Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RUI POÇAS | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA VITIMA RELATO INDÍCIOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/07/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I – Investigando-se factos que poderiam integrar a prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, do qual não existem testemunhas com conhecimento direto ou outra prova material, o relato da vítima é de primordial importância, não existindo qualquer impedimento a que o mesmo seja suficiente para fundar um juízo de indiciação ou mesmo a condenação do arguido. II - Porque assim é, importa fazer um juízo ponderado da consistência do próprio relato à luz das circunstâncias concretas do caso e de todos os elementos de prova recolhidos, por forma a aferir a verosimilhança ou credibilidade do mesmo. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa RELATÓRIO No âmbito da Instrução supra identificada, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal do Funchal, Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, na sequência de despacho de não pronúncia proferido pela Mma. Juiz de Instrução, veio a assistente AA interpor recurso com vista a que seja alterada a decisão instrutória no sentido de pronunciar o arguido BB pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal. Para tanto, formula as seguintes conclusões: «1.ª - O presente recurso vem interposto do douto despacho de não pronúncia no qual o Tribunal a quo entendeu que, da prova produzida, não se encontram reunidos os indícios suficientes para concluir pela possibilidade de ao Arguido vir a ser aplicada uma pena. 2.ª – A verificação dos indícios suficientes, prevista no n.º 2 do artigo 283.º do CPP, por aplicação ex vi do n.º 2 do artigo 308.º do CPP, não exige uma comprovação categórica e sem dúvida razoável, tal como ocorre na fase de julgamento, sob pena de violação do princípio in dubio pro reo. 3.ª – De facto, na fase de instrução, os indícios são suficientes quando a partir deles é possível sustentar a convicção da maior probabilidade de futura condenação do arguido do que a sua absolvição. 4.ª – Nos presentes autos, a douta decisão considerou, em síntese, o seguinte: I – Que existe um intenso conflito entre os progenitores relativamente ao exercício das responsabilidades parentais do aqui Ofendido; II – Que a Assistente, ora Recorrente, impediu que a perícia junta aos autos tivesse em conta o contraditório exercido pelo Arguido, aqui Recorrido; III – Que do relatório pericial, elaborado no âmbito do processo n.º 1416/10.0TMLSB-E, é admitida a possibilidade de contaminação do depoimento do Ofendido no que concerne à existência de crime sexual; IV – Que o depoimento do Ofendido contém elementos que não permitem concluir pela existência de indícios suficientes da prática do crime. 5.ª – Ora, o Tribunal a quo, embora ressalve que o conflito existente entre os progenitores do aqui Ofendido quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais escapa ao crivo daquele Tribunal, nem por isso abdicou de sobrevalorizar essa circunstância na ponderação que fez, e em detrimento do depoimento prestado pela criança. 6.ª – De facto, as declarações do Ofendido merecem credibilidade, porquanto num discurso espontâneo, relatou os factos praticados, tendo apontando, com precisão, as circunstâncias de modo (“Era, ele para mexer na pilinha dele o papá.; “É tipo com dois dedos fazer assim.”), tempo (mencionando que os factos aconteciam sempre que passava o fim de semana com o progenitor, bem como à quarta-feira, mais referindo que a última vez “foi para aí em setembro”) e de lugar (“Casa de banho”) da prática dos mesmos. 7.ª – Para além disto, dos Relatórios das Perícias Médico-Legais de Pedopsiquiatria e de Psicologia Forense, juntos aos autos, resulta inequívoca a veracidade do relato do Ofendido quanto aos factos imputados ao Arguido e que são passíveis de configurar a prática de um crime de abuso sexual de crianças. 8.ª – Ainda com particular relevância, é de evidenciar o desenho do Ofendido, e constante do Relatório da Perícia Médico-Legal de Pedopsiquiatria Forense, o qual corresponde a “2 figuras humanas, uma maior com um falo (o pai) e outra mais pequena (o filho) que tem uma projeção no braço em direção ao falo. Refere que é o pénis do pai.” 9.ª – Ao que acresce também a caracterização que o Ofendido faz sobre como se sentia aquando da prática dos factos, referindo sentir-se “como um empregado”. 10.ª – Sendo que descrição tão específica e até visual não é suscetível de ser implantada, revelando-se, sim, um forte indicador do verdadeiro sentir desta criança resultante de uma experiência real. 11.ª - Não obstante, incompreensível e injustificadamente, a douta decisão parece atribuir maior peso ao pormenor da memória sensorial dos factos, tal como resulta do douto despacho, menosprezando, e reduzindo quase à insignificância, a credibilidade conferida ao discurso da criança por técnicos habilitados e certificados, bem como à memória visual que resultou na reprodução dos factos através de desenho. 12.ª – Mais a mais, e no tocante ao não consentimento da Assistente à realização da perícia para exercício do contraditório do Arguido, sempre se dirá que esta nada viria a acrescentar à prova, porquanto os quesitos formulados pelo Arguido já haviam sido respondidos na perícia realizada no âmbito do Processo de Promoção e Proteção que corre termos no Juízo de Família e Menores do Funchal (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, sob o processo número 1416/14.0TMLSB-E, pelo que serviria, unicamente, para fragilizar e adensar o sofrimento do Ofendido. 13.ª – Contrariamente ao invocado no douto despacho, a prova não é contraditória. 14.ª – Dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC (...), DD (...) e EE (...), os quais não merecem qualquer censura, resulta, de forma idêntica e perentória, a verificação das alterações ao comportamento do aqui Ofendido antes e depois de deixar de conviver com o progenitor, aqui Recorrido. 15.ª – Durante os períodos de convívio com o progenitor, ora Recorrido, as testemunhas relatam que o Ofendido mostrava-se tenso, cabisbaixo e choroso, sendo que, e após suspensão dos ditos convívios, o Ofendido passou a estar mais alegre e bem-disposto, leve, e com um sentido de humor muito característico, circunstância que, segundo as regras da experiência comum e do senso comum, ultrapassam a mera suspeita, configurando, verdadeiramente, um indício que não foi adequadamente valorado pelo Tribunal a quo. 16.ª – Para além disto, a necessidade de acompanhamento Pedopsiquiátrico a que se encontra sujeito o Ofendido desde a denúncia dos factos, bem como a Declaração médica no sentido da dispensa de todo e qualquer contacto presencial com o progenitor, constituem forte indícios da correlação existente entre o relato do Ofendido e crime imputado ao Arguido e que permitem concluir pela probabilidade de aplicação de uma pena em sede de julgamento. 17.ª - Assim sendo, da prova testemunhal produzida, do conteúdo dos relatórios médicos a asseverar a credibilidade do relato do Ofendido, bem como da necessidade do acompanhamento pedopsiquiátrico desta criança, é por demais evidente que o Tribunal a quo não ponderou devidamente a prova produzida, porquanto estão, verdadeiramente, reunidos os indícios suficientes para concluir pela probabilidade de ao Arguido ser aplicada uma pena». * A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, para o que formulou as seguintes conclusões: «1. Na sua motivação, a MMa. JIC demonstrou ter feito uma correta aplicação das regras de interpretação e valoração da prova, devidamente fundamentada e alicerçada nos meios de prova carreados para os autos, de acordo com um raciocínio lógico e coerente. 2. A MMa. JIC a quo indicou as provas que serviram para formar a sua convicção, não sendo nenhuma delas proibida por lei, cuja apreciação foi feita segundo as regras da experiência comum e a sua convicção. 3. As testemunhas indicadas, para além do FF, não têm conhecimento direto dos factos. 4. A MMa. JIC, que tomou as declarações para memória futura ao menor, teve dúvidas acerca da veracidade do relato, uma vez que aquele não tinha memória sensorial e bem assim porque o seu relato não foi espontâneo e não conseguiu responder a questões colocadas em alternativa. 5. É evidente que o Tribunal deve valorar o depoimento do FF (único que tem conhecimento direto dos factos), à luz do contexto familiar, mormente do conflito existente entre os pais, quanto às responsabilidades parentais deste. 6. Quantos aos relatórios periciais, e como bem referiu a Mma. JIC os mesmos são contraditórios: num indica-se que o relato da criança “é credível e configura a existência de uma experiência verídica” noutro, admite-se a possibilidade de contaminação do depoimento do ofendido no que concerne à existência de crime sexual. 7. Destarte, salvo o devido respeito por melhor opinião, a decisão instrutória não merece qualquer reparo». * O arguido respondeu igualmente, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso, para o que apresentou as seguintes conclusões: «A. Tendo em conta que são as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e que a Assistente refere expressamente que recorre nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 412.º CPP, esta não especifica se recorre de direito ou de facto. B. Ainda assim, se recorresse do art.º 412.º, n.º 1, sempre teria de identificar quais as normas que concretamente teriam sido violadas, o que sempre exigiria uma apreciação crítica do âmbito das mesmas – o que não ocorreu. C. Em rigor, o que pretende é recorrer da matéria da prova que levou à decisão do tribunal não existirem indícios suficientes, art.º 412.º, n.º 3. D. Com efeito, não identifica especificadamente, de um lado, o que considera incorrectamente julgado, nem indica quais os elementos de prova que, em seu entender, impunham decisão diversa. E. Em ponto 4 da conclusão das alegações limita-se a enunciar o sumário da decisão recorrida, mas não, objectivamente, quais os pontos concretos que considera incorrectamente julgados. F. A Assistente limita-se a tecer apreciações e considerandos, sem se ater objectiva e concretamente a quaisquer factos ou pontos objectivos. G. Em ponto 6 das conclusões tenta desmerecer a apreciação do tribunal sobre o conflito parental que se adensa desde 2014, mas ao qual volta para sustentar que o FF necessita de acompanhamento pedopsiquiátrico por causa da alegada vitimação, quando, beneficia de tal acompanhamento desde 2018, devido ao conflito parental. H. Omite deliberadamente o processo n.º 293/14.6XCLSB, que veio a declarar o requerido pai inocente por sentença de 01.12.2015, «…a assistente prestou declarações. Fê-lo de forma detalhada e emotiva, (…).No entanto, da verificação desse facto não resulta que se tenha aceitado como verdadeiro tudo aquilo que relatou. Desde logo porque parte das suas declarações não são compagináveis com a demais prova recolhida nos autos…»; «…importa ter em atenção que tendo a assistente afirmado ao tribunal que foi vítima de violência sexual (com penetrações forçadas) várias vezes, não exista um único relatório médico nesse sentido…». I. Bem como, o Acórdão de Dupla Conforme de Absolvição negando provimento ao recurso, por Acórdão de 22.06.2016 «…relativamente às declarações da assistente, conforme refere o tribunal recorrido, parte delas não encontrou qualquer suporte probatório, como sejam o controle do arguido sobre a sua vida, o ciúme doentio, as agressões físicas e sexuais ou a privação de alimentos…». J. Pouco tempo depois, o processo n.º 5525/16.3T8FNC, com requerimento em 22.09.2016, imputando ao requerido pai a prática de abusos sexuais sobre o filho com teor em tudo semelhante ao presente de 2021. K. Em ponto 6 das conclusões das alegações, a Assistente refere o relato da criança afirmando a sua credibilidade, escudando-se em relatórios cujas passagens não refere, mas que não favorecem, inclusive omite o facto de o douto tribunal ter desconsiderado uma das perícias por ausência de colaboração da Assistente que impediu que a criança fosse avaliada. L. Omite a avaliação pericial aceite pelo tribunal, que refere a exposição a uma imagem diabolizada do pai pela mãe, a instrumentalização das verbalizações da criança «a mãe já lhe tinha contado sobre discussões que ocorreram entre ela e o pai antes de ele ter nascido», p. 6; « considera que o pai poderia fazer mal à mãe. Questionado do motivo pelo qual pensa dessa forma disse que "porque ele bate". Questionado disse que o pai já lhe bateu, mas que não se lembra quando, nem de que forma, nem como», p.7. M. Refere o Relatório INML da mãe que esta procura na criança uma relação de exclusividade com exclusão da figura paterna e ausência de capacidade de mudança da conduta materna. N. Quanto ao alegado relatório da pedopsiquiatra do FF sequer o mesmo foi admitido em sede de Instrução, bem como as testemunhas arroladas pela Assistente nada acrescentaram, dado que nada sabem. O. A Assistente, não concretiza quais os elementos probatórios que impunham decisão diversa da tomada pelo douto tribunal a quo; não procede a qualquer apreciação ou análise critica da prova, omite deliberadamente pontos e elementos probatórios relevantes». * Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pela procedência do recurso. * Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta. * Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. OBJETO DO RECURSO De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19/10/1995 (D.R., série I-A, de 28/12/1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. A questão a resolver consiste em verificar se os indícios apurados em sede de inquérito e de instrução deveriam conduzir a que o arguido fosse pronunciado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, nos termos dos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. FUNDAMENTAÇÃO A decisão instrutória proferida nos autos tem o seguinte teor: «(…) A assistente imputa ao arguido a prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Conforme resulta do despacho de arquivamento proferido, o mesmo tem como fundamento a impossibilidade de corroborar o depoimento do ofendido e as circunstâncias em que este é prestado e avaliado. Os crimes sexuais são de prova particularmente difícil, tanto mais que, na maior parte dos casos existe apenas o depoimento da vítima a dar conta dos factos e relatos indirectos. No caso de crimes sexuais contra crianças e adolescentes essa prova é ainda mais dificultada pela circunstância de estes, movidos por sentimentos de vergonha ou inadequação, apenas relatarem os factos perante os seus pares ou perante adultos com os quais mantenham relação de confiança, muitas vezes após longos períodos. Esta dificuldade de prova não equivale à sua impossibilidade, mas depende quase sempre daquele relato da vítima, sobretudo na ausência de prova física. No caso dos autos, não nos merece reparo a avaliação da prova produzida efectuada pelo Ministério Publico e cujo teor dou por reproduzida, nem a prova produzida em sede de instrução teve a virtualidade de afastar as contradições verificadas. Na verdade, não é de presumir que as crianças mentem e inventam relatos de factos com a gravidade como os dos autos, mas não deve ser desvalorizado o contexto em que os depoimentos são prestados e que o relato é produzido ou reproduzido. Não sendo exigível, dada a natureza dos factos, que os depoimentos sejam absolutamente precisos no que respeita às circunstâncias de tempo em que os mesmos ocorreram, a verdade é que a imputação do crime deve basear-se na análise global da prova. No caso dos autos, o único relato directo é o do ofendido, não se afigurando ser de valorizar na sua análise, quer o prestado pela agora assistente, quer pelo arguido. Dos documentos juntos aos autos resulta um intenso conflito entre os progenitores relativamente à guarda e convívios do FF com o pai, cujos contornos escapam a estes autos, mas que aconselham a que estes elementos probatórios sejam fundamento para credibilizar ou não o relato da criança. Por outro lado, se é certo que o relatório pericial elaborado nestes autos indica que o relato da criança “é credível e configura a existência de uma experiência verídica”, a verdade é que a assistente impediu que esta perícia tivesse em conta o contraditório exercido pelo arguido, na medida em que não consentiu na avaliação da criança para esse efeito, impossibilitando a Sra. Perita de responder aos esclarecimentos que lhe foram pedidos. Por outro lado, do mesmo modo que a assistente pretende que seja valorada a apreciação do âmbito do processo relativo à prática do crime de violência doméstica – do qual o arguido foi absolvido – para o retratar como manipulador e incapaz de reconhecer os seus actos, também consta dos autos o relatório de pericial elaborado no âmbito do Processo n.º 1416/14.0TMLSB-E (cfr. fls. 228) que admite a possibilidade de contaminação do depoimento no que respeita à existência de “crime sexual” e que descreve a miúde as preocupações do FF relativamente ao pai, que não relacionadas com esta temática. Em suma, quer a nível testemunhal, quer a nível pericial a prova é contraditória e permite afirmar a existência de suspeitas, mas não de indícios suficientes. Resta-nos, pois, o depoimento prestado pelo FF em sede de declarações para memória futura. Relativamente ao este, a verdade é que independentemente da crença do FF de que os factos terão ocorridos, o seu depoimento contém elementos que não permitem considerar que do mesmo resulte a existência dos mencionados indícios, não porque relatou primeiro à mãe ou à directora da escola, ou por falta de concreta concretização de datas ou locais da prática dos factos. A criança não tem memória sensorial dos factos reagindo com até com estranheza quando lhe foi perguntado o que acontecia ao órgão genital do pai quando lhe mexia, ou seja, espontaneamente, o FF relata o abuso sexual – o pai pede para mexer na pilinha com os dedos em tesoura - mas este relato não é acompanhado do conhecimento que é mais dificilmente induzido – a sensação de o fazer. Acresce que se verifica que o FF reage directamente à pergunta que lhe é feita, ou seja, sendo a pergunta feita em alternativa, o FF não opta pelo que de facto ocorreu, mas sendo deliberadamente orientado no sentido da resposta, o FF reage à espectativa de quem pergunta (veja-se neste sentido o que lhe foi perguntado a propósito de se tratar de um segredo). Estas circunstância, pese embora seja seguro que a criança não relata factos inverídicos deliberadamente, não permitem atribuir credibilidade ao depoimento prestado. Muito embora na fase de instrução não se exija mais que a existência de indícios suficientes, o depoimento do FF é aquele que valerá em julgamento, sem a imediação que agora existiu – o depoimento foi prestado em inquérito perante a signatária – e é a verdade é que com base neste depoimento não se vislumbra a possibilidade de uma condenação. Considero assim que os elementos probatórios recolhidos não permitem concluir pela existência de indícios da prática pelo arguido de concretos factos pelos quais possa ser submetido a julgamento. Em suma, a prova recolhida, não permite concluir pela possibilidade de, ao arguido, vir a ser aplicada uma pena. Assim sendo e ao abrigo do disposto nos art.º 283.º n.º 2, 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, decido não pronunciar o arguido BB pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal que lhe imputa a assistente». * De acordo com o disposto no art. 286.º, n.º 1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Por sua vez, o art. 308.º, n.º 1 do CPP dispõe que «se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia». Nos termos do art. 283.º, n.º 2 do mesmo Diploma, «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança». Quanto ao que se deve entender por indícios suficientes, ensina Figueiredo Dias que «os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição» (cfr. Direito Processual Penal, I, 1984, p. 133). Como se refere no Ac. STJ de 19/06/2024 (Proc. n.º 15/22.8TRLSB.S2 em www.dgsi.pt) «no que respeita ao despacho de pronúncia, ele só é possível quando, muito embora não se dê por demonstrada a realidade dos factos, se encontre uma convicção de que é mais provável que determinado agente tenha cometido o crime imputado e de que, submetido a julgamento, exista maior probabilidade de condenação, do que da sua absolvição (…) o juízo de pronúncia não se consubstancia na certeza judiciária da verificação dos factos, com a consequente condenação de determinado agente, mas antes num juízo de prognose favorável de que tal condenação virá, muito provavelmente, a ocorrer após a realização de julgamento (…) ». «Só se mostra justificável sujeitar alguém a julgamento sempre e quando os vestígios colhidos durante um inquérito (e também na instrução), vistos numa perspetiva isenta / equidistante / desapaixonada indiquem que a serem aqueles confirmados em juízo, o arguido estará mais perto de uma condenação do que da absolvição» (Ac. STJ 09/07/2025, proc. n.º 4/19.0YGLSB.S1em www.dgsi.pt). Tendo presentes estas noções, importa apreciar o caso dos autos. A assistente imputa ao arguido a prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pessoa do seu filho FF, nascido em .../.../2013. Em concreto, é a seguinte a factualidade imputada pela assistente ao arguido no requerimento de abertura de instrução: «81 - Tendo o Arguido solicitado, por várias vezes e em momentos diferentes sempre no interior da sua residência, ao Ofendido para "mexer na sua pilinha", tendo o ofendido esclarecido que "o fazia com os dois dedos, como se fosse uma tesoura" e com "movimentos laterais" que exemplificou com uma fita métrica aquando a perícia de psicologia forense, tais atos integram e perfectibilizam o conceito legal de ato sexual de relevo, ínsito no n.º 1 do artigo 171.º do Código Penal, com a agravação implícita na alínea a) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal, pelo Ofendido ser descendente do Arguido, incorrendo este último na pratica do crime de abuso sexual de crianças agravado. 82 - O Arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime». A primeira nota a fazer perante esta descrição é que a narração dos factos constante do requerimento de abertura de instrução, que delimita o objeto desta última, é muito exígua. A ação típica está descrita de forma muito sucinta, não estando minimamente delimitada no tempo, nem sequer por referência a um intervalo entre datas relevantes, ou mesmo através da simples indicação do ano ou anos em que tais factos teriam ocorrido, sendo certo que tais indicações poderiam (e deveriam) constar do requerimento de abertura de instrução, nos termos dos arts. 297.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, al. b] do CPP). Não obstante, tendo a instrução sido admitida, concluindo-se pela insuficiência dos indícios, é nesse plano que se procede à apreciação do recurso. O inquérito teve início com uma comunicação da CPCJ do Funchal, na sequência do relato pelo ofendido à diretora da escola que frequentava de atos que poderiam configurar a prática daquele crime, por parte do pai deste último. Foram realizadas as seguintes diligências em inquérito: - Inquirição como testemunhas de CC, diretora da ..., à época frequentada pelo ofendido; e AA, mãe do ofendido (ora assistente); - Tomada de declarações para memória futura ao ofendido; - Interrogatório ao arguido; - Exame de pedopsiquiatria forense ao ofendido com o objetivo de recolher elementos sobre a sua personalidade e aferir da credibilidade das declarações por si prestadas. É de referir que foram solicitados esclarecimentos a esta perícia por parte da Digna Procuradora da República, na sequência de requerimento do arguido, mas não foi possível obtê-los, por recusa de autorização da ora assistente. Foram ainda juntos: - Relatório de perícia médico-legal de psicologia forense relativo ao ofendido; - Relatório de perícia médico-legal de psicologia forense relativo ao arguido; - Relatório de perícia médico-legal de psicologia forense relativo a AA; - Relatório Social (fls. 220-226); - Relatório Social de avaliação diagnóstica (fls. 392-397); - Cópias das decisões de absolvição proferidas no âmbito do processo crime n.º 293/14.6XCLSB, em que foi imputado ao arguido a prática de um crime de violência doméstica. O Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito, considerando não terem sido recolhidos indícios suficientes da verificação dos crimes denunciados. Discordando desta decisão, a assistente requereu a abertura da instrução. As diligências instrutórias requeridas consistiram na inquirição das testemunhas CC, EE e DD. Foi também junto um relatório de avaliação de risco de violência doméstica referente ao arguido, datado de 19/12/2014. A decisão instrutória de não pronúncia corroborou o juízo de insuficiência dos indícios a que se havia chegado no inquérito. A prova essencial consiste nas declarações para memória futura do ofendido, tomadas perante a Mma. Juiz de Instrução, uma vez que não existem quaisquer testemunhas com conhecimento direto dos factos ou outra prova material, tendo o arguido negado na íntegra a factualidade imputada. Como se refere na decisão recorrida, os crimes sexuais são muitas vezes de prova difícil, particularmente quando cometidos contra crianças e adolescentes atenta a circunstância de estes, movidos por sentimentos de vergonha ou inadequação, apenas relatarem os factos perante os seus pares ou perante adultos com os quais mantenham relação de confiança, muitas vezes após longos períodos. Deste modo, os relatos das vítimas não devem ser desvalorizados, nem existe qualquer impedimento a que os mesmos sejam suficientes para fundar um juízo de indiciação ou condenação do arguido, estando a sua apreciação sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP). Porque assim é, também não se pode partir do princípio contrário, isto é, que todo e qualquer relato de abuso sexual corresponde necessariamente à realidade. Importa fazer um juízo ponderado da consistência do próprio relato à luz das circunstâncias concretas do caso e de todos os elementos de prova recolhidos, por forma a aferir a verosimilhança ou credibilidade do mesmo. Foi isso que foi feito no despacho sob recurso. Com efeito, conforme se refere no dito despacho, é patente a existência de um intenso conflito entre os progenitores relativamente à guarda e convívios do menor com o pai, ora arguido, o que deve ser tido em conta na forma como o menor reage e percebe a presença paterna. Não existe aqui uma sobrevalorização desse conflito em detrimento do depoimento prestado pelo ofendido, mas apenas uma ponderação desse depoimento enquadrado por esse conflito, que é sentido pelo menor. Por outro lado, a perícia de pedopsiquiatria forense ao ofendido, pese embora indique certos parâmetros que inculcam que o seu relato é credível, ficou de certo modo incompleta, ao não terem sido obtidos os esclarecimentos pedidos pelo Ministério Público, na sequência do contraditório exercido pelo arguido, por não ter sido autorizada pela assistente a avaliação do ofendido para esse efeito. Acresce que resulta também do relatório pericial de psicologia forense relativo ao ofendido, elaborado no âmbito do Processo n.º 1416/14.0TMLSB-E, no qual se suscitou o relato de factos idênticos aos ora investigados, a possibilidade de contaminação das declarações do menor quanto à verificação destes factos. Deste modo, a prova pericial é contraditória, não permitindo só por si sustentar um juízo de suficiência dos indícios. Resta a apreciação das declarações para memória futura do ofendido tomadas perante a Mma. Juiz a quo, escalpelizadas pela mesma da seguinte forma: «(…) independentemente da crença do FF de que os factos terão ocorrido, o seu depoimento contém elementos que não permitem considerar que do mesmo resulte a existência dos mencionados indícios, não porque relatou primeiro à mãe ou à directora da escola, ou por falta de concreta concretização de datas ou locais da prática dos factos. A criança não tem memória sensorial dos factos reagindo com até com estranheza quando lhe foi perguntado o que acontecia ao órgão genital do pai quando lhe mexia, ou seja, espontaneamente, o FF relata o abuso sexual – o pai pede para mexer na pilinha com os dedos em tesoura - mas este relato não é acompanhado do conhecimento que é mais dificilmente induzido – a sensação de o fazer. Acresce que se verifica que o FF reage diretamente à pergunta que lhe é feita, ou seja, sendo a pergunta feita em alternativa, o FF não opta pelo que de facto ocorreu, mas sendo deliberadamente orientado no sentido da resposta, o FF reage à espectativa de quem pergunta (veja-se neste sentido o que lhe foi perguntado a propósito de se tratar de um segredo). Estas circunstância, pese embora seja seguro que a criança não relata factos inverídicos deliberadamente, não permitem atribuir credibilidade ao depoimento prestado». Não se vê razões para discordar da apreciação feita pela Mma. Juiz a quo, reforçada até pela imediação que resulta do contacto direto com o ofendido na diligência de declarações para memória futura. O relato dos factos é muito escasso, não tem qualquer detalhe consistente com a ação descrita que inculque que o mesmo corresponde a uma realidade vivida, mesmo que numa linguagem necessariamente simples e correspondente à idade do ofendido. Em suma, ponderadas as diligências e elementos recolhidos em inquérito e durante a instrução, não existem indícios suficientes da verificação dos factos imputados ao arguido, que permitam concluir que é mais provável a condenação que a absolvição. O recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida. Decisão Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pela assistente, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça. Lisboa, 07/10/2025 Rui Poças Alda Tomé Casimiro Ana Lúcia Gordinho |