Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
600/08.0GAALQ.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
RECONHECIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I-O artigo 147.º, n.º 1, do C.P.P., relativo ao reconhecimento de pessoas, refere a necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, e não à necessidade de o arguido ser reconhecido por alguém, donde resulta que nada na lei obriga a constituir antecipadamente como arguido o suspeito para poder ser sujeito a reconhecimento.
II- Se qualquer pessoa, independentemente de ser arguido ou não, pode ser sujeito a reconhecimento, também a lei não impõe ao suspeito a obrigatoriedade de assistência de defensor, mesmo que por motivo de analfabetismo, ao abrigo do artigo 64.º, n.º1, alínea d) do CPP.
III- Na valoração probatória do auto de reconhecimento, se o ofendido em audiência refere que viu o arguido oito dias depois dos factos e logo o reconheceu, importa, em conjugação com a prova pessoal produzida em audiência, dissipar a dúvida que se pode colocar de saber se o acto de reconhecimento mobilizou as capacidades de percepção sensorial e de recuperação de memória do ofendido quanto às características físicas, fisionómicas e outras que a testemunha tinha guardado do recorrente, relativamente ao dia dos factos, ou se essa percepção se refere ao tal momento em que viu o recorrente oito dias depois dos factos.
Decisão Texto Parcial:ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

            I – Relatório

            1. No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 600/08.0GAALQ, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Alenquer, procedeu-se ao julgamento dos arguidos ACA... e AJM..., ambos melhor identificados nos autos, pela imputada prática, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 26.°, 203.°, n.º1 e 204.°, n.º2, al. e), do Código Penal.

           Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

           «Pelo exposto julgo parcialmente procedente, por provada, a douta acusação pública e em conformidade:

           a) Julgo improcedentes as nulidades do reconhecimento cujo auto se mostra inserto a fls. 96 dos autos, invocadas pelo arguido ACA...;

          b) Absolvo os arguidos ACA... e AJM... da prática, em co-autoria, do crime de furto qualificado p. e p. pelos arts. 26.°, 203.°, n.º 1 e 204.°, n.º 2, al. e), todos do Código Penal, que lhes era imputado nos presentes autos;

            c) Condeno o arguido ACA... pela prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 26.°, 203.°, n.º1 e 204.º, n.º 1, al.f), todos do Código Penal, na pena de na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão;

           d) Condeno o arguido AJM... pela prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 26.°, 203.°, n.º 1 e 204.°, n.º 1, al. f), todos do Código Penal, na pena de de 8 (oito) meses de prisão, a cumprir por dias livres, em 48 (quarenta e oito) períodos, com início às 9 (nove) horas de sábado e terminus às 19 (dezanove) horas de domingo;  

(…)»

            2. Inconformado, o arguido ACA... recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

            (...).

           3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, no sentido de que a sentença recorrida não merece censura, concluindo (transcrição):

            (...).

             4. Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

            II – Fundamentação

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido

          Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

            Atentas as conclusões apresentadas, as questões a apreciar são: a nulidade do reconhecimento efectuado durante o inquérito e a impugnação da decisão sobre a matéria de facto; a determinação da medida da pena.           

            2. Da sentença recorrida

           2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

            1. No dia 6 de Agosto de 2008, cerca das 19h30m, conforme combinado entre si, os arguidos, fazendo-se transportar numa carrinha de marca Ford, de cor branca, na qual se encontrava aposta uma chapa de matrícula ---, dirigiram-se para um armazém pertencente à empresa "A - C ", sito na localidade do Camarnal, com o intuito de se apoderarem de objectos que aí se encontrassem.

           2. O mencionado armazém encontra-se vedado por um portão, o qual se encontrava aberto.

           3. Uma vez aí chegados e de acordo com o plano traçado, entraram com a carrinha para o interior do pátio do armazém.

           4. Após, dirigiram-se para a porta do armazém, que se encontrava fechada com uma tranca e, de forma não apurada, lograram abri-la e por aí entraram para o seu interior.

           5. Uma vez no interior do armazém, retiraram 19 caixas contendo no seu interior tiras de  alumínio para estores, no valor global de € 2.000,00, que fizeram suas.

           6. Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de esforços vontades, com o propósito de fazerem suas as referidas caixas, não obstante saberem que as mesmas não lhes pertenciam e que agiu contra a vontade e sem autorização da sua legítima dona.

           7. Bem sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.

           8. O arguido AA... encontra-se actualmente preso no Estabelecimento Prisional de Monsanto, a cumprir uma pena de um ano de prisão.

           9. Quando se encontrava em liberdade, residia com a companheira e três filhos, de 5, 3 e l anos de idade.

           10. Concluiu o 1.° ciclo, mas afirma não saber ler nem escrever, apenas-sabendo assinar o nome.

           11. No relatório social junto aos autos a fls. 324-328 conclui-se que "O processo de desenvolvimento do arguido decorreu em ambiente caracterizado por carências ao nível relacional, económico e habitacional, o que a par dessas vicissitudes e igualmente condicionante no seu desenvolvimento destaca-se a dinâmica familiar disfuncional, marcada pela permissividade com que foi educado e a mobilidade do respectivo agregado familiar de origem, que condicionou o percurso escolar. Da sua trajectória vivencial releva-se a venda ambulante e a execução de trabalhos esporádicos por conta de terceiros, actividades mal remuneradas que levaram a família a recorrer a apoios estatais. Presentemente predominam factores de risco, com destaque para as reduzidas competências pessoais e laborais que apresenta, o meio social e comunitário envolvente, a precariedade económica vivenciada pelos familiares e os antecedentes criminais que regista, que em contraste com a quase inexistência de factores protectores, levam-nos a concluir que o arguido apresenta um processo de reintegração social problemático, que só poderá ser minimizado com algumas acções formativas/laborais, mesmo que em meio prisional".

            12. O arguido solicitou, no E.P., uma actividade laboral, que ainda não lhe foi atribuída: mantém uma postura institucionalmente correcta e beneficia de visitas irregulares da companheira e filhos.

           13. Do CRC do arguido AA consta que o mesmo já respondeu:

           a) pela prática, em 15/11/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado, por sentença proferida em 21/11/2007, transitada em julgado em 06/12/2007, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (Processo Sumário n.º 251/07.7GEACB do 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça), pena já declarada extinta, em 17/11/2008, pelo cumprimento;

           b) pela prática, em 11/02/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado, por sentença proferida em 18/12/2007, transitada. em julgado em 13/01/2008, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 2,00 (Processo Comum Singular n.º 95/07.6GTLRA do 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior), pena já declarada extinta, em 20/10/2008, pelo cumprimento;

           c) pela prática, em 02/03/2008, de um crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado, por sentença proferida em 26/11/2008, transitada em julgado em 06/03/2009, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (Processo Abreviado n.º 93/08.2GAACB do 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça):

           d) pela prática, em 14/05/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado, por sentença proferida em 21/05/2009, transitada em julgado em 13/07/2009, na pena de 4 meses de prisão, suspensa por 1 ano (Processo Comum Singular n.º 291/07.6PAPNI do 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Peniche), suspensão essa que foi revogada por despacho proferido em 15/12/2010;

           e) pela prática, em 13/09/2009, de um crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado, por sentença proferida em 10/02/2010, transitada em julgado em 14/04/2010, na pena de 7 meses de prisão, suspensa por 1 ano (Processo Comum Singular n.º 206/09.7PAACB do 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça), pena que foi extinta em 17/06/2011;

           f) pela prática, em 27/06/2009, de um crime de furto qualificado, tendo sido condenado, por sentença proferida em 23/02/2011, transitada em julgado em 13/03/2013, na pena de 54 períodos de prisão por dias livres (Processo Comum Singular nº 156/09.7PAACB do 3.° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça);

           g) pela prática, em 22/06/2008, de um crime de injúria agravada, tendo sido condenado, por sentença proferida em 11/12/2009, transitada em julgado em 01/03/2010, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (Processo Comum Singular n.º 248/08.0GCACB do 3.° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça);

           h) pela prática, em 29/03/2007, de um crime de burla simples, tendo sido condenado, por sentença proferida em 11/01/2010, transitada em julgado em 02/03/2010, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (Processo Comum Singular n.º 459/07.5PBLRA do 1.° Juízo Criminal do Tribunal de Leiria), pena já declarada extinta, em 09/11/2010, pelo cumprimento;

           i) pela prática, em 12/08/2008, de um crime de furto qualificado, tendo sido condenado, por sentença proferida em 09/12/2010, transitada em julgado em 11/03/2011, na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 1 ano (Processo Comum Singular n.º 619/08.1GAACB do 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Alenquer);

           j) pela prática, em 01/04/2009, de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de condução perigosa de veículo automóvel, tendo sido condenado, por sentença proferida em 16/10/2010, transitada em julgado em 13/04/2011, na pena de 15 meses de prisão (Processo Comum Singular n.º 253/09.9PATVD do 3.° Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras);

           k) pela prática, em 09/10/2008, de um crime de furto simples, tendo sido condenado, por sentença proferida em 16/02/2011, transitada em julgado em 11/04/2011, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (Processo Comum Singular n.º 302/08.8GATVD do 3.° Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras);

           l) pela prática, em 25/08/2009, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, tendo sido condenado, por sentença proferida em 01/03/2011, transitada em julgado em 12/03/2012, na pena de 1 ano de prisão (Processo Comum Singular n.º 216/09.4GEACB do 3.° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça);

           m) pela prática, em 24/10/2009, de um crime de furto qualificado, tendo sido condenado, por sentença proferida em 14/07/2011, transitada em julgado em 26/11/2012, na pena de 1 ano de prisão (Processo Comum Singular n.º 257/09.1PAACBdo 3.° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça);

           n) pela prática, em 06/03/2008, de um crime de furto qualificado, tendo sido condenado, por sentença proferida em 21/12/2011, transitada em julgado em 11/03/2013, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por um ano (Processo Comum Singular n.º 68/08.1TANZR do Tribunal Judicial da Nazaré);

           o) pela prática, em 24/10/2009, de um crime de condução sem habilitação legal, um crime de roubo e um crime de burla qualificada, tendo sido condenado, por acórdão proferido em 03/12/2012, transitado em julgado em 23/01/2013, na pena de 3 anos de prisão (Processo Comum Colectivo n.º 420/09.5JALRA do 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça).

           14. O arguido AM... encontra-se actualmente desempregado e aufere o rendimento social de inserção, no montante de € 460,00 mensais, a que acresce o abono de família, em montante que ronda os € 100,00 mensais.

           15. Vive com uma companheira, que é doméstica, e tem dois filhos, de 21 e.5 anos de idade.

            16. Tem o 6.° ano de escolaridade.

            17. Paga de renda de casa o montante mensal de € 250,00.

           18. Encontra-se inscrito em Centro de Emprego, aguardando o início de uma acção de formação em Tecno... consta que o mesmo já respondeu:

           a) pela prática, em 12/08/2008, de um crime de furto simples, tendo sido condenado, por sentença proferida em 09/12/2010, transitada em julgado em 24/01/2011, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (Processo Comum Singular n," 619/08.1GAALQ do 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Alenquer);

           b) pela prática, em 13/06/2010, de um crime de furto qualificado, tendo sido condenado, por sentença proferida em 15/06/2011, transitada em julgado em 15/07/2011, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (Processo Comum Singular n.º 364/10.8GCTVD do 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras);

           c) pela prática, em 21/05/2010, de um crime de furto qualificado, tendo sido condenado, por sentença proferida em 27/01/2012, transitada em julgado em 20/02/2012, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa por 2 anos e 8 meses (Processo Comum Singular n.º 495/10APBCLD do 3.° Juízo do Tribunal Judicial de Caldas da Rainha).

2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):

            Não se provou:

           a) que a porta do armazém da ofendida se encontrava fechada com um gancho;

           b) quaisquer outros factos para além ou em contrário dos dados por provados e com interesse para a decisão da causa.

           

2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

           A convicção do Tribunal relativamente aos factos dados como provados fundou-se na globalidade da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e na análise dos documentos de fls. 7-10, 72, 79-80, 88, 90,96,97,99,100,101,102-103 (este, apenas no que toca à identificação da defensora do arguido e à assinatura desta), 132, 143-145, 329, do relatório social de fls. 324-328 e, ainda, dos CRC' s de fls. 370-373 e 374-392.

 Os arguidos negaram a prática dos factos. AA disse que raramente encontra com o co-arguido AM e que não recorda ter ido com ele alguma vez ao Camarnal. AM disse também que só andou com o arguido AA uma vez e que respondeu por causa disso. Do CRC dos arguidos resulta que, esta "vez" em que os arguidos se juntaram e, nessa sequência, praticaram ilícitos, será aquela a que se reportam os autos do processo n.º 619/08.lGAACB do 1.° Juízo deste Tribunal, no qual ambos foram condenados pela prática, em 12 de Agosto de 2008, respectivamente de um crime de furto qualificado e um crime de furto simples.

           No entanto, CC relatou, de forma que se nos afigurou credível porque coerente e isenta, na medida em que disse não se recordar de diversos factos que, em abstracto, poderiam ser prejudiciais aos arguidos, que, no dia em causa, saiu da sua oficina por 7 ou 8 minutos, deixando a porta do armazém com uma tranca por dentro, cerca das 18 ou 18.30 horas e, quando regressou, encontrou uma Ford Transit branca, que abandonou o local quando ia a chegar, dentro do pátio da oficina, que tem um portão que não fechou porque o vizinho do lado não tem vedação. Cruzou-se com a carrinha Ford Transit quando ia a entrar e esta a sair e viu que iam três pessoas no banco da frente. Dirigiu-se depois ao armazém e deu pela falta de estores em alumínio, não recordando já quantas caixas lhe faltavam mas que na altura calculou o valor, que ascendia a cerca de €2.000,00. Soube uma semana mais tarde que a mesma Ford Transit tinha sido apanhada num assalto em Abrigada, pelo que se dirigiu ao Posto da GNR e aí viu três pessoas, que reconheceu sem qualquer dúvida como sendo as mesmas que iam a sair do seu armazém - que serão os arguidos, sendo que este "assalto em Abrigada" será exactamente aquele a que se reportam os autos do processo n.º 619/08.1GAALQ, como decorre de fls. 72. Posteriormente, disse o ofendido que foi à GNR fazer reconhecimentos, tendo reconhecido as três pessoas, uma delas com muita dificuldade e as outras duas sem quaisquer dúvidas. Actualmente, não consegue já afirmar que o arguido AA seja uma das pessoas em causa, mas referiu que o arguido AM é efectivamente a mesma pessoa que conduzia a carrinha, porque foi do condutor que ficou sempre com uma imagem mais precisa. Referiu ter a ideia de que os factos haviam ocorrido em Julho, mas disse tê-los participado à GNR no mesmo dia - afirmação que, conjugada com a data aposta no auto de notícia de fls. 3-4, leva a que se conclua que os factos efectivamente ocorreram em 6 de Agosto de 2008. Do auto de notícia, conjugado com as declarações da testemunha CC, resulta igualmente que lhe foram retiradas 19 caixas de tiras de alumínio para estores. Dos documentos de fls. 7-10 resulta qual a matrícula aposta na carrinha utilizada pelos arguidos. Assim, destes elementos probatórios, com especial relevo para o depoimento de CC, resultou provado o descrito nos pontos 1. a 5. supra. Resultou ainda não provado o facto referido em a), visto que o ofendido descreveu que a porta do armazém se encontrava fechada com uma tranca e não com um gancho.

           Quanto à identidade dos autores dos factos e, mormente, quanto à conclusão de que os mesmos foram, além de pelo menos outro, os arguidos, impõe-se no entanto esclarecer que se valorou, na formação da convicção, os autos de reconhecimento de fls. 96 e 132.

           De facto, em nosso entender os reconhecimentos foram efectuados com observância das formalidades legalmente exigidas, não se verificando, desde logo, as nulidades invocadas pelo arguido AA em sede de audiência de discussão e julgamento. Aliás, exemplo dessa mesma observância das formalidades legais é, desde logo, o facto de apenas terem sido dados como reconhecidos pelo ofendido os arguidos e não já FCA (cfr. fls. 97), apesar de o ofendido dizer que reconheceu as três pessoas. Esta actuação dos órgãos de polícia criminal prende-se, certamente, com o facto de que o próprio ofendido referiu que apenas com muitas dúvidas reconheceu o terceiro interveniente - dúvidas estas face às quais os militares da GNR consignaram que não havia um reconhecimento efectivo do suspeito.

           Concretamente no que toca aos fundamentos invocados pelo arguido AA para a verificação das nulidades invocadas, diga-se desde já que o tribunal não tem por absolutamente certo que o arguido não saiba ler nem escrever, facto que aliás é de difícil comprovação. No entanto, uma vez que o mesmo favorece o arguido (no que toca à invocação da nulidade), aceita-se que efectivamente o mesmo apenas saiba assinar o nome, o que é aliás consentâneo com as regras da experiência comum, visto que o arguido é de etnia cigana a qual, como é público, geralmente não conclui a escolaridade obrigatória. No entanto, ainda que se entenda que, assim, o arguido haveria de ser assistido por defensor aquando da realização do reconhecimento e que a assinatura/menção de presença de tal defensor não consta do auto de reconhecimento, tal não acarreta, a nosso ver, a nulidade daquele meio de prova. Isto porque, face à prova testemunhal produzida e à prova documental dos autos resulta apurado que, efectivamente, o arguido se encontrava assistido por uma defensora quando foi sujeito ao reconhecimento. Esta factualidade resulta desde logo das declarações do ofendido, CC, que disse recordar-se que, aquando dos primeiros reconhecimentos, estava presente uma advogada, ou uma senhora que o ofendido, na altura, deduziu da conversa da GNR que era uma advogada. Esta referência à presença de uma advogada aquando da realização do reconhecimento do arguido AA é corroborada, também, pelo depoimento da militar PR, que efectuou o reconhecimento e elaborou o auto de fls. 96 e disse também recordar-se, ainda que de forma pouco precisa, da presença de uma advogada. Dos elementos documentais de fls. 79-80, 88 e 90 resulta que o militar da GNR NV, que conduzia as investigações, foi contactado telefonicamente várias vezes por uma Advogada de nome CP, que seria a defensora do arguido AA, a qual por diversas vezes solicitou o adiamento do reconhecimento e que, no dia 31/07/2009, compareceu no Posto da GNR a acompanhar o arguido, após o que se efectuaram os reconhecimentos. Embora a assinatura desta advogada não conste do auto de reconhecimento, certo é que consta de todos os demais actos que se lhe seguiram, como decorre de fls. 99 a 103, sendo absolutamente avesso às regras da experiência comum que, ademais tendo a respectiva ausência motivado sucessivos adiamentos da diligência, a defensora do arguido houvesse comparecido apenas após o reconhecimento e que este tivesse sido efectuado na sua ausência. Acresce, como se referiu já, que quer o ofendido, quer a militar PR, se referem à presença de uma advogada. A Dr.ª CP, inquirida, disse recordar-se, por ter consultado o seu arquivo, deter estado presente no Posto da GNR de Alenquer por causa de umas diligências em sede de inquérito, mas não se recordar de ter pedido o adiamento de qualquer diligência, de ter presenciado qualquer reconhecimento ou sequer do tema do inquérito. Referiu que acaso tivesse tomado conhecimento de que o reconhecimento havia sido efectuado sem a presença de defensor, imediatamente o impugnaria, sendo que se o não fez foi porque eventualmente não teve conhecimento do mesmo. No entanto, o depoimento da Sr.ª Advogada resulta muito vago e pouco preciso, reportando-se com alguma certeza apenas ao que, segundo referiu, constava do seu arquivo, pelo que, por si só, não afasta a conclusão de que apenas terá sido omitida, por lapso da militar que efectuou o reconhecimento, a assinatura da defensora no respectivo auto, que não já a sua presença no acto, tanto mais que aquela militar referiu que pergunta sempre, antes de dar início à diligência, se o suspeito saber ler e escrever e que, acaso não saiba, nomeia defensor - nomeação esta que não ocorreu igualmente nos presentes autos, visto que a Dr.ª CP não é advogada na comarca, o que reforça igualmente a conclusão de que a mesma estaria já presente. Também não é credível que, mesmo sem a consulta dos autos de inquérito, a Sr.ª Advogada não tivesse tido conhecimento da realização do reconhecimento, mormente por tal lhe ser transmitido pelo arguido, visto que nos momentos imediatamente subsequentes a tal diligência comprovadamente esteve presente no Posto da GNR. Acresce ainda que o militar NV referiu que, quando lavrou a informação de fls. 79-80, aí exarou o que consta sobre o dia 31/07 (comparência da advogada e assistência desta aos reconhecimentos) por indicação da militar PR - que, actualmente, não recorda com absoluta precisão tais factos mas que, certamente, aquando da elaboração de tal informação, os tinha bem presentes e reportou ao colega nos termos por este levados a escrito, mesmo porque, nessa altura, nenhuma questão se suscitava quanto aos reconhecimentos em causa e respectiva validade. A conclusão de que terá sido omitida, por lapso devido à confusão derivada da realização sucessiva de dois reconhecimentos (referida pela testemunha PR), a assinatura da defensora do arguido resulta ainda reforçada se se atentar que, também no que toca à assinatura do militar BP, que integrou a linha do reconhecimento, a mesma não se encontra aposta no correspondente auto.

           Assim, conclui-se que o arguido AA efectivamente se encontrava assistido por defensor aquando da realização do reconhecimento, pelo que, nessa parte e atenta a prova produzida, improcede a invocada nulidade, não se verificando qualquer violação do preceituado no art. 64.°, n.º 1, al, c) [actual alínea d)] do Código de Processo Penal.

           No que concerne à questão de a linha de reconhecimento não ser integrada por pessoas semelhantes fisicamente ao arguido, mormente por não se tratar de pessoas integralmente de etnia cigana, diga-se, antes de mais, que a fisionomia do arguido não revela, por si só, a respectiva etnia, ou seja, o arguido, que o tribunal teve oportunidade de observar, não é uma pessoa que indubitavelmente se pudesse caracterizar como sendo de etnia cigana, não apresentando, quer nas vestes, quer no tom de pele ou de cabelo, quaisquer elementos dos quais se pudesse concluir, sem margem para dúvidas, que fosse cigano. É, aliás, relativamente parecido, em termos físicos, com o militar BP (que não é de etnia cigana), que integrou a linha de reconhecimento, sendo este apenas um pouco mais baixo e ligeiramente menos entroncado que o arguido. É impossível determinar a semelhança com o terceiro elemento da linha de reconhecimento, que aliás era de etnia cigana. No entanto, a avaliar pela similitude fisionómica com o cabo BP, não se nos afigura que a militar que procedeu ao reconhecimento não haja diligenciado pela inclusão, na linha de reconhecimento, de pessoas com características fisionómicas semelhantes às do arguido, mormente às demais descritas pelo ofendido: "de estatura mediana, cor de pele um pouco escura, cabelo curto e gordo".

           Nem se exige, para que o reconhecimento possa ser efectuado, que o mesmo apenas possa ter como intervenientes pessoas de etnia cigana quando o suspeito pertença a esta comunidade, visto que, nesse caso, muitas vezes se revelaria impossível proceder a tal diligência, pela falta de colaboração de elementos daquela etnia com a realização da mesma. Assim, afigura-se-nos que, em casos como o dos autos, em que a fisionomia do arguido não é inteiramente coincidente com aquilo a que chamaríamos a típica fisionomia cigana, se é que se pode admitir que tal exista), é perfeitamente lícita a colocação, na linha de reconhecimento, de pessoas de outra etnia mas semelhantes, nas suas características físicas, com o arguido - como sucedeu no que toca ao cabo BP.

           Assim, improcede também nesta parte a invocada nulidade do reconhecimento de fls. 96, não se mostrando violado o preceituado no art.° 147.°, n.º 2 do Código de Processo Penal, motivo pelo qual tal elemento probatório foi valorado na determinação da autoria dos factos descritos pelo ofendido e dados por provados nos pontos 1. a 5.

            Os factos referidos em 6. e 7. resultam provados em virtude das regras da experiência comum, conjugadas com a forma como os factos foram praticados e com o conhecimento generalizado dos cidadãos quanto à ilicitude dos mesmos, o qual certamente não era alheio aos arguidos.

           No que toca aos antecedentes criminais dos arguidos, relevou o teor dos respectivos CRC's, junto aos autos a fls. 370-373 e 374-392. As condições sócio-económicas e pessoais dos arguidos foram relatadas pelos próprios e, no que toca ao arguido AA, relevou a análise do relatório social junto a fls. 324-328.

            3. Apreciando

           Passamos, agora, a apreciar as questões colocadas no recurso, seguindo uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras.

            3.1. Da decisão sobre a matéria de facto

           3.1.1.Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação dos recorrentes.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

            No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.

           Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, a consultar em www. dgsi.pt).

           Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P. Penal:

            «3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

           a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

           b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

            c) As provas que devem ser renovadas.»

           A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

           A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

           Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).

           Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão N.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

           No caso em apreço, o recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, invocando a nulidade do seu reconhecimento durante o inquérito e invocando, no sentido da descredibilização da prova por reconhecimento, alguns segmentos da prova gravada que concretiza e pretende sejam reapreciados.           

           3.1.2. Relativamente ao reconhecimento de fls. 96, o recorrente invocou, no decurso do processo, duas nulidades: a derivada da não assistência do arguido, que alegadamente não sabe ler nem escrever, por defensor, que configura, no seu entender, uma violação do disposto no artigo 64.°, n.º 1, al. c), do C.P.P.; a resultante de não terem sido utilizadas, no reconhecimento, apenas pessoas de etnia cigana, únicas susceptíveis, a seu ver, de apresentarem as maiores semelhanças físicas com o arguido, em desobediência ao exigido pelo n.º 2 do artigo 147.° do C.P.P..

           O conhecimento de tais nulidades foi relegado para a sentença.

           Lê-se na sentença recorrida, a esse respeito (voltamos a transcrever a parte da motivação em que concretamente se conheceu da matéria em apreço) :             

          «Quanto à identidade dos autores dos factos e, mormente, quanto à conclusão de que os mesmos foram, além de pelo menos outro, os arguidos, impõe-se no entanto esclarecer que se valorou, na formação da convicção, os autos de reconhecimento de fls. 96 e 132.

           De facto, em nosso entender os reconhecimentos foram efectuados com observância das formalidades legalmente exigidas, não se verificando, desde logo, as nulidades invocadas pelo arguido AA em sede de audiência de discussão e julgamento. Aliás, exemplo dessa mesma observância das formalidades legais é, desde logo, o facto de apenas terem sido dados como reconhecidos pelo ofendido os arguidos e não já FCA (cfr. fls. 97), apesar de o ofendido dizer que reconheceu as três pessoas. Esta actuação dos órgãos de polícia criminal prende-se, certamente, com o facto de que o próprio ofendido referiu que apenas com muitas dúvidas reconheceu o terceiro interveniente - dúvidas estas face às quais os militares da GNR consignaram que não havia um reconhecimento efectivo do suspeito.

           Concretamente no que toca aos fundamentos invocados pelo arguido AA para a verificação das nulidades invocadas, diga-se desde já que o tribunal não tem por absolutamente certo que o arguido não saiba ler nem escrever, facto que aliás é de difícil comprovação. No entanto, uma vez que o mesmo favorece o arguido (no que toca à invocação da nulidade), aceita-se que efectivamente o mesmo apenas saiba assinar o nome, o que é aliás consentâneo com as regras da experiência comum, visto que o arguido é de etnia cigana a qual, como é público, geralmente não conclui a escolaridade obrigatória. No entanto, ainda que se entenda que, assim, o arguido haveria de ser assistido por defensor aquando da realização do reconhecimento e que a assinatura/menção de presença de tal defensor não consta do auto de reconhecimento, tal não acarreta, a nosso ver, a nulidade daquele meio de prova. Isto porque, face à prova testemunhal produzida e à prova documental dos autos resulta apurado que, efectivamente, o arguido se encontrava assistido por uma defensora quando foi sujeito ao reconhecimento. Esta factualidade resulta desde logo das declarações do ofendido, CC, que disse recordar-se que, aquando dos primeiros reconhecimentos, estava presente uma advogada, ou uma senhora que o ofendido, na altura, deduziu da conversa da GNR que era uma advogada. Esta referência à presença de uma advogada aquando da realização do reconhecimento do arguido AA é corroborada, também, pelo depoimento da militar PR, que efectuou o reconhecimento e elaborou o auto de fls. 96 e disse também recordar-se, ainda que de forma pouco precisa, da presença de uma advogada. Dos elementos documentais de fls. 79-80, 88 e 90 resulta que o militar da GNR NV, que conduzia as investigações, foi contactado telefonicamente várias vezes por uma Advogada de nome CP, que seria a defensora do arguido AA, a qual por diversas vezes solicitou o adiamento do reconhecimento e que, no dia 31/07/2009, compareceu no Posto da GNR a acompanhar o arguido, após o que se efectuaram os reconhecimentos. Embora a assinatura desta advogada não conste do auto de reconhecimento, certo é que consta de todos os demais actos que se lhe seguiram, como decorre de fls. 99 a 103, sendo absolutamente avesso às regras da experiência comum que, ademais tendo a respectiva ausência motivado sucessivos adiamentos da diligência, a defensora do arguido houvesse comparecido apenas após o reconhecimento e que este tivesse sido efectuado na sua ausência. Acresce, como se referiu já, que quer o ofendido, quer a militar PR, se referem à presença de uma advogada. A Dr.ª CP, inquirida, disse recordar-se, por ter consultado o seu arquivo, deter estado presente no Posto da GNR de Alenquer por causa de umas diligências em sede de inquérito, mas não se recordar de ter pedido o adiamento de qualquer diligência, de ter presenciado qualquer reconhecimento ou sequer do tema do inquérito. Referiu que acaso tivesse tomado conhecimento de que o reconhecimento havia sido efectuado sem a presença de defensor, imediatamente o impugnaria, sendo que se o não fez foi porque eventualmente não teve conhecimento do mesmo. No entanto, o depoimento da Sr.ª Advogada resulta muito vago e pouco preciso, reportando-se com alguma certeza apenas ao que, segundo referiu, constava do seu arquivo, pelo que, por si só, não afasta a conclusão de que apenas terá sido omitida, por lapso da militar que efectuou o reconhecimento, a assinatura da defensora no respectivo auto, que não já a sua presença no acto, tanto mais que aquela militar referiu que pergunta sempre, antes de dar início à diligência, se o suspeito saber ler e escrever e que, acaso não saiba, nomeia defensor - nomeação esta que não ocorreu igualmente nos presentes autos, visto que a Dr.ª CP não é advogada na comarca, o que reforça igualmente a conclusão de que a mesma estaria já presente. Também não é credível que, mesmo sem a consulta dos autos de inquérito, a Sr.ª Advogada não tivesse tido conhecimento da realização do reconhecimento, mormente por tal lhe ser transmitido pelo arguido, visto que nos momentos imediatamente subsequentes a tal diligência comprovadamente esteve presente no Posto da GNR. Acresce ainda que o militar NV referiu que, quando lavrou a informação de fls. 79-80, aí exarou o que consta sobre o dia 31/07 (comparência da advogada e assistência desta aos reconhecimentos) por indicação da militar PR - que, actualmente, não recorda com absoluta precisão tais factos mas que, certamente, aquando da elaboração de tal informação, os tinha bem presentes e reportou ao colega nos termos por este levados a escrito, mesmo porque, nessa altura, nenhuma questão se suscitava quanto aos reconhecimentos em causa e respectiva validade. A conclusão de que terá sido omitida, por lapso devido à confusão derivada da realização sucessiva de dois reconhecimentos (referida pela testemunha PR), a assinatura da defensora do arguido resulta ainda reforçada se se atentar que, também no que toca à assinatura do militar BP, que integrou a linha do reconhecimento, a mesma não se encontra aposta no correspondente auto.

           Assim, conclui-se que o arguido AA efectivamente se encontrava assistido por defensor aquando da realização do reconhecimento, pelo que, nessa parte e atenta a prova produzida, improcede a invocada nulidade, não se verificando qualquer violação do preceituado no art. 64.°, n.º 1, al, c) [actual alínea d)] do Código de Processo Penal.

           No que concerne à questão de a linha de reconhecimento não ser integrada por pessoas semelhantes fisicamente ao arguido, mormente por não se tratar de pessoas integralmente de etnia cigana, diga-se, antes de mais, que a fisionomia do arguido não revela, por si só, a respectiva etnia, ou seja, o arguido, que o tribunal teve oportunidade de observar, não é uma pessoa que indubitavelmente se pudesse caracterizar como sendo de etnia cigana, não apresentando, quer nas vestes, quer no tom de pele ou de cabelo, quaisquer elementos dos quais se pudesse concluir, sem margem para dúvidas, que fosse cigano. É, aliás, relativamente parecido, em termos físicos, com o militar BP (que não é de etnia cigana), que integrou a linha de reconhecimento, sendo este apenas um pouco mais baixo e ligeiramente menos entroncado que o arguido. É impossível determinar a semelhança com o terceiro elemento da linha de reconhecimento, que aliás era de etnia cigana. No entanto, a avaliar pela similitude fisionómica com o cabo BP, não se nos afigura que a militar que procedeu ao reconhecimento não haja diligenciado pela inclusão, na linha de reconhecimento, de pessoas com características fisionómicas semelhantes às do arguido, mormente às demais descritas pelo ofendido: "de estatura mediana, cor de pele um pouco escura, cabelo curto e gordo".

           Nem se exige, para que o reconhecimento possa ser efectuado, que o mesmo apenas possa ter como intervenientes pessoas de etnia cigana quando o suspeito pertença a esta comunidade, visto que, nesse caso, muitas vezes se revelaria impossível proceder a tal diligência, pela falta de colaboração de elementos daquela etnia com a realização da mesma. Assim, afigura-se-nos que, em casos como o dos autos, em que a fisionomia do arguido não é inteiramente coincidente com aquilo a que chamaríamos a típica fisionomia cigana, se é que se pode admitir que tal exista), é perfeitamente lícita a colocação, na linha de reconhecimento, de pessoas de outra etnia mas semelhantes, nas suas características físicas, com o arguido - como sucedeu no que toca ao cabo BP.

           Assim, improcede também nesta parte a invocada nulidade do reconhecimento de fls. 96, não se mostrando violado o preceituado no art.° 147.°, n.º 2 do Código de Processo Penal, motivo pelo qual tal elemento probatório foi valorado na determinação da autoria dos factos descritos pelo ofendido e dados por provados nos pontos 1. a  5.»

          A matéria do reconhecimento é inequivocamente importante, na economia da motivação da decisão de facto relativamente ao recorrente, porquanto os arguidos negaram a prática dos factos e a testemunha CC, em audiência de julgamento, disse já não conseguir afirmar que o recorrente foi uma das pessoas que viu saírem do seu armazém.

            Em primeiro lugar, realçamos as dúvidas da M.ma Juíza em relação à questão que consiste em saber se o recorrente sabe ou não ler e escrever.

           Questão que releva face ao disposto no artigo 64.º, n.º1, alínea d) [antes alínea c)], do C.P.P., que determina a obrigatoriedade da assistência de defensor em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, «sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída».

          Realmente, o arguido/recorrente assinou o auto de reconhecimento de pessoas de fls. 96, o auto de constituição de arguido de fls. 99, o termo de identidade e residência de fls. 100, o documento de fls. 101 e o auto de interrogatório de fls. 102, constando do relatório social de fls. 316 e seguintes que o recorrente concluiu o 1.º ciclo do ensino básico, que corresponde aos 1.º, 2,º, 3.º e 4.º anos.

          Assim, relativamente ao seu alegado “analfabetismo”, temos apenas a palavra do arguido, desacompanhada de outros elementos e aparentemente contrariada pela conclusão do 1.º ciclo.

          No entanto, o tribunal recorrido aceitou, por se tratar de facto que favorece o arguido/recorrente, que este apenas saberá assinar o nome.

          Veja-se, aliás, que o tribunal não deu como provado que o recorrente não sabe ler nem escrever e que apenas sabe assinar o nome, mas antes que «10. Concluiu o 1.º ciclo, mas afirma não saber ler bem escrever, apenas sabendo assinar o nome», o que é bem diferente.

          Tendo como assente esse pressuposto, verificamos que o mencionado artigo 64.º, sobre a obrigatoriedade de assistência de defensor, refere-se ao arguido, ou seja, pressupõe a existência de arguido constituído como tal no processo.

          No caso concreto, o recorrente apenas foi constituído arguido na sequência do seu reconhecimento positivo, podendo concluir-se que, caso não fosse reconhecido, não seria constituído arguido, como não foi o então suspeito FCA, que também foi sujeito, na mesma data, a acto de reconhecimento que resultou negativo.

          Quer isto dizer que, no momento em que se procedeu ao reconhecimento de pessoas, o ora recorrente era apenas um suspeito, na definição do artigo 1.º, alínea e), do C.P.P., e só o seu reconhecimento positivo determinou que de suspeito tivesse passado, posteriormente, à qualidade de arguido.

           O artigo 147.º, n.º 1, do C.P.P., relativo ao reconhecimento de pessoas,  refere a necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, e não à necessidade de o arguido ser reconhecido por alguém.

          Por outras palavras: nada na lei obriga a constituir antecipadamente como arguido todo e qualquer suspeito que seja integrado numa linha de reconhecimento.

          Ora, se qualquer pessoa, independentemente de ser arguido ou não, pode ser sujeito a reconhecimento (e mesmo no caso de ser arguido, a lei não impõe, em princípio, a obrigatoriedade de assistência de defensor), temos como evidente que, se o recorrente ainda não tinha a qualidade de arguido (e o respectivo estatuto) quando foi sujeito à diligência em causa, também não tinha que estar assistido na mesma por defensor, por motivo do alegado analfabetismo, ao abrigo do mencionado artigo 64.º, n.º1, alínea d).

          Esta linha de raciocínio, a nosso ver, prejudica toda a argumentação desenvolvida pelo recorrente relativa à presença ou não da sua defensora no acto de reconhecimento de pessoas.

          Em todo o caso, certo é que o tribunal, face à prova testemunhal produzida e à prova documental dos autos, considerou que o arguido/recorrente se encontrava assistido por uma defensora quando foi sujeito ao reconhecimento,  o que nos suscita dúvidas que julgamos fundadas.

          Consta dos autos, a fls. 79-80, que o militar da GNR NV foi contactado telefonicamente, em 15.07.2009 e em 23.07.2009, pela Sr.ª Dr.ª C..., que seria a defensora do ora recorrente, a solicitar a alteração da data designada para o reconhecimento.

          Na mesma informação, a fls. 80, diz-se que no dia do reconhecimento, «compareceu no Destacamento Territorial da GNR de Alenquer o Sr. A... e o Sr. F..., que se faziam acompanhar pela Sr.ª Doutora Advogada C... que acompanhou a diligência».

          Porém, ouvida a gravação do depoimento do referido militar, prestado no dia 2 de Maio de 2013, verifica-se que o mesmo disse: não se recordar se atendeu ou não os ditos telefonemas da Sr.ª advogada – se falou com a mesma terá sido uma só vez -; não sabe se a Sr.ª advogada, que não chegou a ver, esteve presente ou não no acto de reconhecimento; que exarou na dita informação o que a sua colega lhe tinha transmitido.

          A testemunha PR, que efectuou o reconhecimento e elaborou o auto de fls. 96, afirmou recordar-se ou ter «a ideia» da presença de uma advogada, mas já sem conseguir indicar pormenores. Disse a testemunha que costuma perguntar aos arguidos se sabem ler e escrever, sendo até frequente que alguns digam que sabem apenas assinar; que o procedimento normal, quando está presente no reconhecimento um defensor, é que este assine o respectivo auto; que, no essencial, dada a passagem do tempo, já não sabe precisar como as coisas se passaram.

            No que toca à circunstância de constar do auto a assinatura de um tal «MR», que, aparentemente, não teve qualquer participação no reconhecimento, a testemunha adiantou que poderá tratar-se de alguém interveniente noutro reconhecimento que tenha decorrido no mesmo dia, ou seja, retira-se das suas palavras que admite ter havido alguma confusão de papéis. E efectivamente existiu tal confusão, pois como se vê de fls. 97, o referido «MR» interveio noutro reconhecimento que teve lugar no mesmo dia.

         Quanto ao ofendido CC, colhe-se do seu depoimento que deduziu a partir de conversas que ouviu na altura - “apanhei uma conversa», no dizer da testemunha -  que num dos reconhecimentos esteve presente uma advogada, afirmando: “eu penso que sim, para mim era uma advogada”.

         A Sr.ª Dr.ª CP – na altura, advogada do recorrente -, por sua vez, disse, em síntese: que o recorrente foi seu cliente em diversos processos;  recordar-se, por ter consultado o seu arquivo, de ter estado presente no Posto da GNR de Alenquer por causa de umas diligências em sede de inquérito, mas não se recordar de ter pedido o adiamento de qualquer diligência, de ter presenciado qualquer reconhecimento ou sequer do tema do inquérito; que se não consta a sua assinatura no auto de reconhecimento é porque não esteve no mesmo, pois nunca falha nessas coisas, sendo muito cuidadosa.

         Finalmente, a testemunha BP, cabo da GNR que se encarregou, no dia 31 de Julho de 2009, da constituição do recorrente como arguido, da prestação por este de termo de identidade e residência e do seu interrogatório, disse que nesses actos processuais o ora recorrente esteve assistido por advogada, mas já não sabe se a mesma esteve no reconhecimento. A testemunha esclareceu que, tendo participado como figurante na linha de reconhecimento, não tinha como saber se estava presente algum defensor.

            Que dizer sobre tudo isto?

            Reconhece-se que a circunstância de, nos actos processuais imediatamente subsequentes ao reconhecimento (todos praticados no mesmo dia), constar a presença da Ex.ma advogada – que assina o auto de constituição de arguido de fls. 99, o termo de identidade e residência de fls. 100, o documento de fls. 101 e o auto de interrogatório de fls. 102-103, estando, assim, documentada nos autos a sua presença, nesse mesmo dia, no Destacamento Territorial da GNR de Alenquer -, inculca como plausível que a mesma tenha estado presente no reconhecimento que antecedeu esses actos processuais, muito embora sem constar a sua presença no auto respectivo que também não assinou.

            Ainda assim, julgamos legítima a subsistência de dúvidas a esse respeito, que a forma aparentemente pouco cuidada como o auto de reconhecimento foi elaborado acentua (veja-se que é assinado pelo tal «MR», que integrou outro painel de reconhecimento, mas dele não consta a assinatura da testemunha BP, que sabemos ter integrado o painel de reconhecimento do recorrente).

            Porém, como já se assinalou, a questão da presença ou não da Sr.ª advogada no acto de reconhecimento é despicienda: na altura, o ora recorrente era apenas um suspeito, pelo que não havia qualquer obrigatoriedade de assistência de defensor, mesmo no pressuposto de não saber ler nem escrever.

            Não se vislumbra, pois, a existência de nulidade.

         3.1.3.  Aqui chegados, pergunta-se: o reconhecimento do recorrente – e nada mais temos, para além do reconhecimento - na fase de inquérito podia fundamentar, no caso concreto, a prova dos factos que lhe foram imputados e pelos quais foi condenado?

         O reconhecimento de pessoas é um dos meios de prova previstos no C.P.P cuja finalidade é apurar o responsável pelo crime, ou seja, identificar a pessoa que foi vista a praticar o facto criminoso, ou que tenha sido vista antes ou depois do facto, em circunstâncias fortemente indiciadoras de ter sido o seu autor.

Como ensina Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, 4.ª ed., 2008, p. 211), o reconhecimento consiste na confirmação de uma percepção sensorial anterior, ou seja, consiste em estabelecer a identidade entre uma percepção sensorial anterior e outra actual da pessoa que procede ao acto.

Prescreve o artigo 147.º do C.P. Penal:

«1 - Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.

2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.

3 - Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.

4 - As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.

5 - O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.

6 - As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento.

7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.»

No reconhecimento podemos distinguir três modalidades:

a)- o reconhecimento por descrição,

b)- o reconhecimento presencial e

c)- o reconhecimento com resguardo.

O reconhecimento por descrição, previsto no n.º 1 daquele artigo, consiste em solicitar à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros factores que possam influir na credibilidade da identificação.

Em regra, esta modalidade de reconhecimento funciona como acto preliminar dos demais, e nele não existe qualquer contacto visual entre os intervenientes ou seja, entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.

O reconhecimento presencial, previsto no n.º 2 do artigo 147.º, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal, obedecendo aos seguintes passos:

- Na ausência da pessoa que deve efectuar a identificação, são escolhidos, pelo menos, dois cidadãos, que apresentem as maiores semelhanças possíveis – físicas, fisionómicas, etárias, bem como, de vestuário – com o cidadão a identificar;

- Depois, este é colocado ao lado daqueles outros cidadãos e, se possível, apresentando-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que deve proceder ao reconhecimento [tal só não será possível no caso de uma alteração fisionómica irreversível];

- É então chamada a pessoa que deve efectuar a identificação que, depois de ficar diante do grupo onde se encontra o cidadão a identificar e, portanto, depois de ter observado os seus elementos, é perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual, sendo perguntas e respostas – estas e qualquer outra que porventura, tenha sido efectuada, registada no auto respectivo.

O reconhecimento com resguardo, previsto no n.º 3 do artigo 147.º, tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efectuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento. Trata-se, pois, de uma forma de protecção da testemunha.

Esta modalidade de reconhecimento obedece à sequência descrita para o reconhecimento presencial, mas agora a pessoa que vai efectuar a identificação deve poder ver e ouvir o cidadão a identificar, mas não deve por este ser vista. Normalmente, o que sucede é que a pessoa que deve efectuar a identificação é colocada numa divisão distinta daquela onde se encontra o grupo que inclui o cidadão a identificar, separados por um vidro polarizado que permite que aquela aviste, sem ser vista, o grupo [esta modalidade de reconhecimento não vale para a audiência].

Quanto à utilização nas fases posteriores, como prova válida – e irrepetível -do reconhecimento feito nas fases preliminares, constituindo um meio autónomo de prova que se não confunde com declarações e depoimentos, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra, de 5 de Maio de 2010 (Processo 486/07.2GAMLD.C1), onde se diz:

«(…) o reconhecimento realizado em inquérito é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento nos termos dos artigos 355.º, n.º1, in fine, n.º 2 e artigo 356.º, nº 1, b) do Código de Processo Penal.

No caso em apreço, o ofendido CC, quanto à identidade dos autores dos factos, declarou em audiência de julgamento não ter dúvidas de que o arguido AM é efectivamente o indivíduo que conduzia a carrinha com a qual se cruzou e que levava os objectos furtados, justificando que foi do condutor que reteve sempre uma imagem mais precisa: «a cara dele marca bem», afirma a testemunha.

Quanto ao ora recorrente, a testemunha disse já não se lembrar: «neste momento não consigo».

E é natural, acrescentamos, que a testemunha tivesse uma visão mais clara do condutor da viatura, pois o recorrente seguiria do lado mais afastado do seu ângulo de visão.

Regressemos, pois, ao auto de reconhecimento em que o ofendido reconheceu o arguido/recorrente.

Como já se disse, o reconhecimento por descrição constitui um acto preliminar do reconhecimento presencial, devendo solicitar-se à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros factores que possam influir na credibilidade da identificação.

Ora, não se percebe como pode o ofendido ter descrito o recorrente como «sendo de estatura mediana, cor de pele um pouco escura, cabelo curto e gordo», como consta do auto de fls. 96, quando se constata, pela audição da prova gravada, que o mesmo ofendido apenas terá visto o arguido na ocasião em que a viatura em que este seguiria se cruzou com ele – por curtos instantes, por conseguinte – e numa localização dentro da viatura mais afastada do seu ângulo de visão do que o condutor.

A própria testemunha foi clara quando disse, em julgamento, que só podia descrever fisicamente o condutor da viatura e não os restantes passageiros. E se não podia, como é que o descreveu?

Acresce que a testemunha admitiu, em audiência de julgamento, que quando fez o reconhecimento do recorrente, logo se apercebeu de que um dos participantes do painel era um militar da GNR que se encontrava «à civil», muito embora ninguém o tenha dito antes da diligência.

Circunstância que, a nosso ver, legitima a dúvida sobre se eventualmente a testemunha não terá visto anteriormente, noutra ocasião, esse elemento integrante do painel de reconhecimento – e que desde o início se apercebeu tratar-se de um militar da GNR -, o que retira força de convicção, a nosso ver, ao reconhecimento que veio a efectuar, pois a sua percepção reduziu, de imediato, o leque do painel a apenas duas pessoas.

Se acrescentarmos que a testemunha referiu ter visto o recorrente, oito dias depois dos factos, a sair de uma viatura da GNR para o posto e depois dentro do próprio posto, e que logo o terá reconhecido, fica-se com a dúvida sobre se o acto de reconhecimento que veio a ocorrer em 2009 mobilizou as capacidades de percepção sensorial e de recuperação de memória do ofendido quanto às características físicas, fisionómicas e outras que a testemunha tinha guardado do recorrente, relativamente ao dia dos factos, ou se essa percepção se refere ao tal momento em que viu o recorrente a sair da viatura da GNR e a entrar no posto policial.

Estas considerações permitem-nos ajuizar que, no quadro da livre apreciação da prova, que é sempre uma valoração que apela à lógica e às regras de experiência, a valoração probatória do referido auto de reconhecimento, conjugada com a prova pessoal produzida em audiência de julgamento e reapreciada, não consente que a decisão de facto se possa manter quanto ao recorrente, por não se provar, para além do patamar da dúvida razoável, a intervenção do mesmo nos factos.

Assim, há que alterar a matéria de facto, nos seguintes termos, expurgando os factos provados 1 a 7 da menção ao recorrente, passando a constar dos mesmos:

            1. No dia 6 de Agosto de 2008, cerca das 19h30m, conforme combinado entre si, o arguido AJM e outro indivíduo não identificado, fazendo-se transportar numa carrinha de marca Ford, de cor branca, na qual se encontrava aposta uma chapa de matrícula ---, dirigiram-se para um armazém pertencente à empresa "A - EL, Unipessoal, Lda", sito na localidade do Camarnal, com o intuito de se apoderarem de objectos que aí se encontrassem.

           2. O mencionado armazém encontra-se vedado por um portão, o qual se encontrava aberto.

           3. Uma vez aí chegados e de acordo com o plano traçado, entraram com a carrinha para o interior do pátio do armazém.

           4. Após, dirigiram-se para a porta do armazém, que se encontrava fechada com uma tranca e, de forma não apurada, lograram abri-la e por aí entraram para o seu interior.

           5. Uma vez no interior do armazém, retiraram 19 caixas contendo no seu interior tiras de  alumínio para estores, no valor global de € 2.000,00, que fizeram suas.

           6. Agiram livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de esforços vontades, com o propósito de fazerem suas as referidas caixas, não obstante saberem que as mesmas não lhes pertenciam e que agiu contra a vontade e sem autorização da sua legítima dona.

           7. Bem sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.

Adita-se aos factos não provados:

Não provado que o arguido ACA tenha participado nos factos constantes dos pontos de facto provados 1. a 7.

          Consequentemente, o arguido/recorrente terá de ser absolvido, ficando prejudicadas as demais questões.

            III – Dispositivo

            Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:

Conceder parcial provimento ao recurso interposto por ACA, alterando-se a matéria de facto provada e não provada nos termos supra consignados e, em consequência, absolvem o referido recorrente da prática, como co-autor, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 26.°, 203.°, n.º1 e 204.º, n.º 1, al. f), todos do Código Penal.

Sem tributação.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2014

Jorge Gonçalves

Maria José Machado

Decisão Texto Integral: