má-fé e, por seu turno, condenados ao pagamento de uma multa a fixar pelo douto Tribunal, por terem deduzido, contra os Recorrentes, um pedido de pagamento de indemnização quando sabem que a mesma é infundada e, como tal, não ter direito à mesma.
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1.7. Os réus responderam ao recurso e concluíram da seguinte forma:
I. Não assiste razão aos Autores, aqui Recorrentes, no recurso que interpõe da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo.
II. Alegam os Recorrentes, em suma, que a factualidade inserta nos pontos a) e b) da matéria dada como não provada na Douta Sentença recorrida, referente ao alegado envio de uma carta registada pelos Autores aos Réus, intimando estes para, no prazo de 15 dias após a recepção da alegada carta, procederem ao pagamento da totalidade do preço, e também referente à alegada recepção dessa carta pelos Réus, deveria ter sido dada como provada pelo Tribunal a quo.
III. Os Recorrentes, sob o artigo 12.º da petição inicial, alegaram o envio, pelos mesmos, em 20 de Janeiro de 2022, de uma carta registada aos Réus, aqui Recorridos, intimando estes para, no prazo de 15 dias após a recepção da alegada carta, procederem ao pagamento da totalidade do preço, juntando um documento, ao que nomeiam de Doc. 2.
IV. Verificados os documentos juntos pelos Recorrentes com a sua petição inicial, constata-se que, da mesma, não consta qualquer carta, tampouco com o teor alegado no artigo 12.º da petição inicial, mas apenas um mero talão dos CTT e uma fotografia em que se vê, parcialmente e não na sua totalidade, um aviso de recepção, aparentemente assinado pelo Réu CC e que não se encontra assinado pela Ré DD.
V. Isto é, contrariamente ao que os Recorrentes alegam no ponto 12 das suas Doutas Alegações de Recurso, o alegado aviso de recepção não se encontra “devidamente assinado pelos Recorridos”, não figurando da mesmo qualquer assinatura que seja associável à Ré DD.
VI. Os Réus, ora Recorridos, em sede de contestação, impugnaram essa factualidade, isto é, a matéria alegada no artigo 12.º da petição inicial.
VII. Assim, dos documentos juntos pelos Recorrentes com a petição inicial não resulta provado o alegado no artigo 12.º da mesma petição inicial, não sendo um mero registo e um alegado aviso de recepção, sem a carta e o seu teor, meio de prova bastante para que se possa dar como provado o teor da alegada carta que os Recorrentes alegam no referido artigo 12.º da petição inicial, carta essa que os mesmos não juntaram.
VIII. De tais documentos também não resulta que o alegado aviso de recepção se encontra “devidamente assinado pelos Recorridos”, não constando do mesmo qualquer assinatura que possa ser imputada à Ré DD, contrariamente ao alegado pelos Recorrentes.
IX. Como se referiu já, os Réus impugnaram essa factualidade em sede de contestação, apresentada em 30/09/2022, contestação essa que foi notificada aos Autores, aqui Recorrentes, em 15/12/2022.
X. Em 01/02/2023, os Autores apresentaram a sua réplica, na qual não juntam nem protestam juntar a alegada carta.
XI. Apenas em 19/06/2023, mais de um ano após a entrada da petição inicial, os Autores procederam à junção de uma alegada carta, alegando “lapso do mandatário ou, porventura, falha no carregamento do ficheiro na plataforma CITIUS aquando da apresentação da p.i. em juízo”.
XII. Nos termos do n.º 1 do artigo 423.º do Código de Processo Civil, “os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes”.
XIII. Os Autores não o fizeram, pois, na petição inicial, não juntaram qualquer carta dirigida aos Réus, tampouco nos moldes alegados no artigo 12.º da sua petição inicial.
XIV. Estabelece o n.º 2 do referido artigo que, “se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado”.
XV. Os Autores não provaram que não puderam oferecer esse documento com o respectivo articulado.
XVI. Os Autores podiam e deviam ter oferecido esse documento com a petição inicial.
XVII. Os Autores não podem alegar a existência de lapso do mandatário na não junção da referida carta, ou falha no carregamento do ficheiro na plataforma CITIUS, porquanto a petição inicial nem sequer foi apresentada pelo mesmo mandatário que veio juntar a alegada carta em 19/06/2023.
XVIII. O princípio do inquisitório consagrado no artigo 411.º do Código de Processo Civil não permite a derrogação do regime legal estabelecido, designadamente, no artigo 423.º do Código de Processo Civil, quanto ao momento para a apresentação e admissão da prova documental, sob pena de violação dos princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes.
XIX. Era responsabilidade dos Autores juntarem esse documento com a petição inicial.
XX. A junção da alegada carta, que nem sequer está assinada pelos Autores, em momento posterior à contestação, e à replica, atenta, inclusivamente, contra os princípios da prova, da protecção jurídica e da segurança do processo, na medida em que conferiu aos Autores a possibilidade de poderem fazer uma nova carta, com o teor que acharam conveniente, e juntá-la ao processo, alegando que a carta que enviaram em 20 de Janeiro de 2022 era essa, ou que a mesma tinha tal teor, o que não se pode conceder.
XXI. Essa alegada carta, contrariamente ao alegado pelos Recorrentes, está apenas endereçada e dirigida ao Réu CC e não à Ré DD, pelo que nunca poderia produzir qualquer efeito quanto a esta, nem é meio de prova suficiente para se concluir que essa carta foi remetida a ambos os Réus, como pretendem os Recorrentes levar à matéria provada.
XXII. Os Recorrentes não juntaram com essa alegada carta os respectivos talão dos CTT e aviso de recepção, dirigido ao Réu CC, pelo que não provaram, para além do seu conteúdo, que a mesma foi expedida e recepcionada pelo alegado destinatário, tampouco recepcionada pela Ré DD.
XXIII. O teor dessa alegada carta está em contradição com o talão dos CTT e com o alegado aviso de recepção que os Autores juntaram com a petição inicial, que têm também a referida Ré DD como destinatária, no respectivo campo, contrariamente ao que sucede com a referida carta, apena dirigida ao Réu CC.
XXIV. O teor dessa alegada carta e a sua efectiva recepção pelos Réus não resulta provado por qualquer outro dos meios de prova tidos em consideração pelo Tribunal a quo, e foi efectivamente impugnado pelos Réus na sua contestação, não tendo, sequer em audiência de julgamento sido produzida qualquer prova testemunhal nesse sentido.
XXV. Ainda que a factualidade que os Recorrentes pretendem ver levada à matéria provada tenha sido efectivamente impugnada pelos Réus, sempre beneficia o Tribunal a quo do princípio da livre apreciação da prova.
XXVI. O julgador é livre, ao apreciar as provas, ainda que tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
XXVII. O princípio da livre apreciação da prova é um princípio atinente à prova, que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz.
XXVIII. O Tribunal a quo, servindo-se do princípio da livre apreciação da prova e atendendo às regras da experiência comum e à prova carreada para os autos, entendeu, e bem, que não resulta provado que tal carta tenha sido remetida pelos Autores e efectivamente recepcionada pelos Réus.
XXIX. Os Recorrentes juntaram dois documentos distintos, em momentos distintos:
a) Na petição inicial juntaram um mero talão dos CTT e uma fotografia em que se vê, parcialmente e não na sua totalidade, um aviso de recepção, aparentemente assinado pelo Réu CC e que não se encontra assinado pela Ré DD, não juntando os Autores, com esses documentos, qualquer carta, muito menos dirigida aos Réus; e
b) Em 19/06/2023, juntaram uma alegada carta, não acompanhada de qualquer registo ou aviso de recepção e apenas dirigida ao Réu CC e não à Ré DD. XXX. Daí nunca se poderá considerar como provada a matéria dos pontos a), b) e c) dos Factos Não Provados da Douta Sentença, como pretendem os Recorrentes.
XXXI. Isto é, nunca se poderá considerar como provado que “a) Em 20.01.2022, os AA. enviaram aos RR. uma carta registada com aviso de receção, subscrita por Advogado em representação dos AA., intimando os RR. para, no prazo de 15 dias após a receção da carta, procederem ao pagamento da totalidade do preço (12º p.i.)”.
XXXII. Nem, tampouco, se poderá considerar provado que “b) Nessa carta, que foi recebida pelos RR., os AA. deram conhecimento aos RR. (…)”.
XXXIII. Em suma, os Réus impugnaram expressamente o alegado no artigo 12.º da petição inicial, onde os Autores alegam o envio dessa carta aos Réus e o teor da mesma, e, do teor da documentação junta pelos Autores não resulta que tal carta tenha sido remetida a qualquer um dos Réus, tampouco a ambos os Réus, e que tenha sido recepcionada por qualquer um dos Réus, tampouco por ambos os Réus.
XXXIV. Ainda que, por mera hipótese académica, e sem conceder, se considerasse que essa carta foi efectivamente expedida e recepcionada pelo Réu CC, nunca se poderia considerar provado que a mesma foi remetida à Ré DD e por ela recepcionada.
XXXV. Não tendo sido remetida à Ré DD, nem recepcionada pela mesma, qualquer carta de interpelação, nos moldes alegados pelos Autores, nunca tal interpelação produziria qualquer efeito em relação a essa Ré, que foi também parte no contrato de compra e venda em questão, que é casada com o Réu CC e tem a sua casa de morada de família no imóvel em discussão nestes autos, e é Ré nos presentes autos.
XXXVI. Tal comunicação teria de ser dirigida separadamente aos cônjuges (a cada um deles, separadamente), não bastando uma única comunicação dirigida a ambos ou apenas a um deles, sob pena de ineficácia, por aplicação do princípio da igualdade jurídica estabelecida no artigo 36.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
XXXVII. Acresce que, a carta que os Réus enviaram aos Autores em Fevereiro não faz qualquer referência a esta alegada carta dos Autores, sendo que o Réu contextualizou esta carta na dinâmica do pedido de empréstimo formulado junto da Caixa Geral de Depósitos, esclarecendo que recebeu a resposta a este pedido em Fevereiro de 2022, como bem entendeu o Tribunal a quo.
XXXVIII. Assim, a acção teria, sempre, que ser julgada improcedente, devendo ser mantida a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, com todas as consequências legais. Termos em que deverá o presente recuso, apresentado pelos Autores AA e BB, ser julgado totalmente improcedente, por infundado e não provado, com todas as consequências legais.
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1.8. Notificados das contra-alegações de recurso, os autores vieram apresentar um terceiro articulado na presente apelação (Ref.ª 51764870), invocando que os recorridos “invocaram factos novos nas suas alegações que reproduzem uma “contestação encapotada” e, por conseguinte, uma exceção dilatória que pode obstar a que se conheça do mérito da causa, por dar lugar à absolvição da instância”.
Sucede, porém, que o articulado não é admissível, nomeadamente porque:
1.º A apelação comporta apenas um requerimento de interposição do recurso que contém obrigatoriamente a alegação do recorrente e um requerimento de resposta à alegação. No presente caso, não há lugar a qualquer outro articulado, nomeadamente porque não foi requerida pelo recorrido a ampliação do objeto do recurso – art.º 638.º, do Código de Processo Civil; e,
2.º Os autores ficcionaram que a resposta dos apelados configura uma contestação e que aí foram alegados factos que configuram uma exceção dilatória que pode obstar a que se conheça do mérito da causa, por dar lugar à absolvição da instância. Tal ideia não tem qualquer sustentação em qualquer norma ou princípio processual. A resposta dos apelados nunca poderá consubstanciar uma contestação, explicita ou encapotada, porque a lei de processo não lhe reconhece tal virtualidade.
Se os apelados pretendiam opor alguma excepção dilatória superveniente, deveriam tê-la explicitado – cfr. Rui Pinto, in Manual do Recurso Civil, AAFDL, 2025, volume I, pág. 309. O que não sucedeu, com os apelados ou com os apelantes.
Se os apelados pretendiam introduzir algum novo facto, teriam que o fazer de forma explicita e nos moldes legais. E se pretendiam a ampliação do objeto do recurso, deveram fazer tal requerimento: “No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação” – cfr. art.º 636.º, do Código de Processo Civil.
Em suma, os apelantes apenas pretendem ter injustificadamente a primeira e a última palavra sobre a questão central do recurso. Tal não é legalmente admissível ou conforme a um processo equitativo.
Pelo exposto, indefere-se o mencionado articulado apresentado pelos apelantes, nos termos do disposto nos artigos 638.º e 652.º, alínea f), do Código de Processo Civil.
As custas no anómalo incidente são a suportar pelos apelantes, que deram causa ao mesmo.
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1.9. Não há outras questões prévias.
As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões dos recorrentes e centram-se na impugnação da matéria de facto e na consequente procedência dos pedidos.
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2. Fundamentação.
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2.1. A questão da impugnação da matéria de facto.
O artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente o dever de obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/1/2022 sintetizou a orientação jurisprudencial aí seguida, ao referir que: “No que diz respeito ao enquadramento processual da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou no acórdão de 3/12/2015, proferido no processo n.º 3217/12.1 TTLSB.L1.S1 (Revista-4.ª Secção), que se o Tribunal da Relação decide não conhecer da reapreciação da matéria de facto fixada na 1.ª instância, invocando o incumprimento das exigências de natureza formal decorrentes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, tal procedimento não configura uma situação de omissão de pronúncia.
No mesmo acórdão refere-se que o art.º 640.º, do Código de Processo Civil exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.
Acrescenta-se que este conjunto de exigências se reporta especificamente à fundamentação do recurso não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1e 2 do CPC.
Por fim, conclui-se que versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados.
A propósito do conteúdo das conclusões, o acórdão de 11-02-2016, proferido no processo n.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1 (Revista) – 4.ª Secção, refere que tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna (Cfr. no mesmo sentido acórdãos de 18/02/2016, proferido no processo n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03/03/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12/05/2016, proferido no processo n.º 324/10.9 TTALM.L1.S1 e de 13/10/2016, proferido no processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, todos da 4.ª Secção).
No que diz respeito à exigência prevista na alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o acórdão de 20-12-2017, proferido no processo n.º 299/13.2 TTVRL.C1.S2 (Revista) - 4ª Secção, afirma com muita clareza que quando se exige que o recorrente especifique «os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», impõe-se que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 417/18.4T8PNF.P1.S1.
O inconformismo do recorrente foi concretizado relativamente aos factos julgados não provados na sentença e que tinham sido alegados nos artigos 12.º, 13.º e 15.º, da petição inicial - cfr. conclusões A) a L) do douto recurso de apelação.
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2.2. Idem, a questão da intimação do réu marido e da ré mulher.
Os factos em causa carecem de ser escalpelizados com um mínimo de pormenor e rigor. De acordo com a causa de pedir expressamente invocada pelos autores na petição inicial, estes arrogam-se o direito à resolução do contrato de compra e venda de dois prédios urbanos. Os factos em causa prendem-se com a recusa do cumprimento da prestação (in casu, o pagamento do preço convencionado pelas partes), por motivo desta não ter sido realizada dentro do prazo que foi fixado pelos credores (os aqui autores apelantes) – art.º 808.º, do Código Civil.
Os autores invocam que intimaram os réus a cumprir com a sua obrigação, sob pena de se considerar o incumprimento como definitivo. Tal invocação revelou-se ser excessivamente genérica e nada rigorosa, em face dos elementos que os próprios apresentaram perante o tribunal, senão vejamos:
Os autores indicaram que juntaram com a petição inicial 2 documentos, mas aludem na realidade a três documentos (contrato de compra e venda; interpelação admonitória e aviso de recepção). Não obstante, os autores revelaram-se displicentes quanto à instrução documental da petição inicial, como se alcança inequivocamente do requerimento que apresentaram mais de um ano depois – cfr. ref.ª 36290124 de 19/6/2023 – relativamente um desses documentos.
A sentença recorrida alude expressamente à circunstância de não terem sido juntos aos autos os registos e aviso de receção da carta em causa – cfr. pág. 24. Tal circunstância é amplamente disputada pelas partes na presente apelação, tendo os apelantes referido que: “os Recorridos juntaram à p.i., sob a designação de “Doc. 2”, o Talão dos CTT e o aviso receção, devidamente assinado pelos Recorridos, referentes à carta enviada pelos Recorrentes, em 20-01-2022, para os Recorridos, conforme se comprova com cópia dos mesmos juntos à p.i. com a ref.ª 41934642” – cfr. art.º 12.º.; e,
Os apelados referem que, “verificados os documentos juntos pelos Recorrentes com a sua petição inicial, constata-se que, da mesma, não consta qualquer carta, tampouco com o teor alegado no artigo 12.º da petição inicial, mas apenas um mero talão dos CTT e uma fotografia em que se vê, parcialmente e não na sua totalidade, um aviso de recepção, aparentemente assinado pelo Réu CC e que não se encontra assinado pela Ré DD”.
Os apelantes divagam na apelação sobre a irrelevância da impugnação genérica dos réus relativamente ao envio e recepção da carta que continha a intimação destes. Quanto a este ponto dir-se-á apenas que os réus cumpriram minimamente com o ónus de impugnação que actualmente lhes é imposto pelo artigo 571.º, do Código de Processo Civil, nomeadamente quando contestaram e afirmaram “Os Réus impugnam toda a factualidade alegada nos artigos 1.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 24.º, 26.º, 27.º, 28.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, 44.º e 45.º da Douta Petição Inicial, uma vez que a mesma não corresponde à realidade”. Não se trata de uma mera impugnação genérica, mas especificada: os réus indicaram separadamente os factos que impugnaram, por válida e eficaz remissão para os artigos da petição. Tomaram uma posição definida perante tais factos: são impugnados – cfr. art.ºs 571.º e 574.º, do Código de Processo Civil. Aliás, em face da redacção deste último artigo da lei processual, a tentativa de atribuir irrelevância à impugnação genérica deixou de fazer sentido.
E os autores não podem dirigir a forma como os réus contestam a acção. É claro que se poderá argumentar criticamente sobre a forma como os factos são impugnados, nomeadamente quando seria de esperar uma tomada de posição detalhada sobre alguns factos que são do domínio pessoal dos réus. No entanto, no caso dos autos, também se nota a evidente displicência dos próprios autores, que nem sequer juntaram com a petição o documento que suporta a intimação que alegam ter dirigido aos réus, apesar de aí aludirem expressamente à sua junção… Só mais de um ano após darem entrada à petição inicial é que os autores vieram aos autos juntar a cópia desse documento, invocando, de forma atabalhoada, que “só agora foi detetado que documento não seguiu juntamente à p.i. por lapso do mandatário ou, porventura, falha no carregamento do ficheiro na plataforma CITIUS aquando da apresentação da p.i. em juízo”. Como é evidente, a apreciação crítica sobre a posição dos réus quanto a este facto essencial não pode ser desligada da valorização igualmente crítica da postura dos autores: se estes pretendiam daqueles uma tomada de posição clara e definida sobre o envio da carta que alegam ter enviado, então deveriam ter logo apresentado o documento em causa. Os réus tomam posição quanto à petição em face dos elementos que a mesma contém e não necessariamente em face dos elementos que os autores omitem ou sonegam, por lapso do respectivo mandatário ou falha de carregamento do ficheiro na plataforma CITIUS aquando da apresentação da p.i. em juízo.
Por outro lado, também não se acolhem os argumentos da resposta dos apelados, relativamente à junção do documento em causa, que peca por tardia e desencontrada das regras de processo, nomeadamente em face da faculdade/ónus que resulta do disposto no artigo 423.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes. Na verdade, os autores aludem ao documento no respectivo articulado e até dizem que o juntavam com a petição. O que não sucedeu. A existir qualquer vicissitude ou impropriedade com a conduta dos autores relativamente à apresentação do documento em causa, competia aos réus exigir logo a sua exibição. É que com a citação e as notificações são sempre disponibilizados todos os elementos e cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto (…) – cfr. art.º 219.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Perante a falta de apresentação do documento que os autores referem no art.º 12.º, da petição inicial, e que aí disseram juntar, os réus podiam ter arguido a sua falta. Mas não o fizeram, nem o tribunal ordenou oficiosamente a respectiva apresentação. Além disso, os réus também tiveram a possibilidade de se pronunciarem aquando da ulterior apresentação do documento a que os autores aludem no art.º 12.º, da petição inicial. Mas decidiram que nada mais havia a acrescentar relativamente ao que já tinham dito na douta contestação.
O documento a que os autores aludem no art.º 12.º, da petição inicial, terá assim que ser considerado – como já foi expressamente ponderado na douta sentença –, apesar de só ter sido junto aos autos mais de um ano após a apresentação dessa petição. Esse documento que foi junto aos autos no dia 19/6/2023, consubstancia uma carta subscrita pelo Ilustre Advogado do autor AA, em nome deste, dirigida expressamente ao réu CC e só a este. Do teor dessa carta, parece que estamos apenas e tão só perante um negócio entre homens ou maridos… O vendedor marido intima o comprador marido para pagar o preço de cento e cinquenta mil euros, no prazo máximo de 15 dias úteis, sob pena de se considerar o não cumprimento definitivo da obrigação “com as necessárias consequências legais”.
Porém, ao contrário do que foi entendido na sentença, não se afigura que não tenham sido juntos aos autos os respetivos registo e aviso de receção da carta em causa. Por razões que se desconhecem, mas que eventualmente se prendem com as apresentadas pelos próprios autores no seu requerimento de 19/6/2023, o registo e o aviso de recepção não se encontram junto com a petição inicial no histórico do processo, apesar de constar do respectivo formulário o seguinte:
Doc. 5 – Comprovativo comprovativo assinado aviso de recepção - Imagem 0,09 MB; e,
Doc. 6 – Aviso comprovativo aviso de recepção Documento 0,20 MB (1 pág.).
Mas consultando o processo na plataforma Citius através da função “visualizar processo na origem”, constata-se que aí constam as imagens digitalizadas do comprovativo emitido pelos Correios do envio de uma carta registada endereçada aos réus no dia 20/1/2022. E ainda do recebimento dessa carta pelo destinatário, com a assinatura aposta de “CC”.
Os réus estão plenamente conhecedores destes documentos e expressamente reconheceram o “aviso de recepção, aparentemente (SIC) assinado pelo Réu CC e que não se encontra assinado pela Ré DD” – cfr. conclusão IV da douta resposta à apelação.
Como é evidente, o recebimento da carta pelo réu CC é um facto do seu domínio pessoal. Logo, os réus têm que tomar uma posição clara sobre o facto pessoal em causa e que foi expressamente alegado. E tomaram, impugnando-o. A posição dos réus revelou-se igualmente displicente, por omitir o que se impunha nestas circunstâncias: O réu assinou ou não assinou o aviso de recepção? O carteiro falsificou a sua assinatura? Logrou obter o n.º de identificação aí aposto? Como? O réu CC ficou-se pelas aparências: aparentemente assinou o aviso de recepção da carta enviada pelo mandatário dos autores. É quanto basta para que se considere que o réu CC recebeu uma carta enviada pelo mandatário dos autores, à luz do disposto no artigo 574.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não obstante a posição esquiva daquele.
Podemos ainda questionar, tal como na sentença recorrida, se essa carta seria a intimação cuja cópia foi finalmente apresentada pelos autores no dia 19/6/2022. Mas, então, se não se tratava dessa carta, quantas cartas registadas é que o Ilustre Mandatário dos autores dirigiu ao réu CC? E, se existem outras cartas dirigidas pelo Ilustre Mandatário dos autores ao réu CC, porque razão é que este não as exibiu prontamente nos autos, desmascarando o embuste e a má fé daqueles?
O réu CC também não esclareceu essas questões quando se prontificou a prestar declarações perante o tribunal no dia 18/3/2024. A lacónica impugnação do réu não é credível quanto à questão do recebimento e assinatura do aviso de recepção em face dos elementos que se evidenciam. Os autores é quem têm o ónus de alegar e provar a entrega da carta aos réus com a interpelação admonitória em causa, por consubstanciar um dos factos constitutivos do direito à resolução do contrato a que se arrogam – cfr. art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil. Em face do teor dos referidos documentos, entende-se que os autores demonstraram a interpelação do réu CC. A exibição de cópia da carta e do aviso de recepção com a assinatura do réu revela o cumprimento do ónus nesta parte. Não se vê que mais é que poderia razoavelmente ser exigido aos autores no que diz respeito à demonstração da entrega da carta de interpelação dirigida ao réu CC, tendo igualmente em consideração a posição largamente passiva e indiferente que este evidenciou nos autos (sem arguir a falsidade da assinatura no aviso de recepção, a falsidade da declaração do carteiro em como entregou a carta ao subscritor ou a menção dos elementos de identificação exarados nesse aviso de recepção).
A circunstância dos RR. terem enviado uma carta aos AA. em fevereiro em que não fazem qualquer referência à carta destes não se revela como um elemento decisivo, pois nessa altura o litígio já se evidenciara e tal circunstância frequentemente também gera um desencontro nos discursos, i. é as trocas de correspondência mais parecem conversas de surdos (ou de cegos).
Não obstante, não é de acolher a posição generalista e acrítica expressa na petição inicial. O que podemos razoavelmente considerar por demonstrado é o que está documentado, isto é que:
- Com data de 20 de Janeiro de 2022, o Sr. Dr. EE, agindo na qualidade de Mandatário do autor AA, dirigiu ao réu CC a carta cuja cópia foi junta aos autos no dia 19/6/2023, para este pagar o preço de cento e cinquenta mil euros, no prazo máximo de 15 dias úteis, sob pena de se considerar o não cumprimento definitivo da obrigação “com as necessárias consequências legais”, e ainda, caso não seja liquidado o valor global em dívida, “devem os senhores (SIC), no prazo máximo de cinco dias úteis, desocupar imediatamente os imóveis propriedade do meu constituinte”, e que,
- Tal carta foi recebida pelo réu CC, que assinou o respectivo aviso de recepção.
Tudo o mais alegado nesses artigos (os autores enviaram missiva; a missiva foi recebida pelos réus) não resulta da prova produzida, particularmente dos apontados documentos e qualquer dúvida sempre teria que ser resolvida contra os autores, em face do disposto no artigo 414.º, do Código de Processo Civil. Nada resulta em como a autora mulher e a ré mulher tenham tido qualquer intervenção nessa interpelação, visto que o “guião” apresentado nos autos só alude aos “protagonistas” masculinos, que não assumiram a representação real ou aparente das contraentes femininas. Os nomes indicados no aviso de recepção não consubstanciam a identidade dos declaratários. A identidade dos declaratários que é a que expressamente consta da carta e não do aviso de recepção (aliás, este nem fica sequer na posse e no conhecimento do destinatário, mas é devolvido ao remetente nos termos dos regulamentos postais). A interpelação para pagar é dirigida apenas a uma pessoa. E a interpelação para entregar os imóveis é equivocamente dirigida aos “senhores”. Nessa parte, a impugnação vai desatendida e julgam-se os factos não provados.
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2.2. Julga-se assim provado que:
1. Foi inscrita a aquisição, a favor dos AA., casados sob o regime da comunhão geral:
a) do prédio urbano destinado à habitação e logradouro, sito em Pegões, na Rua 1, freguesia de Pegões, Concelho de Montijo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Montijo, sob o n.º ..., da dita freguesia, inscrito na matriz da União das freguesias de Pegões, sob o artigo ..., pela Ap. 33, de 27.09.2001;
b) do prédio urbano destinado a comércio e logradouro, sito em Pegões, na Rua 1, freguesia de Pegões, Concelho de Montijo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Montijo, sob o n.º..., da dita freguesia, inscrito na matriz da União das freguesias de Pegões, sob o artigo ..., pela Ap. 34, de 27.09.2001 (1º p.i.).
2. Os RR. tiveram conhecimento da existência desta propriedade e de que a mesma se encontrava para venda ainda em França, onde residiam, em março de 2021, através de um anúncio numa agência imobiliária denominada PortugalRur (11º cont.).
3. Essa agência publicitava a venda de uma quinta no Montijo, com 20.000 m2, composta de uma casa de duas famílias, com terreno agrícola com numerosas árvores de fruto, oliveiras, um reservatório de água, painéis solares e outras valências e benfeitorias (12º cont.).
4. Nessa sequência, os RR. contactaram a referida agência imobiliária, na pessoa do Sr. FF (13º cont.).
5. Foi a partir desse contacto que se desenvolveram as negociações que levaram à celebração da escritura pública de compra e venda (14º cont.).
6. Os RR. informaram os AA. que teriam que recorrer a um crédito bancário para a aquisição dos imóveis, por não disporem do valor necessário para a celebração do negócio, tendo o negócio sido celebrado com esse pressuposto, que sempre foi do conhecimento dos AA. (8º cont.).
7. Os AA., por intermédio do seu Mandatário, informaram os RR. que para a obtenção do empréstimo bancário era melhor celebrar logo a escritura de compra e venda dos imóveis, com reserva de propriedade, ao invés de celebrarem contrato-promessa de compra e venda (9º cont.).
8. Os RR. acreditaram nos AA. e concordaram em realizar o negócio nos termos propostos pelos AA. (10º cont.).
9. Assim, no dia 23 de junho de 2021, por escritura pública, os AA. declararam vender aos RR. e estes declararam comprar, com reserva de propriedade, e livres de quaisquer ónus ou encargos, os seguintes imóveis:
a) Pelo preço de € 110.000,00, o prédio urbano destinado à habitação e logradouro, sito em Pegões, na Rua 1, freguesia de Pegões, Concelho de Montijo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Montijo, sob o n.º ..., da dita freguesia, inscrito na matriz da União das freguesias de Pegões, sob o artigo ...;
b) Pelo preço de € 40.000,00, o prédio urbano destinado a comércio e logradouro, sito em Pegões, na Rua 1, freguesia de Pegões, Concelho de Montijo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Montijo, sob o n.º ..., da dita freguesia, inscrito na matriz da União das freguesias de Pegões, sob o artigo ... (2º a 4º p.i.).
10. Mais consta da aludida escritura:
a) Que o preço acordado para a venda será pago até ao dia 31.12.2021;
b) Que a reserva de propriedade sobre os prédios manter-se-á até ao pagamento integral do preço acordado para a venda;
c) Que a reserva de propriedade funciona como condição suspensiva à produção de efeitos da venda e tem por objeto o pagamento integral do preço;
d) Que verificado o pagamento integral do preço, ou seja, verificada a condição suspensiva, obrigam-se a emitir um documento ou declaração por si assinada com reconhecimento presencial de assinatura, no qual darão quitação do valor integral, respeitante à compra e venda.
11. Foi ainda consignado na escritura que foi exibida certidão da escritura lavrada em 15.05.2001, no Cartório Notarial de Arraiolos, da qual consta que para o imóvel inscrito sob o artigo ... foi emitido o alvará de licença de habitação n.º 11, em 15.01.1996, e para o imóvel inscrito sob o artigo ... foi emitido o alvará de licença n.º 1353/88, em 20.10.1988, ambos pela Câmara Municipal do Montijo.
12. Os RR. suportaram as despesas com o pagamento da escritura de compra e venda e com os registos subsequentes, no valor de € 897,32; com o pagamento do Imposto Municipal sobre as Transmissões, no valor de € 2.951,86; e com o pagamento do Imposto de Selo, no valor de € 1.200,00, devidos pela compra e venda dos imóveis (78º cont.).
13. Antes da outorga da escritura, os RR. pediram aos AA. que lhes fosse concedido o acesso para iniciarem a mudança de residência de França para Portugal (7º p.i.).
14. Os AA. autorizaram a ocupação dos imóveis, facultando as respetivas chaves e o comando do portão de entrada (8º p.i.).
15. Os RR. passaram a usar os imóveis desde o início de junho de 2021, o que fazem até a
presente data (9º p.i.).
16. Após a realização da escritura de compra e venda e subsequentes atos de registo predial e de natureza fiscal, os RR. verificaram que os dois imóveis vendidos pelos AA. somam, na sua totalidade, a área de 9.900 m2 (15º cont.).
17. Nas inscrições matriciais relativas aos artigos 1822 e 1823 consta a indicação de que cada um dos prédios tem a área total de 4.950 m2, referindo-se na inscrição atinente ao artigo 1822 a área de implantação de um edifício de 125 m2 e na inscrição atinente ao artigo 1823 a área de implantação de um edifício de 116 m2 (16º e 23º cont.).
18. Os AA. alteraram o imóvel destinado ao comércio para espaço destinado à habitação, sem qualquer licenciamento e sem que tivessem averbado junto da Câmara Municipal essas alterações, a fim de obterem a respetiva licença (19º e 24º cont.).
19. Esta alteração é anterior à escritura de compra e venda (19º cont.).
20. Existe uma terceira construção, relativamente à qual os AA. não apresentaram aos RR. qualquer documentação que ateste a inscrição matricial ou o registo da mesma junto da competente conservatória do registo predial, nem foram exibidos esses documentos aquando da realização da escritura, assim como não foi exibida qualquer licença relativa a essa construção (26º cont.).
21. Os RR. tomaram a decisão de estabelecer no local um negócio de estabelecimento residencial para idosos (67º cont.).
22. Foi sempre esse o objetivo dos RR. com a aquisição dos imóveis, intenção essa que transmitiram aos AA. aquando das negociações prévias à celebração da escritura de compra e venda (68º cont.).
23. Para o efeito, criaram uma sociedade por quotas designada “Feliz Galanteio, Lda.”, pessoa coletiva n.º ..., cuja constituição foi inscrita no registo comercial sob a Ap. 118, de 15.09.2021, com o objeto social de “atividades desenvolvidas em lares, residências, centros de acolhimento temporário de emergência, acolhimento familiar e centros de noite, para pessoas idosas. Atividades de apoio social com alojamento, n.e.. Atividades de apoio social para pessoas idosas, sem alojamento, que compreende, nomeadamente, as atividades desenvolvidas em centros de dia e centros de convívio, para pessoas idosas. Inclui serviços de apoio domiciliário” (69º cont.).
24. Os RR. suportaram despesas com a criação da sociedade, no valor de € 576,70 (76º cont.).
25. E realizaram também, com vista à abertura do estabelecimento de ERPI (estabelecimento residencial para idosos), obras de pintura e outras reparações, nas casa-de-banho e painéis solares, que suportaram com o seu dinheiro, no valor de € 3.881,42 (76º cont.).
26. A sociedade comercial Feliz Galanteio, Lda., solicitou à Caixa Geral de Depósitos um empréstimo para pagamento do preço dos imóveis, o qual não foi concedido (21º cont.).
27. Ainda no decurso do prazo estipulado para o pagamento do preço, os AA. contactaram os RR., indagando quanto à previsão da data de pagamento (26º p.i.).
28. Os RR. remeteram aos AA. carta registada com aviso de receção, datada de 24 de fevereiro de 2022, da qual consta, designadamente, que: “(…) Nesta confluência, importa promover a legalização das construções referenciadas, promover os respetivos pagamentos junto da Câmara Municipal e da autoridade tributária - AT para que existam condições de aprovação do empréstimo para o pretendido pagamento.
Desde a escritura de compra e venda que habitamos na propriedade, fizemos obras de adaptação, pinturas entre outras reparações, e, recebemos todas as nossa mobílias de França com a expectativa de que os documentos da propriedade se encontravam em condições legais comparativamente ao existente no local.
Sucede que, apenas poderemos dar cumprimentos ao respectivo pagamento após a legalização designada por legalização à posteriori e promovendo os respetivos custos.
Estamos aos dias de hoje com conhecimento sobre a forma e o projeto a realizar para ultrapassar esta circunstância, com encargos no nosso entender da V/responsabilidade, uma vez que a venda apenas se pode concretizar na sua plenitude com a legalização do edificado e da sua afetação. (…)
Assim que estas irregularidades se resolverem, que são suscetíveis de resolução estaremos em condições de promover o pagamento integral e em conformidade. Ficamos aguardar V/prezadas notícias” (33º cont.).
29. [Aditado] Com data de 20 de Janeiro de 2022, o Sr. Dr. EE, agindo na qualidade de Mandatário do autor AA, dirigiu ao réu CC a carta cuja cópia foi junta aos autos no dia 19/6/2023, para este pagar o preço de cento e cinquenta mil euros, no prazo máximo de 15 dias úteis, sob pena de se considerar o não cumprimento definitivo da obrigação “com as necessárias consequências legais”, e ainda, caso não seja liquidado o valor global em dívida, “devem os senhores (SIC), no prazo máximo de cinco dias úteis, desocupar imediatamente os imóveis propriedade do meu constituinte”.
30. [Aditado] Tal carta foi recebida pelo réu CC, que assinou o respectivo aviso de recepção.
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2.3. A questão da resolução do contrato.
Não obstante, os factos ora aditados, entende-se que os mesmos não alteram o sentido e o alcance da sentença proferida.
Na realidade, persiste a displicência dos autores ao longo de todo este processo, que se reflete na circunstância de um dos dois vendedores ter apenas interpelado um dos dois compradores para realizar a prestação.
O artigo 808.º, do Código Civil, que fundamenta a pretensão dos autores quanto à resolução do contrato por perda do interesse do credor ou recusa de cumprimento, pressupõe que os autores fixassem um prazo razoável a ambos os réus para estes cumprirem a obrigação de pagar o preço. Porém, o acto em causa acabou por se restringir apenas aos maridos vendedor e comprador.
A fixação do prazo visa compelir os devedores no cumprimento da prestação ou tornar o incumprimento definitivo, facultando aos credores a resolução do contrato. Tal como sucede na resolução do contrato (art.º 436.º, do Código Civil), “a interpelação admonitória é uma declaração receptícia que contém três elementos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório para o cumprimento; admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida, se não ocorrer o adimplemento dentro desse prazo” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/10/2023, disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 1823/19.2T8FNC.L1.S1. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/4/2024, embora incidindo directamente sobre a resolução do contrato, também referiu que: “Por ser recetícia e pessoal, a declaração de resolução só pode operar relativamente à ora Autora com o recebimento da respetiva declaração de resolução, contando-se os efeitos da resolução da data em que esta declaração, segundo o princípio aplicável à eficácia das declarações de vontade recipiendas, produz efeitos. Na verdade, resulta do art. 224º, n.º 1 do Código Civil, que a declaração negocial que tem um destinatário se torna eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida (doutrina da receção). Nos termos gerais, não será necessário que a declaração chegue ao poder ou à esfera de ação do destinatário, se por qualquer meio foi dele conhecida. Adotaram-se, simultaneamente, os critérios da receção e do conhecimento, bastando que a declaração tenha chegado ao poder do declaratário (presumindo-se o conhecimento, neste caso, juris et de iure), mas provado o conhecimento não é necessário provar a receção para a eficácia da declaração. O que é necessário é que seja levada essa vontade de resolução ao conhecimento da outra parte, isto é, que se lhe comunique essa decisão de resolver, por qualquer meio de comunicação, desde que se possa fazer a sua prova, considerando-se o contrato rescindido a partir do momento em que a comunicação for recebida pelo destinatário”.
É verdade que a ora Autora assinou o aviso de receção da carta registada enviada pelo Sr. Administrador da Insolvência a seu marido, referida no ponto 7. Mas atuou como terceira em relação a esta missiva, assumindo a obrigação de a entregar prontamente ao seu destinatário (art. 228º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
Sendo assim, o ato de resolução operado por meio da carta registada referida no facto provado 7, recebida em 27.3.2012, não se tornou eficaz relativamente à ora Autora, nesta data.
E tornou-se eficaz em outra data? E qual?
Resultou provado que, pelo menos em 19.11.2020, a ora Autora tomou conhecimento da indicada resolução. Mas o ato de resolução não lhe foi dirigido, antes e apenas a seu marido.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume I, página 412, “esta declaração tem interesse porque marca o momento da resolução, mesmo que haja necessidade, posteriormente, de obter a declaração judicial de que o ato foi legalmente resolvido”.
Não tendo a si sido dirigida qualquer carta de resolução do negócio referido no facto provado 1, tinha a Autora obrigação de entender que a mesma se lhe dirigia, também? Isto é, perante o teor da indicada missiva, tinha a Autora obrigação de entender que o ato de resolução a si, também, se dirigia? E de reagir ao mesmo, se assim o entendesse?
Entendemos que não, por tudo quanto acabamos de salientar.
Efetivamente, estando em causa uma declaração pessoal e recetícia, a que consta do facto provado 7 apenas se dirigiu expressamente a CC e não à ora Autora. Em momento algum da indicada carta o nome da Autora ou esta são referidos, pelo que não podia a mesma entender (ou dever entender) que a mesma se lhe dirigia.
O que significa que ainda que a ora Autora tenha tomado conhecimento de tal declaração pessoal e recetícia, pelo menos, em 19.11.2020 (facto provado 22), ou como salientado na contestação, a título subsidiário, em 3.2.2021 (cfr. facto provado 14), ainda assim não estava obrigada a considerar que o mesmo, também, a si se dirigia, já que do texto da missiva em momento algum a mesma é referida.
Entende-se, por outro lado, que numa situação como a descrita, onde se pretende resolver um determinado negócio (o que acarreta graves consequências), as pessoas dos destinatários não podem deixar de ser completa e concretamente identificadas, sem permitir a superveniência de dúvidas.
E quem tem esse poder / dever de identificar concreta e completamente todos os destinatários, a quem deve dirigir a declaração de resolução, que é recetícia, é o administrador da insolvência”- disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 6896/11.3TBMAI-G.P1.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/2020, manifestou-se igualmente no sentido sentido da ineficácia da resolução do contrato por falta de demonstração do conhecimento pela mulher das comunicações dirigidas apenas ao marido – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 26150/16.3T8LSB.L1.S1.
Por último, convém igualmente salientar que o artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil, apesar de aludir expressamente à perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento, consagra igualmente o interesse do devedor, nomeadamente quanto ao prazo que razoavelmente for fixado pelo credor (o devedor está em mora, mas ainda assim poderá evitar que se considere para todos os efeitos não cumprida a obrigação). A ré mulher também terá interesse no prazo que o credor razoavelmente estabeleceu para o pagamento do preço, pelo que a interpelação admonitória que o Ilustre Mandatário do autor AA dirigiu apenas ao réu CC é ineficaz em relação àquela.
Em suma, os autores não demonstraram um dos fundamentos necessários à sua pretensão, nomeadamente a existência de uma interpelação admonitória dirigida à ré DD, com a consequente improcedência da apelação.
*
3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença.
3.2. As custas são a suportar pelos apelantes.
3.3. Notifique.

Lisboa, 25 de Setembro de 2025
Nuno Gonçalves
Gabriela de Fátima Marques
Vera Antunes