Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA | ||
Descritores: | CORRUPÇÃO PRESCRIÇÃO CONTAGEM DO PRAZO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/11/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | A prescrição do procedimento, nos crimes de corrupção, conta-se desde a entrega e obtenção do suborno, posto que é aplicável a regra do nº 4 do art.º 119º do Código Penal, directamente ou ainda porque são crimes de resultado truncado. A interpretação segundo a qual aquele prazo se conta apenas desde a consumação do crime é desconforme com a Constituição, designadamente com o princípio da justiça patente nos art.ºs 1º e 202º da Constituição da República Portuguesa e ainda que tal interpretação provenha do Tribunal Constitucional. A interpretação das normas jurídicas, actividade que permite, a partir da fonte, chegar à regra que esta alberga, é-lhe logicamente posterior e exterior. Destarte, não cabe na arquitectura constitucional nacional uma quarta instância de recurso em sede de fiscalização concreta sobre a constitucionalidade de interpretação de normas, mas apenas da constitucionalidade destas. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa. Neste processo e após debate instrutório, foi ordenado o arquivamento dos autos. * Interpôs o Ministério Público o presente recurso concluindo: “1. No dia 15 de Abril de 2021, o Ministério Público deduziu acusação nos presentes autos contra os arguidos BS, MQ, HP, RG e AM imputando-lhe os seguintes crimes: Ao arguido BS: • Um crime de corrupção passiva, em co-autoria material e na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 17.º, nº 1 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, 26.º e 28.º, nº 1 do Código Penal, com referência aos artigos 236.º, nº 1, 244.º e 246.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 2.º, nº 1 e 23.º, nºs 1 e 2 da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro; • Um crime de corrupção activa, em co-autoria material e na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 18.º, nºs 1 e 3 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, 26.º e 28.º, nº 1 do Código Penal, com referência aos artigos 236.º, nº1, 244.º e 246.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 2.º, nº 1 e 23.º, nºs 1 e 2 da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro. À arguida MQ: • Um crime de corrupção activa, em co-autoria material e na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 17.º, nºs 1 e 3 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, 26.º e 28.º, nº 1 do Código Penal, com referência aos artigos 236.º, nº1, 244.º e 246.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 2.º, nº 1 e 23.º, nºs 1 e 2 da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro. Ao arguido HP: • Um crime de corrupção passiva, em co-autoria material e na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 17.º, nº 1 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho 26.º e 28.º, nº 1 do Código Penal, com referência aos artigos 236.º, nº1, 244.º e 246.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 2.º, nº 1 e 23.º, nºs 1 e 2 da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro; • Um crime de corrupção activa, em co-autoria material e na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 18.º, nºs 1 e 3 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho 26.º e 28.º, nº 1 do Código Penal, com referência aos artigos 236.º, nº1, 244.º e 246.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 2.º, nº 1 e 23.º, nºs 1 e 2 da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro. F. À arguida RG: • Um crime de corrupção activa, em co-autoria material e na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 18.º, nºs 1 e 3 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, 26.º e 28.º, nº 1 do Código Penal, com referência aos artigos 236.º, nº 1, 244.º e 246.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 2.º, nº 1 e 23.º, nºs 1 e 2 da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro. À arguida AM: • Dois crimes de corrupção passiva, em co-autoria material e na forma consumada, previstos e punidos pelos artigos 17.º, nº 1 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, 26.º e 28.º, nº 1 do Código Penal, com referência aos artigos 236.º, nº1, 244.º e 246.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 2.º, nº 1 e 23.º, nºs 1 e 2 da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro; 2. Os arguidos BS, MQ, HP e RG requereram tempestivamente a abertura da instrução, tendo todos eles invocado, além do mais a prescrição do procedimento criminal quanto aos crimes pelos quais foram acusados. 3. Por douta decisão instrutória de 7 de Novembro de 2022, o Tribunal a quo “julgo[u] procedente a excepção de prescrição e determino[u], após trânsito, o oportuno arquivamento dos autos.” 4. Ao decidir desse modo, o Tribunal a quo efectuou uma errada interpretação do disposto no artigo 18.º, nºs 1 e 3 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 30/2008, de 10 de Julho, que se encontrava em vigor à data da prática dos factos, pois que considerou que os crimes de corrupção activa imputados aos arguidos BS, MQ, HP e RG eram puníveis com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias, quando ali se estabelece uma moldura penal de 2 a 8 anos de prisão para os referidos crimes. 5. E, consequentemente, tendo considerado que o prazo de prescrição do procedimento criminal aplicável aos referidos crimes era o que se encontrava previsto no artigo 118.º, nº 1, al. c) do Código Penal, o Tribunal a quo fez uma errada determinação da norma jurídica aplicável, pois que o prazo de prescrição do procedimento criminal aplicável a tais crimes era o que se encontrava previsto no artigo 118.º, nº 1, al. b) do referido código. 6. O crime de corrupção activa, previsto e punido pelo artigo 18.º, nºs 1 e 3 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 30/2008, de 10 de Julho, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos. 7. Assim, o prazo de prescrição do procedimento criminal quanto aos crimes de corrupção activa imputados aos arguidos BS, MQ, HP e RG é de 10 anos, contado desde a data da prática do crime, nos termos do disposto no artigo 118.º, nº 1, al. b) do Código Penal. 8. Nos termos descritos na acusação, os factos integradores dos ilícitos imputados aos arguidos tiveram início no mês de Setembro de 2010 e prolongaram-se até ao dia 18 de Novembro de 2011. 9. Os arguidos BS e MQ foram constituídos como arguidos no dia 29 de Julho de 2020, e os arguidos HP e RG foram constituídos como arguidos no dia 3 de Agosto de 2020. 10. A constituição como arguido é uma causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal nos termos do disposto no artigo 121.º, nº 1, al. a) do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro. 11. Nos termos do disposto no artigo 121.º, nº 2 do Código de Processo Penal, depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição, sendo certo que nos termos do disposto no nº 3 do mesmo artigo, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade, ou seja, in casu, 15 anos, prazo esse que ainda não se mostra decorrido. 12. Acresce que, no dia 24 de Abril de 2021, todos os arguidos foram regularmente notificados da acusação contra eles deduzida, por via postal simples com prova de depósito na morada do TIR, o que voltou a interromper o prazo de prescrição, com os efeitos anteriormente mencionados, nos termos do disposto no artigo 121.º, nº 1, al. b) e nº 2 do Código de Processo Penal (fls. 674, 675, 676, 677 e 694 – Vol. 2). 13. De resto, essa notificação suspendeu também o prazo de prescrição do procedimento criminal e o prazo máximo de tal suspensão, que é de três anos, ainda não se mostra decorrido, nos termos do disposto no artigo 120.º, nº 1, al. b) e nº 2 do Código de Processo Penal. 14. Nestes termos, importa concluir que o procedimento criminal pelos crimes de corrupção activa imputados aos arguidos BS, MQ, HP e RG na acusação contra eles deduzidos não se encontra extinto por prescrição. 15. Por outro lado, no que respeita à declarada prescrição do procedimento criminal quanto aos crimes de corrupção passiva imputados aos arguidos BS e AM, o Tribunal a quo mostrou-se absolutamente omisso, não tendo indicado quaisquer razões especificas que fundamentassem a sua decisão, nem tão pouco as disposições legais em que a mesma se fundou, tornando-a absolutamente incompreensível pelos destinatários e insusceptível de controlo jurisdicional em sede de recurso, o que, nos termos do disposto nos artigos 308.º, nº 2 e 283.º, nº 3, al. d) do Código de Processo Penal, determina a nulidade da decisão instrutória ora recorrida.” * Os arguidos BS e MQ responderam, pugnando fosse negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, concluindo: “1. O Ministério Público deduziu acusação no dia 15 de abril de 2021, imputando aos ora Recorridos a prática de crimes de corrupção passiva e activa, cuja consumação, como bem entendeu o tribunal a quo, a ter ocorrido, terá tido lugar, nos termos da imputação do MP vertida na acusação, no mês de Setembro de 2010 («11. Assim, em data não concretamente apurada, mas por volta do mês de setembro de 2010, de modo a satisfazerem as vontades daquelas, BS e HP, valendo-se mutuamente da influência política e pessoal de cada um deles nas respetivas autarquias acordaram entre si numa troca de favores recíprocos nos seguintes termos (...)»), considerando que esta dá-se no momento em que a dádiva ou a promessa ao funcionário de uma vantagem chega ao conhecimento deste. 2. Aos factos imputados aplica-se a Lei n.º 34/87, de 16 de julho, na redação introduzida pela Lei n.º 30/2008, de 10 de julho, por ser esse o regime vigente à data dos factos e não existir lei posterior mais favorável. 3. Os Recorridos requereram a abertura da instrução no dia 14 de maio de 2021, tendo invocado, em síntese útil (i) a imputação de ilícitos criminais de forma conflituante, (ii) a prescrição do procedimento criminal e (iii) a insuficiência de indícios probatórios. 4. O MP, em 27 de maio de 2021, socorrendo-se da invocação de "lapsos de escrita" alterou a qualificação jurídica dos factos. 5. O MP, posteriormente à apresentação e conhecimento das "defesas" dos arguidos, vertidas nos seus RAIs, não pode, sob o pretexto da correcção de um "lapso de escrita", imputar-lhes um ilícito de natureza radicalmente diferente, sob pena da violação do princípio da estabilidade da instância. 6. A decisão instrutória não é uma sentença e não carece, por isso, do mesmo grau de fundamentação que a esse tipo de decisão está acometido, sendo que ao abrigo do artigo 308.º, n.º 2 do CPP, por remissão expressa para o art.º 307.º, n.º 1, parte final, também do CPP, se permite ao Meritíssimo JIC fundamentar a decisão instrutória através de operações de simples remissão para o conteúdo da acusação ou dos requerimentos de abertura de instrução (ou "RAIs"), como no caso aconteceu. 7. É a própria decisão instrutória que refere expressamente (como o MP citou na sua motivação) que «MQ apresentou RAI a fls. 702-711, cujo teor se dá por reproduzido (.„)» 8. Da decisão instrutória, não resulta qualquer ambiguidade, obscuridade ou insuficiência de fundamentação, pelo contrário, esse ato decisório está plenamente justificado e os destinatários puderam compreender, na totalidade, o seu conteúdo, como aliás se comprova pelos termos em que o MP, nas suas motivações de recurso, ataca a decisão proferida. 9. A prescrição do procedimento criminal declarada pelo tribunal a quo teve por base a medida das penas previstas para os crimes de corrupção imputados aos Recorridos na acusação, tendo por base o regime legal vigente à data dos factos. 10. Pelo exposto, a decisão instrutória não padece: i) de qualquer vicio de falta de fundamentação capaz de gerar a sua nulidade, não tendo o tribunal a quo incorrido na violação do disposto no artigo 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, al. d) do CPP; ii) de erro na determinação e interpretação das normas jurídicas aplicáveis, designadamente os artigos 16.º, n.º1, 17.º, n.º1 e 18.º, n.º5 1 e 3 da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na redação em vigor à data dos factos alegados.” * Os arguidos HP e RG responderam, pugnando fosse negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, sem apresentar conclusões. * Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso. * Responderam os arguidos BS e MQ, pugnando pelo bem fundado da decisão recorrida. * Corridos os vistos, foram os autos à conferência. -- // -- // -- Fundamentação. * A decisão recorrida tem o seguinte teor: “Os autos de inquérito iniciaram-se em 11/12/12. Foi proferido um despacho de arquivamento em 16/01/18 (cfr. fls. 324-335). Na sequência da entrega dos resultados das perícias aos computadores apreendidos, foi decidida a reabertura do inquérito em 23/12/19 (cfr. fis. 357). Foram então constituídos arguidos em: - 29/07/20 (fls. 392 e segs.); - 03/08/20 (fls. 408 e segs.); - 23/10/20 (fis. 452 e segs.). Foi elaborado Relatório Final pela Policia Judiciária - UNCE em 11/01/21. HP veio prestar declarações a seu pedido e juntou memorandum (03/03/21) fls. 533 e seguintes e 536 e seguintes. Em 14/04/21, foi deduzida acusação pública que faz fls. 615 a 642. MQ apresentou RAI a fls. 702-711, cujo teor se dá por reproduzido onde pugna pela insuficiência de indícios e nulidade da acusação e prima fácie, refere que, estando acusada da prática de um crime de corrupção activa, em co-autoria material e na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 18.º, n.ºs 1 e 3 da Lei 34/87 de 16/07, 26.º e 28.º, 1 do Código Penal, com referência aos artigos 236.º, 1, 244.º e 246.º da CRP e artºs 2.º, n.º 1 e 23.º n.ºs 1 e 2 da Lei 169/99, de 18/09, ora tal crime na redacção introduzida pela Lei 30/2008 de 10 de Julho, regime vigente à data da prática dos factos, era punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias. Assim sendo, o prazo de prescrição é de cinco anos (cfr. art.º 118.º, n.º 1 al. c) do Código Penal. A Lei 32/10, de 02/09 que entrou em vigor a 01/03/11, é certo que alterou o art.º118.º do CP e alargou para 15 anos o prazo de prescrição do procedimento criminal relativo a todos os crimes de corrupção, mas esse alargamento não pode ser aplicado a processos atinentes a factos anteriores. Assim, a questão em apreciação terá de ser decidida por aplicação da lei substantiva penal resultante da Lei 59/07, de 04/09, regime vigente à data da prática dos factos, por ser o regime concretamente mais favorável. Consequentemente, o prazo de prescrição corre desde o dia em que o facto se tiver consumado - ex vi do art.º 119.º, n.º 1 do Código penal e a prescrição tem sempre lugar quando desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade (cfr. art.º 121.º, n.º 3 do Código Penal), no caso sete anos e seis meses. Consequentemente, perante a noticia dos factos e em obediência aos art.ºs 118.º, n.º 1, al. c), 120.º n.ºs 1, 2 e 3 e 121.º, n.º 1, al. a), 2 e 3, todos do Código Penal, o procedimento criminal está prescrito, importando tal declarar e arquivar os autos. No seu RAI, junto a fls. 712-715, aqui dado por reproduzido, BS apresenta idêntico pedido, além de pugnar pela insuficiência de indícios. Mediante RAI de fis. 751-791, dado por reproduzido, RG discorre abundantemente sobre os concretos tipos penais, a sucessão de leis no tempo, a nulidade da acusação, por violação do art.º 283.º, n.º 3, al. b) do CPP e, por último, faz idênticas considerações sobre a prescrição do procedimento criminal, já que o M.º P.º alega na acusação que a resolução criminosa que imputa foi tomada em Setembro de 2010 (cfr. ponto V do RAI), pelo que se impetra a declaração de prescrição (fls. 781 vº). HP veio também apresentar RAI, que ora faz fls. 838 a 857, cujo teor se dá por reproduzido onde, após exórdios e considerações sobre insuficiência de indícios invoca, nos pontos 28.º a 46.º do RAI, em moldes similares, a prescrição do procedimento criminal mesmo que não concedendo na assumpção de qualquer responsabilidade penal, como aliás os restantes. Recebidos os autos no então Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - J4, foi declarada aberta a instrução por despacho de 02/06/21 (cfr. fis. 976, designado dia para interrogatório de MQ, a seu próprio pedido, que teve lugar a 15/09/21 (cfr. fis. 1006). Por despacho de 21/09/21 (fis. 1111) foi notificado HP para esclarecer a razão de ciência das testemunhas que arrolou, o que foi satisfeito em 12/10/21 (cfr. fls. 1117), sendo que a prestação de tais depoimentos, nos casos em que não foram prescindidos foi indeferida — ex vi do art.º 291.º, nº 3, do CPP. Designou-se 06/12/21 para inquirição de três testemunhas reputadas pelo Sr. JIC titular como úteis à instrução para aquilatar da experiência autárquica da arguida RG - cfr. desp. de fls. 1120 a 1126, as quais foram ouvidas (cfr. fls. 1145-1146) uma em 06/12/21, outra em 08/03/22 (cfr fls. 1193) outra em 24/03/22 (cfr. fls. 1200) e ainda a arguida RG em 03/05/22 (cfr. fis. 1208-1209). Foi agendado Debate Instrutório para 08/06/22, que veio a ser adiado para 09/06/22 (cfr. fls. 1223) e nessa data adiado "sine-die" (cota de fls. 1223). Por despacho de 08/09/22, foi o Debate agendado para 06/10/22 (cfr. fis. 1224) Foi, então, realizado, pelo signatário, o Debate Instrutório em 06/10/22, conforme se alcança de fls. 1243 a 1245 e consignado que o depósito da Decisão Instrutória teria lugar em 07/12/22, por não ser possível lançá-la de imediato ou no prazo a que alude o art.º 307.º, n.º 3, do CPP. O M.º P.º pediu a pronuncia dos arguidos nos exactos termos do libelo. Os requerentes a declaração de prescrição do procedimento criminal e/ou a não pronuncia em razão das nulidades e insuficiências do libelo. No tocante a esta última questão o M.º P.º, a douto punho, já viera pronunciar-se em 27/05/21, a fls. 948 a 952, que aqui se dão por reproduzidas e que se traduzem em "lapsos de escrita" na qualificação dos factos jurídicos imputados pois o crime que se pretende imputar é o do art.º 16.º, n.º 1, da Lei 34/87, de 16/07. Cumpre apreciar e decidir: A acusação foi prolatada em 14/04/21 e a rectificação do alegado lapso de escrita só ocorreu em 27/05/21, já depois dos RAI's de RG (1905/21) HP (19/05/21), MQ (14/05/21) e BS (14/05/21). No debate instrutório todos os arguidos (os requerentes e AM) vieram dizer que a emenda das duas situações não pode agora valer. A estabilidade da instância vale também para o M.º P.º. Esta magistratura, autónoma e independente prolatou uma acusação. Foram apresentados RAI's depois do prazo destes mudou o ilícito !!! Entendemos, em coerência com o que já dissemos em outros autos, ao longo de dezoito anos em funções neste TCIC, que o momento da consumação do imputado crime, a ter existido, a troca de favores, foi em Setembro de 2010. Não se trata de um crime de execução continuada. Consequentemente, entendemos que seria ocioso estar a elucubrar sobre a suficiência de indícios. Admitimos que a decisão que vamos enunciar será recorrível e eventualmente recorrida. Perante a fita de tempo em presença, à luz do ilícito imputado, e perante a redacção mais favorável supra citada o ilícito prescreveu. É o que se declara quanto a todos os arguidos já que a alegação aproveita à arguida não requerente. Consequentemente, julgo procedente a excepção de prescrição e determino, após trânsito, o oportuno arquivamento dos autos. Considero assim prejudicado o conhecimento da nulidade da acusação.” -- // -- // -- Cumpre apreciar. De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. * Atendendo às conclusões apresentadas são questões a apreciar: Nulidade da decisão recorrida; Verificação, ou não, da prescrição do procedimento criminal instaurado contra os arguidos; Pronúncia, ou não, dos arguidos. * Nulidade da decisão recorrida. Por, no dizer do Ministério Público, “quanto aos crimes de corrupção passiva imputados aos arguidos BS e AM, o Tribunal a quo mostrou-se absolutamente omisso, não tendo indicado quaisquer razões especificas que fundamentassem a sua decisão, nem tão pouco as disposições legais em que a mesma se fundou, tornando-a absolutamente incompreensível pelos destinatários e insusceptível de controlo jurisdicional em sede de recurso, o que, nos termos do disposto nos artigos 308.º, nº 2 e 283.º, nº 3, al. d) do Código de Processo Penal, determina a nulidade da decisão instrutória ora recorrida.” Em suma, por não conter as disposições legais aplicáveis e razões da decisão. O que, em face do que dispõe a alínea d) invocada, constituiria nulidade (nº 3 daquele art.º 283ª) E como não estamos perante nulidade insanável, a correspondente reclamação em fase de recurso traça-lhe, inelutavelmente, o destino. “É que das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se” (por todos, Ac. S.T.J. de 3.11.2009, proferido no procº 2137/04.8TBMTS.S1, parafraseando o Prof. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC., vol. II, pág. 507). Jurisprudência e doutrina antigas e pacíficas, por mais que tenazmente não interiorizadas. Resulta ainda, no que ao caso interessa, do que a propósito dispõe o nº 3 do art.º 120º do Código de Processo Penal. Ou seja, se não reclamadas em tempo (como é sabido, perante a entidade que as terá cometido) sanam-se. O caso, absolutamente excepcional, do conhecimento de nulidades de sentença em fase de recurso, é, por isso mesmo, tão somente aplicável a sentenças penais finais, como resulta do art.º 379º do Código de Processo Penal, que se refere claramente a sentenças finais condenatórias ou absolutórias. Sempre se dirá, todavia, que a decisão recorrida indica de forma suficiente as normas aplicáveis, mais não seja, por remissão, o que como veremos, por vezes até é preferível, desde logo por ser método menos propenso a erros de escrita. Certo é que todos os sujeitos processuais que desde então tiveram intervenção no processo as entenderam perfeitamente, bem como os motivos da decisão sob recurso, até o Ministério Público, como resulta do teor das correspondentes alegações. * Prescrição do procedimento criminal. A este propósito e antes do mais há que ver a moldura penal dos crimes pelos quais vêm os arguidos acusados. Onde se levanta o primeiro problema, já que os crimes de corrupção passiva imputados na acusação a três daqueles são apontados na acusação como sendo os previstos no nº 1 do artº 17º da Lei sobre os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos (Lei 34/87 de 16.7). Ora, na altura da consumação dos crimes, Setembro de 2010, vigorava a versão daquela lei dada pela Lei 108/2001 de 28.11, perante a qual aquele nº 1 do artº 17º versava o crime de corrupção passiva para acto lícito. Por requerimento de 27.5.2021, veio o Ministério Público esclarecer que aquela referência ao artº 17º se devia a erro de escrita, pois a menção correcta seria ao artº 16º da mesma Lei, ou seja, crimes de corrupção passiva para acto ilícito. O tribunal recorrido, invocando o princípio da estabilidade da instância, não acolheu a pretensão do Ministério Público (ainda que este a haja dissimulado, já que então deveria ter requerido abertamente a correcção do erro). Os arguidos recorrentes opuseram-se. Perante a versão da mesma lei, tal como hoje, à data da acusação (dada pela Lei 94/2021 de 21.12), o crime de corrupção passiva para acto ilícito vinha previsto no nº 1 daquele artº 17º. Já o crime de corrupção activa vinha previsto no artº 18º, o que vem sucedendo desde a versão original. O crime de corrupção passiva respeitante a titulares de cargos políticos tem visto variar a sua sede legal ao longo do tempo. Desde a versão original, repartida entre os art.ºs 16º e 17º, respectivamente, corrupção passiva para acto ilícito e corrupção passiva para acto lícito, mudando apenas com a alteração levada a cabo pela Lei nº 41/2010 de 3.9, em vigor desde 3.3.2011, a partir da qual passou a estar apenas prevista no art.º 17º (tratando o nº 1 da corrupção para acto ilícito e o nº 2 da restante). Repartição que se tem mantido até hoje. Esta é, cremos, a razão de ser do problema, que salvo o devido respeito, não se resolve com a menção ao princípio da estabilidade da instância. Tal princípio, em processo penal, é passível de diversas excepções, o que é natural, atendendo à proveniência processual civilística do mesmo. Basta ter em mente e a propósito, as normas atinentes às possibilidades de alteração da qualificação jurídica, sobretudo na versão original do Código de Processo Penal, mas que actualmente se mantêm na sua essência. Mas mesmo em processo civil, como para o penal, não deixa de valer, há milénios e de forma universal, o princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos vindo do direito romano: “iura novit curia”. Certo é que nem a tanto se tem de chegar, bastando constatar se existe, ou não, erro de escrita. Ora, este deve ser notório no contexto em que se insere e neste caso, sem se sair da qualificação jurídica dada pela acusação, o erro é patente, logo no que respeita ao primeiro arguido, depois copiado para os demais. Vem acusado pela prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, segundo a redacção da lei à data da acusação, mas para acto lícito de acordo com a redacção em vigor à data da consumação dos crimes. Mas, tal crime de corrupção passiva vem, ainda nos termos da acusação, desencadeado por um crime de corrupção activa para acto ilícito. Não pode ser. Logo, a existência de erro de escrita é evidente, pelo que se impõe a correspondente correcção. Para tanto, há que concluir qual das imputações está errada. Ora, é também incontestável o carácter ilícito das condutas descritas na acusação e como se disse, a acusação buscou claramente a imputação de crime de corrupção passiva para acto ilícito, atribuindo a sede no local onde o mesmo se encontrava à data da respectiva elaboração. Impõe-se portanto que se considere estarem em causa crimes de corrupção passiva para acto ilícito, pp. e pp. pelo nº 1 do art.º 16º e crimes de corrupção activa para acto ilícito, pp. e pp. pelos n.ºs 1 e 3 do art.º 18º da Lei 34/87 de 16.7, na versão dada pela Lei 108/2001 de 28.11 (alguns intervenientes referem-se à versão dada pela Lei 30/2008 de 10.7, mas esta, versando o estatuto do Representante da República nas Regiões Autónomas, deixou intocados os preceitos em causa). E só, não se entendendo a que propósito surge na acusação a menção a disposições várias da Constituição da República Portuguesa, bem como da lei que estabelece o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias, (sendo até que algumas destas últimas se encontram revogadas e de há muito) prática que torna fácil a perda do foco no essencial, campo fértil para erros e enganos vários. Repare-se que já a menção à qualidade de ilícito (ausente na acusação) daquele acto, poderia ter resolvido logo a questão. Na versão daquela Lei em vigor à data do início da execução dos crimes, Setembro de 2010, (versão dada pela Lei 108/2001 de 28.11, em vigor partir de 1.1.2002) as penas correspondentes aos referidos crimes eram de 2 a 8 anos de prisão. Assim se mantendo até hoje, não obstante aquelas várias alterações. Como assim, o prazo de prescrição dos crimes (todos) é o de 10 anos, nos termos da alínea b) do nº 1 do artº 118º do Código Penal, na versão em vigor naquela data. Por conseguinte, tendo os arguidos BS, MQ, HP e RG sido constituídos naquela qualidade processual antes de decorrido aquele prazo, começou o prazo de prescrição a correr de novo, nos termos conjugados do que dispõem o nº 2 e a alínea a) do nº 1 do art.º 121º do Código Penal, não tendo decorrido ainda o prazo a que alude o nº 3 do art.º 121º do mesmo diploma legal, pelo que quanto aos mesmos não se verifica a prescrição do procedimento criminal. Já a arguida AM foi nessa qualidade constituída em 23.10.2020, volvidos mais de 10 anos sobre Setembro de 2010, como se disse, data do início da execução dos crimes. O Ministério Público vem alegar que a adesão desta arguida ao plano criminoso delineado pelos demais apenas tem início em 4.2.2011. Ora, esta é a data que na acusação surge como sendo a da primeira reunião de um dos júris de selecção de candidaturas, essenciais para o resultado final delineado. Como é bom de ver, à luz de elementares regras de experiência comum, a adesão daquela arguida teve de ser anterior e nesse mesmo sentido consta da acusação (pontos 12 e 13) que os arguidos BS e HP “acordaram também que os procedimentos concursais destinados àquele fim seriam organizados por AM, o que esta aceitou fazer (...) para além de ter prestado serviços de consultoria jurídica relacionados com a organização e tramitação dos procedimentos concursais de acordo com a normas legais aplicáveis, AM definiu a estrutura e o conteúdo das provas de conhecimentos gerais, os respectivos critérios de correcção” (...) Ou seja, o que da acusação se retira com segurança é que aquela adesão é contemporânea com as combinações entre os arguidos, o que é natural, já que a participação da arguida AM é essencial aos mesmos. Pode, agora, não ser muito conveniente, mas é que vem alegado no libelo acusatório. Ora, certo é que o crime de corrupção passiva se considera consumado com a solicitação ou aceitação (ou a sua promessa), menos certo não é que para o efeito da contagem do prazo de prescrição, facto também decisivo é o do efectivo recebimento. Sigamos de perto a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, (acórdão de 21.3.2018, procº 736/03.4TOPRT.P2.S1) “o crime de corrupção activa tem-se por formalmente consumado com a mera promessa de vantagem e o crime de corrupção passiva considera-se formalmente consumado com a solicitação ou aceitação (ou a sua promessa), aquando do seu conhecimento pelo corruptor activo, mas o inicio do prazo prescricional em ambas as modalidade do crime, não se verifica desde o dia da sua consumação formal. A lei no n.º 1 do art.º 119.º do CP não pode deixar de ser interpretado e aplicado, tendo em vista a consumação material do crime ou terminação (...)” (...) conquanto o crime de corrupção activa se tenha por formalmente consumado com a mera promessa de vantagem e que o crime de corrupção passiva se considere formalmente consumado com a solicitação ou aceitação (ou a sua promessa), suposto (aquando) o seu conhecimento pelo corruptor activo, a verdade é que o início do prazo prescricional, em ambas as modalidades do crime, não se verifica desde o dia da sua consumação formal. A lei, mais concretamente o n.º 1 do artigo 119º do Código Penal ao estatuir que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado não pode deixar de ser interpretado e aplicado como tendo em vista, em situações como a ocorrente nos autos, a consumação material do crime ou terminação. Como refere Jescheck (...) é de suma importância prática a distinção entre consumação formal e consumação material ou terminação. Há crimes cuja consumação formal não coincide com a consumação material ou terminação, como é o caso dos crimes de consumação antecipada (crimes de intenção, de perigo e de empreendimento), crimes em que a consumação se caracteriza pela sua estrutura interactiva (crimes permanentes, crimes em dois actos e com pluralidade de actos individuais), crimes em que o resultado final ou global se obtém através de acções que não correspondem em sentido formal à descrição do respectivo tipo (destruição completa de edifício incendiado, colocação a salvo do objecto contrabandeado depois da passagem da fronteira), e crimes de unidade natural de acção e de acção continuada, sendo que o prazo para a perseguição penal (denúncia, queixa), tal como para efeitos de prescrição do crime, não se inicia enquanto não se verificar a sua terminação, ou seja, a consumação material. Aliás, a não ser assim, como bem se consignou no acórdão recorrido, permitir-se-ia que os arguidos continuassem a praticar actos de execução do crime, continuando a pagar e a receber subornos em perfeita impunidade. Correr-se-ia o risco, no limite, de o crime já estar prescrito ainda antes da sua consumação material ou terminação, o que, obviamente, precludiria toda e qualquer possibilidade de perseguição e punição do criminoso, conduzindo não só à impunidade (...) como ao total descrédito do Estado de direito, em particular dos tribunais e da administração da justiça.” Independentemente de se entender que a consumação a que alude aquele nº 1 é formal ou material, certo é que forte pista para a opção é dada também e desde logo pelo nº 4 do artº 119º do Código Penal, o qual então dispunha, tal como hoje, que “quando for relevante a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.” E salvo o devido respeito, não se defenderá que o alcance do resultado real sempre visado com o crime de corrupção (a obtenção das vantagens) não é relevante, para este efeito, atendendo, desde logo, que a doutrina nunca chegou a fixar, com unanimidade mínima, qual o verdadeiro objecto deste preceito. Dir-se-á que então o mesmo será constituído por todos os tipos penais para cuja consumação não é exigido o resultado. Mas convém não esquecer que a própria previsão da prescrição é susceptível de brigar com o princípio da justiça, mais a mais em tal género de crimes, bastando pensar na possibilidade de, propositadamente, se aguardar pela verificação daquela para então ser impunemente alcançado o resultado. E não pode restar dúvida que aquele resultado é relevante para a comunidade jurídica, em nome da qual os tribunais administram justiça, a qual, como se espera ainda ser sabido, repudia tal tipo de entendimento. Por seu turno, o nº 2 do art.º 71º do Código Penal preceitua exactamente o inverso, sendo logo detectável que para este será um dos factores de maior importância naquele género de crimes, de resto, em consonância com aquele sentido mais profundo de toda a comunidade. Por outro lado, ainda e saindo definitivamente da interpretação literal daquele preceito, resultado não compreendido no tipo de crime é, por exemplo, a verificação da declaração judicial de insolvência (condição objectiva de punibilidade), como qualquer outro de resultado truncado, de que o crime de corrupção também é exemplo. O artigo 24.º do Código Penal prevê a não punibilidade da tentativa, por desistência activa do agente. No caso da tentativa acabada (2.ª hipótese prevista no nº 1, que é o que mais nos interessa para a discussão que se pretende realizar), só o impedimento da consumação por parte do agente o isenta de punição. Para que tal suceda é, porém, necessário que ele desenvolva uma conduta própria e espontânea, embora eventualmente com a colaboração de terceiros, a seu pedido, que seja idónea a evitar a consumação, e que esta efectivamente ocorra. O agente deve, pois, para ser considerado desistente e beneficiar da impunidade, dominar, ou, no mínimo, dominar em conjunto o processo de salvamento do bem jurídico ameaçado pela sua conduta. Como interpretar esta norma do art.º 24.º do Código Penal à luz do tipo legal de crime de corrupção, nos casos em que o agente aceita a promessa, mas depois, por exemplo, não só não pratica o acto contrário aos deveres do cargo, como denuncia a situação, ou pratica o acto mas denuncia a situação? O legislador teve a preocupação de responder a esta questão no artº 374.º-B do Código Penal, preceito este que também nos permite perceber como o resultado do crime é relevante. O artigo 374.º-B do Código Penal sob a epígrafe “dispensa ou atenuação de pena”, dispõe que: “1 - O agente é dispensado de pena sempre que tiver denunciado o crime antes da instauração de procedimento criminal e, nas situações previstas: a) No n.º 1 do artigo 373.º, não tenha praticado o ato ou omissão contrários aos deveres do cargo para o qual solicitou ou aceitou a vantagem e restitua ou repudie voluntariamente a vantagem ou, tratando-se de coisa ou animal fungíveis, restitua o seu valor; b) No n.º 1 do artigo 372.º e no n.º 2 do artigo 373.º, restitua ou repudie voluntariamente a vantagem ou, tratando-se de coisa ou animal fungíveis, restitua o seu valor; c) No n.º 1 do artigo 374.º, tenha retirado a promessa de vantagem ou solicitado a sua restituição ou repúdio ao funcionário ou ao terceiro antes da prática do ato ou da omissão contrários aos deveres do cargo; d) No n.º 2 do artigo 372.º e no n.º 2 do artigo 374.º, tenha retirado a promessa de vantagem ou solicitado a sua restituição ou repúdio ao funcionário ou ao terceiro. 2 - O agente pode ser dispensado de pena sempre que, durante o inquérito ou a instrução, e verificando-se o disposto nas alíneas do n.º 1, conforme aplicável, tiver contribuído decisivamente para a descoberta da verdade. 3 - A dispensa de pena abrange os crimes que sejam efeito dos crimes previstos nos artigos 372.º a 374.º, ou que se tenham destinado a continuar ou a ocultar estes crimes ou as vantagens provenientes dos mesmos, desde que o agente os tenha denunciado ou tenha contribuído decisivamente para a sua descoberta. 4 - Ressalvam-se do disposto no número anterior os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais. 5 - A pena é especialmente atenuada se, até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, o agente colaborar activamente na descoberta da verdade, contribuindo de forma relevante para a prova dos factos. 6 - A dispensa e a atenuação da pena não são excluídas nas situações de agravação previstas no artigo 374.º-A.” Portanto, se o crime de corrupção passiva estiver consumado pela solicitação ou aceitação da promessa de vantagem, o arrependimento activo pressupõe a denúncia do crime antes da instauração de procedimento criminal e a não prática do ato ou omissão contrários aos deveres do cargo para o qual solicitou ou aceitou a vantagem e a restituição ou repúdio voluntário da vantagem, se já recebida. Se o funcionário vier a receber a vantagem, só beneficiará da dispensa de pena, para além do mais referido, se restituir a vantagem recebida, que será sempre declarada perdida a favor do Estado - alínea b) do nº 1 do art.º 110º do Código Penal. Se o crime de corrupção activa estiver consumado com a promessa de vantagem ao funcionário, mas depois ocorrer a dádiva real da vantagem, nos termos da alínea c) do artº 374º-B do Código Penal, o agente do crime de corrupção activa tem de, além do mais referido, retirar a promessa de vantagem ou solicitar a sua restituição ou repúdio ao funcionário ou ao terceiro antes da prática do acto ou da omissão contrários aos deveres do cargo. Por outro lado, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 374.º-A do Código Penal, o crime pode ser agravado em função do valor da vantagem. Se houver promessa sem referência a valor, só com a concretização da promessa se pode apurar o valor. O que antecede permite perceber como é relevante o resultado nestes tipos legais de crime e como é absurdo dizer que corresponderia a um crime de consumação continuada, violador do princípio da legalidade, afirmar que a prescrição se refresca com o recebimento da vantagem, ou seja, com a terminação do ato corruptivo. Aliás, a própria lei refere “solicitar ou aceitar” no nº 1 do artº 373º do Código Penal, e o nº 1 do artº 374º do mesmo código refere “der ou prometer”. Quando se aceita a promessa, inicia-se o prazo de prescrição, sem consideração ainda do valor, mas se se apurar que foi recebido algo de valor elevado ou muito elevado, o legislador agrava o crime, por força dos n.ºs 1 e 2 do artº 374º-A do Código Penal. Com o recebimento, o agente actualiza o processo corruptivo, acrescenta algo no processo de uma relevância tal que só pode demandar a aplicação daquele nº 4 do artº 119º do Código Penal. O resultado no crime de corrupção já nada acrescenta à consumação, mas o prazo de prescrição conta-se do recebimento da vantagem, dada a sua relevância, como explicado, desde logo para efeitos de arrependimento activo ou desistência do crime. Aliás, a não ser assim, permitir-se-ia que criminosos continuassem a praticar actos de execução do crime, pagando e recebendo subornos em perfeita impunidade. Correr-se-ia o risco, no limite, de o crime já estar prescrito ainda antes da sua consumação material ou terminação, o que, obviamente, precludiria toda e qualquer possibilidade de perseguição e punição do criminoso, conduzindo não só à impunidade, como ao total descrédito do Estado de direito, em particular dos tribunais e da administração da justiça. Parece-nos, pois, lógico e coerente com o princípio de justiça, que o prazo prescricional dos crimes de corrupção se inicia a partir da data do pagamento dos subornos ou do ato ou omissão contrário aos deveres do cargo do agente passivo do crime no caso de corrupção passiva antecedente. Até porque o nº 1 do art.º 374º do Código Penal refere expressamente “der ou prometer” a funcionário vantagem patrimonial ou não patrimonial. Vista a questão por outro prisma ainda, nos crimes de perigo concreto, o resultado (truncado) não é um perigo não traduzido em qualquer facto tipicamente determinado. Não se pode afirmar a inexistência de uma descrição objectiva de uma acção e/ou de um resultado que propicie a determinação clara das fronteiras entre a plena realização do comportamento incriminado e um seu começo de execução. Há um ponto de referência para se sustentar a admissibilidade da tentativa. É possível distinguir um momento em que há tentativa, de outro momento em que há consumação e de um outro em que há já dano consumado. No caso da corrupção, um ponto de referência para uma distinção entre o tentar e o consumar é o conhecimento pelo funcionário da proposta concreta. Mas a consumação não deixa de ser um tentar algo, uma intenção de obter outro resultado. É para este tipo de crimes que vale o disposto na parte final do nº 1 do art.º 24º do Código Penal, ou seja, para os crimes em que o resultado é exterior ao tipo legal de crime e portanto, indiferente à afirmação da sua consumação, mas não indiferente à valoração do ilícito. Constitui ao fim e ao cabo o resultado que o legislador pretendeu evitar, ao estabelecer, por razões determinadas e que têm a ver com a necessidade sentida de reforçar a protecção de um bem jurídico a antecipação da consumação, por relação à lesão efectiva do bem jurídico tutelado. No fundo são razões de política criminal que terão levado o legislador a formalmente considerar consumados delitos em que a conduta incriminada apenas cria uma situação de perigo para o bem jurídico. Porque na corrupção não se está perante um crime de perigo abstracto, sendo antes um crime de resultado truncado, cujo bem jurídico é a autonomia intencional do Estado, torna-se natural que se procure tal linha de continuidade entre perigo e resultado, como o faz o nº 4 do art.º 119º do Código Penal. O bem jurídico no crime de corrupção não é, pois, uma realidade etérea e metafísica, descoberta pelo intérprete na confiança depositada pelo Estado nos cidadãos e funcionários. Se o legislador quisesse tutelar esse valor teria de antecipar radicalmente o momento da intervenção penal e criar uma incriminação de desobediência e transformar inúmeras irregularidades em crimes, já que qualquer ato de desobediência ou irregularidade da mesma natureza seria idóneo a fazer perigar a referida confiança do Estado nos cidadãos e funcionários. Por outro lado, a perigosidade dos crimes de perigo abstracto liga-se à incontrolabilidade do meio. Por atenção ao valor do bem jurídico tutelado no crime de corrupção e por uma razão de prevenção que se antecipa a tutela penal. Tal antecipação está relacionada com o juízo político-criminal que se baseia no facto singelo de que é insustentável, logo ética e socialmente ilegítima, a oferta de subornos para a prática de certos actos, porque a mesma tem inerente um ataque aos valores da justiça, da igualdade, da solidariedade e do progresso social. Concluindo segundo esta perspectiva, o nº 4 do art.º 119º do Código Penal aplica-se aos crimes de corrupção , como crimes de resultado truncado, por outras palavras, aqueles em que o agente tem em vista a realização de um resultado ulterior não é exigido para a consumação. É certo que o acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/2019 de 6.2.2019, veio a “julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, os artigos 119.º, n.º 1 e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na versão posterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, quando interpretados no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem.” Todavia não concordamos, de todo, com a doutrina ali exposta, relevando, desde logo, o voto de vencido lavrado neste mesmo aresto, segundo o qual “não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a correção de eventuais interpretações, tidas por erróneas, efetuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade... Discordo ainda da decisão porque através dela o Tribunal Constitucional exorbitou a sua jurisdição, constitucionalmente definida (...) Na verdade, resulta cristalino dos art.ºs 277º a 282º da Constituição da República Portuguesa, que a competência do Tribunal Constitucional a que aludem o art.º 221º da Constituição (especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional) e o nº 1 do art.º 223º da mesma (compete ao Tribunal Constitucional apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade, nos termos dos artigos 277.º e seguintes) se queda pela apreciação da inconstitucionalidade ou ilegalidade de normas e não já da sua interpretação. Esta, visando revelar a norma, é-lhe logicamente posterior e exterior. A interpretação é a actividade que permite, a partir da fonte, chegar à regra que esta alberga (Prof. José de Oliveira Ascensão, O Direito, introdução e teoria geral, 13ª edição, pág. 382). No mesmo sentido, Prof. Miguel Teixeira de Sousa (Introdução ao Direito, 2021, pág. 197 e 320). Não por acaso, as regras de interpretação (em sentido amplo) da Constituição da República Portuguesa estão de fora do seu texto, pacificamente patentes nos art.ºs 1º a 13º do Código Civil. A interpretação de normas como alvo da actividade do Tribunal Constitucional apenas surge já na lei ordinária e isolada apenas no nº 3 do art.º 80º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15.11). É justamente a pretensão da apreciação da interpretação a dar à norma que funda a critica à transformação do Tribunal Constitucional em tribunal de quarta instância, totalmente fora do quadro constitucional a esse propósito traçado pela Constituição da República Portuguesa. Mas ainda que se admita semelhante faculdade (com as baias traçadas, por todos, no acórdão do T.Constitucional nº 131/2022, processo nº 1013/2021), dúvidas não restam sobre a flagrante violação das respectivas competências, pelos motivos apontados naquele voto de vencido. Se se evoluir para o elemento interpretativo respeitante à conformidade constitucional, o afastamento ao ali decidido ainda é maior, por violação evidente do princípio constitucional da justiça – art.º 1º, n.ºs 1 e 2 do artº 202º da Constituição da República Portuguesa. Ou seja, a interpretação ali levada a cabo pelo Tribunal Constitucional, seguida pelo tribunal recorrido, é frontalmente desconforme com a Constituição, por isso, a dever ser rejeitada - artº 204º da Constituição da República Portuguesa. Como assim e neste caso, o prazo de prescrição tem o seu início a partir de 1.11.2011, data em que foram alcançados os resultados pretendidos por todos os arguidos: as contratações para trabalho em funções públicas das arguidas MQ e RG. Pelo que também quanto à arguida AM e pelas razões legais atrás alinhadas, não se verifica a prescrição do procedimento criminal. Tendo, entretanto, sido prolatada acusação (em 14.4.2021), notificada a todos os arguidos, que constitui causa de nova interrupção e ainda de suspensão do mesmo prazo - alínea b) do nº 1 daquele art.º 121º e alínea b) do nº 1 do artº 120º do Código Penal. Impõe-se, pois, a revogação da decisão instrutória. * Pronúncia, ou não, dos arguidos. Por definição, um recurso tem por objecto uma decisão judicial. Total ou parcialmente, mas sempre terá aquela baliza como referência. No sistema nacional de recursos, a substituição de uma decisão de primeira instância por decisão de tribunal superior é sempre possível, desde que esta se mantenha nos limites do objecto traçado por aquela. Neste caso, o tribunal de primeira instância quedou a sua decisão por uma questão prévia ou prejudicial, como vimos, pelo que é apenas quanto a esta questão que este tribunal pode ser chamado. A pretensão de proferir decisão instrutória briga com aquela arquitectura, desde logo porque o faria em primeira instância e sobre matéria ainda não apreciada. Consequentemente, procede o recurso limitado apenas à questão da prescrição, devendo os autos prosseguir os seus trâmites em primeira instância. * * * Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida. Sem custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC. * Lisboa, 11 de Abril de 2023 Manuel Advínculo Sequeira Alda Tomé Casimiro Anabela Simões Cardoso |