Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
948/22.1PCOER.L1-5
Relator: RUI COELHO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: IMesmo que a pronúncia não seja uma decisão que revele uma certeza dos factos para lá de qualquer dúvida, deverá sustentar-se em indícios suficientemente consistentes para demonstrar a culpabilidade do arguido e concluir pela previsível condenação e aplicação ao mesmo de uma pena;

IIPretende o Recorrente outra valoração da prova recolhida, mas não há qualquer lapso na fundamentação do Tribunal de Instrução;

IIINão cabe ao Tribunal da Relação um segundo juízo sobre a prova, mas apenas a correcção de algum vício que encontre na decisão;

IVPerante o princípio da livre apreciação da prova tal como consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, não será a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal.

(Sumário da responsabilidade do relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


No Juízo de Instrução Criminal de Cascais – J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi proferida decisão instrutória, com o seguinte dispositivo:
«Nesta conformidade não pronuncio o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, nº 1, al. a) do Código Penal, que lhe vem imputado no requerimento de abertura de instrução e, em consequência, determino o oportuno arquivamento dos autos. »

- do recurso -

Inconformada, recorreu a Assistente formulando as seguintes conclusões:
«1)–Entende, pois, a recorrente que as suas declarações, inicialmente enquanto vítima/testemunha e mais tarde na qualidade de assistente não foi valorado positivamente;
2)–Da mesma forma que foram incorretamente desvalorizados os depoimentos das testemunhas presenciais indicadas pela recorrente;
3)–Tendo sido também ignorados os documentos juntos pela recorrente, que a mesma considera alicerçarem as suas declarações;
4)–As declarações da recorrente, testemunhas ouvidas e documentos juntos permitem extrair indícios suficientes da prática do crime denunciado;
5)–O facto de estarmos perante a investigação de um crime que integra a criminalidade violenta, em momento algum, a primeira instância revelou um conhecimento mínimo das dinâmicas abusivas num contexto de violência doméstica, sensibilidade e, sobretudo, cuidado acrescido na análise dos meios de prova existentes;
Com o despacho de arquivamento e, consequentemente, com o despacho de não pronúncia, foram violados os arts. 124.º, 125.º, 163.º, todos do CPP.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, contando como sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, dado o reduzido mérito destas alegações, deverá ser dado provimento ao recurso apresentado pela ora recorrente, reapreciando-se os meios de prova existentes.»

- das respostas -

Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«1.– A assistente interpôs recurso da decisão de não pronúncia do arguido da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, alínea a) do C.P. proferida nos presentes autos.
2.– A apreciação da prova que o tribunal a quo efetuou em face do princípio da livre apreciação da prova é lógica e está devidamente suportada em face da prova indiciária produzida, e que não é contrária às regras da experiência comum, não se vislumbrando qualquer erro nessa mesma apreciação.
3.–A matéria de facto considerada como indiciariamente apurada na decisão recorrida não ofende as regras da experiência comum, antes se apresenta como possível, quer em função da prova produzida, quer à luz das regras da lógica.
4.–No nosso ordenamento jurídico vigora, como se sabe, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.° do Código de Processo Penal, de acordo com o qual, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção.
5.–Da leitura da decisão recorrida, constata-se que a prova indiciária produzida não permite criar um juízo seguro da prática dos factos pelo arguido na pessoa da assistente, na medida em que as suas declarações que imputam os factos em causa ao arguida não se encontram devidamente suportados na prova, uma vez que o arguido apresenta uma versão que contradita a versão daquela e no essencial as testemunhas o que sabem é o que a assistente lhe contou, sendo que a única testemunha que refere que o arguido desferiu um pontapé na perna da assistente trata-se do pai da ofendida que pela proximidade familiar que mantém com esta e sopesando toda a demais prova não é o suficiente do ponto de vista probatório.
6.–Quanto à prova documental junta aos autos e tal como já foi possível constatar no despacho de arquivamento “o que toda esta documentação extraída do processo nº 2236/22.4T8CSC demonstra é o elevado grau de litigiosidade entre BB e CC, relativo à casa de família, aos bens do casal, à filha comum e ao processo de divórcio, conflito esse que serve de contexto e pano de fundo que ajuda a perceber a existência do presente processo crime em que um cônjuge imputa ao outro a prática de crimes de violência doméstica”, pelo que a Mm.ª Juiz de Instrução concluiu e bem, que no caso em concreto verifica-se “um conflito entre arguido e assistente que não permite afastar as dúvidas que se nos suscitam quanto à concreta actuação do arguido de modo a considerar que houvesse algo mais do que um mau relacionamento entre um casal desavindo e em fase de separação.”
7.–A decisão recorrida não merece os reparos que lhe são apontados pela recorrente.»

Igualmente notificado para tanto, respondeu o Arguido concluindo nos seguintes termos:
«A)- A Assistente interpôs recurso da Decisão do Tribunal a quo que havia decidido não pronunciar o Arguido pela prática do crime de violência doméstica e já após o Ministério
Público haver determinado o arquivamento do processo;
B)- Na convicção do Arguido, o Recurso da Assistente mais não é do que a mera discordância quanto ao sentido da Decisão proferida, sustentando não terem sido considerados os elementos de prova constantes dos autos;
C)- Ora, o Tribunal recorrido analisou critica e exaustivamente a prova produzida no processo, quer na fase de Inquérito, quer na fase de instrução, tendo sido em resultado desse exercício que veio a proferir decisão de não pronuncia por considerar não terem sido recolhidos indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica;
D)- A Recorrente faz alusão no seu recurso à enorme gravidade do crime de violência doméstica e à necessidade de combate a esse flagelo;
E)- Estando o Recorrido absolutamente ciente da seriedade dos factos que comportam o crime de violência doméstica e do sofrimento que essas atuações ilícitas acarretam para as vítimas, o que considera dever ser também ferozmente combatido é o modo instrumental como algumas pessoas usam o processo penal, sob pena de se retirar dignidade e credibilidade aos testemunhos das verdadeiras vitimas deste crime hediondo;
F)- É o caso do presente processo, do qual a Assistente continua a fazer um uso censurável e altamente reprovável para, de forma instrumental, tentar obter vantagens no processo de responsabilidades parentais, com o propósito de ficar com a guarda da filha menor de ambos (o que nunca logrou conseguir) e de ficar integralmente com a casa de morada de família, a qual pertence a ambos por ter sido adquirida pelos dois em partes iguais, situação que até hoje não se encontra dirimida;
G)- Chegando a Recorrente ao ponto de, para além de mentir quanto aos factos que imputa ao Arguido, juntar ao processo fotografias da menor de apenas 4 anos seminua, para exibir picadas de mosquito na criança, na imoral tentativa de evidenciar negligência e falta de zelo por parte do seu pai, ora Recorrido;
H)- Ou mesmo de arrolar como testemunha do processo o seu outro filho menor (filho do exmarido da Recorrente), para que confirme as falsidades alegadas pela Assistente sua mãe, colocando-o abusivamente num papel e posição muitíssimo delicada e perigosa para o seu crescimento e desenvolvimento emocional e harmonioso;
I)- O presente processo é, portanto, movido (e mantido vivo) de forma instrumental por alguém que decidiu não aceitar o divórcio que foi pedido pelo seu marido (o aqui Recorrido), e que, ao invés de se conformar, decide iniciar uma cruzada de mentiras e falsidades, fazendo contra ele um uso reprovável do processo penal.
J)-Por todas os motivos aduzidos, o Despacho proferido pela Mma. Juiz de Instrução Criminal do Tribunal a quo não violou qualquer norma legal, não padece de qualquer imperfeição e deverá ser mantido nos seus precisos termos.»

Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito devolutivo.

Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da manutenção da decisão recorrida.

Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.

Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

Cumpre decidir.

OBJECTO DO RECURSO

Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]

Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a questões a decidir é a de saber se existe algum vício na valoração da prova recolhida que imponha diferente decisão quanto aos factos indiciados.

DA DECISÃO INSTRUTÓRIA RECORRIDA

Da decisão recorrida consta a seguinte fundamentação, no que à valoração dos meios de prova interessa:
«Importa agora analisar os elementos de prova existentes.
O processo iniciou-se com a queixa apresentada no dia 16.08.2022 por BB contra o seu marido, CC, de quem estava separada, alegando que este tentou forçar a entrada na sua residência, sita na ..., em ..., que já lhe subtraiu vários bens, que a agrediu com um pontapé na perna, quando o tentava impedir de levar mais bens, e que a tem pressionado e intimidado para que a denunciante assine contra a sua vontade um acordo de regulação das responsabilidades parentais relativas à filha comum, DD.
Posteriormente, a ofendida apresentou aditamentos à queixa. relatando que o denunciado danificou bens de casa da denunciante (uma porta), que a ameaçou agrediu, existindo um conflito relacionado com a guarda da filha do casal que despoleta o comportamento agressivo do denunciado contra a ofendida e contra a própria filha, DD, que, de acordo com a denúncia, terá sido agredida ou maltratada pelo pai, ostentando marcas das lesões no corpo.
A denunciante, BB foi inquirida fls. 60, tendo apenas indicado testemunhas dos factos, remetendo as suas declarações para o depoimento escrito que juntou fls. 62 a 69, onde confirmou os factos já relatados na denúncia.
Foram também inquiridas as testemunhas indicadas pela denunciante e ora assistente: EE a fls. 159 (pai da ofendida), FF a fls. 169 (filho mais velho da ofendida), GG a fls. 171 (amiga e ... da ofendida), HH a fls. 174 (amiga da ofendida), II a fls. 177 (empregada de limpeza da ofendida) e JJ (amiga da ofendida).
Vejamos.
A testemunha EE, relatou o clima tenso entre a sua filha e o arguido a partir de meados de 2022 quando este manifestou o propósito de se divorciar. Contudo esta testemunha limitou-se a relatar na maior parte do seu depoimento o que a sua filha lhe contava, não tendo um conhecimento direto dos factos descritos na denuncia. O único episódio concreto que esta testemunha relatou ter presenciado consiste no ato do arguido ter levado de casa algumas coisas contra a vontade da denunciante e de, perante a oposição desta, ter desferido um pontapé na perna da ofendida.
A testemunha FF também pouco presenciou a maior parte dos factos relatados na denúncia, atestando apenas que o seu padrasto tem adoptado um comportamento agressivo desde que se separou da sua mãe, forçando a sua presença indesejada em casa, pressionando a ofendida a assinar um acordo de regulação do poder paternal que a sua mãe não quer assinar.
A testemunha GG, amiga e ... da ofendida, afirmou que apenas presenciou os episódios de Agosto de 2022, em que o arguido terá forçado a entrada na residência da vítima, pelo que toda a restante matéria factual apenas é do seu conhecimento por ser amiga e ... da ofendida no processo de divórcio, não tendo um conhecimento directo dos factos.
A testemunha HH, amiga da ofendida, a qual declarou nada saber sobre os factos denunciados para além do que a própria ofendida lhe contou.
A testemunha II afirmou que não presenciou nenhum ato agressivo por parte do arguido.
A testemunha JJ, referiu nada saber sobre os factos para além do que a ofendida lhe contou, tendo um mero conhecimento indireto dos factos da queixa.
Constam também do inquérito, os depoimentos das testemunhas indicadas por CC: KK, a fls. 181, pai do arguido, LL a fls. 183, primo do arguido e MM, a fls. 196, amiga da ofendida.
Estas testemunhas afirmaram nomeadamente que:
- a testemunha KK, referiu que nunca presenciou nenhum ato de agressividade do seu filho para com a mulher. Mais acrescentou que esteve presente nos episódios de Agosto de 2022 em que o seu filho se deslocou a casa da denunciante, casa de morada da família, tendo o seu filho ido recolher alguns dos seus pertences e entregar a filha DD, sem ter ocorrido nada de anormal que justificasse a chamada da polícia ao local;
- a testemunha LL, primo do arguido, o qual esteve presente no episódio de 28-08-2022, tendo acompanhado o seu primo AA para entregar a filha menor à denunciante, referiu que não forçaram a entrada na residência ao contrário do que se alega; e
- a testemunha MM, amiga da ofendida, referiu que nada sabe sobre os factos denunciados para além do que a própria ofendida lhe contou.
A fls. 188, 181 e 231 foi constituído arguido e interrogado nessa qualidade o denunciado, AA, o qual nega todos os factos que lhe são imputados, nega ter alguma vez agredido tanto a mulher, BB, como a filha DD, assim como nega ter subtraído bens de casa, ter forçado a entrada na residência e ter pressionado a denunciante a assinar qualquer acordo, afirmando que todas estas acusações são falsas e se prendem com o propósito da ofendida em obter vantagens no processo de divórcio e na regulação do poder paternal.
A fls. 217 foi junta pelo arguido uma pen com uma gravação de vídeo e de áudio, onde são visíveis e audíveis discussões entre o arguido e a ofendida, com igual grau de agressividade um para com o outro, não sendo visíveis nem audíveis quaisquer agressões ou impropérios, atestando apenas a existência de um conflito relacionado com o processo de separação e ruptura conjugal.
A fls. 30 a 32 e 70 a 72 foram juntas pela denunciante, fotografias da sua filha DD.
Nesta fase de instrução, procedeu-se à tomada de declarações à assistente e ao arguido.
Declarou a assistente BB, nomeadamente, que se sentiu diariamente violentada e molestada pelos comportamentos do marido que desde a separação tem adotado comportamentos abusivos, como sejam, retirado dinheiro da conta poupança da filha menor de ambos, transferindo esse dinheiro para a conta dele; em 15.06.2022 levou consigo a filha doente durante vários dias, não atendendo às chamadas telefónicas e quando entregou a filha esta encontrava-se num estado deplorável devido a ter sido mordida por mosquitos; em 23.06.2022 quando se encontrava deitada na cama de casal na companhia da filha, o AA disse à filha para sair a fim de ele se deitar na cama apesar de haver cinco quartos com camas disponíveis para ele descansar, sendo que após entrar no quarto do casal começou a bater-lhe no braço, pressionando com força o dedo contra o seu braço; nos dias 17 e 31 de Julho de 2022 o arguido retirou da casa bens próprios da depoente e bens comuns do casal sem a sua autorização e numa situação o AA a agrediu com um pontapé na perna quando ela tentava impedir que levasse mais bens, em 15.08.2022 o arguido voltou à casa e fez várias máquinas com a roupa dele de férias quando antes nunca tinha feito qualquer máquina de roupa; no dia 28.08.2022 voltou a assistir um comportamento do AA quando este insistiu entrar na casa para proceder à entrega da filha, em Setembro de 2022 o AA mandou cancelar os contratos de fornecimento de água, luz e gás; noutra ocasião, o AA deslocou-se novamente a casa acompanhado do primo a fim de a obrigar sob coação a assinar o documento relativo à atribuição da casa de morada de família, tendo para o efeito, colado fitas adesivas no óculo da porta e entrado com o primo nas casas de banho, onde abriram as torneiras e urinaram nas tampas e no chão e n tocante ao carro da depoente e exclusivamente pago por ela, na altura da aquisição o AA preencheu abusivamente os documentos de modo a figurar como o titular da viatura e agora recusa-se a sair do contrato, tendo alterado junto da empresa o local onde deveria ser enviada a correspondência relativa ao contrato do carro da morada da casa de morada de casal para a sua morada atual.
O arguido também ouvido em declarações, negou a prática de atos de violência física ou psicológica contra a esposa, dizendo que ao invés foi ele quem foi vítima das atitudes da assistente, que o chegou a atacar com violência em situações de conflito, atirando o seu computador para o chão, arrancando, numa ocasião, o seu telemóvel e noutra ocasião, arrancando-lhe da mão o saco de bricolage e apresentado a sua versão dos factos quanto às imputações que lhe foram feitas pela assistente, além de referir que durante um e meio antes da separação, o casal atravessou uma grande crise conjugal tendo até recorrido a terapia do casal.
Analisada a prova produzida, verifica-se efetivamente não terem sido recolhidos indícios da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica contra a sua esposa BB.
A assistente BB referiu que vem sendo vítima de situações abusivas que descreveu, maus tratos psicológicos e alguns episódios de agressões perpetrados pelo seu marido, CC.
No entanto, a assistente foi a única pessoa a descrever a ocorrência destes factos, tendo sido corroborada quanto a alguns deles pelo seu pai e filho, bem como uma amiga que atentas as relações de parentesco próximo e de amizade com aquela não se reputam com isentas, não sendo credível o respetivo depoimento; aliás o mesmo sucedendo com as testemunhas apresentadas pelo arguido.
Por sua vez, o arguido AA negou todos os factos que lhes são imputados, alegando, pelo contrário, que tem sido a BB quem o ofendeu e até o atacou com violência enquanto durou a sua coabitação e mesmo depois de estarem separados, em declarações que se revelaram pelo menos tão plausíveis como as da assistente, BB.
Deste circunstancialismo fáctico decorre a existência de um ambiente altamente conflituoso existente no seio do casal, designadamente várias altercações, sendo que de algumas terão resultado agressões físicas por parte do arguido segundo a assistente e de outras altercações em que segundo o arguido, terá sido atacado pela assistente.
Assim sendo, constam dos autos duas versões contraditórias dos factos apesentadas pela da assistente e pelo arguido.
No entanto, os depoimentos das testemunhas constantes dos autos não contribuíram para a descoberta da verdade, uma vez que a maior parte delas não presenciou os maus tratos relatados pela assistente BB.
Com efeito, nenhuma das testemunhas indicadas pela assistente presenciou quaisquer atos de violência praticados pelo arguido, com exceção do pai da assistente que declarou ter presenciado o arguido a desferir um pontapé na perna da assistente mas que na ausência de outra prova entendemos não se poderá considerar este facto como suficientemente indiciado atenta a parcialidade com que muitos pais encaram a rutura da relação conjugal dos seus filhos, geralmente defendendo os filhos e culpabilizando os cônjuges dos mesmos.
As referidas testemunhas limitaram-se a descrever o que aquela ofendida lhes contava, ou então contando de forma pouco convicta e circunstanciada que aquele forçava a sua presença indesejada em casa e forçou a porta de entrada da habitação, sem revelar firmeza suficiente nos seus relatos que permitam concluir que assistiram mesmo a esses esses factos, ou se se estão a limitar a reproduzir o que BB lhes contava enquanto amigos e familiares confidentes.
Salienta-se que mesmo que tais factos tivessem ocorrido, o arguido mantinha o direito de entrar na casa que por ser comum, também era sua.
Também, as testemunhas indicadas pelo arguido não relataram quaisquer agressões ou insultos da parte de CC.»
Com esta fundamentação quanto à apreciação dos meios de prova recolhidos, concluiu o Tribunal a quo que «considerando agora os fatos dados como indiciados, entendemos que os mesmos não permitem imputar ao arguido a prática de crime de violência doméstica, pois tais factos não assumem gravidade bastante nem são susceptíveis de afetar de forma grave a dignidade da assistente.
Dúvidas não subsistem de que a relação do casal se deteriorou a partir de determinada altura e que com o tempo os conflitos se agravaram. Contudo, não se apurou que tais conflitos se devessem a uma conduta do arguido susceptível de enquadramento criminal.».

FUNDAMENTAÇÃO

A questão a decidir é saber se se impõe outra valoração dos meios de prova que permita dar como suficientemente indiciados outros factos que, a final, permitam alterar o sentido da decisão instrutória.
Nos presentes autos, a instrução requerida pela Assistente visa a modificação judicial da decisão de arquivamento, pretendendo submeter os factos a julgamento. Enquanto fase preparatória e instrumental, a prova até aqui produzida e apreciada para efeitos da produção de uma decisão tem carácter meramente indiciário. Como tal, deverá sempre ser analisada com base num juízo de probabilidade de se lograr a sua demonstração em sede de julgamento de forma a demonstrar os factos imputados e, assim, conseguir a condenação do Arguido.
Deste modo, mesmo que a pronúncia não seja uma decisão que revele uma certeza dos factos para lá de qualquer dúvida, deverá sustentar-se em indícios suficientemente consistentes para demonstrar a culpabilidade do arguido e concluir pela previsível condenação e aplicação ao mesmo de uma pena.
Compulsadas as conclusões da Assistente, verifica-se que a mesma não suscitou quaisquer vícios na apreciação da prova, apenas apelando a uma diferente valoração da mesma. Para tanto, enumerou as provas que entende relevarem para fundamentar a sua pretensão e revelou o entendimento que delas faz, para que se imponha uma decisão diversa da recorrida.

Tendo presente que «Constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» (art.º 124.º/1 do Código de Processo Penal), nunca poderemos fugir à máxima que guiará a valoração da prova em audiência e que se traduz no princípio da livre apreciação de acordo com os critérios estabelecidos pelo art.º 127.º; ou seja, tal livre apreciação apenas é limitada nos casos em que a lei dispuser diferentemente.
Este princípio basilar não pode ser confundido com a permissão para o livre arbítrio ou para uma valoração puramente subjectiva. Importa o mesmo a sujeição a critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, concreta e transmissível. O decisor tem que explicar as razões da sua decisão, e estas têm que ser sindicáveis pelo destinatário e, nesta sede, pelo Tribunal de recurso.
Não olvidemos, porém, o factor humano envolvido na função jurisdicional, que incute em cada decisão uma vertente subjectiva inerente ao decisor (singular ou colectivo) pois cada qual contribui com o seu saber e experiência para o resultado que produz. Por essa razão, alude o referido art.º 127.º à «livre convicção».
Deste modo, a livre valoração da prova não é uma actividade exclusivamente subjectiva assente numa inexplicável certeza no julgador causada por sentimentos ou impressões sem consistência. Não pode ser insusceptível de explicação de acordo com critérios racionais, lógicos e críticos, decorrentes quer da experiência comum quer, do saber científico das ciências exactas e das ciências sociais, seja ainda da experiência profissional e pessoal do julgador. Impõe-se que seja demonstrável e explicável na respectiva fundamentação.

Ora «O dever [de fundamentação das sentenças] resultante da Constituição e da lei (CPC) tem por objetivo a explicitação por parte do julgador acerca dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, dirimindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma a que os destinatários possam entender as razões da decisão proferida e, caso o entendam, poderem sindicá-la e reagir contra a mesma.» [ECLI:PT:STJ:2021:434.17.1T8PNF.P1.S1.39].

Tal é aplicável, da mesma forma, à decisão instrutória. E o Tribunal a quo cuidou de consignar a interpretação da prova recolhida, explanando de forma clara, consistente e regular, à luz das regras da experiência comum, o relevo dado a cada depoimento, a cada declaração, a cada registo.

Ponderemos então o âmbito da apreciação que cabe ao Tribunal de recurso sobre a prova. Citando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.07.2020, relatado pelo Juiz Conselheiro Raul Borges [ECLI:PT:STJ:2020:142.15.8PKSNT.L1.S1.B7], e a síntese do seu sumário, « XIII – A sindicância de matéria de facto consentida pelo artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tem um âmbito restrito, pois nesta forma de impugnação, as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410.º têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma.
XIV–O erro-vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
XV–Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.
XVI–Por outras palavras. Uma coisa é o vício de erro notório na apreciação da prova, outra é a valoração desta, o resultado da prova, que o recorrente pode considerar não correcta, dela divergir, afrontá-la, só que a manifestação desta divergência, este confronto não é passível de enquadramento em estratégia recursiva atendível (não cabe no plano da impugnação da matéria de facto possível nos quadros restritos consentidos pelo artigo 410.º, n.º 2, como extravasa os limites da mais ampla, mas nem por isso de contornos ilimitados, impugnação nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e 4, do CPP).
XVII–Enquanto a valoração da prova, que compete aos julgadores, e só a eles, obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova.
XVIII–Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialéctico das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos.
XIX–A primeira relaciona-se com a actividade probatória que consiste na produção, exame e ponderação crítica dos elementos legalmente admissíveis - excluídas as provas proibidas - a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto.
XX–O erro vício será algo detectável, necessariamente a juzante desse iter cognoscitivo/deliberativo, lançado no texto da decisão, cujo sentido e conformação resultou da convicção assumida, que tem a natureza intrínseca de um “produto” de uma reflexão sobre dados adquiridos em registo de oralidade e imediação e que a partir daí ganha alguma cristalização.
XXI–Será, se assim quisermos apelidar, no processo cognoscitivo/decisório da matéria de facto, um “produto de terceira geração”, sendo o primeiro passo a aquisição processual com a produção das provas em julgamento; em segundo lugar, a avaliação crítica do acervo probatório adquirido; por último, a formulação do juízo integrativo ou não.
XXII–Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova”.»

Ora, o que pretende, neste recurso, a Recorrente?
Pretende outra valoração da prova recolhida. Porém, como acima enunciámos, não há qualquer lapso na fundamentação do Tribunal de Instrução, percebendo-se claramente a interpretação feita daquilo que os meios de prova produziram.

Não cabe ao Tribunal da Relação um segundo juízo sobre a prova, mas apenas a correcção de algum vício que encontre na decisão. Intervém, assim, para produzir um mero remédio correctivo, tendo em vista ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida. Tais erros emergirão como resultado de uma deficiente apreciação da prova.

No caso concreto, os factos que a Recorrente defende estarem suficientemente indiciados, não têm suporte na prova recolhida, atenta a fundamentação que o Tribunal recorrido produziu e que, já o dissemos, faz uma sólida avaliação das contrariedades que revela. A decisão instrutória demonstra como falecem a consistência e coerência da prova que, posta a teste, soçobra na demonstração da existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

O Tribunal de recurso só deverá alterar a decisão se as provas disponíveis obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Caso tais provas não imponham essa decisão diversa, mas apenas a permitam, paralelamente àquela que foi a decisão da primeira instância, deverá ser esta última a prevalecer. Não haverá lugar a qualquer correcção da decisão recorrida, desde que se mostre devidamente fundamentada e, face às regras da experiência comum, couber dentro de uma das possíveis soluções (vd., Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.2021, Desembargador Jorge Gonçalves - ECLI:PT:TRL:2021:477.20.8PDAMD.L1.5.A4).

Perante o princípio da livre apreciação da prova tal como consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, não será a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal. Caso contrário, nunca seria possível alcançar uma decisão final.
Assim, decide-se manter inalterada a decisão instrutória recorrida.

DECISÃO

Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso da Assistente e manter inalterada a decisão de não pronúncia.
Custas pela Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.



Lisboa, 21 de Maio de 2024



Rui Coelho
(Relator)
João Ferreira
(1.º Adjunto)
Sandra Pinto
(2.º Adjunto)