Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PEDRO MARTINS | ||
Descritores: | VEÍCULOS A MOTOR CIRCULAÇÃO ATIVIDADE PERIGOSA ASSENTO DANO MORTE DANO NÃO PATRIMONIAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | Sumário: I – A circulação de veículos a motor é uma actividade perigosa por sua própria natureza para efeitos do art. 493/2 do CC e o assento do STJ n.º 1/80, que diz o contrário, deve deixar de ser aplicado. II – O dano morte deve ser indemnizado mesmo que não se provem outros factos para além da perda da vida. III – O sofrimento dos pais com a morte dos filhos é a regra geral e só circunstâncias excepcionais, a alegar pelo lesante, é que devem levar à prova da inexistência daquele sofrimento e, por isso, à não concessão de indemnização desse dano não patrimonial. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados: MA e mulher intentaram uma acção comum contra F-Lda (= ré) e os seus dois legais representantes, pedindo a condenação da sociedade, ou dos legais representantes, solidariamente caso aquela não o faça, a pagar aos autores, quantia não inferior a 70.000€ pela perda do direito à vida do seu filho, quantia não inferior a 15.000€ pelos sofrimentos sofridos pelo seu filho e quantia não inferior a 7.5000€ para cada um dos autores, pelo desgosto e sofrimento sofrido com a perda do seu filho. Alegam para tanto, em síntese, que o filho foi vítima de um acidente quando ao serviço da ré, onde desempenhava as funções de lavador de automóveis, sob ordens, direcção e fiscalização desta, se deslocava do aeroporto para a sede da ré, falecendo em consequência das lesões traumáticas sofridas; a ré não tinha a responsabilidade civil por sinistros laborais transferida para qualquer companhia de seguros; os autores são pais e únicos beneficiários legais e herdeiros do sinistrado; os réus reconheceram “o acidente como de trabalho”, “o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões descritas no relatório de autópsia, bem como o nexo entre tais lesões e a morte do sinistrado” (artigos 1 a 9 da petição inicial); o acidente deu-se por o sinistrado estar a conduzir uma scooter para recolha de uma viatura de aluguer desta a um cliente; a missão arriscada de conduzir scooters, ainda mais para o aeroporto, estava completamente fora das suas funções, competências e até capacidades; desde logo porque o sinistrado não tinha qualquer experiência nesse tipo de condução; nem recebeu qualquer tipo de formação específica; há culpa da entidade empregadora, pois se o sinistrado estivesse a lavar automóveis, conforme era a sua função profissional, naturalmente não se teria verificado o acidente; e se o filho tivesse ao menos recebido formação específica para conduzir scooters, ainda mais em Ponta Delgada, entre a cidade e o aeroporto, onde já há trânsito significativo, naturalmente não se teria verificado o acidente; pois que se em teoria basta a carta – categoria B (carta básica apenas de automóvel), para estar legalmente habilitado para a condução de scooters, na prática é necessário saber manobrá-la, pois o seu equilíbrio é bastante diferente de um automóvel; tanto assim que a ré previu nos riscos inerentes a essa missão os riscos de lesões graves e mesmo morte (art. 19 da PI); sendo certo que o sinistrado também não tinha ficha médica de aptidão; logo, nos termos do art. 18 da Lei 98/2009 (regulamentação do regime de reparação dos acidentes de trabalho), é a empregadora responsável pela totalidade dos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais; os legais representantes da ré são responsáveis solidários por não estar a responsabilidade civil por sinistros laborais transferida para qualquer companhia de seguros; além de que, havendo culpa, nos termos do art. 18 da Lei 98/2009, são estes também pessoal e solidariamente responsáveis pela totalidade dos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais. Os réus contestaram, invocando o caso julgado (atento o processo de acidente de trabalho) e dizendo impugnar todos os factos alegados pelos autores à excepção dos 9 primeiros artigos, alegando, em síntese, que as funções do sinistrado passavam também pela recolha e entrega de veículos, sendo que o próprio, aquando da sua admissão na empresa, declarou estar disponível para conduzir scooters; e que a ré empregadora não teve qualquer procedimento inadequado, comportamento culposo ou negligente. A convite do tribunal, os autores responderam logo à matéria de excepção de caso julgado, impugnando a verificação do mesmo. Realizou-se a audiência prévia, onde, na ausência de conciliação, se proferiu despacho saneador, julgando-se improcedente a excepção de caso julgado; em despacho subsequente, do mesmo dia, acrescentou-se: conforme determinado anteriormente, cumpre neste momento tomar posição quanto ao alegado em 33 a 45 da contestação. A questão da eventual existência de caso julgado e de autoridade de caso julgado foi já decidida em sede de audiência prévia. A circunstância do caso julgado abarcar tanto o que foi efectivamente deduzido, como o que poderia ter sido deduzido e o não foi, não colide com o que se deixou exarado. Veja-se que a discussão à volta de tais questões pressupõe, sempre, a verificação de uma decisão judicial anterior transitada em julgado, que se debruce, evidentemente, sobre a relação material controvertida em crise. Em toda a jurisprudência invocada pelos réus, que se encontra melhor evidenciada nos artigos 33 a 45 da contestação, subjaz uma decisão judicial anterior transitada em julgado, o que não se verifica no nosso caso, razão pela qual nada mais há a decidir para além do já determinado em sede de audiência prévia. Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção improcedente, e, consequentemente, absolvendo os réus dos pedidos. Os autores recorrem desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que condene os réus no pedido - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: A\ Factos que também devem ser dados por assentes, por confessados: 11\ O sinistrado não tinha grande experiência com a condução de scooters” (vd. 67 da contestação.) 12\ O sinistrado era um jovem, com apenas 28 anos de idade (vd. art. 76 da contestação e todos os documentos juntos com a PI.) 13\ O sinistrado e os autores, viviam juntos, sendo que o sinistrado almoçava em casa dos pais, a sua casa de família” (vide 87 da contestação e todos os documentos juntos com a PI, morada dos pais no doc. 1 e morada do sinistrado no assento de óbito e demais documentos.) 14\ A condução de scooters é uma tarefa considerada de risco, podendo provocar lesões graves e mesmo morte (vd. artigos 19 da PI, 49 da contestação e relatório de avaliação de riscos profissionais junto aos autos pelos réus com a contestação.) B\ De acordo com o contrato de trabalho, a função do sinistrado era apenas lavador, sendo que essa categoria só incluía “as funções nela integradas e ou outras que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas” e que a empresa poderia “temporariamente” encarregar o trabalhador de outras funções. Ora, conduzir scooters e entregar carros nada tem a ver com as funções de lavador, nem foi uma função temporária, o que os réus nem sequer alegam, pelo que incumpriram o contrato de trabalho. Aliás, C\ E nem se diga que o sinistrado “declarou estar disponível para conduzir scooters”, pois tal não foi dado como facto provado, resultando apenas das declarações de parte dos réus, o que não pode servir de prova sem outra fundamentação, e, ainda que tivesse consentido, o direito à segurança do trabalhador e, em última instância, à sua própria vida, é um direito indisponível, pelo que isso em nada altera a ilicitude do incumprimento do contrato em pôr permanentemente os lavadores a fazerem de condutores/entregadores. D\ Conforme o facto 10, não foi dada formação específica ao sinistrado, sendo a aprendizagem efectuada no “dia-a-dia”, ou seja, havia alguma coisa a aprender, que afinal não bastava a carta B, pois uma coisa é a licença, outra o saber, como é o caso da natação, todos têm licença, mas para não se afogar é preciso saber, o que no caso leva até à justificação permanente de que os outros trabalhadores lhe ensinavam no dia-a-dia. Ora, E\ Se essa é uma das tarefas consideradas mais arriscadas no próprio relatório de riscos profissionais junto aos autos com a contestação, ainda por cima sendo o sinistrado apenas lavador, seguramente os réus não fizerem tudo o que estava ao seu alcance para prevenir tal risco. F\ Não bastando, conforme o facto 9, o sinistrado não tinha ficha médica de aptidão. G\ Conforme o ac. do STJ 6/2004 [quiseram escrever 6/2024 -TRL], de 13/05, “para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18/1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efectivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação.” H\ Tendo-se provado que não foi dada qualquer formação específica para a condução de scooters, que o falecido foi posto nessa função contrariando o estabelecido no contrato de trabalho, que o acidentado nem tinha ficha médica de aptidão, há, com essa actuação da entidade patronal, um claro aumento da probabilidade acontecer o acidente, como veio a acontecer. I\ Tratando-se de uma actividade perigosa, conforme o relatório de avaliação de riscos profissionais junto aos autos pelos réus com a contestação, ainda que não se provasse a culpa, conforme o ac. do TRL de 22/6/2021, proc. 1694/18.6T8PDL.L1-7, havia sempre a responsabilidade objectiva pelo risco, por parte dos réus, nos termos do art. 493 do CC, pois: “6\ no exercício de uma actividade perigosa, não basta ao lesante, para ilidir a presunção de culpa decorrente do art. 493/2 do CC, provar que agiu com os cuidados de um homem normal, em circunstâncias igualmente normais e de acordo com a diligência de um bom pai de família, conforme exige o art. 487/2, havendo um plus que se lhe impõe e que decorre da própria perigosidade da actividade em causa, pois todo este regime assenta no princípio da prevenção do perigo e os deveres que recaem sobre o agente são deveres especiais de cuidado. (…) 10\ Por conseguinte, ainda que tivesse logrado ilidir a presunção de culpa decorrente do art. 493/2 do CC, sempre a exercente responderia pelos danos sofridos pela lesada, nos termos do 483/2 do mesmo código, e do art. 41 daquele Regulamento, com base na responsabilidade objectiva ou pelo risco, caso em que lhe seriam extensivas, na parte aplicável e por inexistirem preceitos legais em contrário, as disposições reguladoras da responsabilidade por factos ilícitos, nomeadamente o art. 494 do CC (art. 499.º do CC).” J\ O direito à vida é um direito objectivo, pelo que independentemente da prova de maior ou menor felicidade, deve ser fixado um valor face aos factos provados: a idade do sinistrado e a sua vida normal e de trabalho, tal como, decorre da experiência da vida e é um facto tão sabido que até a inteligência artificial, que não tem experiência de vida, considera que “o sofrimento pela morte de um filho é amplamente reconhecido e considerado um dos maiores sofrimentos que uma pessoa pode experimentar”, tal como também considerou o Sr. juiz a quo que, no final da sessão de julgamento, dirigiu-se directamente aos pais do sinistrado, presentes na sala em toda a audiência e solidarizou-se pubicamente pelo grande sofrimento por que eles estariam a passar… K\ Foram assim violadas, entre outras normas, os artigos 5, 552, 572 do CPC e 483 e 493 do CC. Os réus contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso e sintetizando assim a sua fundamentação: Do recurso quanto à matéria de facto A\ Os quatro supostos “factos acessórios” que os autores pretendem ver elevados à categoria de factos provados são, como os próprios indicam, “factos acessórios” que, nessa medida, não são relevantes para a boa decisão da causa, razão pela qual nunca poderiam constar dos elencos dos factos dados como provados ou não provados na sentença recorrida, já que estes se referem apenas aos factos “com relevo para a decisão da causa” (cf. pp. 2 – 3 da sentença recorrida). B\ Além disso, a crítica dos autores à decisão sobre a matéria de facto resulta essencialmente do alegado na PI [os réus terão querido escrever contestação - TRL], pelo que – como referido pelo tribunal a quo – não podem ser considerados factos provados ou não provados, por consubstanciarem “mera impugnação, explanação de matéria de direito, se referir[em] a conceitos vagos, genéricos e/ou jurídicos e não se debruçar[em] sobre factos essenciais à boa decisão da causa” (cf. p. 3 da sentença). C\ Sem prejuízo, quanto ao facto 11, não pode o mesmo ser dado como provado, porquanto resulta dos elementos de prova constantes dos autos que sinistrado estava legalmente habilitado para conduzir scooters e informou AC e VF, na sua entrevista de emprego, que estava à vontade para as conduzir (cf. p. 6 da sentença recorrida), facto confirmado pelas testemunhas DM e LF, que afirmaram que o sinistrado nunca disse que não estava à vontade ou que não queria conduzir a scooter, tendo ainda aqueles e a testemunha AT referido que a condução de scooters é essencial para o desempenho das respectivas funções (cf. p. 6 da sentença). D\ Em conformidade, o tribunal a quo deu como não provado o facto d\, com a formulação “[o] sinistrado não tinha qualquer experiência nesse tipo de condução” (cf. facto não provado d\, p. 3 da sentença), tal como alegado pelos autores no artigo 14 da PI). E\ Quanto ao facto 13, ao contrário do alegado pelos autores no artigo 7 das alegações sob resposta, a única coisa que os réus alegaram no artigo 87 da contestação é que naquele concreto dia, i.e., no dia do acidente, “JR foi para casa almoçar com a família” e não que o fazia sempre – coisa que, aliás, os réus desconhecem sem obrigação de conhecer. F\ Tal alegação também não tem qualquer apoio nos documentos juntos pelos autores com a PI, nem muito menos da mera confrontação da morada dos autores com a do sinistrado (cf. art. 7 das alegações de resposta), porquanto a mera coincidência de moradas nada indica sobre os hábitos familiares de cada qual. G\ Por essa razão, andou bem o tribunal a quo ao dar como não provado que “[o] sinistrado e os autores, seus pais, viviam juntos, eram uma família unida, pelo que sofreram uma grande e inultrapassável dor pela morte daquele” (cf. facto não provado f\, p. 3 da sentença), sustentando a sua convicção no facto de os autores não terem apresentado qualquer tipo de prova sobre a convivência familiar do sinistrado ou sobre os seus hábitos. H\ Note-se que, como resulta da sentença recorrida, os autores dispensaram a única testemunha que poderia dar ao tribunal a quo qualquer contexto sobre se o sinistrado tinha “uma vida tranquila ou se vivia com os autores” (cf. p. 6 da sentença), pelo que foram os autores que inviabilizaram que o que agora alegam como “facto 13” fosse dado como provado. I\ Quanto ao “facto 14”, no artigo 49 da contestação, os réus alegaram que os riscos a que se referem os autores foram identificados pela autoridade de saúde e higiene no trabalho aquando da elaboração do relatório de avaliação de riscos profissionais, tão simplesmente porque nesse relatório são enumerados os riscos inerentes à actividade de “condução”, uma das funções da categoria profissional “lavador de veículos”, aquando da avaliação das instalações, equipamentos, actividades e colaboradores da empregadora, não se fazendo qualquer referência, quer no relatório, quer na contestação, à “condução se scooters”. J\ Razões pelas quais improcede a conclusão A do recurso. As funções do sinistrado incluíam a entrega/recolha de veículos K\ Como reconhecido pelos autores, em momento algum os réus alegaram a atribuição de qualquer “função temporária” ao sinistrado, reconhecendo sempre que as funções daquele na empregadora incluíam a recolha, entrega e preparação de veículos, bem como as inerentes deslocações entre a sede da empresa e o aeroporto ou outro local de recolha/entrega, entre outras (cf. art. 55 da contestação e documentos n.ºs 3 e 4 juntos com a PI). L\ Em conformidade, o tribunal a quo deu como facto não provado que “[a] recolha/entrega de viaturas não era uma função profissional do sinistrado, pois era apenas lavador de automóveis” (cf. facto não provado c\, p. 3 da sentença), como confirmado pelas declarações de parte de AC e VF e, em uníssono, pelos depoimentos das testemunhas DM, LF e AT (cf. p. 5 da sentença). M\ As mesmas testemunhas confirmaram, ainda, que (i) aquele sempre foi o modo de funcionamento da empregadora, (ii) essa informação foi claramente transmitida nas respectivas entrevistas de emprego e que (iii) enquanto esteve ao serviço dos réus, o sinistrado efectuou diversas recolhas/entregas de viaturas (cf. p. 5 da sentença). N\ Também a Inspecção Regional do Trabalho reconheceu que a recolha/entrega de viaturas era uma das funções do sinistrado, ao referir no inquérito que precedeu os presentes autos que “[a] morte de JR ocorre na via pública, no desempenho habitual das funções para o qual foi contratado” (cf. doc. 2, junto com a PI, p. 5). O\ Assim, como concluiu o tribunal a quo, não foi apurado “qualquer procedimento inadequado, comportamento culposo ou negligente ou violação de regras de segurança por parte dos réus” (cf. p. 9 da sentença recorrida), não existindo, consequentemente, qualquer ilicitude, culpa ou negligência na actuação dos réus, pelo que improcedem as conclusões de recurso B), E) e H) das alegações sob resposta. O sinistrado sabia que a condução de scooters era essencial para o desempenho das suas funções e mostrou-se disponível para o fazer ao longo do seu processo de recrutamento P\ A alegação dos autores quanto a este ponto esbarra por completo na verdade dos factos e nos elementos de prova constantes dos autos, sendo falso que o facto de o sinistrado se ter mostrado disponível para conduzir scooters resulte apenas das declarações de parte de AC e de VF. Q\ Tal facto resulta do doc. 4 junto com a PI, o registo que os réus elaboraram durante a entrevista de emprego do sinistrado (cf. p. 6 da sentença), tendo as testemunhas DM e LF confirmado que o sinistrado “nunca disse que não estava à vontade ou que não queria conduzir a scooter” e, juntamente com a testemunha AT, que a aptidão para conduzir scooters é fundamental (cf. p. 6 da sentença). R\ Além disso, como referido supra, não existiu qualquer actuação ilícita ou incumprimento contratual por parte dos réus (cf. p. 9 da sentença), tendo sido demonstrado nos presentes autos que as funções do sinistrado incluíam a entrega/recolha de viaturas e as necessárias deslocações para o efeito, como alegado supra. S\ Face ao que antecede, improcede totalmente a conclusão C do recurso. A formação diária e o acompanhamento do sinistrado T\ Ao contrário do que pretendem os autores, com o facto 10 o tribunal a quo não se está a referir a qualquer formação específica para condução de scooters, mas sim à formação ínsita ao processo de integração de qualquer novo funcionário, como resulta da respectiva fundamentação (cf. pp. 4 – 5 da sentença). U\ AC, VF e as testemunhas DM e LF confirmaram que, como alegado na contestação artigos 69, 70 e 119 a 130), (i) a aprendizagem/formação relevante é aquela que foi efectuada diariamente, na qual foram transmitidas a JR as regras da operação e a prática da empresa no dia-a-dia da actividade e que (ii) a empregadora garantiu o acompanhamento de JR pelos colegas mais experientes (cf. p. 4 da sentença). V\ O facto de a empregadora dispor de scooters que podem ser utilizadas pelos seus trabalhadores não lhe impõe qualquer pretenso dever de formação específica em condução de veículos motorizados em situação de estrada, daí que, como confirmado por AC, VF e pelas testemunhas DM, LF e AT, ter, pelo menos carta de condução de categoria B e à vontade na condução de scooters são aspectos determinantes para a contratação de novos empregados (cf. p. 6 da sentença). W\ Assim, como reconhecido pelo tribunal a quo e pela Inspecção Regional do Trabalho, os procedimentos adoptados pela empregadora foram adequados e correctos, não havendo por parte daquela qualquer actuação culposa ou negligente (cf. p. 9 da sentença), pelo que improcedem as conclusões D e H do recurso. A ficha médica de aptidão, a probabilidade de acontecer o acidente e a pretensa (nova) responsabilidade objectiva pelo perigo X\ Não se percebe – e os autores também não explicam – qual a relação entre aquele documento e a probabilidade de acontecer o acidente, nem tão pouco em que medida é que está relacionado com a causa do sinistro, sendo, apenas, de destacar que ficou amplamente demonstrado nos presentes autos que JR faleceu durante o desempenho normal das suas funções e que, ao contrário do que os autores alegam, não houve qualquer actuação negligente ou culposa dos réus que pudesse contribuir para o acidente (cf. p. 9 da sentença). Y\ O que é quanto basta para determinar a improcedência das conclusões F, G e H do recurso. Z\ Quanto à alegação nova – e desprovida de qualquer sentido – dos autores sobre o caso dos autos, afinal, ser sobre uma actividade perigosa que comportaria uma responsabilidade objectiva dos réus pelo risco, comece-se por referir que o acórdão citado pelos autores versa sobre um caso completamente diferente dos autos, tratando de actividades verdadeiramente perigosas e, no caso concreto, por referência à actividade de andar de barco (cf. o acórdão citado pelos autores). AA\ Com efeito, como alegado e demonstrado, a condução – seja ela de mota, ou de carro – no âmbito do desempenho das funções de rent-a-car é idêntica à condução quotidiana, não representando qualquer risco ou perigo acrescidos. BB\ Além disso, como alegado supra, o relatório de avaliação de riscos profissionais a que se referem os autores não corrobora a sua teoria, na medida em que se limita a listar os riscos inerentes à actividade de “condução”, não a classificando, muito menos atendendo aos critérios que resultam da jurisprudência citada pelos autores, como uma actividade perigosa. CC\ Acresce que a responsabilidade objectiva dos réus ficou definitivamente encerrada no processo de natureza laboral que precedeu os presentes autos, pelo que improcede a conclusão L do recurso. Os autores não apresentaram qualquer prova sobre os danos alegados DD\ A condenação dos réus no pagamento do valor a que os autores se referem não teria qualquer base legal, porquanto não estão verificados no caso dos autos os pressupostos da pretensa responsabilidade civil extracontratual dos réus, como reconhecido pelo tribunal a quo (cf. p. 9 da sentença). EE\ Com efeito, ao longo da presente acção, os autores demitiram-se de alegar de forma substanciada e de demonstrar os danos a que vagamente se referem na PI que, não se tratando de factos notórios – i.e., factos que são do conhecimento geral nos termos do artigo 412 do CPC – pelo que, como é evidente, carecem de prova adequada (cf. artigo 342/1 do CC). FF\ Não cabendo o ónus da prova, neste caso, à “experiência de vida” ou à “inteligência artificial”, mas sim aos autores, esteve bem o tribunal a quo ao elencar como facto não provado g\ que “[o] sinistrado e os autores seus pais, viviam juntos, eram uma família unida, pelo que sofreram uma grande e inultrapassável dor pela morte daquele” (cf. p. 3 da sentença). GG\ Como resulta da sentença recorrida – e bem – “[c]onsiderando a factualidade dada como provada, não subsistem dúvidas de que a presente acção está condenada ao fracasso, uma vez que não se encontram provados quaisquer danos sofridos pelos lesados. Embora alegados na PI, os autores não produziram qualquer prova relativamente aos danos, pelo que, mesmo que se provassem os restantes pressupostos da responsabilidade civil, a acção sempre seria improcedente” (cf. p. 8 da sentença). HH\ Ainda que assim não fosse, também não foi praticado pelos réus qualquer facto ou omissão que pudesse dar origem ao acidente que vitimou JR, o que sempre impediria a atribuição do valor reclamado pelos autores. II\ A este propósito, pode ler-se na sentença recorrida que “não se descortina qual o facto voluntário e ilícito praticado pelos réus, já que, ao contrário do alegado, a morte de JR ocorreu no desempenho habitual das suas funções e, tal como a IRT concluiu, também este tribunal não apurou qualquer procedimento inadequado, comportamento culposo ou negligente ou violação de regras de segurança por parte dos réus (…)” (cf. pp. 8 – 9 da sentença). JJ\ Nessa medida, é evidente que o infeliz acidente não foi provocado pela empregadora, já que os autores “não só não provaram que o acidente foi provocado pela empregadora como não provaram que o mesmo se deveu à falta de observância de regras sobre segurança e saúde no trabalho” (cf. p. 9 da sentença), assim se demonstrando, também, que não foram violadas quaisquer das normas invocadas pelos autores. KK\ Face ao que antecede, improcedem as conclusões J e K das alegações sob reposta. Questões que importa decidir: se a matéria de facto deve ser alterada; se os pedidos dos autores deviam ter sido considerados procedentes, com base nos factos alegados e provados. * Estão dados como provados os seguintes factos (o n.º 11 foi aditado em resultado da impugnação da matéria de facto): 1\ JR foi vítima de um acidente, no dia 28/04/2023, no concelho de Ponta Delgada, quando ao serviço da empregadora, aqui 1ª ré, onde desempenhava as funções de lavador de automóveis, sob ordens, direcção e fiscalização desta, e quando se deslocava do aeroporto para a sede da empresa. 2\ Em consequência do mencionado acidente, o sinistrado faleceu em resultado das lesões traumáticas. 3\ À data do acidente, o sinistrado auferia 798€ de retribuição base, 165,76€ de isenção de horário e 62,50€ de subsídio de alimentação, a que corresponde uma retribuição bruta anual de 14.180,14€. 4\ A 1ª ré não tinha a responsabilidade civil por sinistros laborais transferida para qualquer companhia de seguros. 5\ Os autores são pais e únicos beneficiários legais e herdeiros do sinistrado. 6\ Os autores receberam da 1ª ré 2.134,60€, a título de despesas de funeral. 7\ Os réus reconheceram o acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões descritas no relatório de autópsia, bem como o nexo entre tais lesões e a morte do sinistrado, assim como a retribuição e seus componentes. 8\ O acidente deu-se por o sinistrado estar a conduzir uma scooter entre o aeroporto e a sede da Ré. 9\ O sinistrado não tinha ficha médica de aptidão. 10\ O sinistrado não recebeu qualquer tipo de formação específica, sendo a aprendizagem efectuada “no dia-a-dia”. 11\ A 28/04/2023, o sinistrado tinha 28 anos. 12\ A condução de scooters é uma tarefa considerada de risco, podendo provocar lesões graves e mesmo morte. * Apreciação: Três notas prévias: Primeira: estando em causa a aplicação de regras de direito do trabalho, a competência material para o conhecimento do mérito da acção não pertencia ao tribunal judicial cível, mas ao tribunal judicial de competência especializada de trabalho. Mas a incompetência em razão da matéria que apenas respeita aos tribunais judiciais só pode ser conhecida, no máximo, até a audiência final (art. 97/2 do CPC), pelo que não pode ser agora conhecida. Assim, se os autores forem prejudicados pela má aplicação das leis do trabalho por um tribunal que não está especializado nelas, só deles se podem queixar. Tal como os réus, por não terem arguido a incompetência do tribunal cível. Segunda: tendo em conta que a ilegitimidade processual (questão que se colocaria por força do art. 62 do DL 291/2007, de 21/08) é um vício de conhecimento oficioso (arts. 577-e e 578 do CPC), diga-se que nem todas as scooters estão sujeitas a seguro obrigatório, como decorre de, mesmo hoje, com o aditamento do art. 1-A ao DL 291/2007, de 21/08, pelo DL 26/2025, de 20/03, se continuar a entender que as scooters eléctricas continuam a não estar sujeitas a seguro obrigatório (veja-se o esclarecimento prestado pela ANSR de 19/06/2025). Ora, como se verá não há factos provados que permitam dizer que a ré sociedade devia ter coberto com um seguro a sua eventual responsabilidade civil para com terceiros decorrente da circulação da scooter, ou seja, na perspectiva que aqui interessa, factos que apontem para a falta do pressuposto processual da legitimidade passiva (isto é, da necessidade da presença na acção de uma seguradora ou do Fundo de Garantia Automóvel). Terceira: os réus não impugnaram a improcedência da excepção do caso julgado, inclusive na parte relativa aos efeitos preclusivos associados ao caso julgado, pelo que fica afastada a síntese CC das suas alegações. * Da impugnação da decisão da matéria de facto O facto que os autores pretendem aditar como facto 11 não tem qualquer relevo para a decisão das questões que importa decidir, para mais quando o essencial desse facto está contido numa afirmação conclusiva sem qualquer suporte factual. Ou seja, os autores admitem que o seu filho tinha experiência na condução de scooters; o que pretendem é que se dê como provado que a experiência não era “grande”, sem que digam quais os factos que concretizam o “grande”. Para além disso, um facto alegado numa contestação não é, só por isso, uma admissão ou confissão de factos não alegados, nem prova suficiente do próprio facto. O facto que os autores pretendem aditar como 12 não foi alegado pelos autores, pelo que a circunstância de os réus o terem alegado não serve de prova por admissão ou confissão. A remissão genérica para todos os documentos juntos com a PI não cumpre o ónus previsto no art. 640/1-b do CPC. No entanto, tendo em consideração (i) que existe uma certidão do assento de óbito, documento autêntico, do qual consta a idade do sinistrado na data da morte, e (ii) o disposto nos arts. 663/2 e 607/4 do CPC, e porque tem interesse para a eventual indemnização pelo dano morte, é de aditar esse facto. Também os factos que os autores pretendem aditar como 13 não foram por eles alegados, pelo que mesmo que os réus os tivessem alegado, tal não serviria de prova de tal facto. Mas nem sequer é verdade que os réus tenham alegado que o sinistrado vivesse junto com os pais (o que eles dizem foi que o sinistrado foi para casa almoçar com os pais; pode ser a casa dele, onde os pais estavam para almoçar com ele). Tal como não alegaram, nos termos referidos pelos autores, que o sinistrava almoçava [assim, sem qualificações, pelo que tem implícito o ‘sempre’] em casa dos pais (nem sequer que a casa era dos pais). A circunstância de um documento mencionar a morada do sinistrado como sendo a morada que também é dos pais, não quer dizer que eles vivessem realmente juntos (por exemplo, que ainda vivessem). Quanto ao que os autores pretendem dar como provado em 14, há que lhes dar razão: a circulação terrestre de veículos a motor é uma actividade perigosa por natureza, como aliás está pressuposto pelo art. 503/1 do CC e daí o conteúdo da avaliação de riscos profissionais, páginas 21 a 29 (esp. pág. 27) do relatório junto pelos réus com a contestação, onde se refere, na parte destinada à função de ‘lavador’, e às operações ‘in itinere’ e ‘condução’, o ‘perigo’ de choque com viaturas, atropelamento e o ‘risco’ ‘muito importante’ de lesões graves, morte. Daí que seja de aditar um facto 12. Ao contrário do que é sugerido pela resposta dos réus, os autores alegaram este facto, como se vê na síntese que se fez acima da PI. Em suma, procede parcialmente, pelas razões e nos termos indicados, a pretensão de aditamento de factos. Esclareça-se que os réus fazem inúmeras referências a elementos de prova pessoal, não com base na gravação da prova, como tinha de ser (art. 640/2-a-b do CPC), mas como base nos apontamentos do tribunal (o tribunal/juiz não tem a função de registo da prova e por isso os apontamentos que toma não provam o que foi dito); essas referências são, por isso, inócuas. * Do recurso sobre matéria de direito Não vale a pena transcrever, mesmo que em síntese, a fundamentação da sentença recorrida, visto que nas quase 5 páginas de síntese da contra-alegações dos réus, essa sentença é inúmeras vezes invocada, citada e transcrita. Posto isto, O que os autores invocavam expressamente na PI era um acidente de trabalho (art. 8/1-2 da LAT), simultaneamente de viação, agravado pela actuação culposa do empregador (art. 18 da LAT). Para o preenchimento desta agravação, que transformaria a responsabilidade objectiva decorrente do acidente de trabalho em responsabilidade objectiva agravada por culpa, o acidente \i\ teria de ter sido provocado, na parte que interessa ao caso dos autos, pelo empregador ou seu representante, ou \ii\ teria de ter resultado de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho. Os autores não invocam nada no sentido da 1.ª alternativa (acidente provocado). Quanto à falta de observância, pelo empregador ou representante, das regras sobre segurança no trabalho, tudo aquilo que consta das conclusões H e B do recurso não implica que os réus não tenham observado as regras de segurança aplicáveis ao caso. Assim: Essas regras seriam as que constam do Código da Estrada, que era pressuposto o sinistrado conhecer já que estava a conduzir a scooter e dos factos provados não consta que ele não tivesse carta de condução (se o sinistrado não conhecia as regras do Código da Estrada, designadamente por não ter carta de condução, os autores teriam de ter alegado o facto – não se está a esquecer que os autores afirmam na conclusão D que o filho tinha a carta de condução B, mas o facto não pode ser utilizado porque não está dado como provado; nem se está a esquecer que na lógica das contra-alegações dos réus, o sinistrado tinha a carta de condução, mas tal não pode servir de prova do facto, pois que as contra-alegações não são um elemento de prova, nem são um articulado sujeito às regras cominatórias da não impugnação). Não basta saber que o autor desempenhava as funções de lavador de automóveis (facto 1) para se poder concluir, como querem os autores, que essa função não incluía conduzir scooters e entregar carros, pois que não consta dos factos provados o que é que as funções de lavador de carros incluíam, e, por outro lado, porque segundo o art. 118/2-3 do Código do Trabalho, a actividade contratada, ainda que determinada por remissão para categoria profissional de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou regulamento interno de empresa (que não consta dos factos provados), compreende as funções que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas, para as quais o trabalhador tenha qualificação adequada e que não impliquem desvalorização profissional. / Para efeitos do número anterior e sem prejuízo do disposto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, consideram-se afins ou funcionalmente ligadas, designadamente, as funções compreendidas no mesmo grupo ou carreira profissional; e, segundo o art. 120/1 do CT, ainda porque o empregador pode, quando o interesse da empresa o exija, encarregar o trabalhador de exercer temporariamente funções não compreendidas na actividade contratada, desde que tal não implique modificação substancial da posição do trabalhador, pelo que não se pode, sem mais, concluir que os réus não cumpriram o contrato de trabalho. Quanto à formação específica, não se pode dizer que a condução de uma scooter, sem mais, mesmo que numa via do aeroporto para a sede da ré, implique a necessidade de tal formação e qual ela fosse (para além da implicada por uma carta de condução). Quanto a ficha médica de aptidão, não se diz a que é que a ficha se refere, mas mesmo que se refira à aptidão para conduzir, o facto de a aptidão não constar de uma ficha não quer dizer que a aptidão não exista. Em suma, os autores esquecem a quase total ausência de factos alegados e provados necessários às conclusões que tiram. Quanto ao AUJ do STJ n.º 6/2024, de resto insuficientemente identificado (os autores falavam só num ac. do STJ 6/2004 de 13/05; um ac. do STJ identificado por um n.º de ordem, é geralmente um AUJ, sendo que o AUJ cível 6/2004 diz respeito à questão do registo da impugnação pauliana… e não há nenhum AUJ social com esse número, nem com a data de 13/05; os autores estavam a referir-se ao AUJ 6/2024, de 17/04/2024, publicado a 13/05/2024 e rectificado a 17/01/2025), o mesmo parte da prova de violações de regras de segurança. Ora, no caso, essas violações, como se viu, não se provaram. Em suma, não se provam as circunstâncias agravantes da responsabilidade da ré sociedade ou dos seus representantes, isto é, os pressupostos do art. 18 da LAT. Note-se que os réus continuam, nesta parte do recurso, que diz respeito ao Direito e onde está pressuposto que os factos a utilizar são apenas os factos dados como provados na sentença (com os eventuais aditamentos decorrentes da impugnação), a invocar elementos de prova e factos que entendem provados mas que não constam dos factos provados (por exemplo, sínteses K, L, M, N, P, Q, V, 1.ª parte de W), tudo sem qualquer relevância, pois que, para além do mais, os réus não impugnaram a decisão da matéria de facto, nem subsidiariamente (art. 633 do CPC), nem requereram a ampliação do objecto do recurso (arts. 636/2 e do CPC). Para além disso, esquecem que os factos não provados não servem de prova de factos contrários, e não têm valor, pois que perante a falta de prova das alegações, é como se tais factos não tivessem sido escritos. * Por fim, os autores invocam a responsabilidade pelo risco, mas referem-se ao art. 493/2 do CC (que está inserido numa subsecção do CC dedicada à responsabilidade por facto ilícito culposo, a anteceder uma outra dedicada à responsabilidade pelo risco). Ou seja, esta previsão de responsabilidade não é uma responsabilidade pelo risco, mas sim uma responsabilidade por culpa presumida (embora os termos da norma, ao impor a prova, pelo lesante, de uma causa estranha, para afastar a presunção de culpa, possam levar à conclusão de que se trata de uma responsabilidade civil semi-objectiva – por exemplo e por últimos: Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Direito da responsabilidade civil, Gestlegal, 2023, págs. 379-383, especialmente 379-380, e Henrique Sousa Antunes, Direito das obrigações, Almedina, 2025, págs. 509-511, especialmente 510-511 – ou mesmo materialmente objectiva impuríssima segundo Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade objectiva CDP 02-Especial, 2012, págs. 107-117, embora com o regime da responsabilidade por culpa presumida). Por outro lado, os autores esquecem, ao invocarem o art. 493/2 do CC, a existência do assento 1/80 do STJ, de 21/11/1979, que tem o valor de um AUJ, com o seguinte teor: O disposto no artigo 493/2 do CC não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre. E os manuais do Direito das Obrigações, mesmo os mais recentes (para além dos dois invocados, veja-se também Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, II, Das obrigações em geral, CIDP/Almedina, 2021, págs. 433-435, e Jorge Ribeiro Faria, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, 2020, págs. 456-457, o único que ainda se refere ao assento 1/80 como justificação), tratam do tipo de responsabilidade em causa sem se referirem à actividade de circulação de veículos. Ou seja, a simples invocação da responsabilidade pelo risco e do art. 493/2 do CC é insuficiente e contraditória. Apesar disto, Visto que, como resulta do art. 503/1 do CC, a circulação de veículos terrestres é considerada uma actividade perigosa por sua própria natureza – é por isso que a lei prevê a responsabilidade por esse risco -, não pode deixar de se considerar assim também para efeitos do art. 493/2 do CC (assim já o dizia o voto de vencido de Abel de Campos no assento 1/80). A entender-se o contrário, como resulto do defendido pelo assento 1/80, cai-se numa contradição valorativa. Por isso, aquele assento 1/80 do STJ foi, desde a sua publicação, alvo de inúmeras críticas pela doutrina e mesmo pela jurisprudência, como se vê pelo teor dos subsequentes assentos que o têm por pressuposto: os assentos cíveis do STJ 1/83, 3/94 e 7/94. Assim, por exemplo, Vaz Serra, Anotação publicada na RLJ 112, 1979/1908, págs. 152-160 e 167-174, especialmente págs. 168 e 172 (citado através de Nuno Manuel Pinto Oliveira, nota 58 pág. 119); Joaquim de Sousa Ribeiro, O ónus da prova da culpa na responsabilidade civil por acidente de viação, Estudos em Homenagem a Teixeira Ribeiro, UC/FDC, Coimbra, 1979, págs. 413-542, especialmente a adenda de pág. 524-542: “perspectivá-la [à responsabilidade objectiva] como um substituto da presunção de culpa que recai sobre o comum das actividade perigosas, é abrir a porta a que resultem mais desprotegidos os interesses que se quis mais fortemente tutelar, falseando o nexo teleológico que intercede entre os dois regimes.” (pág. 533); Nuno Manuel Pinto Oliveira, estudo citado, págs. 107-121; Maria da Graça Trigo, Presunções de culpa em matéria de acidentes de viação, em Responsabilidade civil, Temas especiais, UCE, 2015, págs. 23-40; Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moreira, Comentário ao CC, Das obrigações em geral, UCP/FD/UCE, 2018, págs. 324-325; Rui Ataíde Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde e António Barroso Rodrigues, Acidentes de viação. Responsabilidade objectiva, presunções de culpa e responsabilidade objectiva, Julgar, 46, 2022, págs. 13-32; João Bernardo, Acidentes de viação. Alguns pontos relativos aos pressupostos da responsabilidade civil e à fixação das indemnizações por danos pessoais, publicado na RDC 2022/III, páginas 425-437, esp. 436: “O referido Assento de 21/11/1979 [1/80] está totalmente ultrapassado no tempo, impondo-se a sua revogação pelo STJ – mormente em revista alargada – ou a sua caducidade através de lei nova; Jorge Sinde Monteiro, Direito dos seguros e direito da responsabilidade. Por um aperfeiçoamento judicial da protecção das vítimas do trânsito rodoviário. Parte II: Direito da responsabilidade, RLJ 152, n.º 4037, Nov/Dez2022, págs. 82-114, esp. 98 e 114: “Estamos também profundamente convictos de que sem a aplicação de uma presunção de culpa a todos os condutores de um veículo motorizado não é possível fazer justiça às vítimas dos acidentes de trânsito […]”; e Pedro Múrias, Direito Subjectivo e Responsabilidade Objectiva - O Exemplo dos Veículos Terrestres, A Revista, do STJ, n.º 6, págs. 55-108, especialmente págs. 103-105, e nota 84, entre o mais: “A este dado social e de justiça acresce um aspecto técnico do ordenamento português. O nosso sistema de responsabilidade automóvel, no actual estado das fontes, força uma hipertrofia da responsabilidade objectiva. A recusa de uma presunção geral de culpa do detentor imediato de um veículo, com afastamento de ambos os números do artigo 493.º, estabilizada desde o Assento n.º 1/80, leva a que muitas falhas humanas sejam desconsideradas na apreciação jurisprudencial por falta de prova, mesmo em casos em que, de acordo com as máximas da experiência, não pode ter deixado de haver alguma falha humana83. Esta norma é um elemento de perturbação, a que um número crescente de juristas se vem opondo84. Enquanto ela for mantida na jurisprudência, no entanto, o artigo 503.º tem de cobrir um número acrescido de casos, na medida permitida pelo respeito à letra da lei, mas sob pena de uma desresponsabilização contrária ao conjunto do sistema.” Por outro lado, o assento 1/80, parte do princípio que havendo uma norma (art. 503/1 do CC) que prevê a responsabilidade pelo risco da circulação, não se justifica a aplicação de uma outra norma que prevê a presunção de culpa pelo exercício da actividade circulação perigosa (art. 493/2 do CC); esquece, com isso, que a responsabilidade pelo risco tem, além do mais, limites de indemnização e que, por isso, um lesado que apenas beneficie da responsabilidade pelo risco não beneficia de uma indemnização integral, o que basta para justificar a existência da presunção de culpa do art. 493/2 do CC (como lugar paralelo, não se tem posto em causa que o proprietário de animais responde pelo risco nos termos do art. 502 e responde pela utilização perigosa presumida culposa pelo art. 493/1 do CC, apesar de aqui também haver uma duplicação de fundamentos de indemnização). E ainda: não se aplicando o art. 493/2 do CC, o condutor comissário presumir-se-á culpado de um acidente de viação (art. 503/3, 1.ª parte, do CC) enquanto que o condutor de viatura própria não se presumirá culpado, dando origem a soluções diferentes sem justificação material, pois que as razões adiantadas não se revelam consistentes; ao contrário do que se diz para justificar a presunção de culpa apenas para os condutores comissários, estes não são, via de regra, condutores profissionais, nem implicam maiores riscos, nem têm maior facilidade na elisão da presunção de culpa e a presunção de culpa não estimula a celebração de seguros pois que estes são actualmente obrigatórios [seguimos aqui, especificamente, Maria da Grança Trigo; a propósito destas razões, Pedro Múrias, no estudo citado acima, final da nota 84, diz: “Uma nota ainda sobre os argumentos de Antunes Varela que pretendiam fundar em substância uma presunção de culpa apenas contra os comissários (Das Obrigações, cit., pp. 685-686). Esses argumentos são cuidadosamente desmontados por TRIGO, no texto citado, só me cabendo acrescentar que tão extensas considerações empíricas — i.e., em questões de facto genéricas — e tão afastadas do exacto conteúdo do preceito legal não são em princípio válidas na argumentação jurídica, e certamente não o são sem alguma base nas ciências sociais que pudessem contribuir para o afirmado. O respeito pela grande obra deste professor de Coimbra, de que todos somos felizes legatários, não nos impede de repudiar a sua argumentação neste caso.”] E, assim, por exemplo, sem que nada o justifique, o condutor comissário (por exemplo, A, trabalhador de B), se nada mais se provar, presume-se culpado num embate com um veículo conduzido pelo condutor proprietário (por exemplo, B, o empregador de A), tendo que pagar todos os danos sofridos por este e sem receber nenhuma indemnização pelos seus danos (art. 506 do CC) e isto sem nenhuns limites indemnizatórios (art. 508 do CC). Por fim, apenas como mais um exemplo de disparidade de soluções sem justificação material, o comissário em exercício de funções responde na íntegra por força da presunção de culpa (art. 503/3, 1.ª parte, do CC), enquanto que o comissário fora do exercício de funções responde limitadamente, por força da responsabilidade pelo risco (art. 503/3, 2.ª parte, 503/1, do CC). Os assentos, que têm actualmente a mesma força que os AUJ, já não são equiparados a normas que devem ser aplicadas até ser revogadas; eles devem deixar de ser aplicados quando houver fortes elementos nesse sentido, normalmente reveladas pela doutrina que pronuncia sobre a matéria. Ora, o assento 1/80, devido à contradição a que conduz, à falta de justificação material para a solução e às consequências que resultam da sua aplicação, que hoje em dia se consideram inaceitáveis, deve deixar de ser aplicado. Assim, desaplicando o assento 1/80, é possível subsumir o caso, como querem os autores, à previsão do art. 493/2 do CC e responsabilizar a ré sociedade, como titular (factos 1, 7 e 8) da actividade perigosa de utilização de veículos de circulação a motor (a presunção de culpa diz respeito ao titular da actividade, não ao executor – Maria da Graça Trigo, Das presunções de culpa no regime da responsabilidade civil de viação, CDP 32, Out/Dez 2010, págs. 22-44, especialmente 42-44), um deles conduzido, no caso, pelo condutor vitimado, já que os réus não fizeram qualquer prova de que empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir, ou seja, não fizeram a prova da existência de uma causa estranha, para afastar a presunção de culpa). * De qualquer modo, diga-se que no caso a não aplicação da presunção de culpa do art. 493/2 do CC não deveria levar à absolvição da ré sociedade, pois que ainda seria aplicável a responsabilidade pelo risco de que se falará à frente. É que, no caso dos autos, a diferença relevante na aplicação dos dois regimes, seria apenas a nível dos limites da indemnização; ora, os pedidos estão muito aquém dos limites. O art. 508/1 do CC dispõe: A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. A Circular n.º 2/2022, de 15/03, da ASF, esclarece que a partir de 01/06/2022 (portanto já com aplicação ao caso dos autos), o capital mínimo obrigatoriamente seguro, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11 do DL 291/2007, de 21/08, é de 6.450.000€ por acidente para os danos corporais e de 1.300.000€ para os danos materiais (melhor demonstração destes limites consta do ac. do TRL de 12/09/2024, proc. 230/21.1T8CSC-A.L1-2, para o qual se remete; actualmente, isto resulta também da redacção do art. 12 do DL 291/2007 dada pelo DL 26/2025, de 30/03). Os valores dos pedidos estão dentro daqueles limites. * Ora, o caso dos autos é, à primeira vista, claramente um caso de responsabilidade civil pelo risco da circulação de veículos, previsto no art. 503/1 do CC. O autor, trabalhador da ré e ao serviço da ré, teve um acidente quando se deslocava do aeroporto para a sede da ré numa scooter propriedade da ré conduzida por si (factos 1 e 8). Logo estão preenchidos os pressupostos do art. 503/1 do CC: Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação. O condutor da scooter é um dos terceiros protegidos contra este risco da circulação do veículo pertencente à sociedade (art. 504/1 do CC: A responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas.), criado pela sociedade em proveito próprio. Isto só não seria assim se estivesse provado (depois de ter sido alegado pelos réus, como facto impeditivo do direito dos autores: art. 342/2 do CC: A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita) que o acidente se deveu exclusivamente ao condutor da scooter / vítima do acidente / lesado / filho dos autores (se não for a causa única, o que se verificará é um concurso de imputações) ou que o acidente se deveu a qualquer causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art. 505 do CC: Exclusão da responsabilidade: Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.) * Neste sentido, vejam-se os acórdãos (os três lembrados no estudo referido a seguir): - do TRC de 12/11/2013, proc. 323/10.0T2AND.C1 (tenha-se em consideração que este acórdão trata de um caso em que se verificou apensação de acções e que, numa das acções, os autores eram a mulher e os filhos do lesado que era o condutor do veículo da sua entidade patronal): “[…T]em-se entendido que também o condutor do veículo acidentado (vítima) é de considerar um terceiro para efeitos da citada norma - o motorista de um veículo aproveita, como terceiro, da responsabilidade objectiva estabelecida na lei, desde que sofra acidente relacionado com os perigos próprios daquele veículo [Vide, neste sentido, Vaz Serra, RLJ, 102º, pág. 28 e Antunes Varela, Das Obrigações em geral, I, 4.ª ed., Almedina, pág. 591, nota (1) e o ac. do STJ de 09/01/1997, proc. 96B501 [este acórdão diz: I - Também o motorista de um veículo, que o conduza por conta de outrem, aproveita, como terceiro, da responsabilidade objectiva estabelecida na lei, desde que sofra acidente relacionado com os perigos próprios do veículo, o qual não haja sido causado por facto próprio seu ou de outro terceiro, e também não haja resultado de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. II - Para que possa ser entendido que a acção indemnizatória teve o risco como causa de pedir, basta que, na petição, hajam sido articuladas as circunstâncias de que depende a responsabilidade pelo risco e que se tenha especificado a norma legal que estabelece tal responsabilidade. – transcrição feita por este TRL]; […O] condutor por conta de outrem deve ser considerado um terceiro, visto que, não tendo a direcção efectiva do veículo, nem o utilizando no seu próprio interesse (ou, podendo ter simultaneamente algum interesse pessoal, é sempre um simples comissário às ordens de outra pessoa ou entidade), ele é estranho à criação do risco, não usufruindo das particulares vantagens que decorrem de um poder real sobre o veículo [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 27/06/1989, in BMJ, 388º, pág. 517, e o cit. acórdão do STJ de 09/01/1997, proc. 96B501 [aresto que se pronunciou favoravelmente à compensação dos danos não patrimoniais dos descendentes da vítima que conduzia um veículo pesado de passageiros pertencente à ré e no exercício das suas funções de motorista desta, ao serviço da mesma, dando-se o acidente por via do rebentamento de um pneu dianteiro, o que ocasionou a perda do domínio da viatura por parte do condutor].” - do STJ de 28/03/2019, proc. 2078/12.5TBPBL.C1.S1 (trata de um caso em que os autores eram a mulher e filha da vítima, condutor do veículo da entidade patronal, em que também elas pediram danos morais sofridos pela vítima, dano da morte e danos não patrimoniais próprios, confirmando os valores dados pela sentença de Dez2015, de 50.000€ pela perda do direito à vida, e de 15.000€ e 10.000€, as indemnizações a título de danos não patrimoniais sofridos, respectivamente, pela viúva e pela filha): IV - Estando em causa um acidente do qual apenas derivou a morte do próprio condutor por conta de outrem, sem que se conheçam as causas para o despiste e sem que tenham existido outros lesados, não é de aplicar a presunção de culpa a que se refere o art. 503/3, primeira parte, do CC, sendo tal matéria excluída do efeito persuasivo da doutrina firmada pelo Assento n.º 1/83. V - Não se aplicando a presunção de culpa em causa, justifica-se a aplicação da responsabilidade pelo risco do comitente do art. 503/1 do CC. VI - Verificam-se, no caso, os pressupostos cumulativos da direcção efectiva do veículo e da sua utilização no seu próprio interesse, por parte do comitente, no caso a sociedade tomadora do seguro de responsabilidade civil automóvel, sendo esta considerada detentora do veículo para efeitos de aplicação do preceito em causa. VII – Não obstante a escassez da factualidade provada, a responsabilidade pelo acidente tem como causa os riscos próprios do veículo. VIII - Dentro dos riscos próprios do veículo cabem os ligados ao condutor, na medida em que este assegura a circulação desse veículo, pelo que o perigo de síncope, de colapso cardíaco ou qualquer outra doença súbita de quem conduz faz realmente parte dos riscos próprios do veículo e, como tal, se integra no domínio da responsabilidade objectiva característica dos acidentes de viação. IX - Ora, não se provou qualquer factualidade relevante para efeitos de culpa, pelo que resta imputar a responsabilidade pelo acidente com base num risco próprio do veículo, pois que o acidente ocorreu quando o veículo se encontrava em circulação e, sem motivo apurado, saiu da via de rodagem, embateu na guarda lateral e caiu de um viaduto, provocando a morte do condutor, estando, pois, no caso, e por se inserir ainda no círculo de actividade geradora do risco, preenchidos os pressupostos de aplicação previstos no artigo 503/1 do CC. X - Sendo o acidente em causa nos autos enquadrado na responsabilidade objectiva, atento o disposto no art. 504/1 do CC, tal aproveita ao próprio condutor do veículo interveniente no acidente. - do TRE de 11/06/215, proc. 2557/11.1TBSTR.E1, num caso que tem apenas a diferença de não se estar perante uma relação de comissão laboral; a sentença de fins de 2014/princípios de 2015, confirmada, atribuiu 65.000€ pela perda do direito à vida; dano da viúva: 30.000€; dano moral de cada filho: 20.000€), entre o mais o acórdão lembra: Estando no âmbito da responsabilidade objectiva, o lesado apenas tem que provar que ocorreu um acidente que lhe causou danos e que o veículo causador do acidente [em que a vítima tinha sido o condutor até então e familiar dos autores] está sob a direcção efectiva de alguém (no caso, de um segurado da ré). Caberá ao responsável alegar e provar a previsão do art. 505 do CC. E o estudo citado de Sinde Monteiro, agora na Parte I: Direito dos Seguros, publicado na RLJ n.º 153, n.º 4036, Set/Out 2022, com ampla invocação de doutrina e jurisprudência no mesmo sentido, especialmente páginas 38 a 49: nas páginas 38 a 41, trata da não aplicação da presunção de culpa do art. 503/3 do CC no caso de o condutor/comissário ser a vítima do acidente, nas relações entre comitente e comissário, lembrando também (para além dos três referidos acima do TRC de 2013, do TRE de 2015 e do STJ de 2019), no mesmo sentido, o ac. do STJ de 02/12/2010, proc. 1617/06.5TBSTB.E1.S1 – em suma, a teleologia das presunções de culpa reside na protecção dos lesados, facilitando a reparação, ao prescindir da prova da culpa do autor da lesão – não se justifica, por isso, uma presunção de culpa contra a própria vítima do dano; o que, aliás, feriria o próprio âmago do contrato de trabalho, onde está bem presente uma ideia de protecção do trabalhador; na página 42 lembra que na falta de apuramento concreto do motivo do desvio para a direita do veículo – que poderá ter sido provocado por várias causas, v.g. doença súbita do condutor [lembra aqui a lição das lições de Rui Alarcão de que na noção de riscos próprios do veículo se englobam os perigos inerentes à falha da máquina (…), os que se ligam ao meio de circulação (a mancha de óleo, a superfície de água, o gelo ou nevoeiro, o atravessar de um animal selvagem) e os respeitantes ao factor pessoal da circulação (máxime, doença súbita do condutor)] – terá de se concluir pela inexistência de responsabilidade pessoal do condutor, possibilitando aos familiares um complemento da indemnização e uma escolha do tipo de reparação que entendam melhor favorecer os seus interesses, dentro dos quadro da responsabilidade objectivas por acidentes da circulação e de trabalho. Também Raul Guichard, citado Comentário ao CC, págs. 404-408: com grande desenvolvimento da questão dos riscos próprios de um veículo, lembrando ainda que “ocorrendo um acidente sem causa apurada, inexplicado, intervém ainda a imputação pelo risco (cf. ac. do STJ de 23/03/2000 – 00B142 – BMJ, 495, pp. 298 e ss.) […]. […A menção específica e adicional ao interesse próprio, visa em primeira linha excluir a responsabilidade [pelo risco] do comissário condutor […] […] Normalmente […] o detentor será o dono ou proprietário do veículo (no sentido de que a propriedade do veículo faz presumir legalmente uma presunção hominis, ver acs. do STJ […] * Os factos utilizados acima estavam alegados pelos autores na PI, à excepção de um (a ré ser proprietária da scooter) de que se tratará adiante. Ora, é um lugar comum, não discutido, que numa acção de responsabilidade civil com base na culpa, o tribunal pode condenar com base no risco, desde que aquela responsabilidade por culpa se baseasse em mais factos dos que os que servem para a responsabilidade pelo risco e estes se provem, apenas não se provando os factos a mais (que dizem respeito à responsabilidade pela culpa) – assim, apenas por exemplo, veja-se Raul Guichard, citado Comentário ao CC, pág. 400 – “é incontroverso que, mesmo que não se faça a prova da culpa do demandado, o tribunal pode apreciar a procedência do pedido com base na responsabilidade pelo risco […]” – e o citado por ele ac. do STJ de 04/10/2007, 07B1710. Note-se que os autores não falavam, na PI, em responsabilidade objectiva ou pelo risco, nem se pode dizer que a ré tivesse, aquando da contestação [diferentemente do que se passa nas contra-alegações do recurso], consciência do alcance de tais factos, mas sabe-se que a qualificação jurídica, e muito menos a indicação de uma norma específica, não faz parte do pedido nem da causa de pedir (Lebre de Freitas, A acção declarativa, 5.ª edição, 2023: “[…] há que não esquecer que a qualificação jurídica não releva para a identificação da causa de pedir – pág. 62, nota 32B; ao juiz cabe o monopólio da qualificação jurídica – pág. 120 (e nota 3 da pág. 158 da Introdução ao processo civil, 5ª edição, Gestlegal, 2023); ainda da Introdução: “[…] fora o caso das acções de simples apreciação da existência dum facto, a decisão pressupõe igualmente a selecção e a determinação do conteúdo da norma jurídica aplicável, bem como a subsunção do facto à norma […], que constituem fundamentos de direito da sentença. Estes fundamentos, diversamente dos de facto, podem ou não recortar-se entre os que as partes tenham introduzido no processo, visto que jura novit curia; […] a qualificação jurídica ou fundamentação de direito […] não entra na composição do [pedido…]” (pág. 60). “[…] Externa ao conceito de causa de pedir é, de qualquer modo, a qualificação jurídica desse facto” (77); por isso, nesta parte, não se acompanha a parte final do n.º II do sumário do acórdão do STJ de 09/01/1997, citado acima). * Apesar de tudo o que antecede, o regime da responsabilidade pelo risco apesar de invocado em abstracto pelos autores no recurso (embora referindo-se a uma norma de responsabilidade por culpa presumida), no caso não pode ser aplicado pois que os autores nunca alegaram, nem mesmo no recurso, que a ré sociedade era a proprietária ou a detentora da scooter e, por isso, o facto não consta dos factos provados. Ou seja, quer o facto da propriedade da scooter, quer a presunção judicial, daí derivada, da direcção efectiva da scooter, pela ré, pressupostos da aplicação do art. 503/1 do CC, não se podem dizer preenchidos. * Os autores têm direito às indemnizações pedidas: art. 496/1-2-4, 2.ª parte do CC [1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. 2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes […]; 4 - […] no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.]. Quanto aos montantes indemnizatórios: Segundo o art. 496/4 do CC: O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º […] As circunstâncias referidas no art. 494 são: […] o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem. No caso dos autos estão em causa o dano morte da vítima e o sofrimento de cada um dos pais com a morte do filho. Quanto ao sofrimento do sinistrado, antes da morte, nada se provou, pelo que não há lugar à indemnização pedida a esse título. Quanto ao dano morte ele é a perda de um bem, a vida, considerado o mais valioso deles, perda que se verifica sem necessidade de mais nada. Por isso, não se tem exigido a fixação de factos para prova de que a privação do dano da morte mereça indemnização. Pode ser que haja factos que, provados, possam dar origem a uma indemnização por valores superiores aos normais, mas em caso algum é de recusar a indemnização (desde que haja pessoas com direito a ela). A idade da vítima, facto acrescentado, não aponta para um valor que vá para além do normal. Quanto aos valores desse dano: já acima se viram dois acórdãos com fixação de valores de 50.000€ e 65.000€ pelo dano morte e eles são de 2014/2015. Em qualquer simples pesquisa de jurisprudência é possível encontrar valores fixados entre os limites mínimo de 50.000€ e máximo de 150.000€. Assim, apenas por exemplo, no ac. do TRG de 2017, proc. 382/15.0T8VCT.G1, fixou-se o valor de 75.000€ pelo dano morte. No ac. do TRL de 16/11/2021, 48/18.9PHSXL.L1-5, fixou-se esse valor em 120.000€. Na sentença alterada tinha-se fixado o valor de 150.000€ e referia-se nesse sentido o ac. do TRL de 30/06/2020, proc. 65/17.6GTALQ-5, enquanto se indicava o acórdão do TRE de 24/09/2020, proc. 3710/18.2T8FAR.E1, para um valor mais baixo (90.000€) e o recorrente indicava o ac. do STJ de 22/02/2018, proc. 33/12.4GTSTB.E1.S1, que fixou o valor de 120.000€. O ac. do STJ de 17/06/2025, proc. 3746/22.9T8PNF.P1.S1, lembra que “A jurisprudência mais recente deste tribunal tem ressarcido este dano em valores na ordem dos 80.000€ (cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 25.02.2021, P. 4086/18, e de 13.05.2021, P.10157/16). / Isso mesmo foi afirmado no acórdão do STJ de 19/01/2023, proc. 347/21.8T8PNF.P1.S1, em que se escreveu o seguinte: “Na fixação da indemnização do dano da perda da vida, tendo em consideração que não é o lesado que vai beneficiar da quantia indemnizatória, o valor a atribuir deve reflectir uma censura à conduta do lesante e sinalizar a importância do bem jurídico supremo sacrificado, conferindo-lhe uma tutela que satisfaça as exigências de um Estado de direito democrático, necessariamente atento à reparação dos danos injustamente provocados pela conduta de outrem, sendo aconselhável seguir-se uma orientação padronizadora; o valor padrão desta indemnização que nos últimos tempos tem norteados a jurisprudência dos tribunais superiores tem rondado os 80.000€, avultando como critério diferenciador o grau de culpa do lesante.” O valor pedido de 70.000€ é perfeitamente razoável como valor normal. Quanto à indemnização pelos danos sofridos por parentes em 1.º grau: o que faz parte da normalidade das coisas e das regras da experiência comum é que os pais e os filhos sintam desgosto pela morte de uns e de outros e, portanto, um sofrimento normal pode ser extraído dos factos por presunção judicial. É aos lesantes que cabe provar alguma circunstância que demonstrasse que os pais, ou algum deles, não tiveram desgosto com a morte do filho e que por isso nada haveria a indemnizar. Ou seria aos lesados que caberia a prova de factos que demonstrassem que o desgosto provocado pela morte dos filhos iria para além do normal. Ora, como eles pedem um valor mais baixo do que o normal, não tinham de provar nada a respeito do desgosto. Note-se que, ao contrário do que é sugerido pelos réus, o tribunal não deu como não provado que os pais sofreram com a morte do filho, mas apenas que não sofreram “uma grande e inultrapassável dor pela morte daquele”. Quanto aos valores: também já se viram acima valores jurisprudenciais de 20.000€ e 10.000€. No ac. do TRL de 16/11/2021, citado acima, atribuíram-se 40.000€ de indemnização a cada um dos pais. O pedido de 7.500€ é muito mais baixo do que estes, pelo que não se vê razão para não o atribuir. Também por isso, a ausência de factos positivos quanto a este dano não tem relevo. * Não há qualquer fundamento legal – nem os autores o tentam indicar - para condenar os legais representantes a pagar a indemnização aos autores caso a ré sociedade não o faça. * Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida e em sua substituição condena-se a ré sociedade a pagar aos autores a indemnização de 85.000€ (70.000€ + 7.500€ x 2), absolvendo-a do demais, tal como se absolvem os outros réus de todos os pedidos. Custas de parte, quer da acção quer do recurso, pelos autores em 57,5% e pela ré sociedade em 42,5%. Lisboa, 11/09/2025 Pedro Martins Paulo Fernandes da Silva João Paulo Raposo |