Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1312/22.8T8VFX.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURANÇA SOCIAL
CITAÇÃO
REEMBOLSO
PENSÃO
PERDA DE VEÍCULO
PRIVAÇÃO DE USO
DANO DE PRIVAÇÃO DE USO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)
I – Resulta do disposto no art. 1.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22-02, ser obrigatória, nas ações cíveis, a citação das instituições da segurança social para deduzirem o seu pedido de reembolso contra os aí demandados, ou seja, os réus, tidos como civilmente responsáveis pelo pagamento da peticionada “indemnização de perdas e danos” causados por acidente de trabalho ou ato de terceiro que tenha determinado incapacidade temporária ou definitiva para o exercício da atividade profissional (ou morte), sendo essa pretensão de reembolso atinente ao montante que, a título de subsídios ou pensões, hajam sido pagos por aquelas instituições, em consequência dos mesmos eventos em que se fundamenta o pedido primitivo de indemnização de perdas e danos.
II – Tendo em vista essa citação, devem os autores, que formularam um tal pedido de indemnização de perdas e danos, identificar na petição a sua qualidade de beneficiários da Segurança Social (ou a do ofendido, no caso de morte deste) e a instituição ou instituições pelas quais se encontram abrangidos, constituindo-se, com a intervenção das ditas instituições de segurança social, quando venham deduzir pedido de reembolso, uma coligação sucessiva ativa, mantendo-se o sujeito passivo da ação.
III – Tal preceito legal não é aplicável na presente ação, intentada por uma seguradora, ao abrigo do disposto no art. 27.º, n.º 1, alíneas d) e h), do DL n.º 291/2007, de 21-08 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), contra o réu a quem imputa a responsabilidade pelo acidente de viação que consistiu num “choque em cadeia” de 4 veículos, um dos quais tinha os pneus “carecas e era conduzido pelo Réu sem estar legalmente habilitado, peticionando aquela autora o reembolso das quantias indemnizatórias que satisfez aos lesados com a regularização do sinistro - atinentes à perda total e privação do uso de um veículo sinistrado, ao custo da reparação dos outros dois veículos e ainda ao custo (no valor de 96,91 €) do episódio de urgência em hospital onde o condutor de um destes veículos foi assistido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
A … S.A., Autora na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentou contra B …, interpôs o presente recurso de apelação do despacho que decretou a suspensão da instância.
Os autos tiveram início em 12-04-2022, com a apresentação de Petição Inicial, em que a Autora peticionou a condenação do Réu no pagamento da quantia de 6.680.07 €, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, a calcular desde a interpelação daquele até efetivo e integral pagamento, alegando, para tanto e em síntese, que:
- No exercício da sua atividade, no âmbito do ramo automóvel, a Autora celebrou com a C … LDA. um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório, por danos emergentes de viação automóvel do veículo de matrícula …-…-PU (doravante designado por PU);
- No dia 29 de abril de 2019, pelas 18h30, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional n.º …, freguesia de Alverca do Ribatejo e Sobralinho, Concelho de Vila Franca de Xira, em que foram intervenientes o veículo …-… PU, conduzido pelo Réu, e os veículos …-…CL [doravante designado apenas por CL], conduzido por D …, …-TG … [doravante designado apenas por TG], conduzido por E …, e …-…-BU [doravante designado apenas por BU], conduzido por F …c;
- A Estrada Nacional …, no local do acidente, configura uma reta, com duas vias de circulação, uma para cada sentido, separadas por uma linha longitudinal descontínua, sendo que o veículo de matrícula …-…- PU circulava no sentido Norte/Sul, circulando, imediatamente à sua frente, no mesmo sentido e via de trânsito, pela ordem que se segue, os veículos CL, TG e BU;
- Ao chegarem ao Km 126,8, em virtude do trânsito intenso que se fazia sentir, os condutores dos veículos CL, TG e BU, reduziram progressivamente a velocidade a que circulavam até imobilizarem os veículos;
- Porém, o Réu, condutor do veículo …-… PU, por se encontrar a conduzir distraído, desatento à configuração da via e ao processamento do trânsito em seu redor, não logrou manter a distância de segurança necessária do veículo que circulava imediatamente à sua frente, tendo ido embater com a frente do veículo …-… PU na traseira do veículo …-… CL;
- Este último, com a força do impacto, foi projetado para a frente, indo embater com a sua frente na traseira do veículo TG, que, por sua vez, também foi projetado para a frente com a força do embate, indo embater com a sua frente na traseira do veículo …-…BU;
- O condutor do veículo PU, conduzia sem título que o habilitasse para o efeito;
- Ademais, verificado o estado dos pneumáticos interiores, do eixo posterior, de ambos os lados do veículo … - … PU, constatou-se que tinham os respetivos relevos da zona de rolagem, com medida inferior a 1,6 mm, estando completamente lisos;
- Ao atuar da forma descrita, o Réu demonstrou uma absoluta falta de cuidado e diligência a que estão adstritos todos os condutores que circulam com viaturas automóveis, sendo o único e exclusivo responsável pela ocorrência do acidente, violando as regras constantes dos artigos 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, 24.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, al. h), e 121.º, n.º 1, todos do Código da Estrada.
- Do acidente resultaram danos materiais nos veículos de matrícula …-… CL, …-… TG e …-…BU, sendo que se apurou que os danos no …-… CL ascendiam ao valor de 2.889.31 €, sem desmontagem, muito superior ao valor venal apurado para o veículo …-…- CL, pelo que foi considerado como perda total, ficando o salvado na posse do proprietário, o qual se viu privado do uso do veículo, tendo a paralisação e privação do seu veículo ascendido ao montante de 400,00 €, pagando a Autora ao proprietário do veículo …-…- CL a quantia de 1.300,00€:
- No que diz respeito aos veículos …TG …  e …-… BU, à data dos factos, estes estavam seguros na Fidelidade Companhia de Seguros S.A. e havia sido contratada a cobertura facultativa “choque colisão e capotamento”, pelo que o sinistro foi regularizado ao abrigo da convenção IDS, tendo a Autora reembolsado aquela Seguradora, pagando o valor relativo ao custo da reparação do veículo TG, de 4.904,59 €, e o valor relativo ao custo da reparação do veículo …-… BU, de 378,57 €;
- Acresce que, em consequência do sinistro, o condutor do veículo …-… CL, necessitou de ser assistido no Hospital de Vila Franca de Xira, tendo a Autora, a esse propósito, liquidado o valor do episódio de urgência, no montante de 96,91 €;
- Despendeu, assim, a Autora, com a regularização do sinistro dos presentes autos a quantia de 6.680,07 €, que reclama do Réu, ao abrigo do disposto no art. 27.º, n.º 1, alíneas d) e h), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
O Réu apresentou Contestação, em que se defendeu excecionando a ilegitimidade processual passiva - por o veículo não ser da sua propriedade, mas da C … LDA., por conta da qual conduzia, no âmbito de um contrato de prestação de serviços -, e por impugnação motivada, de facto e de direito.
A Autora pronunciou-se pela improcedência da exceção, requerendo ainda a intervenção principal provocada da C … LDA., como litisconsorte do Réu.
Em 27-04-2023, foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Constata-se agora que do alegado nos artºs 58º e 59º da petição inicial resulta que o condutor do veículo CL sofreu lesões em consequência do acidente que determinaram a sua assistência hospitalar.
Assim, ao abrigo do artº 1º, nºs 1 e 5 do D.L. nº 59/89, de 22.02., determino a notificação da A. para, em 10 dias, proceder à identificação do número de beneficiário da Segurança Social do referido condutor, sob pena de a instância ficar suspensa.”
A Autora veio, mediante requerimento apresentado em 12-05-2023, “informar que desconhece o n.º de Segurança Social do condutor do veículo CL, e que salvo melhor opinião, não há aplicação do D.L. nº 59/89, de 22.02 ao presente caso, devendo os autos prosseguir os seus trâmites.”
De seguida, em 19-09-2023, foi proferido o despacho (recorrido), com o seguinte teor:
“Nos termos do artº 1º, nº 5 do D.L. nº 59/89 de 22.02. declaro a suspensão da presente instância.”
Inconformada com esta decisão, veio a Autora interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1) A presente ação é intentada na sequência de um sinistro automóvel, no qual foi interveniente e responsável o veículo seguro na Apelante e conduzido pelo Apelado.
2) A Apelante regularizou os danos decorrentes do sinistro, uma vez que, tinha para si transferida a responsabilidade civil por danos emergentes de viação automóvel do veículo de matrícula …-…-PU.
3) Satisfeita a indemnização, vem a Apelante exercer o seu direito de regresso, fundamentado nas alíneas d) e h) do n.º 1 do artigo 27.º do DL 291/2007.
4) O Tribunal a quo proferiu o Despacho ora em crise, declarando nos termos do artº 1º, nº 5 do D.L. nº 59/89 de 22.02 a suspensão da presente instância.
5) Segundo o artº 1.º do D.L. nº 59/89 de 22.02 só há lugar ao pedido de reembolso por parte da segurança social nos processos cíveis quando nessas mesmas ações sejam peticionadas verbas indemnizatórias a titulo de perdas e danos, na sequência de acidentes de trabalho, ou, ainda que não sejam decorrentes de acidentes de trabalho, sejam peticionados valor indemnizatórios decorrentes de atos de terceiros, dos quais resultem, períodos de incapacidade temporária, situações de incapacidade definitiva ou morte.
6) Nesta ação não foi alegada a existência de qualquer acidente de trabalho, nem resultou para nenhum dos intervenientes qualquer período de incapacidade temporária, qualquer situação de incapacidade definitiva, ou morte.
7) A Apelante enquanto pessoa coletiva, não pode ter sofrido qualquer acidente de trabalho que lhe conferisse direito a peticionar uma indemnização por perdas e danos decorrentes de um acidente de trabalho, ou a peticionar qualquer verba a título de períodos de incapacidade, temporária ou definitiva, ou morte.
8) Apelante peticiona, apenas, o regresso das quantias despendidas com: i) a perda total e privação do uso do veículo CL, ii) reparação dos veículos TG e BU e, iii) um episodio de urgência.
9) Não preenchendo a presente ação nenhum dos requisitos constantes do art nº1 D.L. nº 59/89 de 22.02 é inadmissível a sua aplicação, bem como, a sanção constante do nº5 do mesmo normativo, e a obrigação de identificar o número de beneficiário da Segurança Social do condutor do veículo CL.
10) Deve a decisão de suspensão de instância ser revogada, e ordenado o prosseguimento dos presentes autos, só assim se fazendo a costumada Justiça.
Foi apresentada alegação de resposta pelo Réu, em que concluiu nos seguintes termos:
a) Vem a Autora recorrer do Despacho de 19/09/2023 (Ref.Citius nº …);
b) Enquanto Seguradora do ramo automóvel para os efeitos que aqui importam, pagou aos envolvidos no acidente os montantes que julgou, sponte sua, devidos.
c) Tendo-se sub-rogado, por essa via, aos sinistrados, e sendo nessa qualidade sub-rogatória que lhe cabe a posição processual de Autora, pois que de outra forma seria a mesma parte ilegítima nos autos.
a) Tal como previsto pelo art.136º do Decreto-Lei nº 72/2008, cuja interpretação foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão datado de 30/06/2021 nos autos do Processo nº 113/18.2T8SNT.L1.S1
b) Aqui aportados, límpido se torna que a Autora ficou sub-rogada nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro.
c) Assim sendo, verifica-se que, para os efeitos do art.1º do DL 58/89, a Autora peticiona danos ocorridos ao condutor do veículo CL.
d) Mais, refere o art.26° do DL 58/89 que “Quando o acidente for simultaneamente de viação e de trabalho, aplicar-se-ão as disposições deste decreto-lei, tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de trabalho.”
e) Ora, aludindo ao Doc.1 apresentado nos presentes autos, o Réu é trabalhador da sociedade C…, Lda, em regime de prestação de serviços, tendo como tarefas o transporte de mercadorias por conta da referida sociedade.
f) Sendo porquanto certa a situação de comissário do Réu, nos presentes autos, tal como exposto em sede de Contestação, para a qual se remete para todos os devidos efeitos legais.
g) Mas, ainda que assim não fosse, sempre se dirá que o contrato de prestação de serviços em crise subsume-se ao previsto pelo art.4º, nº1, al.c) da Lei nº7/2009
h) Aqui aportados, límpido se torna que o acidente em crise configura em abstracto, um acidente de trabalho, ainda que tal não seja objecto dos presentes autos.
i) Porquanto, e pelo exposto, existiu um acidente de trabalho para os devidos efeitos do art.1º, nº5 do DL 58/89.
j) Ademais, sempre se dirá que, do Doc.8 resultaram lesões corporais para o condutor do veículo CL, nomeadamente “duas incidências” cervicais, assim como, ad minimum, dores na bacia.
k) Pelo que, atendendo ao disposto no art.349º do Código Civil, o qual refere as presunções judiciais, sempre se dirá ser ilatório que o condutor do veículo CL tenha sido alvo de incapacidade temporária de trabalho, ainda que tal não venha expressamente referido pela Autora.
l) Ora, partindo destes dois pressupostos (simultaneidade de acidente de trabalho e de acidente com danos corporais de terceiros que, por ilação, terão sido objecto de incapacidade temporária),
m) Temos assim que deverá interpretar-se extensivamente (art.9º, nº1 do Código Civil) o disposto no art.1º do DL 58/89.
n) Nesta senda, o Decreto-Lei 58/89 foi instituído com a ratio de que o Instituto de Segurança Social não poderia sair prejudicado no âmbito dos pagamentos de subsídios efectuados na sequência de acidentes de viação (mormente em casos de acidente de trabalho e quando ocorram danos indemnizáveis de terceiros).
o) Tal como considerado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 11/11/2015 nos autos do Processo nº 13932/13.7TDPRT-A.P1
p) De facto, e conforme se retira da introdução do diploma legal em apreço No entanto, existem eventos que provocam a mesma consequência, traduzida na perda de remunerações, pelas quais há terceiros responsáveis, embora tal situação não signifique que a Segurança Social a ela seja alheia, pois, ao invés, assegura provisoriamente a protecção do beneficiário, cabendo-lhe, em conformidade, exigir o valor dos subsídios ou pensões pagos.
q) Temos que igualmente se impõe ser a Segurança Social chamada – através da remessa do Número de Identificação de Segurança Social do lesado – de forma a esta poder eventualmente exigir ressarcimento de valores que tenha dispendido.
r) Assim sendo, temos que a norma vertida no art.1º do DL 58/89 não se prende, de facto, com a formulação do pedido da Autora, tal como esta o configura, mas outrossim com a causa de pedir.
s) Porquanto, perfeitamente límpido se torna que o art.1º do DL 58/89 deve ser interpretrado em sintonia com o disposto no art.7º do DL 28/2004 no sentido que, existindo eventualidade de responsabilidade de terceiro discutida em sede cível, deve o Autor referir o NISS do sinistrado, de forma a que a Segurança Social, notificada para o efeito, possa deduzir pedido de reembolso nos próprios autos,
t) Ainda que tal pedido não seja expressamente efectuado pela Autora – por não se configurar enquanto despesa da entidade Seguradora para efeitos de regresso,
u) Pelo exposto, deverá o recurso ser julgado improcedente e o despacho mantido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se não devia ter sido decretada a suspensão da instância.

Os factos com relevância para o conhecimento do objeto do recurso são os que constam do relatório.
Preceitua o art. 1.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, sob a epígrafe, “Pedido de reembolso de prestações em acção cível”, que:
“1 - Em todas as acções cíveis em que seja formulado pedido de indemnização de perdas e danos por acidente de trabalho ou acto de terceiro que tenha determinado incapacidade temporária ou definitiva para o exercício da actividade profissional, ou morte, o autor deve identificar na petição a sua qualidade de beneficiário da Segurança Social ou a do ofendido e a instituição ou instituições pelas quais se encontra abrangido.
2 - As instituições de segurança social competentes para a concessão das prestações são citadas para, no prazo da contestação, deduzirem pedido de reembolso de montantes que tenham pago em consequência dos eventos referidos no número anterior.
3 - A apresentação do pedido de reembolso é notificada às partes, que poderão, nos oito dias subsequentes, responder o que se lhes oferecer.
4 - Todas as provas devem ser oferecidas com a petição e as respostas.
5 - Se o autor não tiver dado cumprimento ao disposto na parte final do n.º 1, deve o juiz convidá-lo a fazê-lo no prazo que lhe fixar, sob pena de a instância ficar suspensa, findo esse prazo.
Embora a letra da lei, no citado artigo 1.º, n.º 1, se nos afigure clara, é bom não esquecer igualmente a sua ratio, tal como explicada no preâmbulo do referido diploma, que passamos a citar:
“Uma das funções da Segurança Social dentro dos objectivos que prossegue é a de substituir-se à entidade pagadora de rendimentos do trabalho recebidos pelos seus beneficiários quando os mesmos se vejam deles privados por ocorrência de alguma das eventualidades que integram o respectivo esquema de prestações do regime geral.
No entanto, existem eventos que provocam a mesma consequência, traduzida na perda de remunerações, pelas quais há terceiros responsáveis, embora tal situação não signifique que a Segurança Social a ela seja alheia, pois, ao invés, assegura provisoriamente a protecção do beneficiário, cabendo-lhe, em conformidade, exigir o valor dos subsídios ou pensões pagos.
Torna-se necessário, porém, alargar o âmbito da aplicação do regime actualmente em vigor para esta matéria.”
Portanto, o legislador estabeleceu a obrigatoriedade de citação das instituições da segurança social para deduzirem pedido de reembolso contra os demandados / réus nas aludidas ações cíveis, em que é peticionada “indemnização de perdas e danos” fundada na (alegada) responsabilidade civil daqueles, sendo essa pretensão de reembolso atinente ao montante que, a título de subsídios ou pensões, tenham sido pagos por aquelas instituições, em consequência dos mesmos eventos em que se fundamenta o pedido primitivo de indemnização de perdas e danos; de sublinhar que apenas relevam as perdas e danos (causados) por acidente de trabalho ou ato de terceiro que tenha determinado incapacidade temporária ou definitiva para o exercício da atividade profissional, ou morte.
Tendo em vista essa citação, devem os autores, que formularam um tal pedido de indemnização de perdas e danos, identificar na petição a sua qualidade de beneficiários da Segurança Social (ou a do ofendido, no caso de morte deste) e a instituição ou instituições pelas quais se encontram abrangidos; isto significa também que os beneficiários desses subsídios ou pensões são os próprios autores / demandantes (que podem ser familiares do beneficiário falecido, sem prejuízo de este ter podido beneficiar de alguma prestação social antes da sua morte), constituindo-se, com a intervenção das ditas instituições de segurança social (quando venham deduzir pedido de reembolso), uma coligação sucessiva ativa, mantendo-se o sujeito passivo da ação.
Da análise da Petição Inicial resulta, sem qualquer margem para dúvida, que a Autora não formulou nenhum pedido de indemnização por perdas e danos por acidente de trabalho ou ato de terceiro que tenha determinado uma incapacidade temporária ou definitiva para o exercício da atividade profissional (muito menos a morte).
A argumentação em contrário do Réu não convence minimamente, pois dos factos alegados não resulta possível qualificar o acidente ocorrido como um acidente de trabalho, tanto mais que o próprio alegou que foi contratado em regime de prestação de serviços. Aliás, mesmo que existisse um contrato de trabalho, o único trabalhador sinistrado, na ótica do Réu, seria ele próprio, o qual, como é por demais evidente, não formulou nenhum pedido de indemnização por eventuais perdas e danos decorrentes do suposto acidente, antes foi demandado como sendo o responsável civil por todos os danos ocasionados pelo acidente.
O acórdão invocado pelo Réu diz respeito à aplicação do disposto no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, atinente ao pedido de reembolso de prestações em ação penal, não tendo qualquer interesse para o caso, como se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor: “I - Na acção civil enxertada em processo penal com a dedução do pedido de indemnização, é admissível o incidente de intervenção principal provocada; II - O pedido de intervenção não constitui por si fundamento para a remessa das partes para os tribunais civis, quanto àquele pedido.”
Por outro lado, da mera circunstância de o acidente ter obrigado a que fosse prestada assistência hospitalar ao condutor do veículo CL, que o Tribunal a quo invocou ao determinar a aplicação do citado art. 1.º, n.º 5, não resulta que aquele sinistrado tenha ficado numa situação de incapacidade temporária ou definitiva para o exercício da atividade profissional com perda de remunerações que possa ter sido mitigada por via do pagamento de subsídios ou pensões pelas competentes instituições da segurança social.
Ademais, o condutor do CL não é autor na presente ação (e não se perspetiva sequer que venha a ser chamado a intervir), nada indicando que tenha sofrido quaisquer perdas e danos subsumíveis na previsão do citado art. 1.º, n.º 1, apenas pelo facto de ter recebido assistência hospitalar, sendo certo que nem todas as lesões que impliquem assistência hospitalar determinam para o lesado uma incapacidade temporária ou definitiva para o exercício da atividade profissional.
Assim, procedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual será concedido provimento.
Vencido o Réu-Apelado, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). Não será, todavia, condenado no pagamento das custas do recurso, uma vez que beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (conforme ofício junto aos autos em 07-10-2022) – cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se, em substituição do mesmo, que os autos prossigam a sua normal tramitação.
Não se condena o Réu-Apelado no pagamento das custas do recurso, pelas quais é responsável, atento o apoio judiciário de que beneficia.
D.N.

Lisboa, 12-09-2024
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
Paulo Fernandes da Silva