Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3114/22.2T8OER.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: ACÇÃO POPULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGAR PROVIMENTO
Sumário: I - Uma ação popular tem necessariamente por objeto - conformado pelo pedido e causa de pedir - interesses difusos em sentido amplo, aqui se incluindo quer os interesses difusos stricto sensu, quer os interesses coletivos, quer ainda os respetivos interesses individuais homogéneos.
II - É correta a decisão de indeferimento liminar da Petição Inicial mediante a qual foi instaurada uma ação popular civil se, face ao pedido formulado e à respetiva causa de pedir, não é possível identificar uma situação em que se justifique a tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais pertencentes a todos os membros de uma certa comunidade e não apropriáveis por nenhum deles em termos individuais.
III - Assim sucede no caso dos autos, já que o Autor, advogado, se limitou a alegar, de forma incipiente, que num determinado processo de execução fiscal movido contra uma sua cliente foi adjudicado à instituição bancária, ora Ré, a fração penhorada, tendo a respetiva entrega sido efetuada de forma ilegal, numa atuação criminosa concertada entre a Ré e os Serviços de Finanças, pretendendo a abertura de inquérito contra a Ré, pelo Banco de Portugal, para apurar a extensão dos lesados e titulares dos direitos e interesses a identificar, danos morais e patrimoniais de cada lesado, e, em função do apurado, a condenação da Ré pagar os danos morais e patrimoniais a cada lesado, com comunicação ao Banco Central Europeu.
IV - A tanto não obsta a circunstância de o Autor alegar que a ação popular intentada visa identificar um grupo extenso de pessoas (“executados fiscais”), lesadas por terem sido “expulsas das suas casas”, no seguimento de requerimentos ilegais apresentados pela Ré nos competentes serviços de finanças, ao arrepio das normas legais então vigentes, pois não alegou factos que, a provarem-se, configurem uma situação em que se imponha a defesa de um conjunto de interesses difusos em sentido lato ou interesses materiais comuns aos membros de uma comunidade, isto sem prejuízo da (eventual) violação dos direitos ou interesses individuais da cliente do Autor ou da possibilidade de diligenciar pela tutela dos interesses potencialmente lesados ao nível da ação penal ou da ação popular administrativa.
V - Não tendo sido alegados factos concretos substantivamente que permitam considerar postos em causa quaisquer direitos, seja da cliente do Autor ou de terceiros, à saúde pública, ao ambiente, à qualidade de vida, à proteção do consumo de bens e serviços, ao património cultural e ao domínio público, é manifesto que a pretensão formulada pelo Autor extravasa efetivamente o âmbito do direito de ação popular (pelo menos civil), não assistindo ao Autor o direito de ação popular que se arroga.
VI - Não obstante a isenção consagrada no art.º 4.º, n.º 1, al. b), do RCP, ante a manifesta improcedência do pedido, vencido o Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais nos termos gerais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

PG, Autor na ação popular que, sob a forma de processo comum declarativo, intentou contra BANCO PRIMUS, S.A., interpôs o presente recurso de apelação do despacho que indeferiu liminarmente a Petição Inicial.
Na Petição Inicial, o Autor peticionou que, citada a Ré e publicados os anúncios legais, fosse “aberto inquérito contra a mesma pelo BANCO DE PORTUGAL, para apurar a extensão dos lesados e titulares dos direitos e interesses a identificar e não identificáveis, danos morais e patrimoniais de cada lesado, e condenada a Ré pagar os danos morais e patrimoniais a cada lesado, com comunicação ao Banco Central Europeu”. Alegou, para tanto, o seguinte (reproduz-se o articulado, na parte útil, retificando os lapsos de escrita e acrescentando o sublinhado):
«1º A cliente do AUTOR, CB era a dona e legítima titular do imóvel descrito sob o nº …/…-… da Conservatória do Registo Predial de Beja, Matriz nº …, fração …, sito na Rua …, nº …, Freguesia de Santiago Maior, Beja. - conforme processo executivo que se junta da Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças de Beja. - DOC. nº 1
2º Por dívidas entretanto prescritas de IVA, IRS E IRC, a fração supra referenciada da cliente do AUTOR foi penhorada, vendida e adjudicada ao BANCO PRIMUS, SA, RÉ nestes autos. - DOC. nº 1 junto.
3º A folhas 14 do processo executivo referido no Art.º 1º a RÉ, BANCO PRIMUS, SA, por intermédio dos seus mandatários AMMS, Sociedade de Advogados, RL, requereu a entrega das chaves da fração da cliente do AUTOR contra o disposto do então disposto no pretérito CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, Art.º 928º que regulava o processo de entrega do bem na posse de executado. - DOC. nº 1 junto.
4º Ao proceder assim contra a lei a cliente do AUTOR foi notificada pelo Serviço de Finanças de Beja para entregar as chaves no prazo de 5 dias, claramente em prevaricação e abuso de justiça e crime de corrupção entretanto denunciado no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, tendo em face das ameaças do Chefe de Finanças de Beja, cumprido a vítima CB, tal ordem ilegal, face às ameaças do Serviço de Finanças de Beja. - DOC. nº 1 junto.
5º A atuação do Serviço de Finanças de Beja consubstanciou crime de prevaricação e denúncia de justiça e corrupção praticado em coautoria com o BANCO PRIMUS, SA, que requereu ilegalmente as chaves da fração da referida CB, impedindo a atuação dos Serviços de Assistência da Segurança Social, que poderiam providenciar uma habitação condigna à cliente do AUTOR, ou requerer a própria cliente do A. ou a Segurança Social um prazo razoável para que a mesma conseguisse uma habitação condigna.
6º A RÉ, BANCO PRIMUS, SA, não terminou a execução do tipo legal de corrupção praticado pelo Serviço de Finanças de Beja, praticado em coautoria com esta, como preceitua o Art.º 119º, nº1 e nº2 do Código Penal: “O prazo de prescrição só corre: Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último ato”.
7º Isto porque a RÉ, BANCO PRIMUS, SA , continua a cobrar à cliente do AUTOR importâncias decorrentes do crime de corrupção praticado pelo serviço de Finanças de Beja em coautoria com a RÉ ou seja decorrentes do requerimento contra o direito e contra a lei para o Serviço de Finanças de Beja ordenar a entrega das chaves à cliente referida do participante , CB, pelo que não terminaram os atos de execução do crime de prevaricação e denegação de justiça e corrupção, em que a RÉ BANCO PRIMUS, SA tem executado continuamente: o facto de privação da habitação da cliente do AUTOR, facto em curso, com prejuízo do seu bom nome e reputação, conforme consta dos próprios registos do BANCO DE PORTUGAL, que a impede de aceder ao crédito para adquirir uma habitação condigna, sem prejuízo que os crimes de corrupção previstos no Art.º 373º, nº1, nº2 e Art.º 374º, nº1 do Código Penal só prescrevem ao fim de 15 anos conforme preceitua o Art.º 118º, nº1, a) do Código Penal.
8º Quando em rigor a RÉ, o BANCO PRIMUS, SA só podia lançar mão da execução para entrega de coisa certa, previsto à data de 2008 no Art.º 928º do antigo Código de Processo Civil: “Na execução para entrega de coisa certa, o executado é citado para, no prazo de 20 dias fazer a entrega ou opor-se à execução”, o que não aconteceu.
9º Estando em execução os factos continuados do referido crime de corrupção, a saber os juros ou produto do crime de corrupção, privação do bom nome e reputação e privação da habitação, falta de nome na praça para aceder ao crédito para adquirir uma habitação condigna, contra a entrega ilegal das chaves da habitação da cliente do AUTOR.
10º As pessoas coletivas, como a RÉ, BANCO PRIMUS, SA, têm responsabilidade penal face aos crimes de corrupção: Art.º 11º, nº1 e nº2 do Código Penal e civil como preceitua o Art.º 498º, nº3, do Código Civil que preceitua claramente a não prescrição civil quando o facto constituir crime, sendo o prazo da prescrição o da lei penal.
11º Pelo que deverá ser ordenado inquérito pelo BANCO DE PORTUGAL a estes factos em execução pelo BANCO PRIMUS, S.A, nos termos do 15º, nº 2 da Lei nº 93/21, de 20 de Dezembro, e comunicação destes factos aos organismos da União Europeia, inclusive do Banco Central Europeu, cuja DENUNCIA EXTERNA já foi feita ao GOVERNADOR DO BANCO DE PORTUGAL, para apurar os TITULARES DOS DIREITOS E INTERESSES INDENTIFICÁVEIS, para além da referida CB, bem como apurada a INDEMNIZAÇÃO GLOBAL dos TITULARES NÃO INDENTIFICÁVEIS: ART.º 22º, Nº1 Nº2 E Nº3, da Lei nº83/95, de 31 de Agosto, DOC. nº 2 e nº 3, que se juntam.
12º A RÉ, tem praticado estes factos consubstanciadores de crime pelo menos até 2016.
13º Devendo ser ordenado inquérito à RÉ sobre estes factos praticados pelo menos até 2016, pelo BANCO DE PORTUGAL conforme denúncia a esta entidade já efetuada: DOC. nº 2 e nº 3».
Foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor:
“Atento o pedido e a causa de pedir da presente ação, verifica-se que extravasa o âmbito da ação popular, prevista no art.º 1 da Lei n.º83/95 de 31 de agosto pelo que se indefere liminarmente a mesma, sem prejuízo do Requerente intentar a respetiva ação criminal, caso assim o pretenda.
Notifique.
Custas do incidente pelo mínimo legal.”
Inconformado com esta decisão, veio o Autor interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (sublinhado nosso):
1º O AUTOR, PG, Advogado, deduziu contra o BANCO PRIMUS, S.A, Contribuinte nº …, com Sede na Quinta …, …. . …, … , … – …, Paço de Arcos, esta ação popular declarativa de condenação, com os fundamentos constantes da PI.
2º O douto despacho de indeferimento refere apenas: “Atento o pedido e a causa de pedir da presente ação, verifica-se que extravasa o âmbito da ação popular, prevista no art.º1 da Lei n.º83/95 de 31 de agosto pelo que se indefere liminarmente a mesma, sem prejuízo do Requerente intentar a respetiva ação criminal, caso assim o pretenda. Notifique. Custas do incidente pelo mínimo legal.”
3º Ora, tanto o pedido, como a causa de pedir estão perfeitamente conformes com o Art.º 1º, nº1 e nº2 da Lei nº83/95, de 31 de Agosto.
4º Preceitua este Art.º 1º, nº1 da Lei nº83/95, de 31 de Agosto que:
1 - A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.
5º E o Art.º 1º, nº 2 da mesma Lei, que:
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.
6º Sendo este número 2 não taxativo: ao referir “designadamente”.
Esta ação visa identificar um grupo extenso de pessoas, lesadas pela R, BANCO PRIMUS, SA, que foram objeto de requerimentos ilegais, contra a Lei vigente à data dos mesmos para, expulsarem sem garantias os executados fiscais das suas casas, ao arrepio das normas que impunham o recurso à execução cível, para entrega de coisa certa, a fração de habitação do executado, nos termos do pretérito CPC, que impunha no seu Art.º 928º do antigo Código de Processo Civil: causa de pedir.
8º Ora, a R, BANCO PRIMUS, SA, foi conivente neste esquema de corrupção pelo menos desde 2008, sendo que os referidos crimes não prescreveram.
9º Tendo a atuação da R levado à prática do crime de branqueamento de capitais, previsto no Art.º 368º-A do Código Penal.
10º O Banco de Portugal tem por missão supervisionar o Sistema Financeiro quanto à legalidade das operações deste no que toca à prevenção do crime de branqueamento de capitais previsto no 368º- A do Código Penal, para o que já foi notificado nos termos da Lei nº 93/21, de 20 de Dezembro.
11º Tais ilícitos financeiros, merecem a tutela dos TITULARES DOS DIREITOS E INTERESSES INDENTIFICÁVEIS, para além da referida CB, bem como apurada a INDEMNIZAÇÃO GLOBAL dos TITULARES NÃO INDENTIFICÁVEIS: ART. 22º, Nº1 Nº2 E Nº3, da Lei nº83/95, de 31 de Agosto.
12º A Lei prevê expressamente que quem for vítima de um ilícito previsto na Lei, tem direito a ser ressarcido, bem como qualquer cidadão tem legitimidade para ser ressarcido: Art.º 483º, nº1, sendo que os crimes continuados de corrupção da R e de branqueamento de capitais previsto no ART.º 368º-A do Código Penal não prescreveram face ao Art.º 498º, nº3 do Código Civil.
13º Sendo ainda que face ao Art.º 52º, nº3 da Constituição: “3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização”.
14º Pelo que a PI tem uma concreta causa de pedir, supra descrita, e um pedido concreto, o ressarcimento patrimonial e moral dos lesados pelo Banco Primus, SA, com método legal de apuramento das indemnizações aos lesados a fazer, nos termos legais, pelo BANCO DE PORTUGAL nos termos das suas atribuições, a computar nos termos dos Art.º 22º, nº1, nº2 e nº3 da Lei nº83/95, de 31 de Agosto e Lei nº93/21, de 20 de Dezembro.
15º Sendo a douta sentença nula, por não se encontrar fundamentada: Art.º 615º, nº1, b) e c) do CPC, ao determinar genericamente a falta do pedido e da causa de pedir contra o disposto no Art.º 52º, nº3 da Constituição e do Art.º 1º, nº1 e nº 2 da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto.
16º É legítima a ação cível popular: Art.º 12º, nº 2 da Lei nº83/95, de 31 de Agosto.
Termina o Apelante pugnando pela revogação da decisão recorrida e o prosseguimento dos presentes autos.
A Ré, citada nos termos do art.º 641.º, n.º 7, do CPC, apresentou alegação de resposta, defendendo que seja negado provimento ao recurso pelas seguintes razões (reproduz-se a parte útil das conclusões, acrescentando o sublinhado):
A) É válida, legal e constitucional, a decisão do Mmº. Juiz do Tribunal a quo de indeferir liminarmente a petição inicial apresentada pelo Autor, pelo que, não merece qualquer reparo a decisão proferida.
(…) C) De facto, em sede factual, cumpre referir que nos idos de 2008, o Banco Primus limitou-se num processo de execução fiscal despoletado e controlado pelo Serviço de Finanças de Beja, a defender a sua garantia hipotecária, tendo para o efeito apresentado a melhor proposta e adjudicado o imóvel penhorado nesse processo.
D) Após a adjudicação do bem, procedimentalmente, o Banco Primus limitou-se a requerer ao Serviço de Finanças de Beja, que este notificasse a cliente do Autor para em dia e hora a definir, esta viesse a entregar as chaves da fração.
E) O que a cliente do Autor fez de forma voluntária e sem qualquer reclamação, não tendo utilizado qualquer dos meios que a lei processual civil ou processual fiscal colocavam à sua disposição para impugnar a notificação do Serviço de Finanças.
F) O Banco Primus não teve de lançar mão de qualquer meio judicial para o efeito, mormente, do previsto no artigo 928.º do antigo CPC, porque a cliente do Autor entregou o bem de forma voluntária. Destarte, a cliente do Autor nunca apresentou qualquer oposição, impugnação ou contestação ao que quer que fosse.
G) Acresce que, a referida entrega voluntária do bem, operacionalizada pelas Finanças, não resultou de qualquer crime de corrupção, de prevaricação ou de abuso de justiça, praticado em co-autoria pelo Banco Primus.
H) Ademais, é falso que estejam a ser pedidos montantes pelo Recorrido à cliente do Autor ou que esta esteja a ser reportada à CRC do Banco de Portugal. Desde dezembro de 2015 que assim não sucede, pois, o crédito sobre a mesma foi cedido em janeiro de 2016 pelo Banco a terceira entidade.
I) Com exceção do produto da venda do bem imóvel, nunca a cliente do Autor pagou qualquer outro valor ao Banco Primus.
J) Por outro lado, cumpre referir que não há qualquer interesse difuso que vise ser titulado no presente caso e que motive a admissibilidade de uma ação popular.
K) Com efeito, a ação popular tem como objeto a tutela de interesses difusos, os quais se caraterizam por possuírem uma dimensão individual e supra individual, pela sua titularidade caber a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo (independentemente da sua vontade) e por recaírem sobre bens que podem ser gozados de forma concorrente e não exclusiva.
L) A tutela do interesse difuso supõe a abstração de particularidades respeitantes a cada um dos titulares, pois o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual e a prossecução da finalidade visada com a sua criação na ordem jurídica, o que prescinde da apreciação de qualquer especificidade; porém, quando por intermédio daquela ação se almeje a tutela de um interesse coletivo, releva a proteção de situações individuais dos respetivos titulares, sendo que tal é admissível apenas até ao limite em que seja aceitável uma apreciação indiferenciada das mesmas, sem que, contudo, se dispense a análise individualizada de cada uma.
M) O que não se verifica no caso presente.
N) Destarte, não é pelo facto de os Bancos terem muitos clientes, que uma situação concreta e particular assente em pretensos ilícitos criminais concretos (corrupção, prevaricação ou abuso de justiça) visa uma situação homogénea para todos os clientes da instituição bancária e nem que por essa via se aplica o artigo 22.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (Lei da Ação Popular).
O) No caso concreto, a causa de pedir assenta no cometimento de supostos crimes de prevaricação, corrupção e abuso de justiça, materializados num requerimento que fora feito para entrega de um imóvel, o que deve ser analisado no foro criminal, sendo que, tal causa de pedir, nada tem a ver com o escopo de uma ação popular, nem com o disposto no âmbito do artigo n.º 1 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (Lei da Ação Popular - LAP).
P) E muito menos tais crimes visam consubstanciar qualquer bem jurídico protegidos pela LAP, como seja, a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público. Nem visam prevenir, cessar ou perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.
Q) Por outro lado, numa visão ainda mais sem sentido, o Recorrente procura alicerçar a sua ação popular num pretenso requerimento ilegal efetuado pelo Banco, sendo que teria esse alegado requerimento ilegal que decidira uma entrega de bem.
R) Não são os requerimentos das Partes, nomeadamente do Banco, (ainda para mais protocolares, sem qualquer cominação) que determinam entregas de bens. A decisão tem sempre de ser da autoridade competente e / ou, como no caso concreto, por entrega voluntária da outra Parte.
S) Os requerimentos das Partes são sempre sindicáveis, contestáveis e não decisórios. Um requerimento da Parte num qualquer processo não é fonte decisória e, como tal, não pode ser fonte de ilícito.
T) Acresce que, por outro lado, o pedido também extravasa o âmbito do artigo n.º 1 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (Lei da Ação Popular).
U) Com efeito, a ação é instaurada contra o Banco Primus, mas o pedido é dirigido ao Banco de Portugal (abertura de inquérito), que não é Parte da ação e que não analisa crimes de corrupção, prevaricação ou abuso de justiça.
V) Ademais, tal pedido não tem sentido em termos de ação popular, pois Autor intenta uma ação para que o Banco de Portugal abra um inquérito contra o Banco Primus, mas, simultaneamente, foi pedir diretamente ao mesmo Banco de Portugal que abra esse mesmo inquérito.
W) O Autor não quer defender qualquer interesse supra-individual ou difuso em defesa da comunidade, nem tal tem cabimento no presente caso à luz da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (Lei da Ação Popular). O que se pretende, não é mais do que exercer em favor da sua constituinte, pretensos direitos que não foram voluntariamente exercidos no momento próprio (leia-se, há cerca de 15 anos), pretendendo-se agora com base em factos falsos conseguir que a sua cliente receba uma indemnização por pretensos danos patrimoniais e morais, assentes em pretensos ilícitos criminais não verificados, mas que se existissem, há anos que já estavam prescritos.
X) Com efeito, andou bem o Tribunal a quo, ao rejeitar a petição inicial, por extravasar o âmbito e escopo do artigo 1.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (Lei da Ação Popular).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se a decisão recorrida é nula, por não se encontrar fundamentada;
2.ª) Se na presente ação, ante o pedido e a causa de pedir, se está perante um caso em que possa ser exercido o direito de ação popular.

Os factos com relevância para o conhecimento do mérito do recurso são os que constam do relatório supra.
Da nulidade da decisão recorrida
O Apelante defende que a decisão recorrida é nula, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC.
Estabelece o art.º 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC - também aplicável, com as necessárias adaptações, aos despachos (cf. art.º 613.º, n.º 3, do CPC) - que é nula a sentença quando:
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
De referir que o disposto nesta alínea b) mais não é do que uma decorrência e manifestação do dever de fundamentar a decisão consagrado na lei processual civil e na lei fundamental, designadamente no art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, ambos do CPC. Conforme tradicionalmente tem sido defendido na jurisprudência, a nulidade da sentença apenas deve ser declarada quando se verifica uma absoluta falta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito que justificam a decisão, não bastando que a fundamentação ou motivação seja deficiente, insuficiente ou até errada (casos que, em regra, se resolvem nos recursos com a invocação de erro de julgamento). Apenas uma fundamentação de facto ou de direito insuficiente ao ponto de não possibilitar às partes uma compreensão cabal e análise crítica das razões (de facto e de direito) da decisão judicial pode ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade dessa decisão. Neste sentido, veja-se o acórdão do STJ de 02-03-2011, proferido no processo n.º 161/05.2TBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do ponto 1. do respetivo sumário: “À falta de fundamentação de facto e de direito deve ser equiparada a fundamentação que exponha as razões, de facto e de direito, para a decisão de modo incompleto, tornando deste modo a decisão incompreensível e não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação”. E também o acórdão do STJ de 26-02-2019, proferido no processo n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, a decisão recorrida mostra-se, embora muito sucintamente, fundamentada.
Quanto à outra suposta causa de nulidade, não se descortina qualquer oposição entre os fundamentos do acórdão e a sua decisão, ou alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Na verdade, é manifesto que o Apelante compreendeu bem o sentido da decisão e os seus fundamentos, limitando-se verdadeiramente a discordar desse entendimento.
Assim, não se verificam as invocadas causas de nulidade da decisão recorrida.

Do direito de ação popular
Na sua alegação recursória, o Apelante defende que a ação intentada visa identificar um grupo extenso de pessoas (“executados fiscais”), lesadas por terem sido “expulsas das suas casas”, no seguimento de requerimentos ilegais apresentados pela Ré nos competentes serviços de finanças, ao arrepio das normas então vigentes, que impunham o recurso à execução cível para entrega de coisa certa nos termos do art.º 928.º do CPC, com o apuramento das indemnizações a fazer pelo BANCO DE PORTUGAL nos termos das suas atribuições.
Vejamos.
Preceitua o art.º 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular”, que:
“3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”
A Lei n.º 83/95, de 31-08, regula o “DIREITO DE PARTICIPAÇÃO PROCEDIMENTAL E DE ACÇÃO POPULAR”, começando por prever, no seu art. 1.º, sob a epígrafe “Âmbito da presente lei”, que:
“1 - A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.”
Preceitua o art.º 12.º desta lei, sob a epígrafe “Acção popular administrativa e acção popular civil”, que:
“1 - A ação popular administrativa pode revestir qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
2 - A acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.”
No tocante à ação popular administrativa, importa ter presente o art.º 9.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que, sob a epígrafe “Legitimidade ativa”, dispõe o seguinte:“2 - Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.”
Na doutrina, destaca-se sobre esta matéria o artigo de Paulo Otero “A ACÇÃO POPULAR: configuração e valor no actual Direito português”, in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, a. 59, n.º 3 (Dezembro 1999), págs. 871-893, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Bc2d6cd49-2a30-4cd6-9481-2791485902b2%7D.pdf, citando-se algumas passagens para melhor compreensão desta figura (págs. 871-872 e 880-884, omitimos as notas de rodapé e acrescentámos o sublinhado):
“1.1. A acção popular, sendo sempre uma acção judicial e, neste sentido, a expressão do direito fundamental de acesso aos tribunais, distingue-se de todas as demais modalidades de acções pela amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura.
1.2. Mediante a acção popular, pode dizer-se que todos os membros de uma comunidade — ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal — estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual.
A acção popular traduz, deste modo, uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais. Deparamos aqui, por isso mesmo, com um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade e cuja titularidade se mostra indivisível através de um processo de apropriação individual.
Neste sentido, deverá afirmar-se que o actor popular age sempre no interesse geral da colectividade ou da comunidade a que pertence ou se encontra inserido, isto sem que tal meio de tutela judicial envolva a titularidade de qualquer interesse directo e pessoal.
(…) 5.1. Não obstante ser cronologicamente anterior à revisão constitucional de 1997, a verdade é que se pode dizer que a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, se mostra perfeitamente implementadora dos imperativos constitucionais na matéria, sendo até de sublinhar o seu papel como fonte directa da inclusão da protecção dos interesses referentes ao domínio público na actual redacção do artigo 52.º, n.º 3, da Constituição.
Centremos a nossa atenção, todavia, nos aspectos inovadores sobre a configuração e o regime da acção popular à luz da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.
5.2. Urge começar por referir, em primeiro lugar, que o objecto ou a natureza da acção popular consagrada na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, compreende duas (ou, talvez de modo mais rigoroso, quase três) distintas espécies:
a) A acção popular administrativa, a instaurar junto dos tribunais administrativos (18) — enquanto expressão de litígios emergentes de relações jurídico-administrativas que, por força do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, se integram no âmbito da reserva de competência dos tribunais administrativos —, podendo albergar três principais manifestações:
(i) A acção popular que se reconduz ao recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra actos administrativos lesivos dos interesses gerais da colectividade;
(ii) A acção popular que, visando o ressarcimento de danos provocados pela conduta por acção ou omissão da Administração, se consubstancia numa verdadeira acção de responsabilidade civil administrativa:
(iii) A acção popular que, não se reconduzindo ao recurso contencioso de anulação ou à acção de responsabilidade civil, envolve outras formas ou meios de tutela contenciosa efectiva dos interesses a que se refere o artigo 52.º, n.º 3, da Constituição ou ainda dos interesses passíveis de gerar o direito de participação popular em procedimentos administrativos;
b) A acção popular civil, naturalmente a instaurar junto dos tribunais cíveis, pode revestir qualquer uma das formas previstas no Código de Processo Civil, havendo aqui a diferenciar duas principais situações:
(i) A acção popular civil visando a defesa do património da Administração Pública, hoje visando a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais, consubstanciando a designada acção popular supletiva ou substitutiva que tem a sua origem entre nós nas Ordenações Manuelinas;
(ii) Todas as outras diversas situações de acção popular civil cujo objecto respeita à defesa de interesses gerais da colectividade que não se reconduzem aos bens de entidades públicas territoriais;
c) Uma quase-acção popular penal, permitindo que os titulares do direito de acção popular possam, por um lado, exercer um direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação com incidência criminal dos interesses gerais da colectividade mencionados no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição, e, por outro lado, constituírem-se como assistentes no respectivo processo.
5.3. Observando o regime da acção popular consagrado na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, são cinco os principais aspectos que merecem destaque:
a) Em primeiro lugar, a titularidade do direito de acção popular ou, segundo outra perspectiva, a legitimidade activa da acção popular encontra-se distribuída nos seguintes termos:
(i) Quanto à acção popular individual, têm legitimidade para a desencadear quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos;
(ii) No que respeita à acção popular colectiva, a lei conferiu legitimidade às associações e fundações defensoras dos interesses a que se refere o artigo 32.º, n.º 3, da Constituição (23), isto desde que se verifiquem certos requisitos em tais entidades;
(iii) No âmbito da liberdade conformadora do legislador conferida pela Constituição, a Lei n.º 83/95 criou ainda, por outro lado, uma forma de acção popular pública, conferindo às autarquias locais legitimidade activa processual relativamente "aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição";
b) Em segundo lugar, salvo exercício de um direito de auto-exclusão de representação, todos os titulares de direitos ou interesses cujo actor popular faz valer em juízo se consideram automaticamente representados por este em termos processuais (26), circunstância esta que acarreta alguns efeitos:
(i) Desde logo, o actor popular representa por iniciativa própria todos os demais titulares de interesses ou direitos idênticos aos que ele pretende fazer em juízo, não necessitando de qualquer mandato ou autorização destes;
(ii) Isso permite compreender que se inverta o funcionamento do modelo tradicional de representação processual: somente aqueles que se querem excluir do processo é que têm de declarar essa vontade, valendo o seu silêncio ou passividade como declaração no sentido de aceitarem a representação protagonizada pelo actor popular;
(iii) Em consequência, salvo em casos de improcedência da acção por insuficiência de provas ou quando o julgador deva decidir por forma diversa fundado em motivações próprias do caso concreto, deparamos sempre com sentenças administrativas ou cíveis cujo caso julgado goza de uma eficácia subjectiva geral, salvo, naturalmente, em relação aos titulares que se auto-excluiram;
c) Em terceiro lugar, verifica-se que o regime da acção popular confere uma maior intervenção ou protagonismo processual do juiz, sendo isto aferível a dois níveis:
(i) Por um lado, o juiz goza de iniciativa própria ao nível da recolha de provas, não se encontrando vinculado à iniciativa das partes;
(ii) Por outro lado, o juiz pode ainda determinar, por iniciativa própria, que certo recurso em acção popular tenha efeito suspensivo, isto mesmo que a lei não lhe atribua normalmente esse efeito, desde que isso evite um dano irreparável ou de difícil reparação;
d) Em quarto lugar, a acção popular permite que o Ministério Público possa, simultaneamente, desempenhar dois papeis processuais:
(i) Por um lado, o Ministério Público tem a seu cargo a fiscalização da legalidade, incluindo todo o tipo de comportamentos lesivos dos interesses em causa no processo e a própria possibilidade de exercer uma posição substitutiva do acto popular que desencadeou o processo;
(ii) Por outro lado, o Ministério Público tem ainda uma ampla função de representação processual, aqui se integrando a representação do Estado, se este for parte na causa, os ausentes, os menores e os demais incapazes, além de poder também ser chamado a representar outras entidades públicas;
e) Em quinto lugar, por último, merece ainda registo o regime especial que a lei concedeu à acção popular em matéria de preparos e de custas:
(i) Não são exigíveis preparos;
(ii) As custas ou não são exigíveis ou, sendo-o, têm um valor muito reduzido relativamente àquelas que normalmente seriam devidas.”
Pela sua síntese exemplar, destacamos ainda o artigo de João Alves, “Ação popular: manifesta improcedência do pedido – parecer do Ministério Público”, publicado na Revista do Ministério Público 148, Outubro - Dezembro 2016, págs. 141-149, disponível em https://rmp.smmp.pt/wp-content/uploads/2017/01/7.RMP_148_Joao_Alves.pdf, em que o autor afirma que “(A) ação popular tem como objeto a tutela de interesses difusos, o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses coletivos e os interesses individuais homogéneos.[4,5]”, acrescentando em notas de rodapé que:
[2] «Os interesses difusos correspondem a um interesse jurídico reconhecido e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou grupo, mas não são susceptíveis de apropriação individual por qualquer um desses membros», Ac. Relação de Lisboa de 2/7/98, proc. 0027892, www.dgsi.pt
[3] «Os interesses colectivos dizem respeito a um grupo, uma categoria um conjunto de pessoas ligadas entre si por uma relação jurídica (pertença a uma associação a uma classe, a uma categoria», Liz, Jorge Pegado, Introdução ao Direito e à Política de Consumo, Notícias Editorial, 1999, pág. 227.
[4] «Nos interesses individuais homogéneos os membros do conjunto são titulares de direitos subjectivos clássicos, perfeitamente cindíveis, cuja agregação resulta apenas da similitude da relação jurídica estabelecida com a outra parte, relação jurídica de conteúdo formalmente idêntico», Liz, Jorge Pegado, ob. cit., pág. 228.
[5] Ac. STJ de 8/9/2016, proc. 7617/15.7T8PRT.S1, www.dgsi.p
Continua este autor lembrando que “A Lei 83/95, de 31/8, estabelece os casos em que podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no art.º 52º, nº 3 da Constituição. Em consonância, no art.º 1º, nº 2 enumeram-se os interesses protegidos pela lei da ação popular, como sendo, designadamente, a saúde pública, o ambiente (ar, água, biodiversidade, solo, subsolo, paisagem, resíduos, ruído – art.ºs 10º e 11º da Lei 19/2014, de 14/4), a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.” (omitimos nesta citação as notas de rodapé).
Também a jurisprudência vem dando o seu contributo para uma melhor compreensão do que podem ser os interesses protegidos pela referida lei, merecendo destaque o acórdão da Relação de Lisboa de 04-12-2018, proferido no proc. n.º 7074/15.8T8LSB. L1-1, disponível em www.dgsi.pt, em que se refere a distinção “entre interesses difusos stricto sensu, interesses coletivos e interesses individuais homogéneos”, socorrendo-se da formulação de Sérvulo Correia, nos seguintes termos  “a aplicação da LPPAP suscita problemas desde logo quanto ao modo de articular a qualificação de interesses tutelados com a legitimidade do autor em nome individual”, sendo que “quando sejam interesses difusos em sentido estrito trata-se de situações materiais insusceptíveis de uma apropriação individual. A sua titularidade revela-se indivisível. A sua dimensão é irredutivelmente supra-individual”. Quanto ao “interesse colectivo e quanto ao interesse individual homogéneo, entendidos como refracções em alguma medida personalizadas do interesse difuso ou, se se preferir, como categorias, a par do interesse difuso em sentido estrito, de um interesse difuso em sentido amplo”, temos que “[d]enominam-se interesses colectivos, os interesses categoriais ou interesses de classe, isto é, um conjunto de interesses individuais dos membros de uma categoria enquanto tais. Mas um elemento que se afigura indispensável para a sua mais precisa caracterização (em particular, em face dos interesses individuais homogéneos) é o facto dos interesses colectivos serem protegidos por uma associação de categoria ou classe, um ente esponenziale sem cuja intervenção tais interesses não podem ser defendidos na sua dimensão grupal”. Quanto aos interesses individuais homogéneos “[s]ão interesses passíveis de individualização autónoma, mas que surgem em situações de massa e em termos de perfeita identidade de natureza. Será, por exemplo, o caso de pretensões individualizadas a indemnização por parte de elementos de uma população intoxicada por uma fuga de gases num estabelecimento industrial”.
Acrescenta-se no acórdão que «(A) doutrina e jurisprudência vem admitindo que todos podem ser abrangidos pela ação popular, afigurando-se, pois, correta a asserção de que esta tem, assim, por objeto a tutela de interesses difusos (latu sensu). Acrescente-se que o legislador se reporta, em alguns diplomas, a esta caraterização, como acontece com a Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31-07.
Segundo Miguel Teixeira de Sousa a legitimidade popular deve ser aferida em função de dois elementos, a saber, o poder de representação do autor popular, ou seja, a faculdade que cabe ao demandante de representar os titulares do interesse difuso e o interesse em demandar do autor popular, isto é, a vantagem que o demandante retira da procedência da ação. A respeito deste último elemento refere que “é necessário que esse autor tenha uma relação com aquele interesse que justifica que, no caso concreto, ele possa instaurar a acção popular. Não é qualquer defensor dos interesses difusos (…) que possui legitimidade popular, mas apenas aquele que mostra uma relação pessoal ou estatutária com o interesse difuso”; e ainda que “a legitimidade popular é um pressuposto processual, pelo que deve ser apreciada em função do objecto da acção popular. Mais em concreto: se a pessoa singular ou a entidade colectiva que propôs a acção popular não tiver qualquer relação com o interesse difuso – ou seja, se não for titular deste interesse, nem for uma organização defensora desse mesmo interesse – o autor popular deve ser considerado parte ilegítima”». (omitimos na citação as notas de rodapé).
Destaque ainda para o acórdão da RL de 24-11-2020, proferido no proc. n.º 692/20.2T8LSB-A.L1-7, também disponível em www.dgsi.pt, citando-se parte do respetivo sumário, pela sua clareza e interesse:
«I. Através de uma acção popular todos os membros de uma comunidade, ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal, estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual.
II. O objecto de uma acção popular são os interesses difusos, onde podem incluir-se, quer os interesses difusos “stricto sensu", quer os interesses colectivos, quer ainda os respectivos interesses individuais homogéneos.
III. Tal objecto nunca pode compreender direitos ou interesses meramente individuais, donde a diferença que existe entre a acção popular e a acção individual ser a mesma que existe entre o interesse difuso e interesse individual.
IV. Os interesses difusos são interesses que possuem uma dimensão individual e supra-individual, ao contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou a alguns titulares.
V. São interesses que se encontram dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, que cabem a todos e cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas que são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra-individual uma característica essencial desses interesses.
VI. São também indiferenciados, não só porque podem pertencer a qualquer sujeito que se inclua numa certa classe ou categoria, mas também porque eles existem independentemente de qualquer relação voluntária estabelecida entre os seus titulares.
VII. São ainda interesses de uma classe ou de um grupo, ou seja, de um conjunto de pessoas que podem satisfazer uma necessidade através da apropriação de um mesmo bem e é por isso que se pode falar também de interesses difusos de consumidores.”
Atentando na Petição Inicial, é notória a escassez da alegação fáctica, não se descortinando quaisquer factos jurídicos concretos que, a provarem-se, permitissem concluir pela prática dos crimes de prevaricação, denegação de justiça e corrupção praticados por funcionário(s) do Serviço de Finanças de Beja em coautoria com a Ré.
De qualquer modo, a verificarem-se factos subsumíveis nesse tipo de crime, o mais adequado seria que fosse despoletada uma “quase-acção popular penal”, nos moldes acima referidos, sem prejuízo da eventual participação dos factos junto do Banco de Portugal, atento o seu papel de supervisão das instituições de crédito e sociedades financeiras (cf. Lei Orgânica do Banco de Portugal – Lei n.º 5/98, de 31-01).
Naturalmente, o Autor é livre para junto do Banco de Portugal participar qualquer infração que entenda ter sido cometida, cumprindo ao Banco de Portugal analisar as “reclamações” apresentadas contra as instituições de crédito, sendo certo que, se findo um “inquérito” nos moldes preconizados pelo Autor viessem a ser apurados factos geradores de responsabilidade civil, os lesados poderiam intentar, querendo, ação indemnizatória.
Mas, ante o pedido formulado na petição inicial - a abertura de inquérito contra a Ré pelo Banco de Portugal, para apurar a extensão dos lesados e titulares dos direitos e interesses a identificar e não identificáveis, danos morais e patrimoniais de cada lesado, e (se bem percebe), em função do que fosse apurado, a condenação da Ré pagar os danos morais e patrimoniais a cada lesado, com comunicação ao Banco Central Europeu - , é óbvio que não tem nenhum sentido instaurar uma ação popular civil, como fez o Autor, não sendo da competência dos tribunais judiciais, mas sim do próprio Banco de Portugal - que, saliente-se, nem foi demandado na presente ação -, a abertura de um qualquer “inquérito” (isto é, um procedimento de supervisão prudencial), no âmbito das suas competências/responsabilidades de supervisão.
Defende o Autor na sua alegação de recurso que a causa de pedir da sua pretensão radica na existência de requerimentos ilegais para expulsarem os executados fiscais das suas casas, ao arrepio das normas que impunham o recurso à “execução cível para entrega de coisa certa”, nos termos do art.º 928.º do CPC. No entanto, a única atuação supostamente ilícita que o Autor alegou ter sido praticada pela Ré consiste na apresentação de requerimento em processo de execução fiscal no sentido da entrega das chaves da fração da cliente do Autor, que havia sido adjudicada à Ré, nada tendo sido alegado que permita supor que algo de idêntico se tenha passado no âmbito de outros processos de execução fiscal.
Seja como for, tais (incipientes) factos, por si só, não permitem configurar a prática de nenhum crime ou outra atuação ilícita geradora de responsabilidade civil por parte da Ré. Na verdade, se ao caso descrito fosse diretamente aplicável o anterior CPC, a entrega do imóvel poderia ter sido obtida pela forma prevista no art.º 901.º do CPC, não sendo aplicável o referido art.º 928.º do CPC.
No entanto, contrariamente ao que o Autor afirma, a situação em causa demandaria, a não ter ocorrido a entrega voluntária da fração, a aplicação do art.º 256.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (na versão então em vigor, já que, segundo se depreende da alegação feita na PI, os factos terão ocorrido em data anterior a 01-09-2013), nos termos do qual o adquirente pode, com base no título de transmissão, requerer ao órgão de execução fiscal, contra o detentor e no próprio processo, a entrega dos bens, podendo ainda o órgão de execução fiscal solicitar o auxílio das autoridades policiais para a entrega do bem adjudicado ao adquirente. Lembramos que foi a Lei n.º 13/2016, de 23-05, que veio, além do mais, alterar o Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, no sentido de proteger a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado.
Por outro lado, ante uma hipotética atuação indevida por parte de funcionário(s) dos Serviços de Finanças poderia existir responsabilidade civil do Estado (cf. Lei n.º 67/2007, de 31-12), mas os factos alegados não permitem concluir nesse sentido, sendo puramente conclusivo afirmar que as dívidas fiscais em causa estavam prescritas e que foram praticados atos de execução dos crimes de prevaricação, denegação de justiça e corrupção.
Sobretudo, ante a (incipiente) alegação fáctica, não é de todo possível perspetivar que existam quaisquer outras pessoas (além da cliente do Autor) que tenham sido prejudicadas por uma atuação concertada da Ré e dos referidos Serviços de Finanças. Mas a existirem, tudo indica que o mais adequado seria diligenciar pela tutela dos interesses potencialmente lesados ao nível da ação penal ou da ação popular administrativa.
Nada foi alegado que permita considerar que o Autor, com a presente ação, pretende a tutela de interesses difusos stricto sensu ou interesses coletivos ou sequer de interesses individuais homogéneos. Por outras palavras, não há suporte fáctico que indique minimamente estar aqui em causa a defesa de um conjunto de interesses difusos em sentido lato ou interesses materiais comuns aos membros de uma comunidade.
Não tendo sido alegados factos concretos substantivamente que permitam considerar minimamente postos em causa quaisquer direitos, seja da cliente do Autor ou de terceiros, à saúde pública, ao ambiente, à qualidade de vida, à proteção do consumo de bens e serviços, ao património cultural e ao domínio público, é manifesto que a pretensão formulada pelo Autor extravasa efetivamente o âmbito do direito de ação popular (pelo menos civil) ou, dito de outra maneira, que inexiste aqui um (putativo) direito de ação popular,
Face ao pedido formulado na Petição Inicial e aos escassos factos alegados, ainda que seja possível perspetivar uma eventual violação dos direitos ou interesses individuais da cliente do Autor (isto se porventura a Ré estiver “a cobrar à cliente do AUTOR importâncias” que não sejam devidas), é evidente que não se está perante matéria fáctica que, a provar-se, possa configurar uma situação em que se justifique a tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais pertencentes a todos os membros de uma certa comunidade e não apropriáveis por nenhum deles em termos individuais, pelo que é inevitável concluir que àquele não assiste o direito de ação popular que se arroga, sendo manifesta a improcedência da pretensão que deduziu, nenhuma censura merecendo a decisão de indeferimento liminar da Petição Inicial (cf. art.º 590.º, n.º 1, do CPC).

Quanto a custas processuais, não obstante a isenção consagrada no art.º 4.º, n.º 1, al. b), do RCP, ante a manifesta improcedência do pedido, vencido o Apelante, é responsável pelo pagamento nos termos gerais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). Neste sentido, veja-se João Alves, no citado parecer, pág. 143, “No que respeita a custas, de acordo com o art.º 25º, nº 1 (norma revogatória) do DL 34/2008, de 26/2 (Regulamento de Custas Processuais-RCP) «São revogadas as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei», pelo que, encontra-se revogado o art.º 20º, nº 1 da Lei 83/95, de 31/8.
O regime atual de custas na ação popular resulta da conjugação do art.º 4º, nº 1, al. b) e nº 5 do RCP.[9] O art.º 4º, nº 1, al. b) concede a isenção mas o nº 5 exceciona que, caso se conclua pela manifesta improcedência do pedido «…a parte isenta é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais…».
A ação popular julgada improcedente ao abrigo do art.º 13º da Lei 83/95, quanto a custas, passa a estar sujeita ao regime geral (art.ºs 1º, nº 1 e 2, 6º, nº 2, 7º, nº 2, 13º, nº 1 e 14º, nº 1, do RCP).”
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Mais se decide condenar o Autor no pagamento das custas do recurso.
D.N.
Lisboa, 12-01-2023
Laurinda Gemas
António Moreira
Carlos Castelo Branco