Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
451/10.2TBRMR-A.L1-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
DOCUMENTO PARTICULAR
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - Prescrita a obrigação cambiária incorporada no cheque este pode continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da obrigação subjacente.
2 – Neste caso é exigível que o exequente, no requerimento executivo, mencione a factualidade que constitui a relação subjacente e causal relativamente ao cheque que titula a execução enquanto documento particular.
3 - Não existindo correspondência entre a relação subjacente configurada no requerimento executivo e a matéria apurada, não fica demonstrada a relação causa invocada pelo exequente.
4 - A assunção da dívida pode ter lugar em duas circunstâncias, por contrato entre o antigo e o novo devedor ou por contrato entre o novo devedor e o credo, exigindo-se, no primeiro caso a rectificação pelo credor e, no segundo, o consentimento do antigo devedor.(sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - RELATÓRIO

Por apenso à acção executiva instaurada por M…, S.A. contra MP…, veio este deduzir oposição à execução, peticionando que a mesma seja julgada improcedente ou, se assim não for entendido, que seja determinada a suspensão da mesma.

Alegou, em síntese, que o cheque apresentado como título executivo não pode valer enquanto tal, uma vez que foi apresentado a pagamento fora do prazo de validade (cheque datado de 20/03/2004), estando prescrita a obrigação cartular; que inexiste título executivo para a presente execução, em virtude tal cheque não poder sequer valer como documento particular uma vez que não é alegada a relação cartular como causa de pedir no requerimento inicial; foram apenas apresentados documentos de uma pretensa dívida de uma empresa à exequente, que não corresponde ao montante do cheque dado à execução. Invoca ainda que, a considerar-se existir título executivo, apenas serão devidos juros até 21/3/2009 e não desde essa data até ao presente, tal como é peticionado pela Exequente.

A exequente apresentou contestação, pugnando pela validade do cheque apresentado enquanto título executivo, enquanto documento particular, incorporando uma verdadeira declaração de dívida.

Em suma, alega que o cheque emitido pelo próprio Executado consubstancia uma obrigação subjacente; que essa relação subjacente diz respeito ao pagamento de diversa mercadoria que o executado adquiriu à exequente enquanto gerente da empresa P…, Lda e cujas facturas foram juntas com o requerimento executivo; que o executado, em razão do incumprimento da sua empresa, optou por assumir o pagamento das mesmas a título pessoal.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida sentença que, julgou a oposição à execução deduzida por MP… procedente e, em consequência, determinou a extinção da instância executiva a que os presentes autos correm por apenso.

           Recorre a Exequente, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:

1. A decisão proferida pelo douto Tribunal a quo viola o art. 46º c) do CPC, assim como o art. 458º C.Civil.

2. As referidas normas foram objecto de uma interpretação errónea, atendendo que a relação subjacente foi devidamente invocada e provada pela Exequente.

3. O Executado emitiu um cheque para pagamento, o qual foi devolvido por falta de provisão, pelo que, decorre de tal acção a intenção deste em liquidar uma dívida.

4. Não obstante a questão relativa à relação subjacente, mal andou o Tribunal a quo ao não considerar sequer a aplicação do regime instituído no art. 595º do C.C.

5. Conforme resulta do seu regime o dito instituto aplica-se quando um terceiro se obriga perante um credor a efectuar a prestação devida por outrem, tal como ocorreu nos presentes autos.

6. Pelo que, se reitera que, no nosso entender, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 46º c) do CPC e 458º do C.C, ou, se assim não se entendesse, violou o preceituado no art.595º do C.C.

Termos em que, Deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a sentença proferida e substituída por decisão que condene o Recorrido na integral responsabilização e consequente pagamento da quantia exequenda.           

Contra-alegou o Opoente para concluir no sentido da manutenção da sentença recorrida.

            Corridos os Vistos legais,     

           Cumpre apreciar e decidir.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

A questão central centra-se em saber se os documentos dados à execução, integram ou não o conceito de título executivo contra o Executado.

            II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. O Executado emitiu um cheque pessoal no montante de € 7.000,36 para fazer face a dívidas que a empresa P… Lda tinha para com a Exequente;

2. Tais dívidas resultaram das relações comerciais que aquela empresa tinha com a Exequente e pelo facto de terem sido emitidos pela empresa em apreço vários cheques para liquidar tal dívida, os quais vieram devolvidos por falta de provisão;

3. O aludido cheque foi emitido em 20/03/2004;

4. O cheque em apreço foi apresentado a pagamento a 22/03/2004;

5. Após ter sido apresentado a pagamento, esse cheque foi devolvido por falta de provisão em 23/03/2004;

6. A quantia do sobredito cheque não foi paga, nem na data do seu vencimento, nem em data posterior;

7. O requerimento executivo para pagamento de quantia certa a que os presentes autos correm por apenso foi proposta em 02/07/2010.

            III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, relativamente aos títulos executivos, só se aplica às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.

Estando em causa, no essencial, neste recurso, a existência de título executivo, essa análise terá de ser feita à luz das disposições do Código de Processo Civil de 1961.

1. Pressuposto formal da acção executiva é a apresentação do título executivo, por si só capaz de desencadear os trâmites da respectiva acção, sem olhar ao direito que pressupõe. A causa de pedir na acção executiva é o próprio título executivo que, por seu turno, vai determinar o conteúdo e o alcance da execução[1].
Os fins e os limites da acção executiva são traçados e definidos pelo título dado â execução (artigo 45.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961), no caso de ser este o título executivo. A quantia que o executado é obrigado a pagar tem de cingir-se ao conteúdo do título trazido à execução e de conter-se dentro dos limites em que está definida a obrigação que daquele sobressai.
No caso, o título executivo que serve de base à presente execução é constituído por um cheque.

Dispõe o artigo 29º da Lei Uniforme relativa ao Cheque que “o cheque pagável no país onde foi passado deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias. (…) Os prazos acima indicados começam a contar-se do dia indicado no cheque como data da emissão.”

Considerando que o cheque dado à execução foi emitido em 20/03/2004 e foi apresentado a pagamento a 22/03/2004, tendo sido devolvido por falta de provisão a 23/03/2004, verifica-se que o mesmo foi apresentado a pagamento dentro do prazo legalmente previsto. Porém a execução foi instaurada decorrido que estava há muito o prazo de seis meses após a apresentação do aludido cheque, a que alude o artigo 52º da LULL.

     Encontra-se, pois, prescrita a obrigação cambiária, pelo que o cheque prescrito deixa de valer como título cambiário, perdendo as suas características de autonomia, abstracção e literalidade, não podendo valer como título executivo ao abrigo do disposto nos artigos 29º e 52º da Lei Uniforme relativa ao Cheque e art. 46.º, nº 1 d) do Código de Processo Civil de 1961.

Contudo, como se refere na sentença recorrida, cabe apreciar se o cheque dado em execução poderá constituir título executivo ao abrigo do artigo 46º nº 1, alínea c) do CPC, ou seja, como mero quirógrafo, documento assinado pelo devedor, que importe o reconhecimento de constituição de obrigações pecuniárias.           

2. Seguindo o entendimento maioritário na jurisprudência[2], nos casos em que ocorra a extinção da obrigação cartular incorporada nomeadamente no cheque, nos termos do disposto no artigo 46º, alínea c) do Código de Processo Civil de 1961, mantém esse documento a sua natureza de título executivo, mas enquanto documento particular assinado pelo devedor, exigindo-se, outrossim, para que tenha força executiva, que a causa da relação jurídica subjacente seja invocada no requerimento executivo.
        Neste plano, o cheque, enquanto mero quirógrafo privado da sua eficácia cambiária, não pode ser qualificado como documento consubstanciador do reconhecimento de uma obrigação pecuniária, donde decorre que o cheque, enquanto mero documento particular ou quirógrafo, apenas servirá como um meio de prova da relação fundamental, que terá de ser demonstrada pelo credor na acção.
Como simples quirógrafo de obrigação, o cheque mais não é do que um documento particular de prova livre e, portanto, em pé de igualdade com outros meios de prova livre que se revelarem necessários à demonstração dos factos.
Ou seja, o cheque, quando situado à margem da estrita e específica relação cartular, não contém, desprovido de outros elementos, a virtualidade de operar um reconhecimento de dívida para os efeitos do estatuído no n.º 1 do art. 458.º do Código Civil segundo o qual, se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Tudo para dizer que, pela característica da abstracção do negócio cambiário, a convenção subjacente ou extra-cartular não consiste, necessariamente, numa relação jurídica em que o emitente é o devedor.
Há, pois, que ponderar o relevo probatório do aludido cheque conjugado com os demais elementos probatórios constantes dos autos.

3. Ora, no caso sub judice, verifica-se que a relação subjacente não se estabeleceu entre a Exequente e o Executado, mas antes entre aquela e a sociedade P… Lda, a quem a Exequente e Recorrente forneceu diversos produtos, para os quais o mencionado cheque, assinado pelo Executado MP…, serviu de pagamento.

         Por isso, tal como se concluiu na sentença recorrida, a relação jurídica subjacente nada tem a ver com o ora Oponente, não sendo ele o devedor originário, mas sim a empresa P… Lda.

         Por outro lado, ao invés do que afirma a Recorrente, não existe fundamento, para a aplicação do regime previsto no artigo 595º (Assunção de dívida) do Código Civil.

Com efeito, nos termos do artigo 595º, nº 1, alienas a) e b), do Código Civil, a assunção da dívida pode ter lugar em duas circunstâncias, por contrato entre o antigo e o novo devedor ou por contrato entre o novo devedor e o credor. Consagrando a regra segundo a qual, a ninguém deve ser imposto um benefício contra a sua vontade, exige-se no 1º caso a rectificação pelo credor e no 2º o consentimento do antigo devedor. Como é bom de ver, não existe prova de qualquer acordo que permita concluir que o ora Executado/Recorrido, assumiu a responsabilidade pelo pagamento da dívida.

Em suma, os títulos cambiários prescritos só podem servir de base à execução contra os sujeitos cambiários que também sejam parte na relação extracartular donde tal título emerge, mas não contra os responsáveis cambiários que nela não intervieram, o que, no caso, não ocorre[3].

Claudicam, consequentemente, as conclusões da Recorrente.

Concluindo:

            1 - Prescrita a obrigação cambiária incorporada no cheque este pode continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da obrigação subjacente.

2 – Neste caso é exigível que o exequente, no requerimento executivo, mencione a factualidade que constitui a relação subjacente e causal relativamente ao cheque que titula a execução enquanto documento particular.

3 - Não existindo correspondência entre a relação subjacente configurada no requerimento executivo e a matéria apurada, não fica demonstrada a relação causa invocada pelo exequente.

4 - A assunção da dívida pode ter lugar em duas circunstâncias, por contrato entre o antigo e o novo devedor ou por contrato entre o novo devedor e o credo, exigindo-se, no primeiro caso a rectificação pelo credor e, no segundo, o consentimento do antigo devedor.

            IV – DECISÃO           

         Termos em que se acorda em julgar improcedente o recurso, assim se mantendo a sentença recorrida.

Custas pelo Apelante.

            Lisboa, 19 de Dezembro de 2013.

(Fátima Galante)

(Gilberto Santos Jorge)

(António Martins)

[1] Lebre de Freitas - A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma, Coimbra Editora, 5ª Edição – Reimpressão, 2012, pág. 61.
[2] Vide Acs. do STJ de 4.12.2007 (Mário Cruz); 27.11.2007 (Santos Bernardino), de 5.7.2007 (Fonseca Ramos), de 13.11.2003 (Neves Ribeiro), de 6 de Maio de 2003, (Faria Antunes), www.dgsi.pt/jstj. No mesmo sentido o acórdão desta Relação e Secção, também relatado pela aqui relatora, de 17 de Dezembro de 2009, Processo nº 6659/07.0TBLRA-A.L1, disponível wm www.dgsi.pt/jtrl.
[3] Neste sentido vide Ac. RL de 9 de Julho de 2009, Relatora, Márcia Portela, Proc. nº. 638/05.0TCLRS-A.L1, www.dgsi.pt/jtrl.