Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | LAURINDA GEMAS | ||
Descritores: | AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO REGISTO PREDIAL PRESUNÇÃO PROVA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | NEGAR PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I - É de rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto feita no recurso quando, nas conclusões da respetiva alegação, não estão indicados, de forma percetível, os concretos pontos de facto que os apelantes porventura consideram incorretamente julgados, tão pouco indicando, no corpo alegatório, a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida relativamente a cada uma das (hipotéticas) questões de facto impugnadas, tudo sem a devida observância do disposto no art. 640.º do CPC. II - Para a demonstração da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio reivindicado não basta que os autores se possam prevalecer da presunção fundada no registo predial (art. 7.º do Código do Registo Predial) numa situação como a dos autos, em que se discute se a casa reivindicada faz parte integrante de um ou de outro prédio, ambos descritos na Conservatória do Registo Predial, um com registo de aquisição do direito de propriedade a favor dos Autores, o outro com registo de aquisição dos correspondentes direitos reais efetuado a favor dos Réus-reconvintes. III - Como ambas as partes (Autores e Réus) beneficiam da presunção registal, não decorrendo dos factos provados que tenha existido a invocada duplicação de descrições prediais, sendo aos Autores que incumbia a prova de factos que tal revelassem - designadamente alegando e provando que a dita casa de rés-do-chão faz parte integrante do seu prédio e não do prédio dos Réus -, o que não lograram fazer, a sua reivindicação não pode ser atendida. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados I - RELATÓRIO MF e CF Autores na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentaram contra MAF, LMF, JT, VT e MJ, interpuseram o presente recurso de apelação da sentença que julgou a ação e a reconvenção parcialmente procedentes. Na Petição Inicial, apresentada em 20-04-2017, os Autores formularam os seguintes pedidos: “1) Que os RR reconheçam o direito de propriedade dos AA sobre a casa de habitação designada por A-três, composta de casa de rés-do-chão para habitação, com três divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho e logradouro, que confronta de Norte com a própria, do Sul com Rua do …, do Nascente com ÂA e, do Poente com JN e AF, com a área coberta de 82m2 e, área descoberta de 95m2, inscrito na matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial de 33.580,00 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob parte da ficha n.º … da freguesia de ...; 2) Que os RR reconheçam a existência de duplicação na matriz e no registo predial sobre o prédio objecto dos presentes autos designadamente que sobre a mesma realidade material existe duplicação na matriz e no registo predial, designadamente que a casa de habitação identificada em 1), e sobre a qual os RR devem reconhecer o direito de propriedade dos AA, também se encontra inscrita na matriz sob o artigo …º da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob a ficha n.º … e inscrito a favor dos RR desde 02/05/2002 pela inscrição …-… e …-… e …-… e, nessa sequência, eliminada a matriz respectiva e descrição predial – artigo …º e descrição n.º …; 3) declaradas nulas, pela má fé de todos os intervenientes e inexistência de objecto e venda de bem alheio nos termos do artigo 892º do Código Civil as transmissões subsequentes nos termos do disposto no artigo 289º Código Civil relativas ao prédio descrito na conservatória do registo predial de Torres Vedras sob a ficha n.º … e designadamente: a) escritura pública de justificação e compra e venda outorgada pela notária AM, no 2º Cartório Notarial de Torres Vedras, de fls. … a fls. … v. do Livro …-B e correspondente inscrição e descrição predial; b) escritura pública de habilitação, partilha, renúncia de usufruto e compra e vendas outorgada pela notária AM, no 2º Cartório Notarial de Torres Vedras, de fls. … a fls. … v. do Livro …-… e correspondente inscrição e descrição predial, c) Que os RR sejam condenados a desocupar e restituir o prédio urbano propriedade dos AA e restituir aos AA a referida casa de habitação que pertence legitimamente a estes designadamente o prédio A-3: composto de casa de rés-do-chão para habitação, com três divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho e logradouro, que confronta de Norte com a própria, do Sul com Rua … com ÂA e, do Poente com JN e AF, com a área coberta de 82m2 e logradouro de 95m2, inscrito na matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial de 33 580,00€ 4) Que os RR procedam ao pagamento de uma indemnização aos AA pela ocupação indevida do imóvel desde a data da sua ocupação até á entrega e restituição aos AA, valor esse a liquidar em execução de sentença”. Alegaram, para tanto e em síntese, que: - São proprietários de um prédio urbano, sito em Santa Cruz, tendo adquirido o direito de propriedade por sucessão hereditária do pai e marido dos Autores, sendo que antes a aqui Autora havia adquirido o prédio por compra; - Tal prédio urbano é composto por três casas de habitação, sendo que uma delas (a designada por A-três) tem, indevidamente, o direito de propriedade registado a favor dos Réus JT, VT e MJ, que a utilizam, tendo-lhe sido vendida, também indevidamente, pelos Réus MF e CF; - Isso ocorreu porque existe uma duplicação de descrições prediais e de inscrições matriciais, ou seja, o prédio cuja propriedade está inscrita a favor dos Réus, integra na realidade o prédio dos Autores e os negócios que sobre ele incidiram foram possíveis por causa dessa duplicação. Em 04-07-2017, a 1.ª Ré e o 2.º Réu apresentaram a sua Contestação; também os demais (3.º, 4.º e 5.ª) Réus o fizeram, defendendo-se todos, nesses articulados, por impugnação, negando a existência de qualquer duplicação, tanto de registo predial, como de inscrição matricial, tendo ainda os 2.ºs primeiros Réus invocado as exceções de “caducidade da ação” e ilegitimidade ativa (exceções às quais os Autores vieram responder em 11-02-2019, pugnando pela improcedência das mesmas). Os Réus JT, VT e MJ também deduziram reconvenção, formulando os seguintes pedidos: “f) Seja admitida por provada a reconvenção apresentada pelos RR e, em consequência, sejam os AA condenados a reconhecer o direito de propriedade dos RR JT e VT, bem como o direito de usufruto da Ré MJ, sobre o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão com três assoalhadas, cozinha, casa-de-banho, corredor e logradouro, com a área coberta de 82 m2 e descoberta de 95m2, que confronta a Norte com MF, a Sul com Rua do …, a Nascente com AA e do Poente com JN e AF, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º … da freguesia de ... e inscrito na matriz respectiva sob o art. …. g) seja ordenada a demolição da churrasqueira que corta a luminosidade de um dos quartos do prédio dos RR; i) Sejam, ainda, os AA condenados a pagar aos RR, ora contestantes todos os prejuízos que lhes têm causado com os presentes autos, todos eles a liquidar em execução de sentença. j) Não concedendo, caso venham a ser proferida sentença que declare nulas as transmissões realizadas sobre o imóvel propriedade dos RR, ora contestantes, seja proferida sentença em que aqueles sejam ressarcidos do valor pago aquando a aquisição do imóvel com a consequente valorização monetária, bem como sejam, os AA, na hipótese de ficarem com o bem, condenados no pagamento do valor despendido nas benfeitorias realizadas ao longo dos anos, pelos RR., no imóvel, tudo a liquidar em execução de sentença”. Na audiência prévia, foi determinada a realização de perícia (cf. despachos proferidos a 04-09-2019, 22-10-2019 e 29-10-2019), vindo o relatório pericial a ser junto aos autos em 28-07-2020, com um total de 27 páginas, incluindo documentos, do mesmo constando designadamente o seguinte: - resposta negativa à 8.ª questão, em que se perguntava se “Sobre a mesma realidade material - a casa de habitação designada por número A-três, existe duplicação na matriz e no registo predial: a) a casa de habitação número A-Três encontra-se inscrita na matriz sob o artigo …º da freguesia de ..., proveniente de parte do artigo … da dita freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob a ficha n.º … e inscrito a favor dos AA desde 13/10/1980 pela inscrição …-…; b) a mesma casa de habitação A-Três encontra-se inscrita na matriz sob o artigo …º da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob a ficha n.º … e inscrito a favor dos RR desde 02/05/2002 pela inscrição …-… e …-…. e …-…”; - resposta negativa à 9.ª questão, em que se perguntava se existia “duplicação de artigos matriciais e de descrições sobre uma mesma realidade: parte do prédio vendido aos AA no ano de 1980 e que corresponde à habitação A3 e o prédio vendido aos RR no ano de 2002”; - à questão d., de saber se “O prédio identificado no art.º 11º e 12º é um prédio autónomo do identificado no art.º 3º? E, em caso afirmativo, quais as respetivas confrontações?”, foi respondido que: “Conforme resposta e explanações anteriores, tratam-se de prédios autónomos. O prédio identificado no art.º 3º (prédio dos Autores) confronta a Norte com Praceta, e a Sul com o prédio dos RR. O prédio identificado no art.º 11 e 12.º (prédio dos Réus) confronta a Norte com os AA. e a Sul com a Rua do …”; - à questão C) de saber “Se existem evidências no local e/ou através da análise dos documentos que o prédio propriedade dos RR., pudesse fazer parte do prédio vendido aos AA., nomeadamente a habitação identificada como A-3 do artigo …”, foi respondido que “Em face do acima explanado quanto à génese dos dois prédios e da documentação existente, não se pode concluir que o prédio vendido aos RR., fosse parte do prédio vendido aos AA., especificamente a habitação identificada como A-3. A habitação identificada como A-3 (parte do prédio dos AA) e o artigo … (prédio dos RR.), não são o mesmo prédio”; - à questão D), “Queira o Sr. Perito esclarecer se o prédio vendido aos AA, ou seja, o artigo … e o prédio vendido aos RR, o artigo …, são um único prédio e, assim, se houve duplicação matricial do mesmo?”, foi respondido que “Na sequência das respostas e explanações anteriores, resta concluir que não há duplicação matricial. O artigo … e o artigo … são prédios distintos”; - à questão E), “Ou se, aqueles constituem prédios autónomos e respetivas confrontações”, foi respondido que “Os prédios são autónomos e têm as seguintes confrontações (…)”. Em 24-09-2021, foi proferido despacho saneador, por escrito, a julgar verificados de forma tabelar os pressupostos processuais, indeferindo os pedidos reconvencionais, à exceção do vertido na alínea f), bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, considerando-se os seguintes: Objeto do litígio: Pedido principal: 1 - Reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre o prédio indicado em 1 do pedido, com fundamento na inscrição registral do direito de propriedade; 2 - Eliminação da inscrição predial indicada em 2 do pedido com fundamento em duplicação com a descrição do prédio mencionado em 1; 3 - Nulidade do negócio jurídico pelo qual os réus transacionaram o imóvel mencionado em 2 com fundamento na venda de bens alheios; 4 - Indemnização pela ocupação do imóvel referido em 1 com fundamento na ocupação ilícita e nos danos decorrentes dessa ocupação. Pedido reconvencional - Reconhecimento do direito de propriedade dos réus reconvintes sobre o prédio indicado na al. f) da reconvenção, com fundamento na inscrição registral do direito de propriedade e, subsidiariamente, com fundamento na usucapião. Temas da prova: 1 - A existência/inexistência de duplicação da inscrição no registo dos prédios, nos termos invocados na p. i. e nas contestações; 2 - Ocupação do prédio pelos réus e danos decorrentes da mesma, nos termos invocados na p. i.; 3 - Posse do imóvel nos termos invocados pelos réus reconvintes. Realizou-se a audiência final em 12-05-2022, com a prestação de declarações de parte pela Ré MAF e pelo Réu-reconvinte JT, bem pelos Autores, tendo ainda sido ouvida uma testemunha arrolada por estes últimos. Em 08-05-2023, foi proferida a sentença (recorrida) cujo segmento decisório tem o seguinte teor: “Face ao exposto, julgo o pedido principal parcialmente procedente e, em consequência, declaro os autores proprietários do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º ..., da freguesia de ..., julgando improcedente tudo o restante peticionados pelos autores, absolvendo os réus do pedido. Julgo o pedido reconvencional, na parte que foi admitida, procedente e, em consequência, declaro os réus JT e VT proprietários, e a ré MJ usufrutuária, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º … da freguesia de .... Custas da ação e da reconvenção pelos autores. Registe e notifique.” Inconformados com esta decisão, vieram os Autores interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões: I. Vem o presente Recurso de Apelação, interposto da douta Sentença proferida no passado dia 08/05/2023, que declarou os Réus JT e VT proprietários, e a Ré MJ usufrutuária, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º … da freguesia de .... II. Apesar da identidade de áreas que consta dos documentos matriciais quanto aos artigos ..., inscrito a favor dos Autores, e …, inscrito a favor dos Réus, o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal a quo entendeu que tais prédios são distintos. III. O Recorrente demonstrou documentalmente que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na ..., composto por um conjunto de três habitações, com os números …-1, …-2, …-3 e logradouro – vide Documento n.º 1, junto com a petição inicial. IV. Os Autores também lograram provar que foi adjudicada a LE uma parcela composta pelas casas de habitação …-1, …-2, …-3 e logradouro, inscrita na matriz sob o artigo …, atual ficha de registo predial n.º … da freguesia de ... - vide Documento n.º 6, junto com a petição inicial. V. Os Autores juntaram aos autos o contrato promessa de compra e venda celebrado em maio de 1979 e a escritura de compra e venda outorgada no dia 22/09/1980 - vide Documentos n.ºs 7 e 8, juntos com a petição inicial. VI. Também ficou demonstrado nos autos que o prédio descrito sob o n.º …, que os Autores adquiriram a LE e marido, tinha na realidade e atualmente 453,50 m2 - vide Documento n.º 9, junto com a petição inicial. VII. Note-se que a vendedora LE e marido promoveram a retificação de áreas na matriz junto do Serviço de Finanças de Torres Vedras no ano de 1979, por processo de reclamação cadastral n.º …/… - vide Documento n.º 10, junto com a petição inicial. VIII. Após a aquisição do prédio descrito sob o n.º …, os Autores permitiram o usufruto verbal da casa de habitação A-3 à vendedora LE e marido, para férias e fins de semana, devido à idade avançada dos mesmos (vendedores) e do facto de não terem filhos. IX. A residência permanente da vendedora LE e marido situava-se em Lisboa. X. A utilização da casa de habitação A-3 pela vendedora até à data do seu falecimento não foi reduzida a escrito, ou seja, assumiu a forma verbal. XI. Já após a outorga do contrato promessa de compra e venda do prédio descrito sob o n.º ..., em maio de 1979, os Autores realizaram obras na casa de habitação A-3. XII. Os Autores comportavam-se como proprietários da casa de habitação A-3 e assim eram considerados por familiares e vizinhos. XIII. Não se percebe como o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal a quo entendeu que a versão da ré MAF fazia muito mais sentido. XIV. As obras foram realizadas a expensas dos Autores, tendo a Autora pago 50.000 escudos à vendedora LE e marido, após o decurso de processo camarário para ampliação de moradia peticionado pela referida LE - vide Documento n.º 16, junto com a petição inicial. XV. Foi, pois, com manifesta má-fé que a vendedora LE e marido participaram ao Serviço de Finanças de Torres Vedras a casa de habitação A-3 como prédio que se encontrava omisso na matriz predial e ao qual foi posteriormente atribuído o artigo matricial …º, atual ... da freguesia de ... - vide Documento n.º 17, junto com a petição inicial. XVI. A vendedora LE e marido celebraram escritura de justificação da casa de habitação A-3, a qual já havia sido vendida aos Autores em 22/09/1980 - vide Documento n.º 20, junto com a petição inicial. XVII. Posteriormente, a vendedora LE e marido celebraram escritura de compra e venda a MAF e marido, no dia 14/09/1988, reservando para si o usufruto vitalício, da casa de habitação A-3, a qual já havia sido vendida aos Autores em 22/09/1980! - vide Documentos n.ºs 17, 18 e 19, juntos com a petição inicial. XVIII. Por sua vez, a casa de habitação A-3 foi vendida a JT e VT, com reserva de usufruto para MJ, por escritura outorgada em 10/04/2022 - vide Documentos n.ºs 17, 18 e 19, juntos com a petição inicial. XIX. Ora, a vendedora LE e marido eram proprietários de um único prédio urbano na localidade de Santa Cruz. XX. Esse prédio urbano foi vendido aos Autores por escritura outorgada em 22/09/1980. XXI. Todo aquele prédio urbano era da propriedade de CS, viúva de JR, pelo menos até à data do seu falecimento, ocorrido em 1974. XXII. O referido prédio urbano apenas foi adjudicado à vendedora LE na data de 1978. XXIII. Ficou provado nos presentes autos que o prédio cujo direito de propriedade se encontra registado a favor dos Réus faz parte integrante do prédio dos Autores. XXIV. Salvo o devido respeito, os Autores provaram a existência de duplicação na matriz e no registo predial sobre o prédio objeto dos presentes autos. XXV. Efetivamente, sobre a mesma realidade material existe duplicação na matriz e no registo predial. XXVI. A casa de habitação A-3 encontra-se erradamente inscrita na matriz sob o artigo …º da freguesia de ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob a ficha n.º … e inscrita a favor dos Réus desde 02/05/2002 pela inscrição …-… e …-… e …-…. XXVII. Com efeito, a casa de habitação A-3 faz parte integrante de um único prédio composto por três habitações e logradouro, que foi na totalidade adjudicado à vendedora LE e marido, no ano de 1978, e posteriormente vendido na totalidade aos Autores em 22/09/1980. XXVIII. Por outro lado, os supostos compradores MAF e marido nunca pagaram o preço de 2.000.000,00 escudos pela casa de habitação A-3, nem nunca residiram naquela habitação. XXIX. Quem residiu na casa de habitação A-3 até ser realojada num Lar de Terceira idade foi a vendedora LE, onde acabou por falecer. XXX. A vendedora LE tinha ficado viúva, não tinha filhos nem familiares e estava acamada. XXXI. A suposta compradora MAF tratou da LE por cerca de seis meses, tendo aquela exigido em troca o dito imóvel para a auxiliar. XXXII. Verifica-se um negócio simulado de justificação e compra e venda entre a vendedora LE e marido e MAF e seu filho LMF,, aqui Réus. XXXIII. Sendo que a MAF e marido também residiam no local de Santa Cruz e bem sabiam que a casa de habitação A-3 pertencia aos Autores. XXXIV. Ora, verifica-se que sobre a mesma realidade material – a casa de habitação A-3, existe duplicação na matriz e no registo predial. XXXV. A casa de habitação A-3 encontra-se inscrita na matriz sob o artigo … da freguesia de ..., proveniente de parte do artigo …º da dita freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob a ficha n.º … e inscrito a favor dos Autores desde 13/10/1980 pela inscrição …-… – vide Documento n.º 1, junto com a petição inicial. XXXVI. A mesma casa de habitação A-3 encontra-se inscrita na matriz sob o artigo …º da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob a ficha n.º … e inscrito a favor dos Réus desde 02/05/2002 pela inscrição …-… e …-… e …-… – vide Documento n.º 8, junto com a petição inicial. XXXVII. Existe uma duplicação de artigos matriciais e de descrições sobre uma mesma realidade: parte do prédio vendido aos Autores no ano de 1980 e que corresponde à casa de habitação A-3, e o prédio vendido aos Réus no ano de 2002. XXXVIII. A doutrina tem entendido que, em relação ao verdadeiro titular da coisa (os ora Autores), a venda efetuada por aqueles que carecem de legitimidade para a realizar é um ato ineficaz, sendo que, nesse sentido, o dono da coisa ilicitamente vendida por outrem pode reivindicá-la diretamente ao adquirente, sem necessidade de prévia declaração judicial de nulidade da venda. XXXIX. Os Autores detêm sobre a casa de habitação A-3 um título de aquisição válido dos últimos proprietários inscritos regularmente no registo predial e inscrição registral do seu direito de propriedade com data de 13/10/1980 e, portanto, anterior à data da inscrição dos alegados direitos dos Réus, inscritos apenas em 02/05/2022. XL. Os Réus não têm título jurídico de aquisição válido que justifique a detenção da casa de habitação A-3. XLI. Por outro lado, os Réus aproveitaram-se da fraca saúde do Autor marido, que permanecia durante longos períodos gravemente doente e internado em hospitais devido a doença pulmonar, e do facto de o único filho dos Autores, ora Recorrente, se encontrar ausente no estrangeiro por longos anos. XLII. Face ao supra exposto, mal andou o Tribunal a quo ao considerar que o prédio cujo direito de propriedade se encontra registado a favor dos Réus não faz parte integrante do prédio dos Autores. XLIII. Entende o Recorrente que a douta Sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação e errada aplicação do direito, violando a norma legal do artigo 7.º do Código do Registo Predial. XLIV. Dispõe o artigo 7.º do Código do Registo Predial que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.” XLV. Em virtude da mencionada presunção, está o Recorrente dispensado de provar os factos constitutivos do seu direito de propriedade sobre a casa de habitação A-3. XLVI. Consequentemente, reverteu para os Recorridos o ónus de prova dos factos reveladores de que os Autores não são titulares do direito de propriedade cuja presunção decorre do registo predial – vide artigo 344.º n.º 1 do Código Civil. XLVII. Como os Réus, ora Recorridos, não elidiram a mencionada presunção, a conclusão é no sentido de que os Autores são titulares do direito de propriedade sobre a casa de habitação A-3. XLVIII. Foi, pois, violado o disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial. XLIX. Face a todo o supra exposto, deve a douta Sentença recorrida deve ser substituída por outra que que julgue a ação totalmente procedente e, em consequência, condene os Recorridos nos pedidos formulados pelos Autores. Terminaram os Autores requerendo que o recurso seja julgado “procedente, por provado”, e, consequentemente, revogada a sentença. Foi apresentada alegação de resposta pelos 2.ª, 3.º e 4.º Réus, em que defenderam que se mantenha a sentença recorrida, concluindo nos seguintes termos: I - Os AA., ora recorrentes, recorreram da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, proferida em 08.05.2023, que declarou os RR., ora Recorridos, proprietários da nua propriedade e usufrutuária do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º 1289 da freguesia de .... II - Invocam, para tanto, que o prédio dos RR/recorridos integra o prédio dos AA. e que a Sentença Recorrida fez uma incorrecta interpretação e errada aplicação do direito, violando disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial. III - Nas suas alegações, entendem os AA/Recorrentes ter logrado provar que são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano composto por um conjunto de 3 habitações, com os n.ºs …-1, …-2 e …-3 e logradouro, remetendo para o doc. n.º 1 da p.i. (certidão de registo predial). IV - Fazem, ainda, menção ao contrato de promessa de compra e venda, datado de 16 de Maio de 1979 (doc. 7 da p.i.) e a escritura de compra e venda outorgada a 22.09.1980 (doc. 8 da p.i.). V - Bem como ao doc. n.º 9 da p.i. – levantamento topográfico por si mandado executar – entendendo que deste resulta e demonstra que o prédio que os AA/Recorridos adquiriram tinha na realidade e actualmente 453,50 m2. VI - Mas que, o Tribunal a quo, apesar da prova realizada, entendeu não terem provado que o prédio registado a favor dos RR/recorridos faz parte integrante do prédio dos AA/recorrentes, apesar da identidade de áreas que consta dos documentos matriciais dos artigos … (casinha …-3) e … (prédio dos RR.). VII - Concluem, os AA/recorrentes ter efectuado prova da existência de duplicação na matriz e no registo predial sobre o prédio objecto dos presentes autos, pelo que não concordam com a decisão do Mm.º Juiz entendeu que os prédios são distintos. VIII - Os Recorridos pugnam pela manutenção da sentença recorrida, por aquela não ter violado qualquer preceito legal e estar devidamente fundamentada, o que aqui requerem junto de V. Exas. IX - Em todo o seu articulado, os Recorrentes não fizeram uma única menção ao relatório pericial que, para além de outra prova documental, sustentou a decisão do tribunal a quo, de não existir uma duplicação matricial. X - Para os AA/Recorrentes, é como se aquele não tivesse existido, mas nesse relatório e na resposta aos esclarecimentos solicitados pelas Partes e pelo Tribunal, é dito de forma clara e repetida, que são dois imóveis distintos e que não há duplicação matricial. XI - Concluindo, ainda, que, o prédio dos RR/recorridos é distinto do prédio dos AA/recorrentes. XII - E, mais, que o artigo ... (inscrito na matriz a favor dos AA.) e o artigo … (prédio dos RR.), apesar de terem a mesma área são prédios distintos. XIII - Ao contrário do alegado pelos AA/Recorrentes, não foi feita qualquer prova que o prédio adquirido pelos que os AA./recorrentes à LE, tivesse uma área superior à que efectivamente tem, ou seja, 294m2. XIV - Para comprovar uma alegada área superior do prédio remetem os AA/recorrentes, nas suas alegações, para o levantamento por si mandado efectuar e junto aos autos como doc. n.º 9. XV - O topógrafo que o realizou foi ouvido em sede de audiência de discussão e julgamento e, conforme consta da douta sentença, nada de relevante sabia ou acrescentou uma vez que o levantamento efectuado foi realizado a pedido dos AA/Recorrentes e pelos limites que os mesmos indicaram ao topografo. XVI - Na verdade, o prédio vendido aos AA. tem e sempre teve a área de 294 m2. É esta a área que consta, actualmente, do registo predial e que sempre constou da sua descrição, nomeadamente, quando os AA./Recorrentes, compraram o prédio à LE. (neste sentido, cópia da descrição do prédio em livro com o n.º ..., junto à contestação e mencionado no relatório pericial.) XVII - Nunca tendo tido área superior. Nem o prédio dos RR, integra ou alguma vez integrou, o prédio dos AA/Recorrentes e que lhes foi vendido pela LE. XVIII - Salvo algum lapso dos RR/Recorridos, nunca foi junto aos autos, nem o documento 10, nem o documento 16 da p.i., que tinham sido protestados juntar. XIX - Não foi feita qualquer prova quanto a rectificação de áreas pela LE, nos termos alegados pelos AA/recorrentes, ou do pagamento de obras por estes à LE e realizadas no prédio reivindicado. XX - Quanto à alegada incorrecta interpretação do artigo 7.º do Código de Registo Predial, salvo o devido respeito por melhor opinião, não houve qualquer violação de tal preceito na sentença recorrida. XXI - Com efeito, não concedendo, mas seguindo a linha de raciocínio dos AA/Recorrentes, quanto à interpretação dada ao artigo 7.º do Código de Registo Predial, sempre se dirá que os RR/Recorridos lograram fazer prova que afasta a presunção do registo. XXII - Com efeito, o relatório pericial e demais prova documental é conclusivo pela inexistência de duplicação predial e, assim, que a casa de habitação …-3, não é o prédio propriedade dos RR. Concluindo que, os prédios são distintos e autónomos e o prédio propriedade dos RR., não é parte integrante do prédio dos AA. XXIII - Reitera-se, não houve qualquer errada interpretação do artigo 7.º do Código de Registo Predial e a sentença recorrida não labora em vício ou erro, encontrando-se devidamente fundamentada. XXIV - Sendo ainda certo que, o que consta do registo predial é que o prédio tem (e sempre teve) uma área de 294 m2, o que é comprovado pelo relatório pericial e das respostas aos esclarecimentos das partes e do Tribunal. XXV - Essa é a área do prédio dos AA, quer do registo, quer das medidas efectuadas pelo Sr. perito e que constam do relatório pericial. XXVI - Reiterando-se, conforme consta da sentença, que o prédio dos AA/recorrentes e o prédio dos RR/recorridos, são dois prédios distintos e autónomos; e a casa identificada como …-3 não é a casa dos RR/recorrentes. XXVII - A sentença não labora em erro ou vicio, e encontra-se devidamente fundamentada pelo que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão de reconhecer o direito de propriedade dos RR/recorridos do prédio que lhes foi vendido e que se encontra registado a seu favor, pugnando-se, assim, pela manutenção de tal decisão, o que aqui se requer. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II - FUNDAMENTAÇÃO Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC). Identificamos as seguintes questões a decidir: 1.ª) Se ficou provado que o prédio cujo direito de propriedade se encontra registado a favor dos Réus faz parte integrante do prédio dos Autores, estando provada a existência de duplicação na matriz e no registo predial sobre a parte do prédio vendido aos Autores no ano de 1980, que corresponde à casa de habitação …-3, e o prédio vendido aos Réus no ano de 2002; 2.ª) Se, nessa conformidade, os Autores devem ser considerados (com base na presunção decorrente do registo predial a seu favor) os titulares do direito de propriedade sobre tal prédio (a casa de habitação A-3), que os Réus deverão restituir àqueles. Dos Factos Na sentença foram considerados provados os seguintes factos: 1 - O direito de propriedade sobre o prédio sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º …/…, está inscrito a favor dos Autores em comum e sem determinação de parte ou direito por via de sucessão hereditária por morte de AF. 2 - De acordo com a descrição predial, tal prédio está inscrito na matriz predial urbana sob os artºs …, … e …, todos da freguesia de ..., correspondendo cada artigo a uma casa de habitação, perfazendo o total de casas de habitação e logradouro a área de 294 m2. 3 - O prédio agora inscrito sob o art.º … estava anteriormente inscrito sob o art.º ….º. 4 - O prédio referido em 1 esteve anteriormente descrito sob o n.º … e inscrito na matriz sob o art.º …. 5 - Por escritura pública de 22 de setembro de 1980, LE e marido, AE, declararam vender à Autora MF, casada sob o regime da comunhão geral com AF, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º … e inscrito na matriz predial sob o art.º …. 6 - O direito de propriedade sobre o prédio sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º …/… está inscrito a favor dos Réus JT e VT, encontrando-se registado a favor da Ré MJ o direito de usufruto, direitos adquiridos por compra. 7 - Esse prédio está atualmente inscrito na matriz predial urbana sob o art.º …, anterior art.º …. 8 - Por escritura pública de habilitação, partilha, renúncia de usufruto e compra e venda, celebrada a 10-04-2002, os Réus MAF e LMF, este por si e na qualidade de procurador de LE e marido, AE, declararam vender à Ré MJ o direito de usufruto sobre o prédio mencionado em 6 e 7 e declararam vender a nua propriedade aos Réus JT e VT. 9 - Por escritura pública de justificação e compra e venda 14 de julho de 1988, LE e marido, AE, declararam que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do um prédio urbano constituído por casa de rés-do-chão para habitação, não descrito na Conservatória do Registo Predial e inscrito na matriz respetiva em nome da declarante mulher sob o art.º …. 10 - Por essa mesma escritura LE e marido, AE, declararam vender à Ré MAF, pelo preço de dois milhões de escudos, o mencionado prédio, reservando para os vendedores o usufruto vitalício até à morte do último. Na sentença foram considerados não provados os factos “da p. i. respeitantes: - à invocada duplicação; - à invocada área de 489 m2, retificada para 453,50 m2, [superior portanto à área que consta da descrição predial do prédio cujo direito de propriedade se encontra registado em nome dos autores e que está referido supra sob os nºs 1 e 2] que teria o prédio que os autores compraram a LE e marido (cfr. artº 10º da p. i.); - aos danos alegados. Da contestação não se provaram os factos relativos à posse invocada para fundamentar a usucapião.” 1.ª questão – Da prova da indevida duplicação de prédios na matriz e no registo Importa que façamos algumas considerações prévias a respeito do quadro normativo aplicável ao recurso quando versa sobre matéria de facto. Conforme previsto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Dispõe o artigo 640.º do CPC, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que: “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.” É conhecida a divergência jurisprudencial que existiu a respeito da aplicação deste normativo e da sua conjugação com o disposto no n.º 1 do art. 639.º do CPC, atinente ao ónus de alegar e formular conclusões, vindo o STJ a firmar jurisprudência no sentido do “conteúdo minimalista” das conclusões da alegação, conforme espelhado no acórdão do STJ de 06-12-2016 - Revista n.º 2373/11.0TBFAR.E1.S1 - 1.ª Secção, sumário citado na compilação de acórdãos do STJ, “Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ”, disponível em www.stj.pt, bem como o acórdão do STJ de 01-10-2015, no processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. E mais recentemente no AUJ do STJ de 17-10-2023, proferido no proc. n.º 8349/17.6T8STB.EI-A.S1, em que se decidiu uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”, e em cuja síntese final se afirmou designadamente que: “(…) decorre do art.º 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.” Nesta linha, conclui-se resultar da conjugação do disposto nos artigos 635.º, 639.º e 640.º do CPC que o ónus principal a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto. Já a alínea a) do n.º 2 do citado art. 640.º do CPC consagra um ónus secundário, cujo cumprimento, quanto aos invocados erros de julgamento das concretas questões de facto, não tendo de estar refletido nas conclusões da alegação recursória, deverá igualmente ser observado, sob pena de rejeição do recurso, na parte respetiva. Assim, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 16-12-2020, no processo n.º 8640/18.5YIPRT.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citando-se, pelo seu interesse e clareza, as seguintes passagens do respetivo sumário: “I - No âmbito do recurso de apelação visando a impugnação da decisão de facto podem distinguir-se dois ónus que incidem sobre o recorrente: Um ónus principal, consistente na delimitação do objecto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC; E Um ónus secundário, consistente na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC. II - Este ónus secundário não visa propriamente fundamentar e delimitar o recurso, mas sim facilitar o trabalho da Relação no acesso aos meios de prova achados relevantes. III - O controlo do cumprimento deste ónus secundário deve ser feito pela Relação em termos funcionalmente adequados e em conformidade com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.” Na doutrina, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, Almedina, págs. 165-166, sintetiza da seguinte forma o sistema vigente sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto: “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; a. Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; a. Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; b. O recorrente pode sugerir à Relação a renovação da produção de certos meios de prova, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. a), ou mesmo a produção de novos meios de prova nas situações referidas na al. b). Porém, como anotamos à margem desses preceitos, não estamos perante um direito potestativo do recorrente, antes em face de um poder-dever da Relação que esta deve usar de acordo com a perceção que recolher dos autos; c. O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente; d. Na posição em que o recorrido se encontra, incumbe-lhe o ónus de contra-alegação, cujo incumprimento produz efeitos menos acentuados do que os que se manifestam em relação ao recorrente.” Nos presentes autos, face ao teor das conclusões da alegação de recurso, admitimos que os Apelantes pretendem ver alterada a decisão da matéria de facto constante da sentença. Porém, é manifesto que não cuidaram de indicar aí quais os concretos pontos de facto que porventura consideram incorretamente julgados. Ademais, tão pouco indicaram, no corpo da sua alegação recursória, a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida relativamente a cada uma das (hipotéticas) questões de facto impugnadas. Limitaram-se os Apelantes a discorrer de forma genérica e conclusiva, confundindo inclusivamente questões de facto com questões de direito, sem observarem o disposto no art. 640.º do CPC, sendo evidente que não especificaram, com o mínimo de precisão, quais os pontos de facto que (porventura) pretendem impugnar. Logo, rejeita-se a impugnação da decisão da matéria de facto. 2.ª questão – Da reivindicação do prédio Na fundamentação de direito da sentença constam as seguintes considerações (omitimos a nota de rodapé): “Esta ação é uma ação de reivindicação, visando os autores obter o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente entrega do imóvel que descreveram na p. i. (artº 1311º/1 C.Civil), com a amplitude que invocaram, ou seja, integrando também o prédio que dizem estar erradamente inscrito a favor dos réus. O fundamento para tal radica no facto de os autores alegarem que os réus ocupam um prédio urbano que, na realidade, integra o prédio que se encontra inscrito a favor dos autores. A situação que originou este litígio resultou da circunstância de existir uma duplicação de descrições e inscrições prediais. Os réus, por seu lado, alegam que o prédio que ocupam e cujo direito de propriedade está registado a seu favor na conservatória do registo predial, é um prédio distinto do prédio dos autores, não existindo qualquer duplicação. Para consubstanciar a causa de pedir nas ações de reivindicação, o autor deve, em princípio, alegar e provar a aquisição originária do direito de propriedade, não bastando a alegação e prova da aquisição derivada. Os autores invocaram como fundamento do pedido o facto de terem registado em seu nome o direito de propriedade na competente Conservatória, o que realmente se verifica. Nos termos do artº 7º do Cód. Registo Predial, o registo definitivo do direito de propriedade constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Não tendo sido alegados factos suscetíveis de ilidirem a presunção derivada do registo, a inscrição registral do direito de propriedade prevalece e é condição suficiente para consubstanciar a causa de pedir da presente ação. O litígio entre as partes não está propriamente na questão da propriedade em si mesma considerada. Está antes na amplitude, em termos de área, do direito dos autores, mais especificamente quanto à circunstância de o prédio reivindicado integrar também o prédio inscrito a favor dos réus. Aliás, a reivindicação que se pretende por via desta ação respeita em exclusivo à parte que, nos termos alegados pelos autores, é ocupada ilicitamente pelos réus. Os réus, por seu lado, entendem que o seu prédio é autónomo e não faz parte integrante do prédio dos autores. Tendo em atenção a matéria de facto provada e não provada, temos que a versão dos autores é totalmente improcedente, pois não se provou a invocada duplicação, isto é, não se provou que o prédio cujo direito de propriedade se encontra registado a favor dos réus faça parte integrante do prédio dos autores. Em face dos factos provados, tendo em conta as descrições prediais e os direitos registados, temos que apenas se pode declarar os autores proprietários do prédio descrito sob o nº ..., procedendo nessa medida o pedido principal, e declarar os réus JT e VT proprietários, e a ré MJ usufrutuária, do prédio descrito sob o n.º 1289, procedendo, nessa medida, o pedido reconvencional. Isto significa que, na realidade, tendo em conta o litígio entre as partes e a utilidade prática desta ação para os autores, a ação principal improcede totalmente e o pedido reconvencional, na parte admitida, procede integralmente. Os réus não puseram em causa o direito dos autores nos termos em que eles resultam do registo. O litígio incidia sobre a parte que os autores consideravam ser sua e que se reportava ao prédio dos réus. E, quanto a isto, os autores decaíram in totum.” Os Autores-Apelantes discordam deste entendimento, continuando a arrogar-se a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio objeto das escrituras referidas em 8 e 9 dos factos provados. Apreciando. Como é consabido, a ação de reivindicação é uma ação real, em que a causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade de que o autor se arroga titular (cf. art. 581.º, n.º 4, do CPC), a que acresce a ocupação abusiva do prédio pelo demandado, cabendo ao autor alegar e demonstrar tais factos (art. 342.º, n.º 1, do CC). De salientar ainda que, na ação de reivindicação, sendo invocada pelo demandante, como título do seu direito, uma forma de aquisição originária da propriedade, mormente a usucapião (cf. art. 1287.º do CC) ou a acessão, apenas precisa de provar os factos de que emerge o seu direito. Mas sendo a aquisição derivada (como sucede no caso dos autos), não basta ao autor provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada, já que nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito. Assim, como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, nestas situações, “é preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir. Probatio diabolica lhe chamam alguns autores. Para esse efeito, podem ter excepcional importância as presunções legais resultantes da posse, se ela puder ser oposta ao detentor, e do registo (arts. 1268.º do Cód. Civ. e 8.º do Cód. Reg. Pred.).” - in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª ed., pág. 115. Todavia, poderá bastar para a prova dos factos constitutivos do direito de propriedade uma presunção da propriedade, como a resultante da posse (art. 1268.º do CC) ou do registo (art. 7.º do Código do Registo Predial). Para que alguém beneficie da presunção fundada na posse (que, no caso, sublinhe-se, não é invocada pelos Autores-Apelantes) terá que demonstrar os elementos essenciais que caracterizam a posse à luz do disposto no art. 1251.º do CC, a saber o corpus e o animus, consistindo o primeiro na atuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor, e o segundo na intenção de exercer como seu titular um direito real sobre a coisa. Quanto à presunção decorrente do registo predial (esta sim invocada pelos Autores-Apelantes), encontra-se consagrada no art. 7.º do Código Registo Predial, segundo o qual o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão do STJ de 28-06-2007, na revista n.º 2008/07 - 7.ª Secção (sumário disponível em www.stj.pt): “Na acção de reivindicação baseada exclusivamente na presunção de propriedade derivada da inscrição do imóvel no registo predial a favor do autor, este está dispensado de provar os factos constitutivos do seu direito, incumbindo ao réu o ónus da prova do contrário (arts. 350.º, n.ºs 1 e 2, e 344.º, n.º 1, do CC).” De salientar, todavia, que, como é absolutamente pacífico, a presunção fundada no registo predial não tem o alcance que os Autores-Apelantes lhe parecem atribuir, muito menos numa situação como a dos autos em que se discute se uma determinada casa faz parte integrante de um ou de outro prédio, ambos descritos na Conservatória do Registo Predial, um com registo de aquisição do direito de propriedade a favor dos Autores, o outro com registo de aquisição dos correspondentes direitos reais efetuado a favor dos Réus-reconvintes. A este respeito, veja-se, a título meramente exemplificativo, os seguintes acórdãos do STJ (todos com sumário disponível em www.stj.pt): - de 24-01-2008, na Revista n.º 3911/07 - 2.ª Secção, em cujo sumário se explica que: “I - A identificação física dos prédios, nomeadamente confrontações, áreas e limites, não é abrangida pela presunção derivada do registo predial. II - Na acção de reivindicação, não basta o autor estabelecer a nulidade da escritura de justificação outorgada pelo réu e respeitante à parcela reivindicada: ainda que fosse reconhecida como nula a dita escritura, despojando-se o réu da presunção derivada do registo predial nela fundado, continuava a ser necessário provar que o autor é que era o proprietário, por integrar-se esse terreno em seu prédio.” - de 22-02-2017, na Revista n.º 1854/13.6TBVRL.G1 - 2.ª Secção, afirmando-se no respetivo sumário que: “III - Para além da prova em contrário, a presunção derivada do registo, consagrada no art. 7.º do CRgP, tem dois limites: (i) o limite derivado do art. 1268.º, n.º 1, do CC, já que aquela cede perante uma presunção derivada da posse mais antiga ou de igual antiguidade; e (ii) o limite derivado do facto de não abranger os elementos identificadores dos prédios, uma vez que não existem meios que assegurem esses elementos, de modo a que as descrições se tornem fidedignas. IV - Não abrangendo a presunção derivada do registo predial a área, as confrontações e a localização do prédio, era aos autores que competia fazer a prova desses elementos em termos de se concluir que o armazém e o logradouro de que se arrogam proprietários faziam parte do prédio registado em seu nome.” - de 30-05-2017, na Revista n.º 2244/14.9T8ALM.L1.S1 - 1.ª Secção, em cujo sumário se refere, além do mais, o seguinte: “III - O princípio segundo o qual “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, que decorre do art. 7.º, do CRgP, destina-se a facilitar a tarefa do interessado em demonstrar todas as anteriores aquisições derivadas do prédio de que se arroga titular que recuem no tempo até à primeira aquisição originária, dispensando-o de a realizar, atendendo à sua extrema dificuldade, expressa na denominada «probatio diabolica». IV - Trata-se de uma presunção de natureza ilidível e alcance limitado, circunscrevendo-se ao direito inscrito, ao objeto e aos sujeitos da relação jurídica emergente do registo, não abrangendo os elementos da descrição e de identificação do prédio, designadamente, a sua área e confrontações, que têm por finalidade única a sua identificação física, económica e fiscal, em virtude da natureza, por via de regra, meramente, declarativa e não constitutiva do registo, cujas regras não resolvem os litígios reais ou de demarcação.» No caso dos autos, não se discute que os Autores são proprietários do prédio referido em 1 a 5 do elenco dos factos provados, sendo também de fora de dúvida que os Réus são proprietários (da raiz) e usufrutária do prédio a que se referem os pontos 6 e 10. Ambas as partes (Autores e Réus) beneficiam da presunção registal, não decorrendo dos factos provados que tenha existido a invocada duplicação de descrições prediais. Ora, aos Autores incumbia terem feito prova de factos que tal revelassem, designadamente alegado e provado que a dita casa de rés-do-chão para habitação (cf. ponto 9) faz parte integrante desse seu prédio e não do prédio dos Réus. Porém, tal como se afirma na sentença recorrida, não lograram fazer essa prova. Assim, não se verifica o invocado erro de julgamento, improcedendo as conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento. Vencidos os Autores-Apelantes, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais do presente recurso (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). *** III - DECISÃO Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida. Mais se decide condenar os Autores-Apelantes no pagamento das custas do recurso. D.N. Lisboa, 07-12-2023 Laurinda Gemas Carlos Castelo Branco Higina Castelo |