Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
192/18.2T9MFR.L1-3
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - A acusação que deve ser formulada no requerimento de abertura de instrução tem de constituir uma peça com desenvolvimento factual lógico, onde estão descritos factos bem individualizados, que permitam compreender a existência dos elementos objectivos e subjectivos do tipo.
- Se, apesar de algumas referências descabidas, está exposta de forma suficientemente clara a factualidade objectiva e subjectiva que permite a imputação dos factos aos arguidos, com narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena e com as circunstâncias de lugar, tempo, motivação, como imposto pelo art.º 283º nº 3 al. b) do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 287º nº 2 do mesmo diploma o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente não pode ser rejeitado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
No termo do inquérito realizado nos presentes autos o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento dos autos.
JMS e ACF, assistentes requereram a abertura de instrução contra os arguidos JAS, LMS e CAS.
Pela MMª Juiz de Instrução, após distribuição dos autos como instrução, foi proferida decisão de rejeição do requerimento de abertura da por inadmissibilidade legal por falta de objecto e determinou o imediato arquivamento dos autos.
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Inconformados os assistentes JMS e ACF interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objeto a admissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução.
2. A abertura de instrução é legalmente admissível, impondo-se a sua admissão e revogando-se a sua rejeição
3. Os recorrentes inconformados com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, requereram a abertura de instrução, pedindo a prolação de despacho de pronúncia do arguido pelos crimes denunciados.
4. Dispõem os referidos artigos 287.º n.º 2, parte final, e 283.º n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, que o requerimento para abertura de instrução do assistente deve, além do mais, narrar, de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como indicar as disposições legais aplicáveis.
5. Os recorrentes deram cumprimento ao determinado, porquanto, identificaram os arguidos a quem imputam os factos, narraram os factos integradores do tipo objetivo e subjetivo do ilícito criminal, identificaram devidamente os ilícitos, indicaram as disposições legais aplicáveis.
6. O requerimento de abertura de instrução contém, assim, s.m.o, a descrição dos factos necessária ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes mencionados e que imputaram aos arguidos JAS, LMS e CAS.
7. Menos se compreende o Tribunal a quo quando refere que “também não é inteligível a factualidade que justificaria a afirmação de que os assistentes (qual deles ou os dois) foi “coagido a preencher o cheque com o valor de 71.561,00”, quando no próprio requerimento de abertura de instrução os assistentes referem que:
“44. O cheque encontrava-se assinado por ACS, associado a uma conta por si titulada junto do Banco Santander Totta.
45. Conforme se indica na participação criminal, o cheque foi ilicitamente preenchido e entregue aos arguidos.
46. O assistente foi abordado pelos arguidos para que este preenchesse o cheque com o valor de €71.561,00.”
8. Ou seja, os recorrentes referem que o cheque se encontrava guardado na sua habitação, já assinado pela assistente, e que os arguidos o abordaram para que o assistente preenchesse o valor.
9. Não se alcança também a razão pela qual o Tribunal a quo refere que “não se compreende, porque não é explicado no RAI, em que momento e por que razão os assistentes terão percebido que os “ciganos e prostitutas” não eram potenciais compradores, nem em que circunstâncias ou por quanto tempo “usufruíram” do imóvel, “deitando-se nos quartos”, “conversando na sala” e “comendo na cozinha” – dormiram no imóvel?, por quanto tempo? Na presença ou ausência dos assistentes? Em que momento e por que razão os assistentes compreenderam que não seriam compradores e por que forma só convidaram a sair.”
10. Ora, os recorrentes, naturalmente, perceberam que as referidas pessoas não eram potenciais compradores quando os arguidos os incitaram a usufruir da habitação como se fosse deles, deitando-se nos quartos, conversando na sala e comendo na cozinha – sendo certo que estes não são atos, por natureza, praticados por potenciais compradores, quando estes últimos apenas se limitam a visitar efetivamente a habitação e não a comer a comida dos assistentes ou deitarem-se na sua cama.
11. Mais se diga – e respondendo à questão do Tribunal a quo (Na presença ou ausência dos assistentes? Em que momento e por que razão os assistentes compreenderam que não seriam compradores e por que forma só convidaram a sair.”) – que só os convidaram a sair, porque, naturalmente, estavam com medo devido à atitude abusiva das pessoas em questão.
12. E, como é lógico, tudo isto foi na presença dos recorrentes, como de resto decorre do requerimento de abertura de instrução (pontos 8 a 11 e 4 a 9 da acusação dos assistentes)
13. Os recorrentes, descreveram, como lhes era exigível e da forma como lhes foi possível, as circunstâncias de tempo, lugar e modo dos crimes que denunciaram, sendo desprovida de qualquer fundamento a conclusão de que o requerimento de abertura de instrução é legalmente inadmissível por falta de indicação do factos sobre os quais deveria incidir a instrução.
14. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, pela inadmissibilidade do requerimento de abertura de instrução apresentado, incorreu numa errónea interpretação jurídica dos artigos 287.º, n.ºs 2 e 3 e b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, invalidando, sem mais, o requerimento de abertura de instrução tempestivamente apresentado pelos recorrentes.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, no todo, devendo ser substituído por outro ordene a abertura de instrução requerida.
Assim decidindo, farão V. Exas., como sempre, verdadeira e sã JUSTIÇA.
O recurso foi admitido. 
O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:
1) O RAI dos assistentes, na intitulada acusação do ponto III, é totalmente omisso quanto ao dolo específico de cada um dos crimes imputados, quedando-se pela descrição dum dolo genérico no seu artigo 24.
2) Sendo ainda também omisso quanto à descrição do elemento objectivo do crime de falsificação de documento qualificado, pois que, nesse particular, se limita a usar conceitos conclusivos.
3) Pelo que sem tais elementos objectivos e subjectivos específicos não pode aquele RAI consubstanciar uma verdadeira acusação em sentido material.
4) Impondo-se assim rejeitar o RAI, como aconteceu — e bem, atendendo também à circunstância de não haver lugar a convite ao aperfeiçoamento (AUJ do STJ n.º 7/2005).
DEVE ASSIM NEGAR-SE PROCEDÊNCIA AO RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, MANTER-SE A DECISÃO RECORRIDA, UMA VEZ QUE Só ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA.
Os arguidos não responderam.
Foi proferido despacho tabelar de sustentação.
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Neste Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, com os seguintes fundamentos:
«Subscrevemos na íntegra a posição do Ministério Público em 1ª. Instância, atenta a pertinência, correção jurídica e clareza da sua fundamentação.
Em seu reforço, socorremo-nos ainda do entendimento jurisprudencial expresso no acórdão da Relação de Lisboa de 22-2-2023 (processo 228/19.0T9OER.L1-5), o qual, debruçando-se sobre questão idêntica (mormente, falta de imputação do elemento subjetivo do crime), refere:
“(...) A ausência da descrição destes factos no requerimento de abertura da instrução constitui motivo para a sua rejeição, sendo de aplicar aqui a doutrina fixada pelo STJ no seu Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, publicado no D.R. nº 18/2015, Série I de 2015-01-27, por identidade de razão ( neste sentido decidiu o Acórdão do TRE, datado de 17/03/2015, proferido no processo nº 1161/12.1GBLLE.E1, em que foi relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt ).
Esta jurisprudência é a seguinte: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Ora, não tendo sido articulados no requerimento de abertura da instrução todos os factos necessários a uma eventual decisão de pronúncia, impõe-se concluir que o assistente não cumpriu o ónus previsto no art.º 283º, nº 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, o que importa a rejeição liminar do requerimento de abertura da instrução, nos termos do art.º 287º, nº 3 do mesmo diploma, por inadmissibilidade legal desta fase processual.
É que ao não serem elencados todos os factos necessários a uma decisão de pronuncia, é inútil iniciar a fase de instrução, segundo o princípio constante do art.º 130º do Cód. Proc. Civil, aplicável por remissão do art.º 4º do Cód. Proc. Penal (cfr, neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário ao Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2007, página 737).
O STJ tem entendido que na densificação do conceito da «inadmissibilidade legal da instrução» se integram os casos em que, pela simples apreciação do requerimento de abertura de instrução, e sem recurso a qualquer elemento externo, o juiz possa concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à pronúncia do arguido e à eventual aplicação de uma sanção após o julgamento, seja por falta de pressupostos processuais, seja pela não verificação de condições objectivas de punibilidade, seja porque os factos invocados não constituem um crime.
Neste contexto, há ainda que ter em conta a seguinte jurisprudência fixada no acórdão do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in www.dgsi.pt:
“Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
Por estar vedado ao juiz o convite ao aperfeiçoamento do requerimento do assistente, torna-se necessário que este alegue no requerimento de abertura de instrução todos os factos concretos suscetíveis de integrar os elementos, objetivos e subjetivos, do tipo de crime que imputa ao arguido, pois a sua posterior adição constituirá uma alteração substancial dos factos, nos termos previstos no art.º 1º, al. f) do Cód. Proc. Penal, que a lei não permite. Em suma, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, que dará lugar à sua rejeição, nos termos do nº 3 do citado art.º 287º do Cód. Proc. Penal, quando da análise do requerimento para abertura da instrução resulta que o assistente não cumpriu o ónus de descrever com clareza os factos dos quais decorre o cometimento pelo arguido de determinado ilícito criminal, pelo que, em consequência, também não delimitou o objeto do processo, não permitiu o exercício do direito de defesa e não forneceu ao Tribunal os elementos sobre os quais teria que proferir um juízo de suficiência ou insuficiência dos indícios da verificação dos pressupostos da punição.
Foi o que sucedeu no caso dos presentes autos (...) “
Em consonância com todo o exposto, e em concordância com a resposta a recurso apresentada em 1ª. Instância pelo MºPº, emitimos parecer no sentido da manutenção da decisão recorrida, pugnando pela improcedência do recurso.».
Não foi apresentada resposta ao parecer.
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Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.ºs 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal).

II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.ºs 403º e 412º do Código de Processo Penal).
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A questão a decidir é o cumprimento do dever de narração dos factos objectivos e subjectivos do crime.
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O despacho recorrido decidiu da seguinte forma:
Os assistentes vêm requerer a abertura da instrução.
No seu requerimento manifestam discordância contra o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
Referem que a Sociedade L, Ldª ficou encarregue de promover a venda de um imóvel no âmbito de processo da insolvência dos assistentes e que permitiram que os respectivos agentes entrassem na dita habitação.
No entanto, a determinada altura “os arguidos, donos e colaboradores da sociedade”, no dia 16/08/2017 deslocaram-se ao imóvel “com uma intenção diversa” fazendo-se acompanhar de “ciganos e prostitutas” – não se compreende, ao nível da imputação criminal qual seria a relevância da raça, etnia ou actividade das pessoas em causa mas foi esta a expressa referência que os assistentes entenderam fazer com a consequente falta de imputação de factos concretos com a referida relevância criminal.
Também não se compreende, porque não é explicado no RAI, em que momento e por que razão os assistentes terão percebido que os “ciganos e prostitutas” não eram potenciais compradores, nem em que circunstâncias ou por quanto tempo “usufruíram” do imóvel, “deitando-se nos quartos”, “conversando na sala” e “comendo na cozinha” – dormiram no imóvel?, por quanto tempo? Na presença ou ausência dos assistentes? Em que momento e por que razão os assistentes compreenderam que não seriam compradores e por que forma os convidaram a sair.
A imputação do suposto crime de coação constante dos pontos 12 e seguintes do RAI é indefinido na respectiva descrição factual e elemento subjectivo, não sendo inteligível se se trataria de imputação de crime de ofensa à integridade física.
Também não é inteligível a factualidade que justificaria a afirmação de que os assistentes (qual deles ou os dois) foi “coagido a preencher o cheque com o valor de 71.561,00”.
Isto é, os assistentes não imputam factos concretos a pessoa determinada que conduzam a uma concreta incriminação com as respectivas circunstâncias de tempo modo e lugar, bem como respectivos elementos material e subjectivo.
É que, como repetidamente vem sendo afirmado por este tribunal e Tribunais Superiores e decorre do disposto nos art.ºs 287º, nº 2, do CPP, é necessário (quando a instrução é requerida na sequência de decisão de arquivamento do Ministério Público) que o requerimento contenha com precisão os factos concretos que se espera ver suficientemente indiciados e a concreta incriminação que se imputa a um concreto arguido, com os respectivos elementos material e subjectivo – uma instrução sem delimitação factual precisa esbarraria na inevitável previsão do art.º 303º e 309º, nº 1 do CPP, já que não cabe ao juiz de instrução o exercício da acção penal, mas, unicamente proceder nos termos previstos no art.º 286º, sendo que os actos a praticar previstos no art.º 290º, reconduzem-se à finalidade específica prevista no primeiro dos preceitos citados.
Com efeito, não é em fase de instrução que tais factos devem ser recolhidos ou procurados, em face da finalidade específica reservada a esta fase processual pelo art.º 286º, nº 1, do CPP.
Questão idêntica foi detalhadamente debatida no Acórdão do STJ, de 12/03/2009, publicado em www.itij.pt.
Com efeito ai se refere que: “conhecido o paralelismo existente entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente na sequência dum despacho de arquivamento, conforme se reconheceu no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-05-2008 – proc.º 4551/07 e estatuindo o nº 2 do art.º 287º do Código de Processo Penal, que é aplicável ao requerimento do assistente para abertura de instrução o disposto no art.º 283º nº 3 als. b) e c), norma que diz respeito à acusação, atentemos nas situações que determinam a manifesta falta de fundamento da acusação, com vista a aquilatar da possibilidade da sua aplicação ao requerimento para abertura da instrução.
De harmonia com o art.º 311º nº 3, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.
É evidente que se o requerimento para abertura de instrução não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será inexequível. E constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente que a requer deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis, elementos acerca dos quais o Prof. Germano Marques da Silva (op. cit,, pág. 145), refere: “insiste-se que, tratando-se doe requerimento do assistente, é imprescindível que do requerimento conste sempre a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes e das disposições legais aplicáveis”.
A propósito da alínea d) do art.º 311º nº 3, escreve o Prof. Germano Marques da Silva: “Também esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”. Pode, portanto, afirmar-se, fazendo uso das palavras do Conselheiro Maia Gonçalves (op. cit., pág. 667) que “acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios elementos, não tem condições de viabilidade” Ora, se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente nos seus precisos termos, conclui que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que aquele narra jamais constituirão crime, deverá rejeitar o requerimento do assistente. É que, num caso desses, o debate instrutório nenhuma utilidade poderia ter, nomeadamente, porque, tal como se decidiu no acórdão para fixação de jurisprudência nº 7/2005 (D.R. nº 212 – S-A de 4-11¬2005) “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Também o Tribunal Constitucional afirma, no acórdão nº 385/2004, de 19 de Maio de 2004, que “a estrutura acusatória do processo penal .... Impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão adequados em determinados momentos processuais, ente os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução”.
Quando assim suceder, quando pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, então estaremos face a uma fase instrutória inútil. Ou, conforme se refere no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência, “uma instrução que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia do arguido titularia um acto inútil que a lei não poderia admitir (art.º 137º do CPP)”. O que significa que, a par de outros fundamentos da rejeição, que se reconduzem também a realidades de que deriva a inutilidade da instrução, se deva ter a instrução como legalmente inadmissível.
Também a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (ac. do STJ, de 22-10-2003 – proc.º 2608/03-3), entendendo ser de “rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura e instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito ... e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime” (ac. de 22-03-2006 – proc.º 357/05-3 e de 07-05-2008, proc.º 4551/07-3) E, mais especificamente, o acórdão de 7-12-1005 – proc.º 1008/05, que o aqui relator subscreveu como adjunto, onde foi decidido, com um voto de vencido, que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art.º 308.º do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.º do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art.º 287º”.
Também os tribunais da Relação vêm decidindo que a falta de indicação de factos que preencham os elementos típicos do crime produz uma situação de inadmissibilidade legal da instrução. Nesse sentido, cfr, entre outros, os acs. da Rel. de Lisboa de 03-10-2001 – p. 1293/00, de 18-03-2003 – p. 77635; de 30-03-2004 – p. 8701/03; de 30-05-2006 – p. 1111/06; da Rel. do Porto de 15-12-2004 – p. 3660/03; de 01-03-2006 – p. 5577/05; de 21¬06-2003 – p. 1176/06; e da Rel. de Coimbra de 23-04-2008 – p. 988/05.8TAACN
Tudo quanto se deixou exposto permite concluir que a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.”
Como se referiu, a leitura do presente requerimento para abertura de instrução revela ser manifesto que não poderá ser imputado qualquer crime a um agente determinado.
Pelo exposto, por inadmissibilidade legal por falta de objecto, rejeito o presente requerimento para abertura de instrução e determino o imediato arquivamento dos autos.
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Cumprimento do dever de narração dos factos objectivos e subjectivos do crime
Nos termos do art.º 287º nº 2 do Código de Processo Penal, embora o requerimento de abertura de instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, no caso de arquivamento pelo Ministério Público, “deve conter”, para além da indicação probatória (“dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros”):
 Em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação;
 Sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º, ou seja, é imposta, sob pena de nulidade “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Existe uma simetria entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento e, por isso, esse requerimento deve conter substancialmente uma acusação, o que importa a identificação do arguido, a narração dos factos, a indicação das disposições legais, a indicação das provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o art.º 283º nº 3 do Código de Processo Penal .
Sendo o requerimento de abertura de instrução a manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento, e sendo o escopo da fase de instrução o controlo da acusação (deduzida pelo Ministério Público e/ou pelo assistente), essa comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido e que constitui crime, pois a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação), terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.
Assim, a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público para acusar e, essa exigência de rigor na delimitação do objecto do processo impõe-se por ser uma concretização das garantias de defesa do arguido. Por outro lado, essa exigência processual não traduz nenhuma limitação ao direito de acesso aos tribunais, mas apenas a regulamentação desse direito pela imposição de deveres processuais de tramitação do processo.
A acusação que deve ser formulada no requerimento de abertura de instrução tem de constituir uma peça com desenvolvimento factual lógico, onde estão descritos factos bem individualizados, que permitam compreender a existência dos elementos objectivos e subjectivos do tipo.
Importa salientar que a questão não se prende apenas com um maior ou menor aprumo técnico e não pode ser suprida oficiosamente pelo tribunal de instrução. Efectivamente, a inobservância do disposto na al. b) do nº 3 do art.º 283º do Código de Processo Penal no requerimento de abertura de instrução prende-se com o respeito de princípios básicos do processo penal, como sejam o princípio do acusatório e da vinculação temática, na medida em que é a acusação que define e fixa o objecto do processo e delimita os poderes de cognição do tribunal e com as garantias de defesa do arguido que tem o direito de conhecer, na sua real dimensão, os factos que lhe são imputados .
In casu, vejamos o que consta da acusação constante do requerimento de abertura de instrução:
…os arguidos JS, LS e CS, devem ser pronunciados e acusados, porquanto:
1. No âmbito da insolvência dos assistentes, a Sociedade “L, Lda.” ficou encarregue de promover a venda do imóvel sito na Rua das Forças Armadas, n.º 1, Gradil, Mafra.
2. Desde que ficaram encarregues de promover a venda que os arguidos, donos e colaboradores da Sociedade, demonstraram desagrado com o usufruto previamente constituído a favor da filha dos assistentes, ACS.
3. Os arguidos deslocavam-se várias vezes ao imóvel com intenção de o mostrarem a potenciais compradores.
4. Contudo, no dia 16.08.2017, os arguidos deslocaram-se ao imóvel com uma intenção diversa, sem que os assistentes tivessem inicialmente perceção dos desígnios dos arguidos.
5. Nesta data, os arguidos fizeram-se acompanhar de ciganos e prostitutas.
6. Quando se aperceberam que as pessoas que os arguidos não se faziam acompanhar de potenciais compradores, os assistentes ofereceram resistência, sem efeito.
7. A mando dos arguidos, os ciganos e prostitutas para além de entrarem na habitação, usufruíram da mesma deitando-se nos quartos, conversando na sala e comendo na cozinha.
8. Os assistentes tentaram, por várias vezes, apelar a que os arguidos e as pessoas que os acompanhavam, saíssem do imóvel, logrando frustradas todas as suas tentativas.
9. Desesperados e querendo que os arguidos e as pessoas estavam a usufruir da sua habitação saíssem, os assistentes disseram que iriam chamar as autoridades.
10. Apenas quando os arguidos pensaram que as autoridades estavam a chegar saíram da habitação dos assistentes.
11. Os arguidos agiram cientes que a sua conduta consubstanciaria um ilícito criminal de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, previsto e punido pelo artigo 190.º, do Código Penal.
12. Em meados de outubro de 2017, os assistentes deslocaram-se ao Cemitério, sito em Gradil, Malveira, Mafra, tendo nesse dia sido interpelados pelos arguidos.
13. A assistente foi atacada pelo arguido CS que a agarrou brusca e violentamente pelos ombros e em torno do pescoço.
14. Ato contínuo sacudiu-a e projetou-a para trás, tendo a assistente embatido num carro, o que evitou que esta caísse ao chão, proferindo por várias vezes as palavras “deixa a casa”.
15. Em simultâneo o assistente estava a ser atacado pelo filho do arguido JS.
16. Para o efeito, socou-o na barriga, por várias vezes.
17. Ato contínuo, agarrou o assistente pelo pescoço e, com os seus braços, fez-lhe uma gravata, ou seja, abordou o assistente pelas costas e, sem o mesmo poder ver ou defender-se abraçou e apertou o pescoço do assistente ao mesmo tempo que lhe sussurrava “vou matar-te se não sais de casa”.
18. Estas condutas consubstanciam a prática dos crimes de coação e coação agravada, previstos e punidos pelos artigos 154.º e 155.º, ambos do Código Penal.
19. Os assistentes tinham na sua habitação um cheque em branco assinado pela filha ACS.
20. O assistente foi coagido pelos arguidos a preencher o cheque com o valor de € 71.561,00.
21. O cheque foi entregue pelos arguidos para pagamento.
22. Tendo conhecimento da apresentação do cheque, a titular da conta, ACS, comunicou ao banco Santander Totta o extravio do mesmo, tendo o mesmo sido devolvido na compensação do Banco de Portugal.
23. A conduta dos arguidos é passível de integração no crime de coação, previsto e punido pelo artigo 154.º, do Código Penal.
24. Em todas as suas condutas, os arguidos agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
25. No entanto não se coibiram da prática de tais condutas, pelo que incorreram os arguidos JAS, LMS e CS, na prática dos crimes de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, coação e coação agravada, previstos e punidos pelos artigos 190.º, 154.º e 155.º, n.º 1, a), do Código Penal, respetivamente.
Analisado o requerimento de abertura de instrução, constata-se que os Recorrentes apenas imputam aos arguidos os crimes de violação de domicílio p. e p. pelo art.º 190º do CP e de coacção agravada p. e p. pelos art.ºs 154º e 155º nº 1 al. a) do CP, não pretendendo a pronúncia dos arguidos pelos restantes crimes pelos quais o Ministério Público arquivou o inquérito.
Os elementos objectivos do crime de violação de domicílio, na modalidade de permanência depois de intimidação para se retirar estão traçados no tempo, no espaço e nos seus contornos concretos de forma suficientemente perceptível nos artigos 1º a 11º da parte acusatória do RAI. É certo que, como nota o MMº Juiz a quo, a referência a “ciganos e prostitutas” parece totalmente descabida e desnecessária, porém, não afasta o facto (na versão dos assistentes) suficientemente narrado de que os arguidos e terceiros cuja identidade se desconhece permaneceram na casa dos assistentes, usando-a como se fosse sua, mesmo depois de intimados a sair. O dolo genérico aparece suficientemente plasmado no art.º 24º e o dolo específico, a intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa também resulta da alusão a uma intenção diversa (art.º 4º) concomitantemente com a narração da conduta imputada.
Os elementos objectivos do crime de coacção também resultam de forma suficientemente perceptível dos artigos 12º a 17º da parte acusatória do RAI, configurando já a imputação objectiva do crime de coacção de uma forma autónoma. É certo que, como resulta do despacho recorrido, se poderia configurar também a prática de crimes de ofensa à integridade física, porém, os assistentes não o fazem e compreenderam as agressões como meio de concretização das ameaças de morte se não saírem de casa, mas não exclui a tipicidade do crime de coacção. Já nos art.ºs 18º a 22º não se concretizam os actos em que se concretizou a coacção, nem o momento desse episódio, mas essa circunstância não afecta a factualidade descrita nos factos 12º a 17º. O dolo genérico está suficientemente definido no art.º 24º, como reconhece o MP na sua resposta, sendo admissível considerar que não é exigível o dolo específico neste crime (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pg. 359, Coimbra Editora, 1999).
Assim, está exposta de forma suficientemente clara a factualidade objectiva e subjectiva que permite a imputação dos factos aos arguidos, com narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena aos arguidos e com as circunstâncias de lugar, tempo, motivação, como imposto pelo art.º 283º nº 3 al. b) do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 287º nº 2 do mesmo diploma.
Consequentemente, deveria o tribunal a quo ter admitido a realização da fase instrutória.
Questão diversa é a existência de indícios da prática dos aludidos crimes que deverá ser apreciada no decurso da fase instrutória.  
Consequentemente, o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que ordene a abertura da instrução, seguindo-se os termos subsequentes

III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelos assistentes JMS e ACF, revogando a decisão recorrida, que deverá ser substituído por outra que determine a abertura da fase instrutória. 
Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2023
Jorge Raposo
Ana Paramés
Ana Guerreiro da Silva