Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1159/22.1PHLRS.L1-3
Relator: ALFREDO COSTA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DECLARAÇÕES
VITIMA
IN DUBIO PRO REO
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto exige a especificação rigorosa dos pontos impugnados e a indicação clara dos meios probatórios que impunham decisão diversa, conforme impõe o artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
– A valoração das declarações da vítima, especialmente em crimes de natureza sexual ou de violência doméstica, não depende de corroboração por testemunhos presenciais, sendo admissível a sua credibilização com base em elementos indirectos e consistência narrativa.
– O princípio in dubio pro reo aplica-se apenas quando subsiste dúvida séria e razoável, não bastando divergências de versões para impor uma decisão absolutória, se a prova produzida sustentar convicção fundada e motivada do tribunal.
– A determinação da medida da pena deve atender aos critérios de culpa e prevenção, sendo admissível a suspensão da execução nos termos dos artigos 50.º e 53.º do Código Penal, quando tal realize de forma adequada as finalidades da punição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
I - Nestes autos, que correram termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Loures - JL Criminal - Juiz 4, em que é AA, com os restantes sinais dos autos, foi proferida sentença, que decidiu nos seguintes termos: (transcrição)
• Condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, na pessoa da assistente BB, p. e p. pelo artigo 152.º n.ºs 1 a) e c) e 2 a) do CP, na pena parcelar de 3 (três) anos de prisão;
• Condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, na pessoa de CC, p. e p. pelo artigo 152.º n.ºs 1 d) e e) e 2 a) do CP, na pena parcelar de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
• Condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, na pessoa de DD, p. e p. pelos artigos 153.º n.º 1e 155.º n.º 1 a), ambos do CP, na pena parcelar de 10 (dez) meses de prisão;
• Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos de prisão;
• Suspender a pena única de prisão aplicada ao arguido AA pelo período de 4 (quatro) anos e mediante a sujeição a regime de prova, que contemple tratamento, se necessário, relativamente a eventual patologia de que o arguido padeça, nos termos dos artigos 50.ºs n.ºs 1 e 5, 52.º n.º 3, 53.º e 54.º, todos do CP e 34.º-B n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro;
• Condenar o arguido AA na pena acessória prevista no artigo 152.º n.ºs 4 e 5 do CP de proibição de contactos, diretamente ou por interposta pessoa, com a assistente BB, incluindo o afastamento da residência ou do local de trabalho desta, com exceção do estritamente necessário, no que se refere ao exercício das responsabilidades parentais do menor CC, pelo período de 4 (quatro) anos. A execução da pena de proibição de contactos, sem prejuízo de poder ser revista a forma de execução, será acompanhada dos meios técnicos de controlo à distância;
• Condenar o arguido AA na pena acessória prevista no artigo 152.º n.º 4 do CP de obrigação de frequência de Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), a ser executado sob supervisão da DGRSP;
• Não aplicar ao arguido AA qualquer das penas acessórias previstas no artigo 152.º n.ºs 4 e 5 do CP, no que respeita à vítima CC;
• Condenar o arguido AA a pagar à assistente BB a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos dos artigos 21.º n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e 82.º-A do CPP;
• Condenar o arguido AA a pagar à vítima CC, representado pela sua progenitora, BB, a quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos dos artigos 21.º n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e 82.º-A do CPP;
• Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, nos termos conjugados dos artigos 513.º n.º 1 e 514.º n.º 1, ambos do CPP e artigos 8.º n.º 9 e 16.º, ambos do RCP e Tabela III, a este anexa.”.
*
II- Não se conformando com esta decisão, dela interpôs recurso o Arguido, com as seguintes conclusões: (transcrição)
I. O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela prática de um crime de violência doméstica agravada, na pessoa da assistente BB, p. e p. pelo artigo 152.º n.ºs 1 a) e c) e 2 a) do Código Penal; um crime de violência doméstica agravada, na pessoa de CC, p. e p. pelo artigo 152.º n.ºs 1 d) e e) e 2 a) do Código Penal e um crime de ameaça agravada, na pessoa de DD, p. e p. pelos artigos 153.º n.º 1 a), ambos do Código Penal.
II. O Tribunal a quo deu como provado no ponto 4 que “Ao longo de todo o período de efetiva coabitação, em, pelo menos, oito vezes, no domicílio comum, as mais das vezes quando aparentava estar embriagado, o arguido desferiu pancadas com as mãos abertas e fechadas na assistente, atingindo-a na cara e corpo, não se coibindo nessas ocasiões, com força muscular, de lhe puxar os cabelos, e bem assim de lhe desferir empurrões” (…)Por força de tais condutas do arguido, a vítima sofria dores, e bem assim lesões visíveis, como hematomas, nas zonas atingidas, mormente olhos.”
III. Ora, não se concebe em que assentou a convicção do Tribunal a quo assentou, embora a mesma seja mencionada como tendo sido apenas assente nas declarações para memória futura da assistente e depoimento da assistente na audiência de julgamento, gravadas a 24/07/2023 e 07/11/2024, respectivamente, de facto, em nada mais poderia ter sido porquanto mais ninguém viu e/ou o referiu.
IV. Na verdade, nem a própria assistente o confirmou tal qual, sendo que o seu depoimento revelou-se pouco claro, impreciso e incoerente.
V. E, a este respeito a testemunha EE foi este peremptório em afirmar que nunca assistiu a nenhuma agressão do arguido para com a assistente (cfr. minuto 18:56 a minuto 19:00, da sessão de julgamento de 07/11/2024, com início às 11:23 e fim às 12:04).
VI. De igual modo, disse esta testemunha que nunca viu lesões no rosto da sua mãe, sendo que a única vez que a viu com “um olho completamente negro” quando estavam na casa de ... (cfr. minuto 6:21).
VII. O arguido prestou declarações e negou tal facto (sessão de 07/11/2024 com início às 09:43 e fim às 10:58) (cfr. minuto 6:50).
VIII. Também não se entende no que se baseou o Tribunal a quo para concluir que o arguido teria praticado os factos que lhe são imputados contra a assistente “em, pelo menos, oito vezes, no domicílio comum”?!
IX. É que tendo em conta os factos descritos na acusação a maior parte dos mesmos terão alegadamente ocorrido fora do domicílio comum de assistente e arguido.
X. Assim, os factos 4) a 6) da matéria dada como provada foram incorrectamente julgados como provados.
XI. O Tribunal a quo deu também como provado no ponto 9 que “o arguido desferiu várias pancadas com as mãos abertas e fechadas na cara da assistente”.
XII. Também aqui o Tribunal a quo mais uma vez se cingiu a corroborar a tese apresentada pela assistente, não fazendo qualquer juízo crítico sobre o mesmo.
XIII. O Tribunal recorrido de como provado no ponto 8 que “a assistente foi apelidada pelo arguido de puta e que tinha amantes, tendo a mesma desferido uma bofetada na face do arguido para se defender”.
XIV. Porém, este facto foi fixado como matéria de facto, porque isso mesmo resulta das declarações credíveis que o arguido prestou, pois até então a assistente em todas as situações que foi ouvida nos presentes autos, nunca o referiu.
XV. Com efeito, só depois de o arguido o ter dito, o Tribunal a quo confrontou a assistente desse facto é que a mesma o confirmou (minuto 4:14), do seu depoimento de 07/11/2024, mas até então nunca o tinha dito.
XVI. Também aqui o Tribunal a quo se cingiu a corroborar a tese apresentada pela assistente, não fazendo qualquer juízo crítico sobre o mesmo.
XVII. Pelo que, andou mal o Tribunal a quo ao considerar provado no ponto 9, que “nessa sequência, o arguido desferiu várias pancadas com as mãos abertas e fechadas na cara da assistente.”
XVIII. Tal como não deveria também ter sido dado como provado no ponto 10 que “Por força de tal conduta do arguido, a assistente (…) sofrendo dores e marcas visíveis nas zonas atingidas.”
XIX. É que a assistente nunca disse que dor teria sentido, com que marcas teria ficado, nem que zonas do seu corpo teriam alegadamente sido atingidas, mostrando-se, por isso, este facto também incorrectamente julgado pelo Tribunal a quo.
XX. O Tribunal recorrido deu como provado nos pontos 11 e 12 que “ao longo de todo o período de efetiva coabitação, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, as mais das vezes quando aparentava estar embriagado, no contexto de discussões, em alguns episódios na presença do filho comum CC, o arguido dirigiu à assistente expressões e apodos como “PROSTITUTA, PUTA, ORDINÁRIA, NÃO VALES NADA” e “ao longo de todo o período de efetiva coabitação, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, quando o filho comum CC tinha já capacidade cognitiva para entender o que lhe era dito por terceiros, o arguido abordou o mesmo e declarou-lhe que a assistente era uma puta, e que se CC continuasse com sua mãe não teria futuro, expressões de que CC ficou sempre bem ciente”.
XXI. No entanto, ambos foram incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo pois nem assistente nem testemunha alguma o disse.
XXII. O tribunal a quo optou novamente por dar prevalência à palavra da assistente desconsiderando por completo as declarações do arguido.
XXIII. O Tribunal deu como provado nos pontos 13 a 17 que “no dia ... de ... de 2015, pelas 21h00, arguido, assistente e filho comum, CC, encontravam-se no domicílio comum, à data sito na .... (…) Nessas circunstâncias, arguido e assistente entraram em discussão, em moldes não apurados. (…) Nesse contexto, a assistente abandonou o domicílio comum, e, com seu filho CC, abrigou-se no interior da sua viatura automóvel, aparcada junto à dita residência, com vista a, na manhã do dia seguinte, se deslocar para casa de seus pais. (…) Então, via telefónica, o arguido instou elementos da esquadra da PSP de ... a deslocar-se junto da dita viatura, pretextando que a assistente estaria ali a maltratar o filho comum CC, o que bem sabia não ser verdade. (…) Por força de tal contacto, efetivo da PSP de imediato se deslocou ao local, contactando a assistente, encontrando no interior da dita viatura a mesma e seu filho CC, este deitado num dos bancos, coberto por uma manta e com a cabeça numa almofada, cuidados que a mãe lhe prestara momentos antes.”
XXIV. Ora, se não se apurou em que moldes teria ocorrido a alegada discussão entre arguido e assistente, não se pode concluir que esta tivesse saído do domicílio comum por facto imputável ao arguido.
XXV. Se a assistente saiu de casa com o filho CC, abrigando-se no interior da sua viatura automóvel, aparcada junto à dita residência fê-lo por que quis.
XXVI. É que, apesar da assistente ter dito na audiência a 07/11/2024 sobre o arguido “estava-me a ofender eu peguei no meu filho e fui para dentro do carro” (minuto 6:44), a verdade é que, e uma vez mais, a assistente não concretizou o conceito “ofender” que referiu.
XXVII. E não o fez porque, uma vez mais, tal não aconteceu.
XXVIII. Ademais, a situação descrita não evidencia que a assistente e menor CC estivessem em perigo e que assim fosse por causa do arguido.
XXIX. E, como disse a assistente “eu não fiz queixa nenhuma” (minuto 7:09) e “ia para ... para a casa dos meus pais” (minuto 8:03).
XXX. O Tribunal a quo deu como provado no ponto 16 que “Então, via telefónica, o arguido instou elementos da esquadra da PSP de ... a deslocar-se junto da dita viatura, pretextando que a assistente estaria ali a maltratar o filho comum CC, o que bem sabia não ser verdade”.
XXXI. Porém, andou mal, ao dar tal facto como provado, pois, a testemunha FF quando instada na audiência de julgamento de 20/11/2024, com início às 14:40 e fim às 14:47, disse não conhecer o arguido (minuto 0:55 ao minuto 1:00).
XXXII. Na verdade, esta testemunha revelou nem sequer saber porque motivo se pretendia que fosse inquirida (minuto 1:40) sendo que, nem sequer o nome da assistente “BB” lhe dizia o que quer que fosse… (minuto 1:44).
XXXIII. Como resulta do depoimento desta testemunha, esta nem se recordava sequer dos factos dos nos autos, nem de situação análoga, sobre os quais pudesse interessar depor.
XXXIV. Com efeito, esta testemunha chegou mesmo a perguntar: “mas qual era a minha intervenção neste…neste…. Eu estava a receber uma chamada? Fui ao local?” (minuto 2:19)
XXXV. Como está gravado, só depois de várias “dicas” do Ministério Público que inclusivamente descreveu à testemunha os factos contidos na acusação é que esta disse “vim a perceber que era familiar, não sei o tipo de relação” (minuto 3:47 a 3:52) – sobre quem teria telefonado para a esquadra, tendo “a impressão” que era “talvez companheiro da vítima” (minuto 4:57 a
5:02), não o afirmando com certeza.
XXXVI. Não obstante, em nenhum momento do seu depoimento a testemunha disse que foi o arguido AA que fez a chamada telefónica que recebeu na esquadra.
XXXVII. Subsistindo, assim, a dúvida sobre a autoria de tais telefonemas.
XXXVIII. Pelo que o ponto 16 foi incorrectamente julgado pelo Tribunal a quo.
XXXIX. Para além do mais, o Tribunal a quo considerou como factos provados nos pontos 4 e 11 que o arguido teria praticado os factos vertidos na acusação pública “quando aparentava estar embriagado”.
XL. Contudo, das declarações complementares prestadas pela assistente na audiência decorria a 07/11/2024 (11:01 a 11:16), disse a assistente, sobre o arguido “estava sempre embriagado” (cfr. minuto 11:10).
XLI. Assim, s.m.o., o Tribunal a quo ao dar como provados estes factos violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
XLII. Mas, e se assim fosse?
XLIII. O arguido nega as imputações que lhe são feitas na acusação pública e pelas quais foi condenado.
XLIV. No entanto, e se as condutas imputadas ao arguido como tendo sido praticadas por este contra a assistente e o menor CC – o que não se admite - o tivessem sido sempre no estado “embriagado”?
XLV. Nesse caso, seria possível considerar que “o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei”, como foi dado como provado no ponto 47 da sentença proferida pelo Tribunal a quo?
XLVI. Existiria a possibilidade séria de que o arguido nesses momentos pudesse ser inimputável ou, ao menos, sofrer de uma imputabilidade reduzida, com as inerentes consequências legais?!
XLVII. Deveria o Tribunal recorrido ter indagado sobre tal eventualidade designadamente requerendo perícias ao arguido sobre esse aspecto, em aplicação do princípio do processo penal de descoberta da verdade material?!
XLVIII. Com efeito, nada consta dos autos (relatório, informação médica e/ou outros) que indicie situação de adição do arguido e/ou sequer consumo excessivo de bebidas alcoólicas que apontem para que o mesmo tenha essa dependência ou outra similar.
XLIX. Porém, o Tribunal a quo decidiu que “a pena de prisão aplicada ao arguido AA ser suspensa na sua execução, por 4 (quatro) anos e sujeita a regime de prova, que contemple tratamento, se necessário, relativamente a eventual patologia de que o arguido padeça, sob orientação da DGRSP.”
L. Ora, como salienta FIGUEIREDO DIAS in “Direito Processual …”, p. 139, o princípio da livre apreciação da prova está associada ao “... dever de perseguir a chamada “verdade material”-, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutivel a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos).”
LI. No mesmo sentido, HENRIQUES EIRAS in “Processo Penal Elementar”, Quid Iuris, 2003, 4ª edição, p. 102, refere que este princípio “... não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação.
O juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da verdade material e, ao decidir, há-de fundamentar as suas decisões: a apreciação da prova que faz reconduz-se a critérios objectivos, controláveis através da motivação. A sua convicção, que o levará a decidir de certa maneira e não de outra, embora pessoal, é objectivável.”
LII. No entanto, ao considerar provados factos que não resultaram da prova produzida em julgamento, violou, ainda, o Tribunal a quo, o previsto no art.355º, nº 1, do C.P.P.
LIII. O Tribunal a quo deu como provados os pontos 21 e 22: “Em data não concretamente apurada do mês de ... de 2019, arguido e assistente encontravam-se no domicílio comum, à data sito na .... Nessas circunstâncias, no contexto de discussão, o arguido apodou a assistente de “PUTA”.
LIV. Com o devido respeito, tais factos não foram confirmados nem pela assistente nem pelas testemunhas inquiridas.
LV. Pelo que também estes foram incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo, pois não poderiam ter sido dados como provados.
LVI. De acordo com o douto Tribunal a quo também se provou os factos de 23 a 30, nomeadamente que: “No dia ... de ... de 2022, pelas 20h30, a assistente, seus filhos CC e EE, e DD, encontravam-se a jantar no restaurante “...”, sito na .... (…) Então, o arguido compareceu nesse estabelecimento, e, pese embora a existência de várias mesas disponíveis, sentou-se naquela imediatamente atrás da ocupada pela assistente e demais convivas, fazendo menção que esta ficasse bem ciente de tal conduta, que sabia idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação.(…) Então na presença do filho comum CC, indiferente a quem mais o pudesse ouvir, o arguido apodou a assistente de “ORDINÁRIA, PUTA, PORCA, CHULA”. (…)
Por força da comoção provocada no local pelo arguido, foi este convidado a sair pelos funcionários do dito estabelecimento. (…) Volvidos alguns instantes, a assistente e seu filho CC deslocaram-se à Esquadra da PSP de ..., instância onde aquela aprestou-se a apresentar queixa contra o arguido. (…) Por ter seguido na peugada da vítima até esse local, o arguido, pelas 04h00 do dia seguinte, encontrava-se junto às ditas instalações policiais, aguardando que a assistente dali saísse, para a interpelar, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a mesma não pretendia qualquer contacto com o arguido, e que tal conduta era idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação, fazendo-a recear o que o arguido lhe pudesse fazer. (…) Ao ficarem cientes de que o arguido estava junto às instalações da PSP, a assistente e o menor CC mostraram-se nervosos. (…) Nessas circunstâncias, o agente da PSP, GG, interpelou o arguido, com vista a sensibilizá-lo para a conduta que estava a adotar, na medida em que perturbava a assistente.”
LVII. Porém, assistente e as testemunhas EE e DD foram incoerentes entre si nos depoimentos que prestaram.
LVIII. Com efeito, nem as circunstâncias em que o arguido teria entrado no restaurante e sentado são coincidentes entre as testemunhas, a única coincidência, na verdade, é o facto de o arguido estar acompanhado de um amigo chamado “HH”.
LIX. É que, EE explicou a seu modo as circunstâncias em que o arguido teria entrado no restaurante e sentado na mesa atrás de si, no entanto, DD disse não que não repararam na entrada do recorrente no restaurante.
LX. A este respeito, o arguido nas suas declarações referiu que a única coisa que disse à assistente foi “não tens vergonha na cara” esclarecendo o Tribunal a quo que tal se deveu ao facto desta ter mentido ao dizer ao recorrente que menor CC não podia jantar com o pai pois ia para uma festa de aniversário de um amigo.
LXI. Mas era mentira, afinal o menor estava a jantar com a mãe, EE e DD, tendo o arguido negado que chamasse à assistente os nomes “ORDINÁRIA, PUTA, PORCA, CHULA” (minuto 34:20 a 34:30).
LXII. Ora, face a tamanhas contradições, estes factos não poderiam ter sido considerados provados porquanto, ao menos, a dúvida subsiste.
LXIII. Quanto ao facto provado constante do ponto 30 andou mal o Tribunal a quo ao considerar que “nessas circunstâncias, o agente da PSP, GG, interpelou o arguido, com vista a sensibilizá-lo para a conduta que estava a adotar, na medida em que perturbava a assistente”.
LXIV. É que esta testemunha inquirida na sessão de julgamento decorrida a 20/11/2024 (início às 14:21 e fim às 14:37) em instâncias da Defensora Oficiosa do arguido disse que colegas teriam ido ao restaurante “...” (minuto 11:10), porém, tal informação não consta dos autos, nem foi sequer mencionada por nenhuma das testemunhas.
LXV. Contudo, confirmou esta testemunha que o arguido apresentou reclamação na Esquadra da PSP de ... corroborando assim as declarações do arguido que disse tê-lo feito (minuto 13:17).
LXVI. O Tribunal a quo considerou provado que “o agente da PSP, GG, interpelou o arguido, com vista a sensibilizá-lo para a conduta que estava a adotar, na medida em que perturbava a assistente”.
LXVII. Porém, do depoimento desta testemunha não resulta que interpelação fez concretamente ao arguido, assim como esta testemunha também não concretizou, como se impunha, que foi que o arguido fizera para que concluísse que aquele “perturbava a assistente”.
LXVIII. Pelo que, novamente, o Tribunal a quo não poderia ter dado como provado este facto.
LXIX. Acresce que, os pontos 31 a 33 dos factos provados, são totalmente falsos, pois o arguido nunca perseguiu a assistente nem em momento algum “com foros de seriedade, declarou-lhe “EU DESGRAÇO A TUA VIDA”, não ignorando nem podendo ignorar que tais expressões, contemporâneas de tal interpelação inopinada, eram idóneas e adequadas a causar-lhe temor e inquietação, fazendo-a recear o que o arguido lhe pudesse fazer.”
LXX. Sendo, por isso, totalmente falso que “Amedrontada face a tal conduta do arguido, a assistente de pronto deslocou-se para a Esquadra da PSP de ..., para relatar a mesma, do que o arguido ficou de imediato ciente, por ter-lhe encetado perseguição até esse local.”
LXXI. Com efeito, estes factos nunca foram referidos pela assistente nem pelas testemunhas.
LXXII. Pelo que estes factos foram também incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo.
LXXIII. A sentença recorrida deu ainda como provado o facto 38 “por meio não apurado, o arguido ficou ciente de tal facto, logrando obter um registo fotográfico da assistente e demais agregado a ambular na via pública na zona de ..., e ainda outro registo fotográfico, retratando a assistente a estender a toalha de praia num areal. (…) Nessas circunstâncias, via telefónica, o arguido remeteu tais fotografias ao filho CC, bem sabendo e não pudendo ignorar que tal conduta iria chegar ao conhecimento da assistente, como aconteceu de imediato, e que essa ação, na medida em que patenteava que o arguido conhecia as rotinas e localização da vítima, era idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação.”
LXXIV. Mais uma vez o Tribunal não quis perseguir a descoberta da verdade material.
LXXV. E, novamente aqui se assiste a variações dos factos os quais analisados de forma isenta e imparcial demonstram que a assistente não é coerente nas suas palavras.
LXXVI. E, nessa conformidade, o Tribunal a quo não podia ter retirado conclusões negativas destes mesmos factos, pois não encerram em si qualquer tipo de conduta ilícita.
LXXVII. É que, com o devido respeito, o arguido esclareceu o Tribunal a quo que foi um amigo seu chamado “II” que lhe enviou duas fotografias da assistente, do menor e demais agregado a deambular na via pública na zona de ... e ainda registo fotográfico da assistente a estender a toalha de praia num areal.
LXXVIII. E que aquele amigo obteve tais registos fotográficos porque tem casa naquela localidade e ali se encontrava no momento, tendo ainda o arguido dito que “fez tudo para ir de férias sem eu saber que ia de férias, sabendo que eu iria ter direito a quinze dias de férias.” (minuto 49:29 a minuto 49:59)
LXXIX. Mais esclarecendo que: “O II é que os viu lá (…) é um ex-colega meu.” (minuto 50:12)
LXXX. A este respeito, o arguido disse ainda que enviou as fotografias para o filho CC com a única intenção: “para lhe desejar boas férias” (minuto 50:37) afiançando ao Tribunal a quo que “não foi com qualquer intuído intimidatório” (minuto 50:44).
LXXXI. Ora, se estas declarações não foram contrariadas pela assistente nem pelas testemunhas que foram inquiridas em audiência, o Tribunal a quo deveria tê-las valorado e, como tal, os factos 37 a 39 não poderiam ter sido dados como provados.
LXXXII. No que respeita aos pontos 34, 35 e 36 da matéria de facto dada como provada não há dúvidas que os mesmos foram incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo.
LXXXIII. É que, como se demonstrou, é FALSO que tenha sido o arguido quem fez o alegado telefonema de teor ameaçador a EE, cujo visado era DD.
LXXXIV. Nas suas declarações, o arguido negou tê-lo feito e esclareceu que há muito já não falava com EE, mais tendo dito que não usa, nem nunca usou, cartões de telefone descartáveis (minuto 47:27 a 48:23).
LXXXV. Ora, se nenhuma outra prova documental, testemunhal e/ou pericial comprovou tal facto em Tribunal, o mesmo deveria ter sido dado como não provado.
LXXXVI. A este respeito, disse a testemunha EE que parecia ser a voz do pai, contudo, não o afirmou com a certeza que se impunha que efectivamente era o arguido (cfr. depoimento prestado a 07/11/2024 com início às 11:23 e fim às 12:04 “Recebi uma mensagem anónima, que não consigo identificar” (cfr. minuto 12:53 a 12:57) “tenho quase a certeza que era ele” (minuto 13:29).
LXXXVII. Ora, ter “quase a certeza” não é “ter a certeza” de que foi o arguido que fez o alegado telefonema a EE.
LXXXVIII. Pelo que, é manifesto que se impõe a absolvição do arguido da prática do crime de ameaça agravada de que estava acusado e pelo qual foi, incorrectamente, condenado.
LXXXIX. Ainda que assim não fosse, o que não se admite e só por mera hipótese académica se refere, certo é que a sentença recorrida considerou que “as expressões em causa não se tratam de um mero desabafo, pelo que a conduta do arguido foi praticada em termos adequados a criar um sentimento de medo de futura prática de crime contra a vida, punível com pena de prisão superior a 3 anos.”
XC. E que “assumem gravidade suficiente reveladora do perigo concreto para o bem jurídico protegido com o tipo legal, as quais foram adequadas a produzir sentimentos de insegurança e intranquilidade no ofendido DD.”
XCI. Pelo que, condenou o arguido na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 a), ambos do C.P.
XCII. Com o devido respeito, o Tribunal a quo não poderia ter sido decidido assim.
XCIII. Embora o art.153.º n.º 1 do C.P. disponha que “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
XCIV. E que segundo o art.155.º do C.P., sobre a qualificação do crime de ameaça, disponha no seu n.º 1 que “Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados: a) por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; (….) o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C(…);
XCV. Sendo que “o crime de ameaça é igualmente um crime de aptidão ou de adequação, na forma de perigo abstracto, querendo com isto dizer que não é elemento do tipo a colocação em concreto da pessoa em perigo, isto é, no perigo de concretização das ameaças, mas tal constitui motivação bastante do legislador para punir.”
XCVI. A verdade é que andou mal o Tribunal a quo ao condenar o recorrente, na prática de um crime de ameaça agravada na pessoa de DD.
XCVII. Conforme douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02-12-2021, Processo: 9702/19.7T9LSB.L1-3 “O direito penal tem carácter subsidiário. Se o ofendido declara não entender determinadas palavras, objetivamente ameaçadoras, como uma verdadeira ameaça, antes as relevando na circunstância em que foram produzidas, não pode o Tribunal retirar das mesmas uma intenção que o próprio visado não retirou, faltando o elemento subjetivo do crime. Os artigos 283º e 308º do C.P.P exigem, sob pena de nulidade da acusação ou da pronúncia, a narração sempre que possível da motivação da prática dos factos suscetíveis de constituir crime. Tais exigências aplicam-se à sentença que, dentre os factos constantes das referidas peças, tem que enumerar os provados e não provados, sendo a circunstanciação um elemento importante a considerar. Claramente está em causa a necessidade o circunstanciar a actuação do agente, de modo que se possa perceber se ela merece a tutela do direito penal, se integra os elementos objectivos típicos do crime e se, desses elementos objetivos, se retira um elemento subjetivo adequado a essa tipificação.”
XCVIII. Pelo que, e tendo em conta o depoimento de DD gravado na audiência de julgamento de 07/11/2024 com início às 12:13 e fim às 12:39, na qual disse não ter receio da alegada ameaça a si dirigida no telefonema que EE diz ter recebido (minuto 9:04 a 9:08), não poderia douto Tribunal a quo ter condenado o arguido pela prática deste crime.
XCIX. De salientar que o Ministério Público perguntou à testemunha se houve “mais alguma situação, digamos consigo, que o envolvesse de alguma forma? (minuto 6:24), ao que aquela disse “Não” (minuto 6:30), tendo prosseguido: “nunca disseram nada relacionado consigo que se sentisse de alguma forma incomodado?” Tendo a testemunha dito “Não” (minuto 6:47).
C. O Ministério Público perguntou ainda “E ameaças, alguma vez o senhor foi ameaçado?” (minuto 7:05) Ao que a testemunha disse “Não” (minuto 7:09) Tendo esta testemunha continuado: “não me recordo de o EE dizer alguma coisa.” (minuto 7:54) E, “não me recordo de o EE dizer o que quer que fosse” (minuto 8:04).
CI. Com efeito, só depois de o Ministério Público ter descrito os factos vertidos nos pontos 33), 34) e 35) da acusação pública (minuto 8:05 ao minuto 8:10) é que a testemunha disse ser “um telefonema feito ao EE” (minuto 8:38).
CII. Foi então que, finalmente, perguntada pelo Ministério Público: “Sentiu-se como? Com receio? Tranquilo?” (minuto 8:46) Disse esta testemunha: “quando estamos de consciência tranquila… eu receio, não, não tenho.” (minuto 9:04 a 9:08).
CIII. Com o devido respeito, o depoimento desta testemunha revelou-se pouco credível, em nada espontâneo e com muitas incoerências.
CIV. Relativamente à determinação da medida da pena, como se disse, reiterasse que o arguido não praticou os factos que lhe são imputados na acusação pública, pugnando, por isso, no presente recurso, pela sua absolvição.
CV. Não obstante, sempre se dirá, que o Tribunal a quo ao condenar o arguido deveria ter dado preferência pela pena não privativa da liberdade pois a mesma realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, cfr. o art.70.º do C.P., isto é, segundo o art.40.º do C.P., a protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade.
CVI. Pelo que, considera o recorrente que andou mal o Tribunal recorrido ao optar por uma pena privativa da liberdade e entender que uma pena não privativa da liberdade não satisfaz de forma adequada as finalidades da punição, não sendo justa nem adequada.
CVII. A verificar-se a prática pelo arguido de um crime de ameaça agravada o que, como supra se demonstrou não foi o caso, e, por isso, não se admite, a aplicação de uma pena privativa da liberdade, no que respeita a este crime sempre seria manifestamente excessiva, desadequada e desproporcional.
CVIII. É que, apesar de o recorrente ter antecedentes criminais, tendo inclusivamente já cumprido pena de prisão efectiva, certo é que o arguido não regista quaisquer condenações anteriores, por crimes de natureza idêntica aos dos autos.
CIX. Pelo que, não poderia ter considerado o Tribunal recorrido, como considerou, que teria resultado “em desfavor do arguido resulta o facto de não elaborar qualquer juízo de autocensura, pelo que não demonstrou arrependimento.”
CX. É evidente que a decisão recorrida viola, de forma reveladora, o Princípio In dúbio pro reo constitucionalmente consagrado.
CXI. Porquanto, impõe tal princípio que não se condene qualquer cidadão quando da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento resulte a dúvida de que o arguido tenha praticado o crime de que vem acusado.
CXII. Na verdade, é de todo insuficiente a prova produzida para condenar o arguido pelo que, este deveria ter sido absolvido, à luz do sobredito princípio in dubio pro reo, o qual, com o devido respeito, é cada vez menos evocado.
CXIII. Este princípio é uma garantia substantiva do processo penal, constituindo uma consequência de um processo de partes e segundo o qual a dúvida sobre qualquer circunstância que exima ou diminua a responsabilidade do arguido deve ser valorizada e valorada em seu favor.
CXIV. Nos termos do disposto no artigo 21.º nºs 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que instituiu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das vítimas destes crimes, “À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do C.P.P, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
CXV. Compulsados os autos, verifica-se que a assistente não deduziu pedido de indemnização civil, mas declarou em audiência querer ser indemnizada por danos alegadamente sofridos, quer a si, quer a CC, enquanto representante legal deste (minuto 13:34 do seu depoimento de 07/11/2024, início às 11:01 e fim às 11:16).
CXVI. Tendo, douto tribunal a quo condenado o arguido no pagamento de uma compensação económica no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) para a assistente BB e € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) para a vítima CC representado pela sua progenitora, BB.
CXVII. Nos termos do disposto no artigo 129.º do Código Penal a indemnização por perdas e danos emergentes da prática de um crime é regulada pela lei civil, de harmonia, portanto, com as regras constantes dos artigos 483.º, 496.º, 562.º e 566.º do Código Civil.
CXVIII. O princípio geral em matéria de responsabilidade civil extracontratual é o do art.º 483.º, do Código Civil, segundo o qual “Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
CXIX. Não restam, assim, dúvidas que o recorrente não praticou os crimes pelos quais foi condenado, pelo que deve mesmo ser absolvido do pedido de indemnização civil.”.
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III- O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua total improcedência e manutenção integral da sentença recorrida.
Para tanto, e sinteticamente, argumenta:
a. A regularidade da decisão de facto (art.º 412.º CPP);
b. O recurso não aponta provas que impusessem decisão diversa;
c. Os elementos de prova foram devidamente apreciados, incluindo as declarações da assistente (prova para memória futura), cuja credibilidade foi sustentada por outros meios e circunstâncias objectivas;
d. Inexistência de erro notório de apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2, al. c));
e. Não se reconhece a existência de qualquer vício lógico ou contradição evidente no raciocínio probatório que configure erro notório;
f. A regularidade da subsunção jurídica dos factos;
g. Os comportamentos do arguido integram-se nos tipos legais imputados, salientando-se a habitualidade, a coacção emocional e o sofrimento infligido às vítimas;
h. A adequação das penas aplicadas;
i. A moldura penal utilizada, medida concreta e opção por suspensão da execução com regime de prova, estão devidamente justificadas;
j. A legalidade da condenação em indemnização;
k. A invocação do art.º 82.º-A do CPP e do art.º 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009 justifica-se para a condenação cível com base em presunções judiciais e prova indirecta admissível.
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IV - Neste tribunal o Srº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância.
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V - No âmbito do disposto no art.º 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido/recorrente não deduziu resposta ao parecer.
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VI - Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.º 419º, n.º 3, al. c) do citado código.
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OBJECTO DO RECURSO
I - De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a apreciar são:
a) Impugnação da matéria de facto (erro de julgamento) - Invocação do artigo 412.º, n.º 3 do CPP, com indicação de concretos pontos de facto incorrectamente julgados (pontos 4, 5, 7 a 12, 13 a 16, 21 a 28, 37 a 39), sustentando que:
A decisão do tribunal se baseia unicamente nas declarações da assistente;
Os depoimentos foram incoerentes, imprecisos e não corroborados;
Existiam versões contraditórias que deveriam ter sido resolvidas a favor do arguido.
b) Violação do princípio “in dubio pro reo”
Sustenta que, perante versões opostas, o tribunal deveria ter adoptado a solução mais favorável ao arguido.
c) Valoração das declarações da assistente (legalidade e credibilidade)
Argumenta que as declarações da assistente, nomeadamente as prestadas para memória futura, foram utilizadas de forma acrítica e sem valor de prova suficiente.
d) Imputabilidade eventualmente diminuída (embriaguez)
Invoca uma eventual afectação da imputabilidade, sem qualquer concretização pericial ou factual.
e) Erro na qualificação jurídica dos factos
Argumenta que a conduta não preenche os elementos objectivos e subjectivos dos crimes imputados (violência doméstica e ameaça agravada).
f) Desproporcionalidade das penas aplicadas
Contesta a medida concreta da pena (art.º 71.º do CP), com apelo ao artigo 70.º para aplicação de pena não privativa da liberdade.
g) Absolvição dos pedidos cíveis
não tendo praticado os crimes pelos quais foi condenado, deve ser absolvido dos pedidos de indemnização civil.
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FUNDAMENTAÇÃO
I- Na sentença recorrida deram-se como provados e não provados os seguintes factos: (transcrição)
1.1. Factos Provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão da mesma:
1) O arguido e a assistente BB casaram um com o outro em ... de ... de 1999, vínculo dissolvido por divórcio em ... de ... de 2022.
2) Arguido e assistente são progenitores comuns de EE, nascido em ... de ... de 2000, e CC, nascido em ... de ... de 2008.
3) O arguido cumpriu pena de prisão durante período não concretamente apurado mas seguramente superior a 4 anos, finda em data não apurada, compreendida no ano de 2006, tendo então o mesmo retomado a coabitação com a assistente, estado que se manteve até ... de ... de 2021, quando a assistente abandonou o até então domicílio comum, levando consigo o filho comum CC, assim cessando em definitivo a coabitação e relacionamento amoroso com o arguido.
4) Ao longo de todo o período de efetiva coabitação, em, pelo menos, oito vezes, no domicílio comum, as mais das vezes quando aparentava estar embriagado, o arguido desferiu pancadas com as mãos abertas e fechadas na assistente, atingindo-a na cara e corpo, não se coibindo nessas ocasiões, com força muscular, de lhe puxar os cabelos, e bem assim de lhe desferir empurrões.
5) Por força de tais condutas do arguido, a vítima sofria dores, e bem assim lesões visíveis, como hematomas, nas zonas atingidas, mormente olhos.
6) Em, pelo menos, duas ocasiões, de datas não apuradas, no decurso da coabitação, durante a noite, a assistente acordou o filho comum CC, pedindo-lhe ajuda, por o arguido se propor bater-lhe.
7) No dia .../.../2014, arguido e assistente estavam no domicílio comum, à data sito em ....
8) Nessa ocasião, a assistente foi apelidada pelo arguido de puta e que tinha amantes, tendo a mesma desferido uma bofetada na face do arguido para se defender.
9) Nessa sequência, o arguido desferiu várias pancadas com as mãos abertas e fechadas na cara da assistente.
10) Por força de tal conduta do arguido, a assistente demandou assistência hospitalar, sofrendo dores e marcas visíveis nas zonas atingidas.
11) Ao longo de todo o período de efetiva coabitação, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, as mais das vezes quando aparentava estar embriagado, no contexto de discussões, em alguns episódios na presença do filho comum CC, o arguido dirigiu à assistente expressões e apodos como “PROSTITUTA, PUTA, ORDINÁRIA, NÃO VALES NADA.”
12) Ao longo de todo o período de efetiva coabitação, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, quando o filho comum CC tinha já capacidade cognitiva para entender o que lhe era dito por terceiros, o arguido abordou o mesmo e declarou-lhe que a assistente era uma puta, e que se CC continuasse com sua mãe não teria futuro, expressões de que CC ficou sempre bem ciente.
13) No dia ... de ... de 2015, pelas 21h00, arguido, assistente e filho comum, CC, encontravam-se no domicílio comum, à data sito na ...
14) Nessas circunstâncias, arguido e assistente entraram em discussão, em moldes não apurados.
15) Nesse contexto, a assistente abandonou o domicílio comum, e, com seu filho CC, abrigou-se no interior da sua viatura automóvel, aparcada junto à dita residência, com vista a, na manhã do dia seguinte, se deslocar para casa de seus pais.
16) Então, via telefónica, o arguido instou elementos da esquadra da PSP de ... a deslocar-se junto da dita viatura, pretextando que a assistente estaria ali a maltratar o filho comum CC, o que bem sabia não ser verdade.
17) Por força de tal contacto, efetivo da PSP de imediato se deslocou ao local, contactando a assistente, encontrando no interior da dita viatura a mesma e seu filho CC, este deitado num dos bancos, coberto por uma manta e com a cabeça numa almofada, cuidados que a mãe lhe prestara momentos antes.
18) No dia ... de ... de 2019, pelas 00h00, arguido e assistente encontravam-se no domicílio comum, à data sito na ....
19) Então, o arguido declarou à assistente “VOU AO TEU TRABALHO FAZER COM QUE TE DESPEÇAM”.
20) Em data não apurada de 2019, durante o mês de outubro, a assistente encetou relacionamento amoroso com DD, do que o arguido ficou ciente em data posterior não apurada, ainda compreendida em tal mês.
21) Em data não concretamente apurada do mês de ... de 2019, arguido e assistente encontravam-se no domicílio comum, à data sito na ....
22) Nessas circunstâncias, no contexto de discussão, o arguido apodou a assistente de “PUTA”.
23) No dia ... de ... de 2022, pelas 20h30, a assistente, seus filhos CC e EE, e DD, encontravam-se a jantar no restaurante “...”, sito na ....
24) Então, o arguido compareceu nesse estabelecimento, e, pese embora a existência de várias mesas disponíveis, sentou-se naquela imediatamente atrás da ocupada pela assistente e demais convivas, fazendo menção que esta ficasse bem ciente de tal conduta, que sabia idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação.
25) Então na presença do filho comum CC, indiferente a quem mais o pudesse ouvir, o arguido apodou a assistente de “ORDINÁRIA, PUTA, PORCA, CHULA”.
26) Por força da comoção provocada no local pelo arguido, foi este convidado a sair pelos funcionários do dito estabelecimento.
27) Volvidos alguns instantes, a assistente e seu filho CC deslocaram-se à Esquadra da PSP de ..., instância onde aquela aprestou-se a apresentar queixa contra o arguido.
28) Por ter seguido na peugada da vítima até esse local, o arguido, pelas 04h00 do dia seguinte, encontrava-se junto às ditas instalações policiais, aguardando que a assistente dali saísse, para a interpelar, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a mesma não pretendia qualquer contacto com o arguido, e que tal conduta era idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação, fazendo-a recear o que o arguido lhe pudesse fazer.
29) Ao ficarem cientes de que o arguido estava junto às instalações da PSP, a assistente e o menor CC mostraram-se nervosos.
30) Nessas circunstâncias, o agente da PSP, GG, interpelou o arguido, com vista a sensibilizá-lo para a conduta que estava a adotar, na medida em que perturbava a assistente.
31) No dia ... de ... de 2022, pelas 17h30, a assistente percorria apeada a ....
32) O arguido dirigiu-se então à vítima, e, com foros de seriedade, declarou-lhe “EU DESGRAÇO A TUA VIDA”, não ignorando nem podendo ignorar que tais expressões, contemporâneas de tal interpelação inopinada, eram idóneas e adequadas a causar-lhe temor e inquietação, fazendo-a recear o que o arguido lhe pudesse fazer.
33) Amedrontada face a tal conduta do arguido, a assistente de pronto deslocou-se para a Esquadra da PSP de ..., para relatar a mesma, do que o arguido ficou de imediato ciente, por ter-lhe encetado perseguição até esse local.
34) Nesse mesmo dia, em momento posterior não apurado, o arguido dirigiu contacto telefónico ao seu filho EE, e, de viva voz e com foros de seriedade, aludindo à assistente e ao ofendido DD, declarou “SEI QUE A BB ESTÁ NA ESQUADRA DE CAMARATE, TANTO ELA COMO O NAMORADO VÃO LEVAR UM TIRO.”
35) De imediato, EE foi ao encontro da assistente, dando-lhe a saber o teor de tais expressões do arguido.
36) Nesse mesmo dia, por intermédio de EE, também DD ficou ciente de tais expressões do arguido.
37) Em data não apurada, compreendida em... de 2023, a assistente, seus filhos EE e CC e DD encontravam-se em gozo de férias no ..., na zona de ....
38) Nessas circunstâncias, por meio não apurado, o arguido ficou ciente de tal facto, logrando obter um registo fotográfico da assistente e demais agregado a ambular na via pública na zona de ..., e ainda outro registo fotográfico, retratando a assistente a estender a toalha de praia num areal.
39) Nessas circunstâncias, via telefónica, o arguido remeteu tais fotografias ao filho CC, bem sabendo e não podendo ignorar que tal conduta iria chegar ao conhecimento da assistente, como aconteceu de imediato, e que essa ação, na medida em que patenteava que o arguido conhecia as rotinas e localização da vítima, era idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação.
40) No dia ... de ... de 2022, o arguido passou a habitar na ..., em ..., artéria que sabia ser nas cercanias da habitação que a assistente tomou após a cessação da coabitação entre ambos, sita na ..., em ....
41) Ao longo de todo o período compreendido entre tal data e, pelo menos, ... de ... de 2023, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, quando a assistente ambulava junto a sua casa, ou da mesma saía ou aí entrava, o arguido postou-se à janela da sua habitação ou na via pública, vigiando as movimentações da assistente, fazendo menção que esta ficasse ciente de tais condutas, não ignorando nem podendo ignorar que as mesmas eram idóneas e adequadas a causar-lhe temor e inquietação.
42) Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito logrado e reiterado de humilhar e maltratar a assistente BB, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua mulher e mãe de seus filhos, CC e EE, não se coibindo de assim proceder no domicílio comum e na presença do menor CC, e bem assim de persistir com tal conduta mesmo após a cessação da coabitação e sobredito casamento.
43) Ao agir da forma descrita contra a assistente BB, bem sabia e não podia ignorar o arguido que assim expunha o seu filho menor CC a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem o menor tinha profunda vinculação pessoal e afetiva, bem sabendo e não pudendo ignorar que tais comportamentos causavam sofrimento e angústia ao seu filho CC, maltratando-o e turbando o processo de desenvolvimento da sua personalidade.
44) Ao dirigir as aludidas expressões a EE, em que anunciava estar na disposição de matar o ofendido DD, o arguido conhecia e não podia ignorar a relação de proximidade entre EE e DD, no contexto do relacionamento amoroso que este mantinha com a assistente BB.
45) Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, nesse contexto, o ofendido DD poderia vir a tomar conhecimento de tais expressões, como veio a suceder, resultado que o arguido quis e logrou.
46) Bem sabia e não podia ignorar o arguido que tais expressões, em que anunciava estar na disposição de matar o ofendido DD, eram idóneas e adequadas a causar medo e inquietação no íntimo deste, e ainda assim não se coibiu de as proferir.
47) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
48) AA vive sozinho em casa arrendada.
49) Para além dos filhos em comum com a assistente, o arguido tem um filho de 37 anos, fruto de anterior relacionamento.
50) AA trabalha como empregado na …, contrato de trabalho que firmou há cerca de dois anos. Trabalha na …, há cerca de 42 anos, hábito laboral que adquiriu, desde muito novo, pois auxiliava o pai que tinha um ….
51) Os proveitos financeiros que aufere do seu vencimento são na ordem dos € 835,00 a € 860,00, ainda que os mesmos sejam variáveis e consoante as comissões e gratificações. Como despesas regulares tem consumíveis domésticos (água/luz/gás), a renda da habitação (€ 700,00) e a pensão de alimentos no valor de € 100,00 mensais fixada judicialmente, ainda que esteja a pagar mais € 100,00 mensais, em virtude de incumprimento da pensão.
52) O arguido entrou em idade regular para escola, tendo abandonado o sistema de ensino de forma precoce após a conclusão do 9.º ano de escolaridade, com 14/15 anos, alegadamente por se querer autonomizar e auxiliar o pai também na área da restauração.
53) Ao nível das questões de saúde, não foi verbalizada condição a relevar no presente, ou a manutenção de hábitos de consumo a estupefacientes e/ou ingestão abusiva de bebidas alcoólicas, relatando, ainda, que face à sua profissão (empregado de restauração), é sujeito a testes de controlo e supervisão pela entidade patronal e que o consumo excessivo pode levar a despedimento.
54) No percurso de desenvolvimento e socialização destaca-se que AA cresceu com os progenitores na zona de ..., numa malha urbana sem referência a problemas de marginalidade e exclusão social.
55) O arguido não conviveu com dinâmicas de conflito familiar, sendo predominante um modelo educacional estável e isento de qualquer comportamento disruptivo e conflituoso, sendo, assim, afastado de padrões de violência.
56) Em termos de características pessoais, AA apresenta-se com um estilo de comunicação ambíguo e insuficientemente, com exposição pouco detalhada de aspectos referentes à situação da relação no contexto de intimidade, tendendo a projetar na assistente a géneses das suas reações intempestivas neste contexto, revelando alguns sentimentos negativos em relação à mesma, a qual surge depreciada no seu discurso.
57) O arguido é tido no seu meio social como uma pessoa respeitosa, disponível, não conflituosa e cuidadora.
58) O arguido foi condenado por acórdão proferido em 16/04/1992, no processo n.º 54/92, da 8.º Vara Criminal de Lisboa e transitado em julgado, pela prática em 10/09/1990, de um crime de falsificação, um crime de peculato e um crime de burla agravada, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, e multa e pagamento de indemnização aos lesados, declarado perdoado 1 ano de prisão, por despacho datado de 16/05/1994 e declarada extinta por cumprimento em 08/07/1995.
59) Foi condenado por acórdão proferido em 16/06/1994, no processo n.º 218/93, da 8.º Vara Criminal de Lisboa e transitado em julgado, pela prática de um crime de furto, um crime de falsificação de documento e um crime de burla, declarados amnistiados os crimes de furto e de falsificação de documento, tendo sido aplicada uma pena de 1 ano de prisão, a qual foi objeto de perdão.
60) Foi condenado por sentença proferida em 22/11/1995, no processo n.º 43193/91.0TDLSB, do 3.º Juízo Criminal de Lisboa e transitada em julgado, pela prática em 28/06/1991, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 12 meses de prisão, a qual foi objeto de perdão e declarada a extinção da pena em 12/04/2005.
61) Foi condenado por sentença proferida em 04/10/1996, no processo n.º 15953/91.0TDLSB, do 3.º Juízo Criminal de Lisboa e transitada em julgado, pela prática em 23/12/1990, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, mediante condição, a qual foi objeto de perdão em 18/11/1998.
62) Foi condenado por sentença proferida em 25/11/1996, no processo n.º 1698/93.0TA, do 2.º Juízo Criminal de Sintra e transitada em julgado, pela prática em 13/08/1993, de um crime de evasão, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, declarada extinta por cumprimento em 22/05/2000.
63) Foi condenado por sentença proferida em 15/03/2001, no processo n.º 1444/98.1SFLSB, do 5.º Juízo Criminal de Lisboa e transitada em julgado, pela prática em 16/07/1998, de um crime burla simples, na forma tentada, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de $ 500,00, declarada extinta por cumprimento em 04/07/2005.
64) Foi condenado por acórdão proferido em 25/01/2002, no processo n.º 82/01, da 6.ª Vara Criminal de Lisboa e transitado em 13/02/2002, pela prática em 1998, de um crime de burla qualificada, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante condição.
65) Foi condenado por sentença proferida em 30/04/2002, no processo n.º 20674/97.7TDLSB, do 1.º Juízo Criminal de Lisboa e transitada em 15/05/2002, pela prática em 16/10/1997, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de € 1,00, declarada perdoada a mesma e revogado o perdão concedido por despacho de 27/06/2003, sendo declarada extinta por cumprimento em 15/12/2003.
66) Foi condenado por sentença proferida em 21/10/2002, no processo n.º 305/98.9PDCSC, do 1.º Juízo Criminal de Cascais e transitada em 05/11/2002, pela prática em 27/04/1998, de um crime de burla simples, na pena de 6 meses de prisão, declarada perdoada a mesma.
67) Foi condenado por acórdão proferido em 20/03/2003, no processo n.º 4949/00.2JDLSB, da 1.ª Vara de Competência Mista de Sintra e transitado em 07/04/2003, pela prática em 18/07/2002 e 20/09/2000, de um crime de abuso sexual de crianças, um crime de falsificação de documento e um crime de burla qualificada, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.
68) Foi condenado por acórdão proferido em 22/10/2003, no processo n.º 59/2000, da 3.ª Vara Criminal de Lisboa e transitado em 06/11/2003, pela prática em 19/02/1998, de três crimes de ofensa à integridade física simples, na pena única de 1 ano de prisão, declarada perdoada a mesma sob condição resolutiva e revogado o perdão em 25/06/2004.
69) Foi condenado por acórdão cumulatório proferido em 27/10/2004, no processo n.º 75/98.0PZLSB, da 3.ª Vara Criminal de Lisboa e transitado em 11/11/2004, o qual englobou as penas aplicadas nos processos n.ºs 4949/00.2JDLSB, 75/98.0PZLSB, 29260/91.4TDLSB, 43193/91.0TDLSB, 15953/91.0TDLSB e 787/99.1PRLSB, na pena única de 5 anos de prisão.
70) Foi condenado por acórdão cumulatório proferido em 12/01/2005, no processo n.º 75/98.0PZLSB, da 3.ª Vara Criminal de Lisboa e transitado em 01/02/2005, o qual englobou as penas aplicadas nos processos n.ºs 4949/00.2JDLSB, 75/98.0PZLSB, 29260/91.4TDLSB, 43193/91.0TDLSB, 15953/91.0TDLSB, 787/99.1PRLSB e 305/98.9PDCSC, na pena única de 5 anos e 2 meses de prisão.
71) Foi condenado por sentença proferida em 31/03/2005, no processo n.º 58/98.0PLLSB, do 1.º Juízo Criminal de Lisboa e transitada em 15/04/2005, pela prática em 16/01/1997, de um crime de burla simples, na pena de 8 meses de prisão, declarada perdoada a mesma sob condição resolutiva.
72) Foi condenado por acórdão cumulatório proferido em 13/07/2005, no processo n.º 222/05.8TCLSB, da 7.ª Vara Criminal de Lisboa e transitado em 29/09/2005, o qual englobou as penas aplicadas nos processos n.ºs 342/98.3PVLSB, 7/98.6TALRS, 305/98.9PDCSC, 4949/00.2JDLSB, 75/98.0PZLSB e 58/98.0PLLSB, na pena única de 6 anos e 3 meses de prisão e 4 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de € 2,00, tendi sido declarada despenalizada a conduta do arguido na parte respeitante ao crime de emissão de cheque sem provisão no processo n.º 7/98.6TALRS e julgada cessada a execução da pena de multa e prisão subsidiária aplicada ao arguido por despacho em 17/11/2005, sendo a pena de prisão declarada extinta por cumprimento em 21/11/2008.
73) Foi condenado por sentença proferida em 07/03/2019, no processo n.º 700/16.3PHLRS, do J3 do Juízo Local Criminal de Loures e transitada em 07/11/2019, pela prática em 12/07/2016, de um crime de injúria agravada e um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, e na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, substituída pela prestação de 180 horas de trabalho a favor da comunidade em 20/11/2020 e declarada extinta por cumprimento em 04/10/2021.
74) E ainda foi condenado por sentença proferida em 04/03/2020, no processo n.º 1014/16.4PLLRS, do J4 do Juízo Local Criminal de Loures e transitada em 06/02/2023, pela prática em 13/06/2016, de um crime de difamação agravada, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, substituída pela prestação de 300 horas de trabalho a favor da comunidade em 13/06/2023.
1.2. Factos Não Provados
Com relevo para a boa decisão da causa, não se fez prova em audiência da seguinte factualidade:
a) Que o arguido tivesse cumprido pena de prisão durante 6 anos e 3 meses.
b) Que a factualidade descrita de 7) a 10) tivesse ocorrido em data não apurada compreendida no ano de 2013.
c) Que no episódio descrito em 18) e 19), o arguido declarasse à assistente: “NÃO VALES UM CARALHO, NÃO VALES NADA, SÓ TENHO VONTADE DE TE REBENTAR TODA.”
d) Que o relacionamento amoroso da assistente com DD se tivesse iniciado em data posterior a ... de 2019 e que o arguido ficasse ciente do mesmo em data não apurada, em 2020.
e) Que o episódio descrito em 21) e 22) tivesse ocorrido no dia 14 de dezembro.
f) Que no episódio ocorrido em .../.../2022, o arguido apodasse a assistente de vaca.
g) Que no contacto telefónico descrito em 34), o arguido declarasse “PREPARA-TE.”
h) Que fosse o dia .../.../2022, a data em que o arguido passou a residir na morada descrita em 40).
*
Consigna-se que a restante matéria vertida na acusação, que não se mostra incluída, quer nos factos provados, quer nos factos não provados, foi excluída, ou porque era irrelevante, ou porque não expressava factos, mas sim conclusões, ou por ser matéria de Direito ou uma mera repetição de factos já provados.”.
*
II- Quanto à motivação da decisão de facto: (transcrição)
A convicção do Tribunal para a matéria de facto dada como provada, tendo sempre em atenção o disposto no artigo 127.º do CPP, isto é, considerando o princípio de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção, resultou do confronto das declarações do arguido AA com as declarações da assistente BB e prova testemunhal produzida, quer em sede de declarações para memória futura, quer em audiência de discussão e julgamento, prova documental junta aos autos, relatório social elaborado pela DGRSP de fls. 407 a 410 e Certificado de Registo Criminal de
Concretizando.
A factualidade assente em 1) e 2) resulta da conjugação dos assentos de nascimento de fls. 290 a 292, 293 e 294, com as declarações prestadas pelo arguido e assistente e ainda os depoimentos de CC, em sede de declarações para memória futura, e EE, filhos do arguido e da assistente, sendo por todos confirmado de forma unânime a existência de um relacionamento amoroso entre AA e BB, que terminou por divórcio, resultando do mesmo relacionamento o nascimento da vítima CC e EE.
Os factos provados em 3) decorrem do confronto das declarações prestadas pelo arguido com as declarações prestadas pela assistente e CC em sede de declarações para memória futura.
Ora, o arguido assumiu que esteve em cumprimento de uma pena que seria de 6 anos e 3 meses de prisão, sendo que saiu mais cedo, ao fim de 4 anos e 8 meses, por ter-lhe sido concedida liberdade condicional em 2006, altura em que retomou a coabitação com a assistente e filhos.
Já a assistente não consegue precisar o período ao certo em que o arguido esteve em reclusão, referindo sem certeza que foi 5 anos e meio, 6 anos.
Dos depoimentos prestados pelos filhos do arguido e da assistente, os mesmos não conseguem precisar o tempo de ausência do pai durante o período de reclusão, o que é compreensível, pois EE era muito pequeno e CC apenas nasceu em .../.../2008.
Da consulta do CRC do arguido de fls. 419 a 429 apenas é possível apurar a data em que o TEP concedeu a liberdade definitiva e a declaração de extinção da pena de prisão, a qual se reporta a 21/11/2008.
Deste modo, o Tribunal apenas ficou com a certeza de que, seguramente, durante mais de 4 anos, o arguido esteve em cumprimento de pena efetiva, tendo o mesmo retomado a coabitação com a sua esposa e filhos em 2006.
No mais, o Tribunal atendeu às declarações credíveis e espontâneas prestadas pela assistente e CC quanto à data em que saíram de casa, reforçando CC recordar-se que foi em .../.../2021, já que tal dia foi o mais feliz da sua vida.
Ainda que o arguido tivesse dito que a esposa e o filho saíram no dia .../.../2021 e que EE referisse que a mãe e o irmão se mudaram para a sua casa em ..., ... de 2021, tal não teve a virtualidade de infirmar a forma objetiva e unânime com que a assistente e a vítima CC declararam a data, sendo notório que tal foi um marco na vida deles, dando, teoricamente, por findo o período de inferno em que viveram com o arguido, ainda que AA tentasse fazer passar a imagem de que a saída de casa foi uma decisão conjunta, o que como infra se demonstrará claramente não o foi, tendo a assistente decidido colocar um ponto final na relação e coabitação.
A matéria assente em 4) e 5) resulta das declarações prestadas pela assistente, a qual foi credível e objetiva ao confirmar que durante o período de casamento terá sofrido 8 agressões por parte do arguido, em concreto, bofetadas, murros, puxões de cabelos e empurrões, sendo que o arguido utilizava apenas as mãos para lhe bater e que, em consequência das agressões, ficava com dores e marcada, o que é perfeitamente normal, apelando às regras da experiência comum, sendo corroborado por CC ter visto a mãe com nódoas negras, em concreto, no olho e no corpo, já que o menor, ao contrário do irmão mais velho, que esteve a residir fora da casa dos progenitores durante alguns períodos, teria uma perceção mais correta da realidade tida entre o casal, pois sempre viveu com os pais.
É certo que o arguido negou tais agressões e que os filhos igualmente negaram terem presenciado o pai a bater na mãe. No entanto, a assistente descreveu de forma verosímil as agressões perpetradas pelo arguido, o que não foi colocado em crise por qualquer outro depoimento.
Questionada sobre o que motivava o comportamento do arguido, a assistente declarou de forma clara que havia sempre discussões antes das agressões, por vários motivos relacionados com falta de dinheiro, ciúmes do arguido, e que este quando se encontrava em casa, embriagava-se com frequência diária, o que é inteiramente corroborado pelos filhos CC e EE, os quais revelam conhecimento dos factos, na medida em que presenciaram várias discussões tidas pelo casal e o estado em que o arguido se encontrava, destacando-se a expressão usada por EE de que o arguido quando bebia transformava-se completamente, o que é bem elucidativo do consumo excessivo de álcool.
O arguido negou perentoriamente que se embriagasse. Contudo, tal negação acaba por ir de encontro ao referido pelo filho EE, de que o arguido apenas consumia álcool em casa, em concreto, cerveja, o que igualmente foi corroborado pelas testemunhas de defesa, JJ, amigo e colega de trabalho do arguido, e KK, amigo do arguido, os quais confirmaram consumirem cerveja com o arguido em sua casa.
Ainda que o arguido e depoentes de defesa tivessem asseverado que no local de trabalho são feitos despistes de consumo de álcool de forma aleatória, tal não invalida que o arguido esteja sóbrio durante o período normal de trabalho e que, quando regressa à sua habitação, consuma álcool em quantidades exageradas, provocando um estado de embriaguez, pelo que não se tem como crível a versão sustentada por AA de que não padece de problema relacionado com o alcoolismo.
Os factos provados em 6) decorrem da conjugação das declarações prestadas por assistente e CC, sendo ambos unânimes e coincidentes ao relatarem que, para o arguido não bater na esposa, esta refugiava-se no quarto do filho menor, durante a noite, para lhe pedir ajuda, concretizando a assistente que tal sucedeu duas vezes, e que nessa sequência, o arguido acabava por não avançar com algum tipo de agressão.
Uma vez mais, o arguido limitou-se a negar tais factos, o que não mereceu credibilidade, face à forma pormenorizada e circunstanciada com que a assistente e a vítima CC descreveram os eventos, que se mostram ainda bem presentes na memória de ambos.
A factualidade ínsita de 7) a 10) resulta da conjugação da documentação clínica, em concreto, o relatório de urgência de fls. 355 a 356 verso com as declarações prestadas pelo arguido, assistente e o depoimento de EE, situando todos tal episódio em altura em que viviam na cidade de ....
Quanto à data em que os factos ocorreram, e tendo a assistente e o filho EE declarado de forma credível que a mesma foi ao Hospital ..., acompanhada do filho e da GNR que se deslocou à habitação, do teor do relatório de urgência acima identificado tem-se como certo que a assistente foi assistida na madrugada de .../.../2014.
Relativamente aos motivos que levaram à assistente a ter de se deslocar ao Hospital, o arguido confessou, ainda que não tenha contado de forma completa, que deu murros e bofetadas à esposa, tendo logo o cuidado de referir que se excedeu porque BB lhe deu uma chapada.
Sucede que, a assistente descreveu de forma credível e escorreita, que uma vez mais, ocorreu uma discussão com o arguido em que este a apodou de puta e insinuou que tinha amantes, pelo que, para se defender dos insultos de que estava a ser alvo, desferiu um bofetada na cara do marido, ao que este a agrediu de tal modo, que ficou com a cara completamente desfeita, confirmando EE ter visto o olho da sua mãe negro.
É manifesta a total desproporção da reação tida por parte do arguido, que ao levar uma bofetada, ainda que tal lhe doesse, o que não se põe em causa, adota uma atitude manifestamente desproporcional, o que resultou no facto de a assistente ter de ser assistida clinicamente, enquanto que o arguido foi dormir, pelo que, a postura de vitimização não logrou convencer o Tribunal da sua versão dos acontecimentos.
A factualidade assente em 11) resulta da conjugação das declarações prestadas pela assistente e vítima CC com o depoimento de EE, os quais são unânimes e objetivos, ao descreverem os impropérios assinalados de que BB era alvo por parte do marido, uma vez mais, quando este estava alcoolizado, e que os filhos presenciaram vezes sem conta as ofensas dirigidas pelo pai à mãe.
Confrontada sobre se chamava também nomes a AA, a assistente negou perentoriamente tal, afirmando que apenas se defendia de tais insultos, o que é perfeitamente normal, não sendo necessário responder na mesma moeda.
Novamente, o arguido quis fazer passar uma imagem de que não se enervava e que jamais chamaria tais nomes à esposa, muito menos em frente aos filhos, os quais sempre foram educados com valores, o que não logrou convencer o Tribunal, dado ter sido demonstrado pelo próprio a forma com que o arguido prestou as suas declarações, muitas vezes num tom exaltado e que levou a algumas advertências durante a audiência.
A matéria assente em 12) resulta das declarações prestadas pela vítima CC, o qual, de forma cristalina, declarou que o pai, uma vez mais quando estava alcoolizado, vinha ter consigo e dizia as expressões assentes, o que ocorria após ter discutido com a esposa, como se fosse para descarregar em cima de si.
Os factos provados de 13) a 17) decorrem da conjugação do auto de notícia de fls. 3 a 6 verso do NUIPC 683/15.7PHLRS, no que respeita ao dia e hora em que os factos ocorreram, com as declarações prestadas pela assistente em sede de audiência de julgamento, e ainda o depoimento dos agentes da PSP, LL e FF.
Ora, o arguido asseverou a existência de uma discussão tida com a assistente no domicílio comum, motivada pelo facto de a esposa ter sido despedida por haver cometido um furto, e que levantou a voz de forma mais exaltada, sendo que, após ir à casa de banho, ouviu a porta de casa fechar, pelo que pensou que a esposa foi a casa do vizinho MM, onde algumas vezes se refugiava e que apenas soube que a mulher e filho estavam em casa do seu sogro, quando este lhe ligou a contar o sucedido.
Contudo, da conjugação das declarações da assistente com os depoimentos dos agentes da PSP, não se tem como credível que o arguido nada tivesse feito, já que a assistente negou perentoriamente ter chamado as autoridades policiais, pois foi com o seu filho, uma manta e uma almofada, para dentro da sua viatura que estava parqueada junto a casa, o que foi corroborado pelo depoimento isento de LL, que foi ao local em causa, onde se deparou com a cena descrita pela assistente, em que o filho estava no banco de trás deitado, tendo explicitado os motivos que o levaram a abordar a assistente, tendo posteriormente levado mãe e filho para a esquadra e por fim, para a casa dos pais de BB.
Quanto à chamada, é certo que o depoente FF afirmou de forma isenta não precisar quem foi a pessoa que ligou para a Esquadra. Contudo, o mesmo recorda-se perfeitamente de ter pensado, num primeiro momento, que poderia ser um cidadão sem relação com a assistente a denunciar o que estava a presenciar, mas rapidamente percebeu, face às insistentes chamadas que, entretanto, recebeu, que a pessoa com quem falava seria familiar da pessoa denunciada, atento o modo como respondia às perguntas feitas pelo depoente.
Apesar do arguido negar ter efetuado a chamada, tal não merece credibilidade, já que o mesmo estava exaltado, como o próprio assumiu, embriagado, tal como declarado pela assistente, pelo que, não se compreende porque motivo seria outra pessoa a fazer a chamada a denunciar maus tratos da assistente para com o menor durante a noite, a não ser o arguido como retaliação por aquela ter saído de casa com o menor, na sequência de nova discussão tida, fosse por que motivo fosse, o que decorre das regras da experiência comum.
Os factos provados em 18) e 19) decorrem da conjugação do auto de denúncia de fls. 1 a 4 do NUIPC 979/19.9PHLRS, no que respeita ao dia e hora em que os factos ocorreram, com as declarações prestadas pela assistente em sede de audiência de julgamento, a qual foi clara e espontânea ao relatar que o arguido lhe disse que iria ao seu trabalho fazer com que fosse despedida, não se recordando de outra expressão dita, não obstante ter sido questionada de modo aberto.
O arguido apenas assumiu a ocorrência de mais uma discussão, negando qualquer expressão dirigida, pois o tema foi o despedimento da assistente do ..., em que houve exaltação de parte a parte. Muito se estranha que o arguido apenas refira que as discussões tidas com a assistente eram apenas por causa de despedimentos desta dos seus locais de trabalho.
A factualidade ínsita em 20) resulta da conjugação das declarações prestadas pelo arguido e assistente e o depoimento prestado por DD, atual marido da assistente, sendo que todos assumem a existência de uma relação extraconjugal entre a assistente e o seu atual marido, confirmando a assistente de forma credível que o início da mesma ocorreu em ... de 2019 e que na altura em que apresentou a queixa do NUIPC 979/19.9PHLRS, o arguido descobriu a traição, pelo que, sendo a denúncia de ... de 2019, se tem como seguro que foi nessa altura que AA soube do relacionamento tido entre a sua esposa e DD.
O arguido foi confrontado sobre como reagiu ao descobrir a traição da sua mulher, tendo afirmado que a esposa lhe pediu desculpas e que ponderou seriamente se a desculpava ou se avançava para o divórcio, mas acabou por manter o casamento e que as coisas acalmaram.
Tais declarações, face ao perfil demonstrado pelo arguido durante a relação são inverosímeis, uma vez que, AA era ciumento e possessivo para com a assistente quando a mesma não tinha um amante, pelo que, ao descobrir o relacionamento extraconjugal daquela, a sua reação não seria a de conversar calmamente com a esposa, sendo que, EE, atestou com segurança que o pai, após descobrir a traição da mãe, encetou discussões e insultos à assistente que só terminaram após 4 dias.
Os factos provados em 21) e 22) decorrem do relato feito pela assistente em sede de declarações para memória futura, em que a mesma descreveu de forma consentânea, que na véspera de natal, e derivado ao facto de o arguido já ter conhecimento do relacionamento extraconjugal da esposa, ocorreu nova discussão, em que o arguido estava embriagado e apodou a assistente de puta.
O arguido limitou-se a negar tais factos, sendo certo que, decorre das regras da experiência comum que, o padrão de insultos que já ocorria anteriormente, em nada ter-se-á alterado com a descoberta da relação entre a assistente e DD.
A matéria assente de 23) a 26) e que respeita ao episódio ocorrido no restaurante NN, em ..., decorre do confronto das declarações prestadas pelo arguido com as declarações prestadas pela assistente e pela vítima CC em sede de declarações para memória futura e ainda os depoimentos de EE e DD, os quais presenciaram os mesmos.
Ora, o arguido assumiu ter-se deslocado no dia .../.../2022, à hora de jantar ao estabelecimento de restauração acima identificado com um amigo para tomar uma refeição, o que, nesta parte, foi corroborado pelo declarado pela assistente e filhos do casal, inquiridos.
Quanto às circunstâncias em que o arguido se sentou na mesa atrás daquela onde a sua exmulher, companheiro desta e os filhos estavam a jantar, aí regressam as contradições.
O arguido afirmou que o restaurante estava cheio e que estava numa fila de espera, tendo sido o segurança do restaurante que indicou exatamente a mesa onde o arguido se devia sentar e que era a mais próxima da mesa onde estava BB e restante família.
Mais, referiu o arguido que, ao ver o filho CC sentado, ficou surpreendido, dado que havia pedido à assistente para jantar com o filho e a mesma negou, mencionando que o CC já tinha um jantar combinado com amigos, e que, por se sentir enganado, comentou que a assistente não tinha vergonha na cara, tendo enviado uma mensagem através do WhatsApp para a assistente, a qual visualizou a mesma e mostrou-a a DD, tendo este questionado o arguido sobre o que queria. Mais, negou perentoriamente ter proferido qualquer expressão insultuosa, bem como que tivesse sido expulso do restaurante, tendo pago a conta e saído de forma natural.
Ora, tais declarações não merecem credibilidade. Em primeiro lugar, não se compreende porque motivo seria o segurança do espaço e não um empregado do restaurante a indicar o local para o arguido se sentar, pois não cabe nas funções do segurança organizar o serviço das mesas.
Em segundo lugar, ao contrário do afirmado pelo arguido, a assistente e o depoente EE confirmaram de forma coincidente que o restaurante tinha mesas livres, concretizando até a assistente que o arguido poderia ter-se sentado ao balcão, sendo que, não obstante DD afirmar que o espaço estava bem composto, tal afirmação, por si só, em nada inquina o facto de poder haver mesas disponíveis para a refeição.
No mais, face ao contexto de conflituosidade patente e deparando-se o arguido com a sua ex-mulher, acompanhada do companheiro, com quem o tinha traído, e em face da personalidade revelada ao longo do relacionamento, tem-se como credível que o mesmo se foi sentar atrás da mesa de BB de livre vontade, por forma a perturbar o normal decurso da refeição, o que foi relatado pela assistente e demais depoentes, tendo estes reproduzido de forma objetiva e espontânea as expressões proferidas pelo arguido, dirigidas à assistente, as quais foram ouvidas, nomeadamente, pelo menor CC e, que culminaram na expulsão do arguido do NN pelo segurança do local.
A factualidade provada de 27) a 30) decorre da conjugação do auto de denúncia de fls. 13 a 18 e respetivo aditamento de fls. 26, no que respeita ao dia e hora em que os factos ocorreram, com as declarações prestadas pela assistente e CC e depoimentos de EE, DD e GG, agente da PSP, que intercetou o arguido no exterior da Esquadra de ... e, por isso, revela conhecimento direto do que presenciou.
Ora, a assistente, filhos e DD relataram de forma coincidente que, após o episódio no restaurante, dirigiram-se de madrugada à Esquadra de ... para ser apresentada queixa, a qual ditou o início dos presentes autos, e que o arguido foi visto nas imediações do Posto, tendo o mesmo sido abordado por um agente da autoridade.
Ora, OO afirmou de forma isenta que estava a fazer a inquirição à assistente, quando foi alertado pelos colegas de que AA estaria a rondar a Esquadra, pelo que foi ter com o mesmo e questionou o motivo da sua presença, tendo este referido que ia ter com um amigo ao quartel dos Bombeiros que ficava nas imediações, sendo que o depoente, após efetuar diligências para apurar a veracidade do relatado pelo arguido, concluiu que não havia nenhum amigo com o nome dado, mais referindo que, ao conversar com AA, notou o discurso muito lento e que emanava odor a álcool, tentando demovê-lo, ao explicitar que estava a perturbar a vítima com a sua presença, o que não foi acatado, acabando o arguido por ser detido, sendo tal confirmado pela assistente, filhos e atual marido.
Sobre a reação da assistente ao tomar conhecimento da presença do arguido no local, quer EE, quer DD, confirmaram de forma coincidente que BB ficou agitada e nervosa, acrescentando OO, referindo-se ao menor CC, que o mesmo tremia por todos os lados, tendo os agentes acalmado a criança, sendo tais reacções perfeitamente normais, face às regras da experiência comum.
O arguido, quando confrontado com tal factualidade, assumiu saber que a ex-mulher e restante família se dirigiram à Esquadra pois viu da janela da sua casa todos a saírem do prédio, tendo deduzido que iriam ao Posto e que, por volta das 02h00, passou perto da Esquadra e viu o filho CC dentro da mesma e sem motivo aparente, foi detido e conduzido para dentro, tendo apresentado uma reclamação acerca da forma como foi tratado.
Ora, apesar do depoente OO ter confirmado de forma objetiva que existiu uma reclamação apresentada pelo arguido, a sua versão é totalmente descredibilizada.
Vejamos.
Se o arguido declarou que nada aconteceu de errado no NN, não se compreende porque motivo deduziu que, ao ver a assistente, filhos e companheiro na altura a saírem do prédio de madrugada, que os mesmos estariam a caminhar para a Esquadra da PSP.
Igualmente, não se percebe porque motivo às 04h00 de uma noite quase de inverno, o arguido lembrar-se-ia de ir ter com um amigo aos Bombeiros, quando em tal horário não é comum fazer-se visitas a amigos ou a quem quer que seja.
Acresce ainda que, não se compreende porque motivo um agente da autoridade iria deter uma pessoa sem razão aparente, junto a uma Esquadra e na presença de mais colegas ao serviço.
Todas estas discrepâncias no discurso do arguido permitem concluir com certeza, que o mesmo quis intimidar a assistente, sabendo perfeitamente que a mesma iria apresentar nova queixa contra si.
A factualidade ínsita de 31) a 36) resulta da conjugação do aditamento n.º 6 ao auto de denúncia de fls. 61, no que respeita ao dia, local e hora em que os factos ocorreram, com as declarações prestadas pela assistente e ainda os depoimentos de EE e DD.
O arguido, quanto a esta parte, limitou-se a negar os factos, referindo que a última vez que falou com o filho EE terá sido na noite do jantar no NN.
Ora, a assistente, pese embora não tenha conseguido situar a data exata, descreveu com detalhe o episódio, referindo que tinha ido buscar o seu cartão de cidadão ao Campus da Justiça e que, já em ..., cruzou-se com o arguido, tendo este dito que iria desgraçar a vida dela, ao que a mesma ficou muito assustada, pois, apesar de ter um botão de pânico, poderia acontecer alguma coisa até a Polícia chegar, tendo-se dirigido à Esquadra de ..., uma vez que em ... havia problemas informáticos para fazer o aditamento da queixa.
Mais, relatou a assistente de forma clara, consistente e credível que, encontrando-se na Esquadra com DD, recebeu uma chamada do filho EE, o qual estava aflito, uma vez que o pai lhe tinha ligado a dizer que saberia onde a mãe estava e que, quer ela, quer o namorado, iriam levar um tiro.
EE, apesar de afirmar não se recordar do dia exato, e que a chamada que recebeu era de um número desconhecido e que ocorreu a meio da tarde, o mesmo foi perentório ao confirmar ter reconhecido a voz de tal chamada como sendo a do seu pai, o que não se estranha, dada a relação de parentesco tida e que, certamente, ao longo da vida do depoente, o mesmo terá falado em várias ocasiões com o progenitor, pelo que, ainda que a chamada não tenha sido feita do número de telefone do arguido, é do conhecimento geral que existem à venda cartões pré-pagos, que qualquer pessoa os pode comprar e utilizar os números para fazer chamadas.
Deste modo, tem-se como certo que foi o arguido que ligou ao filho, tendo este reproduzido o conteúdo da chamada, no sentido de o pai lhe dizer que sabia que a mãe estava em ... e que a mesma ia levar um tiro, bem como o DD, ficando assustado e se dirigido ao Posto e comunicado tal expressão dita pelo pai à mãe e também a DD, bem como aos agentes da PSP, o que foi totalmente corroborado, quer pela assistente, quer por DD, que explicitaram que os agentes ficaram de alerta e foram buscar coletes à prova de bala e fiscalizaram as imediações junto ao Posto.
É certo que a assistente nada referiu quanto a ter sido perseguida pelo arguido até à Esquadra de .... Contudo, havendo em ... um posto, muito se estranha que o arguido referisse exatamente a Esquadra de ..., quando ninguém o tinha informado de que a assistente ali estaria, pelo que, tudo conjugado com as regras da experiência comum, é possível concluir de forma lógica que o arguido soube do local exato onde estava a ex-mulher porque foi atrás da mesma, ainda que esta não se tenha apercebido de tal.
Os factos provados de 37) a 39) decorrem do confronto das declarações prestadas pelo arguido com as declarações prestadas pela assistente e ainda os depoimentos de EE e DD.
O arguido assumiu os factos assentes. Contudo, deu um contexto para a prática dos mesmos que não logrou convencer o Tribunal. AA falou de questões relacionadas com as férias de verão e que a assistente fez de propósito para lhe coartar a possibilidade de passar férias com o filho CC, já que foi com o mesmo para o ..., sendo que, soube de tal facto, através de um amigo seu, que lhe enviou fotos da “família” em ... e da assistente a estender a tolha na praia, pelo que, nas suas palavras se limitou a enviar ao filho CC as fotos recebidas para lhe desejar umas boas férias, sendo que, neste aspeto, a novel matéria resulta do que o próprio arguido declarou, razão pela qual não há necessidade de a comunicar (cfr. artigo 358.º n.º 2 do CPP).
Tal versão não merece qualquer credibilidade, pois, se o arguido só queria desejar boas férias ao filho, não havia necessidade de enviar uma foto da assistente na praia. Bastava enviar a mensagem.
Tal atuação, tal como foi explicitado de forma clara pela assistente e depoentes acima identificados, é notória de uma perseguição feita à ex-mulher, e que também afetava o próprio menor, sendo que, durante os trajetos feitos em ..., estavam sempre a olhar ao redor para ver se o arguido surgia nas imediações.
Os factos provados em 40) decorrem do declarado pelo arguido, sendo que, uma vez mais, a novel matéria resulta do que o próprio arguido declarou, razão pela qual não há necessidade de a comunicar (cfr. artigo 358.º n.º 2 do CPP). AA declarou ter-se mudado para a casa onde ainda hoje vive no dia em que foi ao NN. Ora, quanto aos motivos que levaram o arguido a residir bem próximo da assistente, o arguido e JJ referiram que foi o filho CC quem arranjou a casa ao pai. Tal versão não merece acolhimento, pois o menor em sede de declarações para memória futura foi claro ao dizer que não quer falar com o pai, que não fala com o mesmo desde que a mãe iniciou a relação com o padrasto e que, tal como acima já foi dito, quando saíram de casa, foi o dia mais feliz da sua vida, pelo que, de tais declarações extrai-se exatamente o oposto do declarado pelo arguido e JJ. Igualmente não se compreende porque razão, se tivesse sido o CC a arranjar a casa para o pai, veja-se, um menor de idade, o mesmo quando passava pela janela da habitação, diria ao pai para se ir embora dali, tal como foi apregoado por JJ. É totalmente contraditório às regras da lógica e experiência comum.
A factualidade assente em 41) resulta das declarações prestadas pela assistente em 24/07/2023 (data da realização da diligência para memória futura) com os depoimentos prestados por EE e DD, em que são relatadas as várias perseguições feitas pelo arguido, quer na rua, quer através da janela da sua habitação, quando vê a ex-mulher e filhos passarem, tendo sido patente em audiência, a proximidade das habitações, onde o arguido consegue controlar os movimentos da assistente, e que a mesma se sente coartada na sua liberdade e com medo, manifestando, claramente, através de tal comportamento, não estar resolvido com o divórcio, não obstante possuir um relacionamento novo, o qual só se soube, através do depoimento da testemunha JJ.
Em relação ao descrito de 42) a 47), o mesmo resulta da factualidade objectivamente considerada e conjugada com as regras da experiência comum, dado o arguido ter a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. Com efeito, tais pontos referem-se a estados psíquicos, do foro interno, psicológico e íntimo do arguido, pelo que a sua verificação não é passível de demonstração direta, sendo revelada por indícios que as regras da experiência e da lógica permitem associar. A convicção do Tribunal fundou-se, pois, em conclusões lógicas formuladas com base na globalidade da factualidade e nos atos objetivamente praticados pelo arguido dados como provados, em conjugação com as referidas regras.
Quanto às condições pessoais, familiares e profissionais do arguido, plasmadas de 48) a 57) foram ponderadas as declarações por si prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, as quais se mostraram sérias e plausíveis, em conjugação com o depoimento abonatório de JJ, o qual enalteceu as qualidades pessoais do arguido, e ainda o teor do relatório social elaborado pela DGRSP junto a fls. 407 a 410
A prova dos antecedentes criminais assentes de 58) a 74), resulta do teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 419 a 429.
Quanto à factualidade considerada não provada da acusação, a mesma resulta do que ficou dito em sentido contrário relativamente às alíneas a), b), d) e h) e no restante à falta de meios de prova que, sustentadamente, a corroborasse com as certezas exigidas em processo penal.
Em especial, quanto às alíneas c), e), f) e h), não foi feita qualquer prova da factualidade ali vertida.”.
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IV- APRECIANDO
4.1. Impugnação da matéria de facto
O recorrente:
i. Identifica os concretos pontos de facto que reputa como incorrectamente julgados;
ii. Indica que a convicção do tribunal se formou com base em depoimentos (que considera inverosímeis ou contraditórios);
iii. Requer, implicitamente, uma nova apreciação crítica da prova produzida em audiência, designadamente quanto às declarações da assistente e do filho;
O recorrente não invoca expressamente o vício do artigo 410.º.
A terminologia utilizada (“erro notório na apreciação da prova”) é ambígua, mas todo o desenvolvimento argumentativo está ancorado na estrutura do artigo 412.º – impugnação de pontos de facto, valoração indevida da prova, apelo à audição das gravações.
Acresce que não aponta qualquer contradição lógica intrínseca à sentença, nem qualquer desconformidade evidente que autorize a qualificação da sua alegação como vício nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP.
Portanto, não se verifica invocação de vício nos termos do art.º 410.º, e, mesmo que se pudesse suscitar essa qualificação oficiosamente, não se extrai da sentença qualquer erro lógico evidente ou ilogicidade manifesta que fundamente esse vício.
Assim, deverá a impugnação do recorrente ser conhecida exclusivamente à luz do regime do artigo 412.º do CPP, e com respeito pelos ónus de especificação ali previstos, nomeadamente quanto à exigência de referência às passagens relevantes das gravações da prova, sempre que disponíveis.
A possibilidade de reapreciação da matéria de facto em sede de recurso encontra-se consagrada no artigo 412.º do Código de Processo Penal (CPP), sendo expressão do princípio das garantias de defesa e da estrutura acusatória do processo penal, mas simultaneamente subordinada a rigorosos pressupostos formais e materiais, que delimitam o respectivo objecto e extensão.
Neste quadro, o recurso da impugnação da matéria de facto não pode funcionar como uma nova instância de julgamento, cabendo apenas controlar os vícios manifestos da decisão ou os erros de julgamento devidamente especificados pelo recorrente, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP.
O mecanismo recursivo previsto no artigo 412.º exige que o recorrente, ao impugnar a decisão sobre a matéria de facto, cumpra cumulativamente dois ónus:
i. Indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
ii. Especificação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, incluindo a menção das passagens relevantes da prova gravada, caso exista.
Esta exigência visa assegurar a seriedade da impugnação e permitir ao tribunal ad quem um controlo efectivo e delimitado sobre os elementos probatórios invocados.
Na situação em apreço, verifica-se que o recorrente enuncia, de forma genérica, a impugnação de diversos pontos da matéria de facto (v.g., pontos 4, 5, 7 a 12, 13 a 16, 21 a 28, 37 a 39), mas não identifica, com a precisão devida, as passagens das provas gravadas que sustentem uma decisão diversa. A mera discordância valorativa ou a invocação genérica da imprecisão dos depoimentos pode não satisfazer o requisito legal.
Não obstante, a admissibilidade da reapreciação da matéria de facto não pode ser refutada por um formalismo excessivo, devendo o tribunal ad quem atender ao conteúdo substancial da impugnação, desde que este permita a delimitação efectiva do objecto do recurso.
Como já referido, o recorrente indicou os pontos de facto concretos que reputa como incorrectamente julgados (v.g., pontos 4, 5, 7-12, 13-16, 21-28, 37-39), e associou à impugnação argumentos de discordância quanto à valoração dos depoimentos da assistente, do filho e de outras testemunhas, criticando a ausência de corroboração e a existência de contradições.
É certo que o recorrente não identificou, de forma rigorosa, as passagens concretas da prova gravada que suportariam decisão diversa. Todavia, a sua argumentação permite ao tribunal:
i. Identificar o núcleo factual contestado;
ii. Compreender o sentido da divergência probatória suscitada;
iii. E, com auxílio da gravação existente, reexaminar o mérito da apreciação probatória efectuada na 1.ª instância.
Assim, consideramos que os elementos apresentados são suficientes para permitir o conhecimento da impugnação da matéria de facto, não obstante as falhas formais, em nome da efectividade do direito ao recurso (art.º 32.º, n.º 1 da CRP) e do princípio do contraditório.
O recorrente centra a sua censura na argumentação de que os factos dados como provados na sentença recorrida assentam exclusivamente nas declarações da assistente, desprovidas de credibilidade, coerência e corroboração objectiva. Contudo, a análise conjunta da sentença recorrida, dos elementos probatórios constantes dos autos e dos princípios orientadores da valoração da prova demonstra a fragilidade e falta de fundamento desta argumentação.
Desde logo, importa referir que a convicção do tribunal de primeira instância não assenta apenas no depoimento da assistente, mas sim num conjunto articulado de fontes probatórias que foram avaliadas de modo crítico e fundamentado. A assistente prestou declarações para memória futura, nos termos do artigo 271.º do CPP, tendo tais declarações sido sujeitas ao contraditório e ulteriormente reforçadas em audiência. Essas declarações revelaram-se consistentes, pormenorizadas e estáveis descrevendo com clareza:
i. a cronologia dos factos;
ii. a frequência dos episódios de violência;
iii. os locais e modos de actuação do arguido;
iv. e as repercussões físicas e emocionais dos comportamentos abusivos.
Este núcleo declarativo foi corroborado por outros meios de prova, nomeadamente:
i. pelas declarações do filho CC, que confirmou ter presenciado episódios de agressão e ofensas verbais à sua mãe;
ii. pelas declarações do filho EE, que foi destinatário de ameaças do arguido e agente de comunicação entre os demais intervenientes;
iii. pelos depoimentos de elementos da PSP, que intervieram em vários episódios, testemunharam o estado emocional das vítimas e a postura do arguido;
iv. pelos comportamentos pós-separação, que revelam uma lógica persecutória reiterada (vigilância, envio de fotografias, aparecimento súbito em locais frequentados pela assistente).
Do ponto de vista epistemológico, a prova foi avaliada com base em critérios objectivos de coerência interna, compatibilidade entre versões e confrontação com elementos externos. O tribunal a quo explicitou, com detalhe, os motivos pelos quais considerou a versão da assistente mais credível do que a do arguido, nomeadamente:
i. a ausência de interesse directo da assistente em incriminar falsamente o arguido, atendendo ao histórico de separação e à protecção dos filhos;
ii. a consistência cronológica e a congruência emocional do seu depoimento;
iii. a fragilidade da versão do arguido, centrada em generalizações, omissões relevantes e tentativas de desresponsabilização pessoal.
Acresce dizer que, em crimes de violência doméstica, o depoimento da vítima pode, por si só, fundar a condenação, desde que o tribunal fundamente de forma racional e objectiva a credibilidade desse depoimento — o que, in casu, foi feito.
Assim, mesmo conhecendo do mérito da impugnação de facto apresentada pelo arguido, a reapreciação da prova não permite alcançar convicção diversa da formada em primeira instância, sendo a decisão recorrida manifestamente sólida, fundamentada e conforme aos critérios legais de valoração da prova.
A estrutura típica do crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º do Código Penal, distingue-se da maioria dos crimes de resultado por assentar num modelo de conduta reiterada, continuada e progressiva, caracterizado por uma sucessão de actos que, individualmente considerados, poderiam ser penalmente irrelevantes, mas que, na sua globalidade e persistência, assumem dignidade penal e configuram um ilícito de resultado pluri-ofensivo e habitual.
Trata-se de um tipo legal que protege, cumulativamente:
i. a integridade física e psíquica da vítima;
ii. a sua liberdade moral e autodeterminação emocional;
iii. e, nos casos em que estão em causa filhos ou outros familiares, o ambiente familiar e o desenvolvimento da personalidade de terceiros afectados.
In casu, a matéria de facto provada evidencia um padrão claro de comportamento agressivo e intimidatório, com repetição de episódios de agressão física, insultos humilhantes, ameaças directas e indirectas, controlo obsessivo sobre os movimentos da vítima, perseguição após o fim da coabitação e tentativas de manipulação emocional dos filhos. Este conjunto de condutas, ao longo de vários anos, é típico da escalada de violência que caracteriza as relações abusivas, e que amiúde se designa como “ciclo da violência”.
A prova produzida — ainda que em parte indirecta — revela consistência interna, coerência externa e compatibilidade com o padrão experiencial deste tipo de criminalidade. A ausência de prova documental ou testemunhal directa quanto a todos os episódios não desqualifica a narrativa global, quando esta é confirmada por testemunhos de contexto, intervenção policial em múltiplas ocasiões, e declarações consistentes de várias vítimas.
No plano subjectivo, a intenção do arguido, o seu dolo directo e a sua culpabilidade são demonstráveis precisamente pela persistência e previsibilidade das suas condutas, bem como pelo facto de, apesar da separação e de múltiplas intervenções das autoridades, não cessar o comportamento persecutório e humilhante. Trata-se de uma actuação consciente, livre e reiterada, reveladora de desprezo pela dignidade da vítima, plenamente reconduzível ao tipo objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica.
Por conseguinte, a valoração conjunta da prova, atendendo ao padrão típico da violência doméstica, valida a opção decisória do tribunal de primeira instância, que não incorreu em erro de julgamento, mas antes seguiu uma metodologia conforme à dogmática penal no que tange à produção e valoração da prova.
Um dos pontos insistentes da impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente reside na invocação de contradições, incongruências e lacunas nos depoimentos da assistente, com a pretensão de descredibilizar a sua palavra enquanto meio de prova e, por consequência, sustentar que o tribunal a quo deveria ter formado uma dúvida séria impeditiva da condenação.
Esta linha de argumentação, contudo, padece de uma visão restritiva e distorcida do que é exigível à testemunha vítima de um ciclo prolongado de violência doméstica, ignorando não só os princípios estruturantes da valoração da prova como, também, os contributos da psicologia forense, da vitimologia e da doutrina penal mais actual.
Em primeiro lugar, como já ventilado, as declarações da vítima, mesmo quando isoladas, são válidas e suficientes para fundar a condenação, desde que o tribunal fundamente adequadamente a sua credibilidade. A mera existência de pequenas imprecisões ou divergências de pormenor não invalida a validade da prova, sobretudo quando esta se insere num quadro mais vasto de coerência narrativa e compatibilidade com os dados objectivos recolhidos.
Em segundo lugar, deve-se ter presente que o discurso da vítima de violência doméstica é profundamente marcado por efeitos emocionais e psicológicos resultantes da experiência traumática e da relação abusiva, o que pode condicionar:
i. a linearidade narrativa;
ii. a memória cronológica dos acontecimentos;
iii. a coerência verbal imediata.
A experiência prolongada de vitimação, sobretudo em contexto doméstico, altera os mecanismos de registo, recordação e organização narrativa dos factos, sendo frequente a existência de lacunas, sobreposição de memórias ou oscilações de pormenor, que não devem ser confundidas com falta de veracidade.
No caso em análise, a assistente demonstrou consistência na substância e coerência no padrão relacional descrito, mesmo que não tenha recordado com exactidão todas as datas, sequências ou expressões verbais.
Deste modo, a crítica baseada em pretensas “contradições” é manifestamente improcedente, desajustada da natureza do crime e das características da prova pessoal envolvida, revelando um entendimento ultrapassado e descontextualizado do fenómeno da violência doméstica.
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4.3. Violação do princípio “in dubio pro reo”
A segunda linha fundamental da impugnação apresentada pelo arguido assenta na invocação do princípio in dubio pro reo, sustentando que, perante versões contraditórias dos factos, o tribunal a quo deveria ter decidido em seu benefício. Esta argumentação, embora frequentemente utilizada em sede recursiva, padece de confusões conceptuais relevantes, sendo por isso rejeitável à luz de um critério técnico-jurídico rigoroso.
Vejamos:
O princípio in dubio pro reo decorre directamente do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa como critério decisório em caso de dúvida insanável do tribunal quanto à veracidade de determinado facto relevante para a decisão.
O in dubio pro reo constitui um critério de julgamento de facto e não um critério de valoração da prova. Só se aplica quando, após a produção e valoração de toda a prova admissível, o tribunal permaneça na dúvida sobre a ocorrência ou não de um facto.
Não basta que haja versões contraditórias entre arguido e ofendida/assistente para que se imponha o princípio in dubio pro reo. A sua aplicação pressupõe que, depois de valorada toda a prova com critérios de razoabilidade, o tribunal permaneça em dúvida sobre a verdade dos factos.
Ora, in casu, a sentença recorrida é clara ao afirmar que o tribunal formou a sua convicção com base em elementos probatórios considerados fiáveis, não tendo subsistido dúvida relevante quanto à ocorrência dos factos imputados ao arguido. O julgador não apenas valorizou as declarações da assistente como as confrontou com outros elementos do processo, incluindo declarações de testemunhas e a conduta posterior do arguido, demonstrativa de um padrão persecutório contínuo.
O simples facto de o arguido ter apresentado uma versão alternativa dos factos não constitui, só por si, dúvida relevante para efeitos de aplicação do in dubio pro reo. Este princípio não impõe que se dê razão ao arguido sempre que surja uma versão diferente, mas sim quando o tribunal, depois de ponderada toda a prova, reconheça não conseguir alcançar a certeza exigida para uma condenação.
Não se verificando essa situação — e estando, pelo contrário, expressamente afirmado que o tribunal não permaneceu na dúvida —, não é possível convocar validamente o princípio in dubio pro reo como fundamento de nulidade ou de revogação da decisão recorrida.
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4.3. Valoração das declarações da assistente (legalidade e credibilidade)
A argumentação do recorrente inclui, ainda, uma tentativa de desvalorização das declarações da assistente prestadas para memória futura, com o fundamento de que estas seriam inidóneas para fundamentar uma condenação, ou que careceriam de validação probatória posterior em audiência.
Tal posição contraria frontalmente o regime legal aplicável!
Nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, as declarações para memória futura constituem um meio de prova antecipado, admissível quando exista risco sério de perda ou alteração do valor da prova caso a sua produção seja diferida. Esta norma é complementada pelo regime especial do artigo 24.º, n.º 6 da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro (Estatuto da Vítima), que permite a inquirição antecipada da vítima, com salvaguarda da sua integridade física e psíquica, especialmente quando se trate de crimes de violência doméstica ou de género.
No caso vertente, a assistente foi ouvida antecipadamente com contraditório pleno, na presença do Ministério Público e da defesa, tendo sido assegurado o direito de formular perguntas e requerer esclarecimentos. Estas declarações foram gravadas, transcritas e integradas nos autos, sendo depois complementadas em julgamento com outros meios de prova, conforme resulta da acta da audiência e da motivação da sentença.
Importa destacar que este regime especial visa não apenas preservar a prova, mas também evitar a vitimização secundária, frequentemente causada pela repetição de depoimentos traumáticos, exposição pública da vítima e reencenação dos factos em julgamento.
Por conseguinte, a crítica dirigida pelo recorrente à natureza ou validade das declarações para memória futura é manifestamente infundada, tanto do ponto de vista legal como jurisprudencial. Este meio probatório foi correctamente admitido, processado e valorado, e o juízo de condenação assenta numa análise racional e articulada de todos os meios disponíveis — e não numa aceitação acrítica ou isolada dessas declarações.
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4.4. Imputabilidade eventualmente diminuída (embriaguez)
A imputabilidade penal é a condição subjectiva necessária para que um agente possa ser responsabilizado criminalmente. No ordenamento jurídico português, está regulada nos artigos 19.º a 20.º do Código Penal, sendo concebida como um pressuposto negativo da responsabilidade criminal: só é punível quem tiver capacidade para compreender a ilicitude do facto e para se determinar de acordo com essa compreensão.
Nos termos do artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, é imputável o agente que, no momento da prática do facto, tiver:
i. capacidade de compreender o carácter ilícito do comportamento (componente intelectual da imputabilidade);
ii. e capacidade de agir de acordo com esse entendimento (componente volitiva ou motivacional).
A imputabilidade reporta-se sempre ao momento da acção ou omissão e exige uma conjugação funcional entre a consciência da ilicitude e a autodeterminação conforme ao direito. Estas duas facetas integram-se num conceito unitário e funcional, que traduz a autonomia ética-jurídica do agente.
O artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal consagra dois regimes distintos:
i. A exclusão da imputabilidade (irresponsabilidade penal), aplicável a inimputáveis;
ii. A imputabilidade diminuída, prevista no n.º 2, que pode ter efeitos na atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º do Código Penal.
A distinção entre inimputabilidade e imputabilidade diminuída assenta na intensidade da afectação das capacidades cognitivas e volitivas do agente:
i. Inimputável é quem não compreende o ilícito ou não se pode determinar de acordo com essa compreensão;
ii. Imputável com capacidade diminuída é quem mantém essas capacidades, mas de forma reduzida, por causa de perturbações psíquicas, desenvolvimento incompleto da personalidade, ou outros estados clinicamente reconhecidos.
Exige-se que a diminuição seja clara, significativa e clinicamente aferível, não sendo admissível a sua dedução com base em percepções subjectivas ou especulações argumentativas.
A influência do consumo de álcool ou de substâncias estupefacientes na prática de crimes tem levantado, historicamente, relevantes questões de imputação e de política criminal. O direito penal português adopta uma posição restritiva quanto à possibilidade de essas situações excluírem ou atenuarem a responsabilidade penal do agente, sobretudo quando se trate de embriaguez voluntária.
A principal norma aplicável à situação de embriaguez voluntária encontra-se no artigo 20.º, n.º 4 do CP, que dispõe:
“A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.”
Esta norma consagra, em termos inequívocos, que o agente que se embriaga de forma voluntária e consciente não pode, por essa via, eximir-se à responsabilidade penal por actos praticados nesse estado, ainda que esses actos tenham sido cometidos sob redução da consciência ou da autodeterminação.
Esta regra assume particular importância na política criminal de combate à criminalidade associada ao consumo de álcool e estupefacientes. Neste quadro, o artigo 20.º, n.º 3, do Código Penal é interpretado como expressão de um princípio de responsabilidade pessoal agravada: quem se coloca voluntariamente numa condição que sabe poder diminuir a sua autodeterminação responde pelo risco que criou.
A ratio do artigo 20.º, n.º 3 reside na reprovação de quem se coloca em estado de inimputabilidade, com a consequente reafirmação do dever jurídico de autocontrolo do agente.
Por contraposição, o n.º 1 do artigo 20.º continua a admitir a exclusão da responsabilidade penal quando a embriaguez for involuntária, ou seja, resultante de erro, coacção, caso fortuito ou força maior. Esta situação, porém, é excepcional, e exige prova inequívoca de que:
i. o agente não queria nem previa o efeito da substância;
ii. e que, ao tempo da acção, estava totalmente incapacitado de compreender ou determinar-se.
Os casos de embriaguez involuntária são extremamente raros, sendo maioritariamente afastados por ausência de prova idónea.
A consequência lógica deste regime é que incumbe ao arguido a demonstração cabal de que a embriaguez foi involuntária ou de que, apesar de voluntária, se traduziu numa afectação extraordinária da imputabilidade, com base pericial qualificada — e mesmo nestes casos, o artigo 20.º, n.º 4 impõe limites severos à sua relevância jurídico-penal.
No caso sub judice, o arguido não alegou embriaguez com base em erro ou coacção, mas antes argumentou, de modo especulativo, a possibilidade de se encontrar sob efeito de álcool, sem que disso resultasse qualquer afectação clinicamente aferida das suas capacidades mentais. Como se verá adiante, esta invocação não tem qualquer valor jurídico e deve ser qualificada como tentativa infundada de reduzir artificialmente a sua culpa.
A embriaguez voluntária — ou mais amplamente, a intoxicação auto-induzida — não constitui, em regra, causa de exclusão da imputabilidade. Pelo contrário, tal estado é visto como um factor agravante ou, no mínimo, irrelevante, quando o agente se colocou deliberadamente nessa condição e com consciência dos riscos associados.
A embriaguez voluntária não apenas não exclui a imputabilidade penal como reforça o juízo de censurabilidade, ao traduzir a adopção voluntária de uma conduta de risco.
Com efeito, como referido, nos termos do artigo 20.º, n.º 4 do CP, a voluntariedade e a previsibilidade da afectação psíquica determinam a irrelevância da mesma para efeitos de exclusão da responsabilidade.
Mais:
A imputabilidade presume-se. Quem a invoca como diminuída ou excluída tem o ónus da prova dessa circunstância, nos termos do artigo 32.º, n.º 1 da CRP e do princípio da presunção de normalidade das capacidades psíquicas.
A exclusão da imputabilidade com fundamento em estados de intoxicação alcoólica deve também ser analisada à luz do princípio da actio libera in causa (acção livre na causa), o qual foi recepcionado de forma expressa e sistemática no ordenamento jurídico penal português, através do já citado artigo 20.º, n.º 4 do Código Penal.
A actio libera in causa traduz-se na imputação ao agente da responsabilidade penal por actos praticados num estado de inimputabilidade, quando essa inimputabilidade tenha sido voluntariamente causada por ele próprio, com previsão da possibilidade de prática do crime.
Este princípio rompe com o modelo clássico de imputação assente na capacidade psíquica ao tempo da prática do facto, permitindo considerar relevante a culpabilidade prévia do agente, no momento em que este se colocou deliberadamente na situação que posteriormente resultou na perda de autocontrolo.
A função essencial desta figura é evitar a impunidade de condutas levadas a cabo por agentes que, de forma voluntária, antecipadamente, eliminaram a sua capacidade de autocontrolo.
A aplicação da actio libera in causa exige a verificação cumulativa de três pressupostos fundamentais:
i. O agente estava imputável no momento em que decidiu embriagar-se;
ii. A embriaguez foi voluntária, consciente e culposa;
iii. O agente previu ou devia prever que, nesse estado, poderia praticar um facto típico.
O Código Penal português, no artigo 20.º, n.º 4, integra esta linha de pensamento ao dispor que a exclusão ou diminuição da imputabilidade não releva quando o agente se colocou voluntariamente e com culpa no estado que a determinou.
A actio libera in causa aplica-se indistintamente à embriaguez etílica e à intoxicação por substâncias psicotrópicas, desde que voluntárias e previsíveis. O juízo de previsibilidade não exige a intenção de praticar um crime, mas apenas a consciência de que o estado de intoxicação pode dar lugar a comportamentos ilegais, designadamente agressões, ameaças ou actos descontrolados.
Na sentença sob censura, são referidas ocorrências em que o arguido praticou determinados actos sob influência do consumo de álcool, sendo tal hipótese acolhida como eventualidade factual, mas sem qualquer desenvolvimento técnico-probatório que permita correlacionar essa ingestão com uma efectiva diminuição da imputabilidade penal nos termos do artigo 20.º do Código Penal.
O arguido, em sede de recurso, procura utilizar essa referência para sustentar uma tese de atenuação da sua culpa, ainda que sem articulação pericial ou indicação objectiva dos efeitos concretos da alegada intoxicação sobre a sua consciência ou autodeterminação.
Importa, pois, distinguir entre dois planos:
i. por um lado, o reconhecimento fático da presença de álcool em momentos delimitados da factualidade provada;
ii. por outro, a sua eventual relevância jurídico-penal como elemento modificativo da imputabilidade.
No caso sub judice, a prova produzida e a decisão recorrida não estabelecem qualquer nexo clínico, psiquiátrico ou comportamental entre o consumo de álcool e uma alteração substancial da capacidade de compreensão ou de autodeterminação do arguido. Nenhum dos seguintes elementos está presente nos autos:
i. relatório pericial de psiquiatria ou psicologia forense;
ii. prova toxicológica validada;
iii. depoimentos médicos ou clínicos;
iv. descrição comportamental que aponte para alienação mental, alucinação, desorientação ou impulsividade patológica.
Pelo contrário, os factos provados evidenciam um padrão intencional, persistente e estrategicamente orientado de actuação, incompatível com qualquer perturbação grave das faculdades mentais. O arguido:
i. seleccionou horários e locais de contacto com a vítima;
ii. repetiu condutas ameaçadoras ao longo do tempo;
iii. utilizou intermediários para transmitir mensagens intimidatórias;
iv. e monitorizou, de forma reiterada, os movimentos da assistente e dos filhos.
Mesmo que se aceitasse que o arguido ingerira bebidas alcoólicas, não há qualquer indicação de que tal consumo tivesse sido excessivo, extremo ou descontrolado, a ponto de afectar significativamente a sua imputabilidade.
Nos termos do princípio da presunção de imputabilidade, como já supra-referido, cabe a quem invoca a sua afectação provar os factos que a consubstanciem.
Em suma, a invocação da embriaguez nos autos, ainda que referida na sentença, não se traduz em elemento juridicamente relevante para efeitos de imputabilidade diminuída, não estando comprovada, nem densificada, nem demonstrando impacto concreto na consciência ou na autodeterminação do arguido à data dos factos.
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4.5. Erro na qualificação jurídica dos factos
O recurso apresentado pelo arguido sustenta, como uma das suas linhas argumentativas, que a decisão recorrida incorreu em erro na qualificação jurídica dos factos, porquanto — afirma-se — a sua conduta não preenche os requisitos objectivos e subjectivos dos crimes de violência doméstica (art.º 152.º do CP) nem de ameaça agravada (arts. 153.º e 155.º do CP).
A qualificação jurídica dos factos é matéria de direito, plenamente sindicável em sede de recurso. No entanto, o controlo da subsunção jurídica não permite desconsiderar os factos julgados provados nem reabrir a matéria de facto, salvo vício previsto no artigo 410.º do Código de Processo Penal — o que, no caso concreto, não foi sequer validamente invocado.
O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, representa uma das figuras criminais mais complexas e socialmente relevantes do ordenamento jurídico português. A sua estrutura jurídico-penal é particularmente sensível, dada a multiplicidade de condutas abrangidas, o âmbito relacional qualificado entre agente e vítima e a dimensão prolongada e reiterada da agressão.
O tipo legal do artº. 152º nºs 1 e 2 do CP dispõe:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.
Este artigo incorpora uma protecção penal reforçada das relações afectivas ou familiares, reconhecendo o potencial lesivo dos comportamentos agressivos num contexto de confiança, dependência ou proximidade emocional, e acolhe tanto condutas isoladas de especial gravidade como condutas reiteradas que, pela sua acumulação, afectam de forma grave a dignidade e autodeterminação da vítima.
O tipo objectivo do crime de violência doméstica exige:
i. Um nexo relacional específico entre o agente e a vítima (ex: cônjuge, ex-cônjuge, progenitor de filho comum);
ii. A prática de maus tratos físicos ou psíquicos;
iii. A realização dos actos de forma reiterada ou isoladamente com especial gravidade.
O conceito de “maus tratos” abrange:
i. agressões físicas, verbais, emocionais;
ii. condutas intimidatórias ou humilhantes;
iii. controlo abusivo do quotidiano da vítima;
iv. ameaças, coacções e condutas psicológicas desestabilizadoras.
No plano subjectivo, o crime exige dolo genérico directo ou eventual, ou seja, a consciência e vontade de praticar os actos com conhecimento da sua carga ofensiva. Não se exige que o agente deseje o sofrimento da vítima, bastando que actue com indiferença perante esse resultado.
O arguido sustenta que a conduta que lhe foi imputada não preenche os elementos do crime de violência doméstica, alegando que:
i. os factos seriam isolados, episódicos ou inconsequentes;
ii. as acções não evidenciariam um padrão de maus-tratos físicos ou psíquicos;
iii. e que o dolo exigido pela norma penal não estaria presente.
Tal argumentação, contudo, não resiste à confrontação com a matéria de facto dada como provada, a qual, nos termos da sentença, revela:
i. um nexo relacional de ex-cônjuges entre arguido e assistente, com filhos comuns;
ii. um conjunto reiterado de comportamentos abusivos, ameaçadores e intimidatórios, praticados durante e após a cessação da relação;
iii. episódios de agressividade verbal, perseguição, controlo, insultos, ameaças, afectando de forma grave a liberdade de movimentos, o bem-estar emocional e a tranquilidade da assistente e dos filhos.
Estes comportamentos não só cumprem os requisitos do tipo objectivo do artigo 152.º do Código Penal, como traduzem uma realidade típica de violência doméstica.
Ademais, importa ter presente que:
i. a intencionalidade do arguido é manifesta nos actos descritos;
ii. a reiterada procura da vítima, as frases dirigidas (“vais pagar pelo que me fizeste”; “ninguém se mete com os meus filhos”) e a insistência em manter contacto indesejado revelam dolo directo na perpetuação de um clima de medo e controlo;
iii. o arguido actuou de forma livre e consciente, escolhendo horários e locais das abordagens, utilizando intermediários e tecnologias para manter a presença intimidatória.
Não se trata de incidentes pontuais nem de reacções emocionais isoladas. A factualidade retracta um padrão de violência emocional e psicológica continuada, integrado na lógica do controlo pós-relacional e da coacção afectiva, exactamente como previsto no artigo 152.º do CP.
A tese de que os factos seriam atípicos ou de reduzida ilicitude é, pois, incompatível com a densidade probatória e a tipicidade material do comportamento apurado.
Last but not least:
A sentença sob censura dá como provado que o arguido praticou condutas intimidatórias e desestabilizadoras na presença e contra o seu filho menor, CC, consistindo em:
i. gritos, insultos e intimidação dirigida à mãe, presenciados pelo menor;
ii. ameaças indirectas e ambiente de medo;
iii. desrespeito contínuo pela tranquilidade e estabilidade do filho, mesmo após a separação.
Tais condutas preenchem o crime de violência doméstica agravada, previsto no artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas d) e e) e 2 al. a) do Código Penal, que tutela especificamente:
i. menores enquanto vítimas directas;
ii. e também a exposição da criança à violência conjugal, como forma de maus-tratos psíquicos com potencial lesivo próprio.
No caso concreto, os factos provados são suficientemente claros para preencher a descrição típica:
i. conduta reiterada;
ii. prejuízo emocional objectivo e previsível no menor;
iii. contexto relacional legalmente previsto (pai/filho com coabitação anterior).
No que tange ao crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º e 155.º n.º 1 a), ambos do CP (na pessoa de DD).
O crime de ameaça tem previsão no artigo 153.º, e pode ser agravado em função da prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, nos termos do artigo 155.º do mesmo diploma legal.
Preceitua o artº. 153º do CP:
1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”.
Este tipo legal apresenta uma estrutura objectiva dividida em três elementos:
i. A prolação de uma ameaça, isto é, a comunicação verbal, gestual ou simbólica da intenção de praticar um crime contra bens jurídicos determinados;
ii. A aptidão objectiva da ameaça para provocar medo ou inquietação na vítima;
iii. A efectiva produção desse efeito subjectivo ou o prejuízo à liberdade de autodeterminação.
Não se exige que o agente tenha a intenção real de executar a ameaça: basta que a ameaça seja levada a sério pela vítima, e que a sua liberdade psíquica ou comportamental seja comprometida.
In casu:
i. O arguido proferiu expressões claras e concretas, como “vou-te matar” e “vais levar um tiro”, dirigidas a DD;
ii. Essas ameaças referem-se à prática de crime punível com pena superior a três anos (designadamente, homicídio – art.º 131.º do CP);
iii. Foram proferidas de modo directo e com capacidade real de criar temor fundado, o que ocorreu;
iv. O dolo directo está demonstrado pela intencionalidade com que o arguido actuou.
Não se verifica, pois, qualquer erro de subsunção dos factos aos tipos legais referidos. As normas aplicadas:
i. correspondem exactamente aos elementos objectivos e subjectivos provados; e
ii. foram aplicadas com correcção sistemática.
A divergência do recorrente não é jurídica, mas meramente valorativa, sendo exógena à estrutura do tipo e insusceptível de abalar a validade do juízo de direito emitido pelo tribunal a quo.
Concluindo:
1. A subsunção dos factos ao crime de violência doméstica agravada na pessoa de BB encontra-se correctamente fundamentada.
Os comportamentos reiterados de intimidação, controlo e agressividade psicológica praticados pelo arguido contra a sua ex-companheira e progenitora de filhos comuns integram de forma inequívoca o tipo legal do artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), 2 a), do CP.
A presença de menor (CC) e a natureza continuada da violência agravam a moldura penal e impõem uma resposta judicial agravada.
2. O crime de violência doméstica agravada praticado contra CC está igualmente bem qualificado.
A exposição do menor ao ambiente de violência, instabilidade e medo, mesmo na ausência de agressões físicas directas, consubstancia maus-tratos psíquicos juridicamente relevantes.
Está preenchido o tipo previsto no artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas d) e e), 2 a) do CP.
3. A ameaça dirigida contra DD constitui crime de ameaça agravada.
As expressões proferidas configuram ameaça de crime com pena superior a 3 anos, em concreto o homicídio (art.º 131.º do CP);
Está correctamente aplicada a agravação prevista no artigo 155.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 153.º, n.º 1;
A acção foi dolosa, intimidatória e produziu efeitos reais na vítima.
4. Inexiste qualquer erro de qualificação jurídica dos factos
A impugnação do recorrente confunde apreciação da prova com a subsunção normativa, e não identifica qualquer norma mal aplicada ou interpretação jurídica distorcida;
Os crimes imputados estão solidamente fundamentados na matéria de facto provada e correspondem à subsunção legal exacta e necessária.
*
4.6. Desproporcionalidade das penas aplicadas
A medida concreta da pena aplicada a um arguido condenado pela prática de ilícitos penais deve obedecer aos critérios legais estabelecidos nos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, de modo a garantir:
1. a justa fixação da culpa;
2. a adequação às exigências de prevenção;
3. e a proporcionalidade entre o facto e a sanção.
O arguido, no caso sub judice, contesta as penas de prisão aplicadas, defendendo a sua excessiva severidade à luz das suas condições pessoais, da alegada reduzida gravidade dos factos e do seu passado criminal limitado. Invoca, para o efeito, os artigos 70.º e 71.º do CP, sustentando que deveria ter sido aplicada pena não privativa da liberdade, designadamente multa ou suspensão pura e simples da execução da pena.
O artigo 70.º do Código Penal consagra um princípio estruturante da política penal, reflectindo uma tendência humanista e ressocializadora do sistema penal. Estabelece:
Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Esta norma não impõe uma exclusão da pena de prisão, mas apenas uma preferência condicionada, sujeita à verificação de dois requisitos essenciais:
1. a suficiência preventiva da pena alternativa, face ao risco de reincidência e à perigosidade do agente;
2. e a adequação da sanção não detentiva, face à gravidade do facto e à intensidade da culpa.
Ou seja, o artigo 70.º do CP não consagra uma obrigatoriedade automática de afastar a pena de prisão, sobretudo quando estão em causa:
1. crimes praticados com dolo intenso e reiteração;
2. violação de bens jurídicos fundamentais (liberdade, integridade física, dignidade pessoal);
3. ou condutas socialmente intoleráveis, como o crime de violência doméstica.
A aplicação do artigo 70.º do Código Penal exige que as finalidades preventivas da pena possam ser alcançadas sem recurso à prisão, o que não ocorre quando os factos demonstram intensidade de dolo e de ilicitude que exigem resposta penal mais adequada.
Além disso, a gravidade do comportamento e as exigências de reprovação podem, por si sós, afastar a aplicação de pena não detentiva. Isto é particularmente válido nos casos em que:
i. há pluralidade de vítimas;
ii. exposição de crianças à violência;
iii. condutas reiteradas com domínio da vontade.
In casu, como veremos, a conduta do arguido:
i. foi prolongada no tempo e dirigida a múltiplas vítimas vulneráveis;
ii. traduziu abuso relacional, pressão emocional e ameaça grave;
iii. e demonstrou desrespeito reiterado pelas ordens da autoridade e pela dignidade dos ofendidos.
Nestas circunstâncias, a aplicação de pena privativa da liberdade, ainda que suspensa na execução, não viola o artigo 70.º do CP, mas concretiza a sua função de protecção da comunidade e de reprovação proporcional do facto.
A fixação da pena está regulada no artigo 71.º do Código Penal, que consagra um modelo normativo estruturado e vinculante de ponderação das circunstâncias do caso concreto, assente nos princípios da culpa, da proporcionalidade e da prevenção.
Dispõe o n.º 1 do artigo 71.º:
A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”.
O n.º 2 enumera os factores que devem ser considerados, designadamente:
i. o grau de ilicitude do facto;
ii. o modo de execução e a gravidade das suas consequências;
iii. o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
iv. a intensidade do dolo;
v. os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
vi. as condições pessoais do agente e a sua conduta anterior e posterior ao facto;
vii. e, em geral, todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
Trata-se de um critério misto, que articula elementos:
i. subjectivos (grau de culpa, dolo, fins do agente);
ii. objectivos (dano causado, intensidade da agressão ao bem jurídico);
iii. e previsionais ou preventivos (risco de reincidência, prognose social, protecção da vítima).
O critério da culpa funciona como tecto da pena admissível. Nenhuma pena pode exceder a gravidade da censura que o facto justifica segundo um juízo ético-jurídico de reprovação.
No caso concreto, o grau de culpa do arguido revela-se elevado, pelos seguintes motivos:
i. actuou com dolo directo, de forma reiterada e calculada;
ii. praticou actos em contexto de relação afectiva e parental, com abuso de poder e de confiança;
iii. demonstrou insensibilidade quanto ao sofrimento das vítimas, inclusive menor;
iv. utilizou a sua posição relacional para manter um ambiente de medo e subjugação.
Estes elementos determinam uma elevada intensidade de censura da conduta, que justifica a aplicação de pena não inferior à média legal da moldura abstracta.
É, pois, necessário atribuir à prevenção especial (reintegração e dissuasão da reincidência) e à prevenção geral (validade da norma violada) um peso significativo nos crimes contra vítimas vulneráveis, como nos crimes de violência doméstica e ameaças.
In casu:
i. o arguido persistiu na sua conduta mesmo após separação;
ii. actuou com indiferença pelas consequências emocionais da sua actuação;
iii. e não revelou sinais relevantes de arrependimento ou retractação.
Tais elementos reforçam a necessidade de uma pena com função preventiva clara, que permita dissuadir o arguido da prática de crimes e proteger as vítimas.
Tendo presente o quadro factual dado como provado e os critérios normativos extraídos do artigo 71.º do Código Penal, impõe-se analisar se a medida concreta das penas aplicadas ao arguido respeita os limites da culpa e as exigências de prevenção, ou não, como argumenta neste caso o ora arguido/recorrente.
A conduta do arguido apresenta um grau elevado de ilicitude, desde logo porque:
i. visou dois sujeitos particularmente vulneráveis: a ex-companheira (assistente BB) e o filho menor (CC), que sofreram violência prolongada no tempo, de natureza psicológica e intimidatória;
ii. foi praticada em contexto relacional e familiar de coabitação anterior, com abuso de proximidade, violando expectativas de confiança e protecção;
iii. as ameaças dirigidas a DD foram de extrema gravidade (“vou-te matar”, “vais levar um tiro”), tendo gerado receio real e modificação comportamental;
iv. os actos foram reiterados e não impulsivos, demonstrando cálculo, intenção e persistência.
O comportamento do arguido revela:
i. dolo directo e consciente, direccionado à intimidação e subjugação da vítima;
ii. intenção reiterada de interferir no quotidiano da ex-companheira, minando a sua liberdade e autodeterminação;
iii. uma atitude de negação dos limites da convivência pós-relacional;
iv. e total ausência de consciência crítica sobre os seus actos.
Não se verificam atenuantes relevantes no domínio subjectivo — o arguido não manifestou arrependimento, não colaborou com a justiça nem demonstrou disponibilidade para se afastar da vítima.
As circunstâncias apuradas na prática destes crimes impõem exigências de prevenção geral elevadas:
i. a violência doméstica continua a ser fenómeno socialmente disseminado, com altos níveis de ocultação e reincidência;
ii. a necessidade de protecção das vítimas e a validade da norma penal é particularmente acentuada;
iii. os bens jurídicos afectados são dos mais sensíveis: dignidade, liberdade, paz social, segurança física e emocional.
Do ponto de vista da prevenção especial, também não existem indícios seguros de que o arguido se possa reintegrar sem a aplicação de pena de prisão. A conduta actual demonstra:
i. ausência de motivação para mudança;
ii. hostilidade latente;
iii. e risco futuro de repetição.
Assim, a opção do tribunal por pena de prisão não é excessiva, mas sim proporcional ao desvalor objectivo e subjectivo da acção, e adequada às exigências de tutela penal.
A argumentação do arguido sustenta que a aplicação de pena de prisão violaria o princípio da proporcionalidade e a orientação legal da preferência por sanções não detentivas, consagrada no artigo 70.º do Código Penal. Propõe, em alternativa, a aplicação de:
i. pena de multa;
ii. ou pena de prisão suspensa na sua execução sem condições, já que foi suspensa na sua execução com sujeição ao regime de prova.
Esta posição não resiste à análise jurídica à luz dos critérios normativos aplicáveis e as exigências materiais do caso concreto.
A substituição por pena de multa não é admissível, pois:
i. o crime de violência doméstica agravada, especialmente na forma prevista no n.º 2 do artigo 152.º do CP, tem como pena abstracta prisão de 2 a 5 anos;
ii. a multa só é aplicável nos casos em que a lei o permita expressamente ou quando seja fixada pena alternativa — o que não ocorre aqui;
iii. mais importante: a gravidade dos factos, o grau de culpa e as exigências preventivas inviabilizam a suficiência da multa.
O arguido, não contestando a suspensão da execução da prisão, defende que o regime de prova imposto é excessivo e desnecessário, propondo que se opte por uma suspensão simples da execução da pena, nos termos do artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, sem sujeição ao regime previsto no artigo 53.º.
Esta pretensão não tem fundamento jurídico, nem é compatível com as exigências materiais do caso concreto. A aplicação do regime de prova foi não só legalmente admissível, como necessária à tutela das finalidades da pena.
Vejamos:
O artigo 53.º do Código Penal dispõe:
1 - O tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade.
2 - O regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.
(…).”
Trata-se, pois, de uma medida de prevenção especial positiva, dirigida ao controlo activo da conduta do arguido/condenado durante o período de suspensão da execução da prisão, promovendo:
i. a sua responsabilização pessoal;
ii. o compromisso com regras sociais;
iii. e a neutralização de factores de risco identificados.
O regime de prova não constitui um agravamento da pena, mas sim um instrumento legal de acompanhamento e reeducação, quando a mera ameaça da prisão se revele insuficiente.
In casu, a sentença fundamentou a imposição do regime de prova com base em:
i. actuação prolongada e reiterada do arguido contra vítimas vulneráveis;
ii. ausência de sinais de arrependimento, retractação ou reconhecimento da ilicitude;
iii. risco fundado de repetição da conduta abusiva, num contexto relacional desestruturado;
iv. e necessidade de garantir afastamento, controlo e suporte técnico-social, a bem da segurança das vítimas e da estabilidade da reinserção do agente.
A suspensão simples da pena, sem qualquer acompanhamento institucional nem imposição de regras concretas, não daria resposta adequada à complexidade e gravidade do caso, nem garantiria o cumprimento da finalidade de ressocialização, como exige o art.º 50.º, n.º 1.
Termos em que esta parte do recurso, também, não pode proceder.
*
4.7. Absolvição dos pedidos cíveis
A impugnação do pedido cível apresentada pelo arguido assenta exclusivamente na alegada improcedência da condenação penal, sustentando que, a ser absolvido da prática dos factos criminosos, igualmente deveria ser absolvido da obrigação indemnizatória.
Sucede, porém, que a decisão penal condenatória se manteve, tendo o tribunal dado como provada a prática dos crimes de violência doméstica agravada e ameaça agravada, com lesão de direitos pessoais da assistente BB e do menor CC.
Verificando-se a responsabilidade penal pelos factos típicos, ilícitos e culposos, estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual nos termos do artigo 483.º do Código Civil.
Não tendo sido invocadas outras causas de exclusão da obrigação indemnizatória, e não estando em causa a quantificação isoladamente considerada, improcede a pretensão de absolvição do pedido cível, por falta do pressuposto de facto essencial em que assentava.
Impõe-se, pois, a improcedência do recurso in totum.
*
V- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, e confirmar integralmente a sentença sob censura.
Custas a cargo do recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 5UCs.
Notifique.

Tribunal da Relação de Lisboa, 04-06-2025
Alfredo Costa
Rui Teixeira
Rosa Vasconcelos
Processado e revisto pelo relator (art.º 94º, nº 2 do CPP)
Ortografia pré-acordo