Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7325/20.7YIPRT.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: FORNECIMENTO DE ÁGUA
FACTURA
COBRANÇA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual, conferindo-lhes o primeiro competência para todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial e o segundo, competência para todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial.

II– Nos termos do estatuído no artigo 212º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais o factor atributivo da competência aos tribunais administrativos radica n existência de uma relação jurídica administrativa, que pressupõe sempre a intervenção da Administração Pública investida no seu poder de autoridade (jus imperium), isto é, o exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público.

III– Quando o serviço público é atribuído a uma entidade privada do sector privado, estabelece-se uma relação de colaboração entre a Administração Pública (titular do serviço) e o gestor do serviço, dado que por meio da concessão dá-se uma delegação de serviços públicos comerciais e industriais a empresas privadas que executam o serviço em seu próprio nome e por sua conta e risco, mas submetendo-se à fiscalização e ao controlo por parte da Administração Pública.

IV– Uma empresa concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de saneamento de um município actua em substituição deste, pelo que se trata de uma entidade particular no exercício de um poder público e actuando com vista à realização de um interesse público, sendo o contrato de concessão um contrato administrativo.

V– O contrato celebrado entre o utente e o prestador de serviços não se encontra sujeito a um regime substantivo de direito público, sendo antes regulado pela Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26 de Julho) e pelo Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto, normas de direito privado, e a dívida de consumo de água não é uma dívida fiscal emergente de uma relação jurídica-tributária.

VI– Com a entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, por força da nova alínea e) do n.º 4 do artigo 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos e fiscais não têm competência para as acções que, como a presente, se destinem a apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO:

AdC - ÁGUAS DE CASCAIS, S. A., com domicílio à Estrada da Malveira da Serra, 1237, Aldeia de Juso, Cascais veio deduzir, em 20 de Janeiro de 2020, contra B, Parede requerimento de injunção, pedindo o pagamento da quantia global de € 485,34, incluindo a taxa de justiça suportada no montante de € 51,00, sendo € 274,95 o valor de capital não pago pelo réu respeitante ao fornecimento de água ao prédio supra identificado, alegando o seguinte:
1-A Requerente (Rte) e o Requerido (Rdo) celebraram o contrato n.º 2003020021900 (com Imp. Selo pago), por força do qual a primeira pode faturar ao segundo o serv. De fornecimento de água prestado pela Rte ao prédio da Rua ... ..., Nº... ..., na P..., correspondente à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão) instalado no mesmo prédio, ao abrigo do supra indicado contrato. Fornecida a água e verificada aquela diferença, foram emitidas e enviadas pela Rte as faturas infra ao Rdo, que estão vencidas e por pagar, desde as suas datas de vencimento:
N.º Doc. Data Emis. Data Venc. Valor EUR
201910662744 14-08-2019 06-09-2019 121,33
201910809940 04-10-2019 28-10-2019 153,62
2- O Rdo não pagou as faturas e entrou em mora (arts. 805º, nº2, a) e 806º, do CC) e sendo um crédito de empresa comercial, a Rte tem direito a juros de mora à taxa de 7% (Aviso n.º 8266/2014, de 16/07/2014, publicado no DR, 2ª Série, da Direção-Geral do Tesouro e Finanças), consoante os períodos de mora a que sejam aplicáveis, desde a data de venc. das faturas até integral pagamento.
3-O Rdo deve pagar à Rte 274,95 € de capital, 5,64 € de juros de mora vencidos calculados até 20/01/2020, juros vincendos até integral pagamento, 153,75 € (c/IVA) de despesas de cobrança, e o valor da taxa de justiça paga.”
Frustrada a notificação do réu, o procedimento de injunção foi remetido à distribuição (cf. Ref. Elect. 125330232 de 4 de Junho de 2020).
Por requerimento de 9 de Junho de 2020, a requerente juntou aos autos procuração forense, cópia do contrato e das facturas a que se reportam os autos e comprovativo do pagamento da taxa de justiça (cf. Ref. Elect. 16917750).
Inviabilizada a citação pessoal por carta registada com aviso de recepção (cf. Ref. Elect. 17197177), em 1 de Outubro de 2020 foi proferida decisão que julgou “verificada a excepção dilatória da incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, para preparar e proferir decisão nos presentes autos e, consequentemente, absolvo o R. da instância(cf. Ref. Elect. 126952124).
Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs o presente recurso de apelação, concluindo as respectivas alegações do seguinte modo:
a)-A ora Recorrente não concorda com a sentença recorrida, proferida pelo tribunal “a quo”;
b)-Uma vez que considera, que, subjacente à questão em controvérsia, nos autos, não há uma relação jurídica administrativo-tributária;
c)-Antes de mais, porque tendo sido definido pela Autora, ora Recorrente, o objecto do litígio suscitado nos autos, relacionado com a sua pretensão formulada, de pagamento pelo Réu, ora Recorrido, dos serviços de fornecimento de água efectuados pela primeira, enquanto prestador, ao segundo;
d)-Fornecimento de água, esse, traduzido em consumo constituído pela diferença entre o valor da medição por parte do contador totalizador e o valor da medição do conjunto dos contadores divisionários/diferenciais instalados no prédio do Réu, ora Recorrido;
e)-E portanto, estar-se perante um objecto do litígio emergente de relação de consumo relativa à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água) e respectiva cobrança coerciva;
f)-Referindo-se, assim, o objecto do litígio a relação contratual não atingida por uma regulação de direito público;
g)-Por se entender que a matéria de incumprimento de contrato de fornecimento de água não se insere numa relação jurídica administrativo-tributária;
h)-Antes resulta numa relação de direito privado, submetida aos Tribunais Comuns;
i)-Ainda que a entidade fornecedora seja uma entidade concessionária;
j)-Da análise da causa de pedir apresentada pela Autora, ora Recorrente, verifica-se que a situação de vida levada a juízo não se refere a uma relação especial do tipo Estado versus Cidadão, em que o primeiro esteja imbuído dos seus poderes de autoridade, mas antes a uma relação contratual estabelecida entre as partes, não sendo relevante a concessão aludida;
k)-De facto, em concreto, nos autos, não estamos perante matéria administrativo-tributária;
l)-Nos autos não se discutem poderes públicos da Autora, ora Recorrente;
m)-Bem como nos autos não se discute uma «questão fiscal»;
n)-Na verdade, o litígio dos autos não se situa no quadro ou no âmbito de relação jurídica administrativo-tributária;
o)-Visto que o litígio insere-se estritamente nas relações contratuais, de consumo, entre a Autora/Recorrente, prestadora dos serviços de abastecimento de água e o Réu/Recorrido, seu cliente, e utilizador;
p)-Nos autos, a Autora, ora Recorrente, na sua qualidade de empresa privada concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais, pede/exige o pagamento, não efectuado, pelo Réu, ora Recorrido, de quantia devida por fornecimento de água, a que estava obrigada, por força da relação contratual estabelecida;
q)-E ao abrigo da qual foi instalado contador totalizador (vulgo contador padrão) no prédio do Réu/Recorrido;
r)-Ora, atenta à matéria que está em causa, e o que a mesma Autora pretende obter do Réu, a competência para a sua discussão e julgamento reside nos tribunais comuns;
s)-Restringindo-se o litígio em causa à cobrança de um crédito por água fornecida e não paga à empresa concessionária do serviço municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais;
t)-Tem de se considerar processualmente correcto, por adequado, a distribuição dos autos nos tribunais comuns;
u)-Estando em causa a competência para conhecer matéria relativa à validade da relação contratual entre Autora e Réu e a sua execução e o seu cumprimento;
v)-Relação contratual consubstanciando uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado;
w)-Uma vez que a relação em causa não se destina a quaisquer fins de “interesse público”;
x)-A jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação são os tribunais comuns;
y)-Pelo que, deve considerar-se que o Juiz “a quo” fundou a sua decisão numa inexistente relação jurídica administrativa-tributária;
z)-Para além do mais, e acima de tudo, por via da 12.ª alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), levada a cabo pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, entrou em vigor, no passado dia 12 de Novembro de 2019, a (nova) alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do mesmo Estatuto, a qual estipula que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”;
aa)-Ora, no caso dos autos estamos perante um litígio emergente de relação de consumo atinente à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água), com base no previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (com respectivas alterações subsequentes) e respectiva cobrança coerciva (inicialmente através de injunção e subsequentemente, com carácter judicial);
bb)-Por outro lado, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/10/2019 (portanto, proferido pouco tempo antes da entrada em vigor da supra indicada alteração do ETAF), referente ao Processo de Apelação 124980/18.4YIPRT.L1, em que foi recorrente a ora Recorrente/Autora, chamava já a atenção para a publicação do diploma com a mencionada alteração do ETAF, considerando-a um relevante elemento de interpretação sistémica, nomeadamente, quando o legislador claramente enuncia a sua intenção interpretativa;
cc)-Tal Acórdão vem considerar que “a relação contratual estabelecida entre uma concessionária de serviço de fornecimento de água e drenagem de águas residuais e uma entidade privada não tem a natureza de contrato administrativo, não está sujeita às regras da contratação pública, nem tem por objeto questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais, pelo que não se enquadra na previsão do artigo 4.º do ETAF, na redacção do DL 214-G/2015, estando sujeita à jurisdição dos tribunais comuns.”;
dd)-Ora, atento o supra exposto, verifica-se que a sentença ora recorrida, apesar de mencionar a existência de nova redacção da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, introduzida pela Lei 118/2019,
ee)-Não retira da existência de tal nova redacção as devidas consequências,
ff)- Pelo contrário, retirando a conclusão contrária à que devia ter retirado,
gg)-Isto é, efectivamente, conclui que o conflito dos autos deve ser dirimido pela jurisdição especializada dos tribunais administrativos e fiscais.
hh)-O que não faz sentido, já que, ao contrário da posição contida na sentença, estamos perante um litígio emergente de relação de consumo atinente à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água), com base no previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (com respectivas alterações subsequentes) e respectiva cobrança coerciva (inicialmente através de injunção e subsequentemente, com carácter judicial).
ii)-Não é por haver medição por parte de contador totalizador (não isoladamente, mas em comparação com a medição resultante do conjunto dos vários contadores divisionários instalados no prédio dos autos) que deixa de estar em causa uma relação de consumo;
jj)-Tal é, inclusive, demonstrado quando o n.º 3 do artigo 66.º do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto (artigo com o título de “Instrumentos de medição”), estipula que em alternativa à instalação de contador para medição do consumo nas zonas comuns dos prédios em propriedade horizontal, em alternativa, por opção da entidade gestora, podem ser instalados contadores totalizadores;
kk)-Depois de já o n.º 1 do mesmo artigo estipular o direito à medição dos níveis de utilização dos serviços;
ll)-E o n.º 2 do mesmo artigo 66.º declarar a competência da entidade gestora para colocação dos contadores adequados às características do local e ao perfil de consumo do utilizador;
mm)- Daí que a nova redacção da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, introduzida pela Lei 118/2019, não mereceu do Tribunal “a quo” a interpretação e decisão devidas,
nn)-Inclusivamente, tendo o Tribunal “a quo”, com a sua decisão, violado tal preceito legal,
oo)-Ao ter, efectivamente, decidido pela exclusão, do âmbito da jurisdição dos tribunais comuns, e portanto do tribunal judicial dos autos, da apreciação do litígio em apreço,
pp)-Litígio, esse, emergente da relação de consumo relativa à prestação de serviço público essencial, incluindo a respectiva cobrança coerciva.
qq)-O Tribunal “a quo”, ao considerar-se incompetente materialmente para apreciar o litígio dos autos,
rr)-Decretando a verificação da excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal “a quo” para a causa,
ss)-Incorreu em erro de apreciação e de aplicação do Direito ao caso vertente,
tt)-Assim, sendo, pelo supra indicado, é de concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio dos autos é a jurisdição dos tribunais comuns, os tribunais judiciais.
uu)-Assim, pelo supra exposto, deverá o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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II–OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (1) é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Analisadas as conclusões do recurso, a única questão que importa apreciar respeita à pretendida competência absoluta do tribunal, em razão da matéria, para conhecimento do objecto da causa.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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III–FUNDAMENTAÇÃO
3.1.–FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
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3.2.APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da Competência Absoluta em razão da Matéria
O Tribunal de 1ª instância apreciou a questão da competência em razão da matéria nos seguintes termos:
“A competência do Tribunal, enquanto pressuposto processual, afere-se pela natureza da relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial, isto é, do confronto entre a causa de pedir invocada e a pretensão deduzida.
Assim, a competência do Tribunal (mormente em razão da matéria) apenas terá de ser analisada à luz da pretensão do autor e nos precisos moldes alegados.
A competência material dos Tribunais Judiciais é determinada, não só pelo critério da atribuição positiva, mas também pelo critério de competência residual, isto é, também lhe cabe apreciar todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Por seu turno, compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – artigos 212º nº 3 da CRP e 1º nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
No caso dos autos, tendo presente a relação contratual estabelecida, e sendo o contador totalizador uma unidade de contagem (instrumento de medição) instalada, por iniciativa e no interesse da entidade fornecedora da água, em local onde se encontram instalados vários contadores diferenciais (neste caso num condomínio) e destinam-se a detectar perdas ou a medir consumos não detectados pelos contadores diferenciais instalados em cada uma das fracções.
Resulta do disposto no artº 66º n.º 3 do DL 194/2009 de 20 de Agosto que “Em prédios em propriedade horizontal devem ser instalados instrumentos de medição em número e com o diâmetro estritamente necessários aos consumos nas zonas comuns ou, em alternativa e por opção da entidade gestora, nomeadamente por existir reservatório predial, podem ser instalados contadores totalizadores, sem que neste caso o acréscimo de custos possa ser imputado aos proprietários” - sublinhado nosso.
Tal contador não tem como função medir o consumo de água (e não o mede), medindo apenas a quantidade global de água que entra no prédio, sendo a cobrança de água, nestas circunstâncias, imposta pela fornecedora de água ao consumidor final, sendo que os conflitos a dirimir resultantes da instalação de um contador destas características devem ser dirimidos pela jurisdição especializada dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do disposto no artº 4º nº 1 do ETAF, nas suas diversas alíneas, mas em especial na sua alínea e), quer na versão em vigor à data da celebração do contrato dos autos, quer na redacção da Lei 118/2019.
Como se refere no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 25-06-2013 (Processo nº 033/13, relatado por Rosendo José, integralmente disponível em www.dgsi.pt), “ Compete aos tribunais tributários o conhecimento de acção em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar o «preço fixo» e consumos por um contador «totalizador» que precede os contadores das fracções e das partes comuns de um condomínio, por estarem em causa tarifas, taxas e encargos com exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito público tributário” – no mesmo sentido se decidiu, ainda, nos Acórdãos do Tribunal de Conflitos n.º 038/13 de 18.02.2013, relatado pelo Sr. Cons. Paulo Sá; nº 039/13 de 05.11.2013, relatado pelo Sr. Cons. Rui Botelho e nº 045/13 de 29.01.2014, relatado pelo Sr. Cons. Costa Reis.
Entende-se, pois, que a ordem administrativa e fiscal é a competente para conhecer da presente acção, o que importa a exclusão da competência (residual) deste Tribunal.
Neste entendimento, ao abrigo das normas legais citadas e, ainda, do disposto nos artigos 96º, 97º, 98º, 99º, 278º nº 1 al. a), 576º nºs 1 e 2 e 577º al. a), todos do CPC, verifica-se a incompetência absoluta deste Tribunal Judicial, em razão da matéria, que constitui excepção dilatória de que se pode, inclusivamente, conhecer ex officio, e que determina a absolvição dos RR. da instância.”
A apelante insurge-se contra o assim decidido e sustenta que, apesar de ser uma entidade concessionária e de estar em causa um litígio emergente de uma relação de consumo atinente à prestação de serviço público essencial – fornecimento de água – e respectiva cobrança coerciva, esta não é uma relação jurídica administrativa-tributária, nem é regida pelo direito público, mas sim pelo direito privado, estando em causa a cobrança de um crédito por água fornecida e não paga, sendo competentes para a sua apreciação os tribunais comuns; mais refere que por via da 12ª alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro(2) , introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, com entrada em vigor no dia 12 de Novembro de 2019, a nova alínea e) do n.º 4 do respectivo art. 4º exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva”, como é o caso dos autos, não tendo a sentença recorrida atendido ao sentido de tal preceito legal apesar de o mencionar.
Tendo em conta que nos termos do disposto no art. 38º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário(3) ) a competência se fixa no momento em que a acção é proposta, importa fixar a causa de pedir e o pedido vertidos na petição inicial.
A autora pretende obter a condenação do réu/recorrido no pagamento da água que lhe foi fornecida no contexto da prestação desse serviço público essencial, pelo qual é responsável enquanto entidade concessionária no município de Cascais.
Sendo estes os termos do litígio, impõe-se avaliar qual o tribunal competente para o dirimir.
Face ao estatuído no art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, no art. 64º do CPC e no art. 40º, n.º 1 da LOSJ, à jurisdição comum compete apreciar as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional.
A competência material dos tribunais judiciais possui natureza residual, sendo determinada de forma negativa, isto é, quando se apure que a causa a decidir não está abrangida pela competência de nenhum tribunal especial, para ela será competente o tribunal comum.
Nos termos do art. 212º, n.º 3 da Constituição compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na senda deste normativo constitucional o art. 1º, n.º 1 do ETAF estipula que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Assim, o factor atributivo da competência aos tribunais administrativos patenteia-se na verificação de uma relação jurídica administrativa.
Gomes Canotilho e Vital Moreira referem, a propósito do art. 212º, n.º 3 da Constituição que nessa norma “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas(ou fiscais) (n.º3, in fine).Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.” – cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, 1993, pág. 815.
Poder-se-á também afirmar que este tipo de relação jurídica pressupõe sempre a intervenção da Administração Pública investida no seu poder de autoridade (jus imperium), isto é, o exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público.
Trata-se dos chamados actos de “gestão pública” da Administração.
São actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam o exercício de meios de coerção, sendo actos de gestão privada os praticados por órgãos ou agentes da Administração, em que esta surge desprovida do poder público, ou seja, numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, isto é, nas mesmas condições e no mesmo regime em que procederia um particular, com inteira submissão às normas de direito privado.
Conforme se extrai do já acima expendido, é em função do pedido e da causa de pedir que se deve analisar a competência do tribunal.
A causa de pedir é o facto jurídico concreto integrante das normas de direito substantivo que concedem o direito e o pedido, a pretensão formulada pelo autor ou pelo reconvinte com vista à realização daquele direito ou à sua salvaguarda – cf. art.º 581º, n.º 4 do CPC.
Há, pois, que atender à relação jurídica controvertida e ao pedido formulado, segundo a versão apresentada em juízo pela demandante.
A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Em função do primeiro, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial; por força do segundo - o critério da competência residual -, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial.
O art. 4º, n.º 1 do ETAF enuncia os critérios de determinação da competência dos Tribunais administrativos e fiscais e, à data da interposição da presente acção, estatuía, de acordo com a redacção introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, com início de vigência em 11 de Novembro de 2019, o seguinte:
1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a)- Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; […]
d)-Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e)-Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; […]”
A autora/apelante, sem esclarecer cabalmente a sua natureza jurídica, intitula-se, contudo, enquanto fornecedora, como entidade concessionária (cf. artigo 14º das suas alegações).
Pode reconhecer-se que se trata de empresa privada que desempenha a actividade concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais domésticas do concelho de Cascais, tal como se pode constatar pelo teor do contrato de concessão disponível no sítio da empresa na Internet(4) , celebrado entre o Município de Cascais e a então Águas da Costa de Cascais, S.A., formada pelas sociedades Aquapor - Serviços, S.A., AGS - Administração e Gestão e Sistemas de Salubridade, S.A., Efacec Capital SGPS, S.A., Oriente SGPS, S.A. e Euronova - Sociedade de Construções e Turismo, S. A., tendo sido estipulado na Cláusula 11ª, n.º 1 que “A Concessionária deve desempenhar as actividades concessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público e adoptar, para o efeito, os melhores padrões de qualidade previstos no presente Contrato.”, sendo regida pelo contrato de sociedade que constitui o Anexo I (cf. Cláusulas 17ª, n.º 1 do contrato de concessão), segundo os preceitos constantes dos respectivos Estatutos e do Código das Sociedades Comerciais(5).
A concessão administrativa é um dos modos de gestão de um serviço público, podendo ser definida como um “acto constitutivo de uma relação jurídica administrativa pelo qual a pessoa titular de um serviço público atribui a outra pessoa o direito de esta, no seu próprio nome, organizar, explorar e gerir um serviço público” – cf. Pedro Gonçalves, A Concessão de Serviços Públicos, pág. 130 apud acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-05-2008, relatora Angelina Domingues, processo n.º 0862/07 acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.(6).
Elemento nuclear do conceito de concessão de serviço público é o de que este, enquanto objecto de concessão, se insira no quadro das atribuições e competências próprias de uma pessoa colectiva pública.
Constata-se, assim, que o serviço público de fornecimento de água (qualificado como serviço público essencial de acordo com o disposto no art. 1º, n.º 2, a) da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (Lei dos Serviços Públicos Essenciais(7) ) no concelho de Cascais está atribuído a uma entidade privada.
Como refere Joana Catarina Neto dos Anjos, quando o serviço público é atribuído a uma entidade privada do sector privado, estabelece-se uma relação de colaboração entre a Administração Pública (titular do serviço) e o gestor do serviço, dado que por meio da concessão dá-se uma delegação de serviços públicos comerciais e industriais a empresas privadas que executam o serviço em seu próprio nome e por sua conta e risco, mas submetendo-se à fiscalização e ao controlo por parte da Administração Pública e à intervenção desta em alguns aspectos da sua actividade. Assim, o Estado ou as autarquias locais mantêm a titularidade do serviço mas não se envolvem na sua gestão efectiva(8).
Esta colaboração é referida pela autora como um desenlace da evolução do Estado de serviço público para o Estado regulador, que conduziu ao surgimento de uma nova responsabilidade pública, ou seja, o Estado deixou de ter o encargo de prestar serviços essenciais, passando a assumir o dever de disciplinar ou de regular o modo como os agentes no mercado prestam esses serviços, com recurso a formas jurídico-privadas de organização e actuação administrativas e a uma progressiva não intervenção estatal.
A recorrente, enquanto empresa concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de saneamento do Município de Cascais, actua em substituição deste último, pelo que se está perante uma entidade particular no exercício de um poder público e actuando com vista à realização de um interesse público - cf. art.ºs 13.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1 da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro (Lei Quadro de Transferência de Atribuições e Competências para as Autarquias), revogado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico (cf. art.ºs 2º, 3º, 23º desta Lei).
Parece claro que a concessão de serviços públicos assume a natureza de contrato administrativo.
A este propósito, Joana Anjos refere, in O Contrato de Concessão de Serviço Municipal de Água - O Preço do Serviço numa Perspetiva de Direito Regulatório e de Resolução Judicial de Litígios, pág. 113 (9) , o seguinte:
“[…] o contrato de concessão de serviço público é um contrato administrativo com cláusulas dotadas de eficácia regulamentar, ou seja, o concessionário fica não só obrigado à prestação do serviço pela via contratual como, também, pela via das disposições contratuais dotadas de eficácia normativa. O concessionário terá, portanto, deveres contratuais perante a Administração concedente e deveres regulamentares perante terceiros: “desde que os terceiros sejam titulares de um direito às prestações em que o serviço público se traduz (estão aqui em causa os utentes), a satisfação desse direito cabe ao concessionário, por força de uma disposição com eficácia regulamentar a que isso o obriga”. Uma das especialidades – e dificuldades – de compreensão do regime da concessão de serviços públicos reside precisamente no facto de existir esta “personagem que não intervém na atribuição dessa posição jurídica, mas que é a razão de ser dela: o utente, utilizador ou cliente do serviço público””.
Ora, afigura-se inquestionável que a concessionária, ainda que entidade privada, exerce determinadas funções de interesse público (como tal é qualificado o serviço de fornecimento e abastecimento público de água, no DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto), que lhe foram confiadas, contratualmente, pelo município, e que não perderam, por via disso, tal natureza, mas isso não significa, por si só, que a relação trazida a juízo esteja submetida às normas de direito público e deva ser tida como uma relação jurídico-administrativa.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-11-2020, desta secção, relatora Maria da Conceição Saavedra, processo n.º 48635/19.0YIPRT.L1-7 refere-se, sobre tal natureza, precisamente o seguinte:
“O DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, menciona expressamente no seu preâmbulo que: “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente. Estes serviços devem pautar-se por princípios de universalidade no acesso, de continuidade e qualidade de serviço e de eficiência e equidade dos tarifários aplicados. O actual regime de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos assenta na dicotomia entre sistemas municipais, situados na esfera dos municípios, onde se incluem também os sistemas intermunicipais, e sistemas multimunicipais, situados na esfera do Estado. No quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, os municípios encontram-se incumbidos de assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, nos termos previstos na Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal. (…)”.
Tal significa, assim, que na prestação do serviço de fornecimento de água, na sua área de concessão, a ora A. prossegue inequivocamente fins de interesse público, estando para o efeito munida dos poderes de autoridade conferidos pelo citado DL nº 194/2009 e pela Lei nº 159/99 (entretanto revogada pela Lei nº 75/2013, de 12.), cabendo-lhe, por essa via, impor os tarifários correspondentes, aplicar taxas e coimas (cfr. arts. 43, 61 e 73 do DL nº 194/2009).
Assim, e embora entidade privada, a A. exerce determinadas funções de interesse público – considerados no preâmbulo do DL nº 194/2009 como serviços públicos de carácter estrutural – que lhe foram confiadas, contratualmente, pelo município, e que não perderam a sua natureza nem podem ser desempenhadas por qualquer entidade, não tendo a A. liberdade contratual, possibilidade de escolher os clientes ou decidir livremente cessar a prestação de tais serviços.”
No entanto, se assim é a relação estabelecida entre o município e a entidade concessionária, já se trata de realidade diversa a relação que se estabelece entre a entidade concessionária e o utente (no caso, o réu/recorrido), que se enquadra no âmbito dos contratos de consumo, mantendo, contudo, a ligação a um fornecedor que na sua actuação age com vista à satisfação de interesses públicos.
Sobre esta matéria Joana Anjos, in O Contrato de Concessão…, pp. 117-121, reconhecendo que se trata de questão amplamente debatida, sobremaneira na jurisprudência, refere ser entendimento maioritário da doutrina que a posição do utente de um serviço público concessionado é de direito privado e aduz sólidas razões para tanto referindo:
“[…] a Lei n.º 23/96, de 26 de julho, consagra as “regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente”, esclarecendo que o serviço de fornecimento de água é um dos “serviços públicos abrangidos”. O facto de esta última lei não identificar o utente com o consumidor – já que o diploma não quis restringir o seu âmbito de aplicação ao conceito de consumidor final constante da Lei n.º 24/96, de 31 de julho – poderia significar, em ultima análise, a aplicação deste regime às autarquias locais quando estas se assumissem, simultaneamente, como utentes e prestadoras do serviço (no caso dos sistemas multimunicipais). No entanto, sabendo que o objetivo do diploma foi diminuir o crescente desequilíbrio criado pela falta de poder negocial dos consumidores, deve entender-se […] que o que a Lei n.º 24/96 pretendeu foi tutelar a relação entre o prestador e o utente que visa satisfazer as suas próprias necessidades, profissionais ou domésticas, excluindo-se, assim, os municípios. Concordamos, pois, com Carlos Ferreira de Almeida quando advoga que, estando em causa contratos de concessão pela Administração Pública ou contratos de fornecimento à Administração, a lei eliminou todos os vestígios de poderes autoritários do fornecedor, substituindo-os por regras de proteção do utente, e criou regras de organização, funcionamento e atuação concorrencial que se mostram incompatíveis com a integração na atividade administrativa. […] o utente do serviço público de fornecimento de água – desde que não seja o próprio município - deverá ser considerado consumidor, e que a relação entre prestador e utente do serviço será uma relação de consumo.
Contudo, ainda que inseridas no âmbito dos contratos de consumo, torna-se necessário tomar em consideração que estas relações concessionário/utente não podem ser tidas como relações de puro direito privado. Na verdade, muitas das disposições que fixam as regras de prestação dos serviços aos utentes (e que podem assumir natureza legal ou regulamentar) são de direito público. Parece-nos, portanto, que as relações entre utente do serviço e concessionário assumem uma natureza mista. Repetindo as palavras de Ismael Farrando, estamos perante “uma relação jurídica de caráter misto (contratual-regulamentar); de uma parte tem uma clara natureza pública, já que está totalmente submetida à regulamentação pública do serviço, e nesses aspetos está sob a vigilância e proteção da Administração (...), por outra parte, se entra nesta situação regulamentar mediante um contrato entre duas partes – ambas privadas –, que, como tal, tem natureza civil, e assim deve ser entendido em todos os aspetos que não afetarem a situação regulamentar (...) […]
É certo que é prosseguida uma finalidade pública, mas “a relação jurídica ajuizada não tem natureza administrativa, porquanto nenhum dos respetivos sujeitos tem a natureza de entidade pública” e, para além disso, a entidade concessionária, com o desenvolvimento de concessionada atividade de fornecimento de água, “não visa – ao contrário do que ocorre com o município concedente que o tem a seu cargo – a satisfação do correspondente interesse público, antes persegue o que carateriza a sua natureza de sociedade comercial – anónima, no caso –: a obtenção de lucros que dividirá entre os seus acionistas (…), não tendo, pois, como móbil da respetiva atuação a satisfação do mencionado interesse público, ainda que este acabe por ser concretizado através daquela”. Por conseguinte, a inserção destes litígios no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal só poderia ser feita com recurso à alínea f) do art. 4.º, n.º 1, do ETAF, onde se determina que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto “contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo”
[…] apesar de os contratos de fornecimento de água serem densamente regulados, as regras legais que visam proteger o utente, nomeadamente, como vimos, as previstas na Lei n.º 23/96, de 26 de julho, não são normas de direito público. Existe efetivamente regulação, mas ela baseia-se na “proteção do consumidor no contexto de uma relação de consumo de um serviço público essencial”: o contrato é regulado mas no âmbito do direito privado.”
Ora, para cabal compreensão da natureza da concessão de serviços públicos releva inevitavelmente a relação trilateral que ela implica, ou seja, por um lado, a relação que se estabelece entre a Administração Pública e o concessionário e, por outro, a relação entre o concessionário e o utente ou beneficiário do serviço, daí que não se possa ignorar a posição do utente nessa relação que, como se referiu acima, não pode deixar de ser entendida como de direito privado, porquanto este último tem de ser considerado um consumidor e a relação entre prestador e utente do serviço, uma relação de consumo.
Certo é, porém, que enquanto integrada no âmbito dos contratos de consumo, a relação entre o prestador do serviço e o utente não é uma relação de puro direito privado, pois que muitas das disposições que fixam as regras de prestação dos serviços aos utentes (e que podem assumir natureza legal ou regulamentar) são de direito público, daí que a autora acima mencionada conclua que as relações entre utente do serviço e concessionária assumem uma natureza mista, pelo que a “prestação dos serviços públicos, especificamente quando concessionados, fica, assim, regida em parte por um estatuto de regulamentação pública; mas só se penetra na incidência desse estatuto mediante a celebração de um contrato de prestação de serviços entre dois particulares (utente e concessionário), que será de natureza civil em todos os aspectos que não contrariem a situação estatutária”.
Por essa razão, aduz, apesar de os contratos de fornecimento de água serem densamente regulados, as regras legais que visam proteger o utente (cf. LSPE), não são normas de direito público, pelo que sendo o contrato regulado no âmbito do direito privado, serão os tribunais judiciais, que possuem jurisdição residual, os competentes para a apreciação dos litígios atinentes, como é o caso dos autos, à cobrança do valor devido pela água fornecida – cf. Litígios entre as Concessionárias do Serviço Público de Abastecimento de Água e os Consumidores - Questão da Jurisdição Competente, Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Setembro 2014, pp. 25-26.
Como tal, e retomando a afirmação de que a definição da competência material do tribunal tem por pressuposto a relação material controvertida tal como é configurada pelo autor (causa de pedir e pedido deduzidos) e que, in casu, a demandante é concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais domésticas, visando cobrar do Condomínio réu, no âmbito de contrato celebrado entre ambos, o pagamento do fornecimento de água para o prédio, ou seja, está em causa uma simples cobrança de dívida de âmbito privado, pelo que a competência dos tribunais comuns surgiria como natural.
Mas esta questão não tem sido uniformemente tratada na jurisprudência, sobretudo na vigência do art. 4º do ETAF, na redacção do DL n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, porquanto múltiplas decisões dos tribunais superiores, inicialmente em maioria, e, bem assim, do Tribunal de Conflitos, consideravam que por estarem em causa a aplicação e interpretação de normas de interesse público e atendendo à natureza jurídica dos valores cobrados - designadamente por estarem em causa tarifas, taxas ou encargos como exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, matéria regulada por normas de direito público tributário –, a competência para conhecer tais litígios cabia aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
A argumentação utilizada para justificar tal entendimento radicava, em síntese, no facto de ser prestado um serviço para a realização de um interesse público, ainda que por entidade particular, mas colaboradora da Administração, constituindo as quantias correspondentes à contrapartida paga pela prestação do tarifas, unilateralmente fixadas e reguladas por normas de direito público, que o utilizador do serviço não pode discutir ou negociar (cf. art.ºs 56º a 61º do Regulamento n.º 253/2016 – Regulamento de Serviços do Sistema Municipal de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais de Cascais, aprovado por deliberação da Assembleia Municipal proferida em sessão realizada no dia 23 de Dezembro de 2015, publicado no DR II Série de 11 de Março de 2016) – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-10-2018, relatora Raquel Tavares processo n.º 47668/18.8YIPRT.G1.
Aliás, a discussão centrou-se, a partir de certa altura, entre a competência dos tribunais comuns e a competência dos tribunais tributários, como disso dá nota o senhor Desembargador Pedro Martins, que tendo inicialmente a posição de que a competência material era dos tribunais comuns mudou de posição, em voto de vencido que lavrou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2-06-2016, processo n.º 85565/15.6YIPRT, com o seguinte teor (10):
“[…] depois do pleno da secção do contencioso tributário do STA ter aceite, no acórdão de 10/04/2013 (015/2012 – este como todos os referidos, publicados na base de dados do IGFEJ), que a competência cabia aos tribunais tributários (não aos tribunais administrativos nem aos tribunais comuns), quase (salvo erro, à excepção de um) todos os juízes conselheiros do tribunal de conflitos (formação específica de juízes conselheiros do STA e do STJ destinada à resolução de conflitos de jurisdição: arts. 59 a 108 do Decreto 19243, de 16/01/1931, com os arts. 86 e 87 alterados pelo Decreto 19438, de 11/03/1931, e art. 17 do Decreto-Lei 23185, de 30/10/1933 […]) têm aderido à solução que também foi seguida pela sentença recorrida (incompetência dos tribunais comuns), passando a jurisprudência do Tribunal de Conflitos e do STA a ser unânime nesse sentido desde o 4º trimestre de 2014.
E isso com o fundamento, muito em síntese, do acórdão do Tribunal de conflitos de 29/01/2015, 026/14, de que, “está aqui em causa mais do que um contrato de fornecimento de água regulado pelas normas de direito privado[;] antes aquele se apresenta funcionalmente moldado por normas de direito público e sujeit[o] a preços que fogem ao controlo do mercado, já que em princípio não visam a obtenção de um lucro mas a satisfação de necessidades básicas, sendo à partida autoritariamente fixados por entidades públicas.”
Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal de Conflitos de:
25/06/2013, 033/13;
26/09/2013, 030/13;
05/11/2013, 039/13;
18/12/2013, 038/13;
18/12/2013, 053/13;
29/01/2014, 45/13
13/02/2014, 41/13;
27/03/2014, 54/13;
27/03/2014, 1/14;
15/05/2014, 031/13;
05/06/2014, 023/14
19/06/2014, 022/14;
26/06/2014, 021/14;
30/10/2014, 047/14 (cuja relatora era também relatora do único ac. do Tribunal de Conflitos que se tinha pronunciado em sentido contrário: de 21/01/2014, 044/13, invocado pela autora);
13/11/2014, 041/14;
13/11/2014, 043/14;
13/11/2014, 044/14;
25/11/2014, 039/14;
25/11/2014, 040/14;
25/11/2014, 042/14
29/01/2015, 026/14; e de
09/07/2015, 07/15 […].”
Este entendimento foi sufragado em múltiplos acórdãos ao longo dos últimos anos e, bem assim, mesmo quando já se perspectivava a alteração que veio a ser introduzida no art. 4º, n.º 4 do ETAF pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, com o aditamento da nova alínea e) (11) , conforme se pode constatar, designadamente, nos seguintes arestos:
o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-09-2020, relatora Fátima Gomes, processo n.º 2080/19.6T8MTS.P1.S1 – Atribuiu a competência aos tribunais tributários, afastando o carácter interpretativo da nova alínea e) do n.º 4 do art. 4º do ETAF, por se tratar de solução nova, que dispõe apenas para o futuro, excepto se o próprio legislador tivesse optado pela sua aplicação retroactiva ou a mesma pudesse caber na previsão legal do art.º 12.º ou 13.º do Código Civil;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-11-2020, relator Jorge Leal, processo n.º 52139/19.2YIPRT.L1-2 – “Até à entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, de 12.9, que aditou ao n.º 4 do art.º 4.º do ETAF uma alínea e), que determinou a exclusão do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal da “apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”, é da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de uma ação de cobrança de créditos emergentes da contagem de um contador (contador totalitário) instalado no âmbito de um contrato de fornecimento de água para consumo humano através da rede pública.”;
o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-01-2017, relator João Proença, processo n.º 106973/15.5YIPRT.P1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 5-12-2019, relator Jorge dos Santos, processo n.º 17853/19.1YIPRT.G1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-10-2018, relatora Raquel Tavares, processo n.º 47688/18.8YIPRT.G1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-09-2014, relatora Conceição Bucho, processo n.º 657/10.4TBFAT.G1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13-06-2013, relator Manuel Bargado, processo n.º 206886/12.6YIPRT.G1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-05-2013, relatora Rita Romeira, processo n.º 99302/12.3YIPRT.G1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-02-2011, relator Amílcar Andrade, processo n.º 126982/09.2YIPRT.G1.
Não obstante, ainda na vigência da redacção anterior do aludido art. 4º do ETAF foram prolatados diversos acórdãos em sentido diverso, ou seja, sufragando a posição de que a relação contratual estabelecida entre uma concessionária de serviço de fornecimento de água e drenagem de águas residuais e uma entidade privada não tem a natureza de contrato administrativo, não está sujeita às regras da contratação pública nem tem por objecto questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais, pelo que não se enquadra na previsão daquele normativo legal, estando sujeita à jurisdição dos tribunais comuns:
o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 21-01-2014, relatora Fernanda Maçãs, processo n.º 044/13 – a que alude Joana Catarina Anjos, no artigo supra mencionado;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5-11-2020, relatora Cristina Dá Mesquita 43364/19.7YIPRT.E1 – Onde se alude já à introdução pela Lei n.º 114/2019 de uma alínea e) no n.º 4 do art. 4.º do ETAF que exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva e se lhe reconhece natureza interpretativa e a consequente eficácia retroactiva, nos termos do art.º 13.º, n.º 1 do Código Civil, considerando que a ratio legis daquela alínea e) é indissociável da controvérsia existente antes da sua entrada em vigor sobre a questão objecto da respectiva estatuição, resultando da interpretação histórico-teleológica da lei essa natureza interpretativa;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-10-2020, relator Emídio Santos, processo n.º 12679/19.5YIPRT.C1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8-10-2020, relatora Teresa Sandiães, processo n.º 40700/19.0YIPRT.L1-8;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1-10-2020, relatora Carla Mendes, processo n.º 107360/18.9YIPRT.L1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-10-2019, relatora Ana de Azeredo Coelho, processo n.º 124980/18.4YIPRT.L1-6;
o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-09-2018, relator José Manuel de Araújo Barros, processo n.º 71170/17.6YIPRT.P1;
o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-05-2018, relatora Lina Baptista, processo n.º 63246/17.4YIPRT.P1.
o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-05-2015, relator Aristides Rodrigues de Almeida, processo n.º 65775/12.9YIPRT.P1.
De todo o modo, ainda na vigência do art. 4º do ETAF, na redacção do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, Joana Catarina Anjos, in op. cit., pp. 127 afastava a natureza tributária da contraprestação paga pelo utente final:
“[...] o que passa a existir entre o concessionário e o utente do serviço público é uma relação de direito privado, baseada num contrato de direito privado. Assim, e contrariamente ao que se passa a nível de preços municipais, onde a contraprestação assume natureza tributária, que permite o recurso imediato ao processo de execução fiscal, já nos serviços que passaram para a gestão privada (designadamente por via da concessão) a perda da natureza tributária da obrigação pecuniária em cobrança passou a inviabilizar, em caso de incumprimento pelo utente, o recurso ao processo de execução fiscal. A quantia que o utente paga ao concessionário deixa, assim, de ser considerada como taxa, ou seja, como uma “prestação devida como retribuição de serviços individualmente prestados, da utilização de bens do domínio público ou da remoção de limites jurídicos à atividade dos particulares”, […], para ser considerada um preço. No entanto, este preço não terá necessariamente que se formar segundo as regras de mercado. Como vimos, por via de regra, o preço é determinado pelo concessionário segundo critérios pré-estabelecidos por via administrativa, que podem constar de um regulamento autónomo de contrato (a tarifa) ou do próprio contrato de concessão […]”
Em idêntico sentido se pronunciou também Cátia Sofia Ramos Mendes, in O contrato de prestação de serviços de fornecimento de água(12) , pág. 78:
“[…] a existência de uma relação contratual regida por regras de direito privado determina a competência dos tribunais judiciais, independentemente da natureza do prestador de serviços. O critério da atribuição positiva determina que os tribunais judiciais sejam competentes para todas as ações executivas relativas a contratos regulados pelo direito privado. A dívida de consumo de água não é uma dívida fiscal emergente de uma relação jurídica-tributária. Ao estabelecer a contraprestação a concessionária, apesar de vinculada a normas legais, não está dotada de ius imperii, mas apenas está a dar cumprimento ao contrato que lhe atribuiu a gestão e exploração do serviço. O art. 4.º/1-f ETAF não é aplicável, pois o contrato celebrado entre o utente e o prestador de serviços não se encontra sujeito a regime substantivo de direito público. O regime da LSPE, completado pelo DL 194/2009 é um regime substantivo de direito privado seja qual for o modelo de gestão adotado. Com a LSPE, o legislador pretendeu submeter todos os serviços públicos essenciais ao regime do direito civil. A segurança jurídica não pode constituir argumento para a recusa da competência dos tribunais judiciais, dada a inexistência de precedente na jurisprudência portuguesa. Pela natureza privada do contrato e pelos objetivos de proteção do utente da LSPE, defendemos que são competentes os tribunais judiciais.”
Feito este excurso, parece não sobrarem dúvidas que o pedido formulado pela requerente (empresa privada concessionária do serviço público municipal), qual seja, a condenação do réu no pagamento das facturas emitidas para cobrança do valor correspondente à agua fornecida no contexto do contrato celebrado com o particular, se insere no âmbito da responsabilidade contratual.
As partes contratantes são a concessionária do serviço de água e um privado – o réu condomínio.
Em face do acima expendido, não se está, pois, perante um contrato administrativo mas antes face a uma relação de direito privado (relação de consumo).
Ora, a alteração introduzida no ETAF pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, com entrada em vigor em 11 de Novembro de 2019, que aditou uma nova alínea e) ao n.º 4 do respectivo art.º 4º, com a previsão de uma nova exclusão de litígios do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal – “apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” – impõe necessariamente que se mostre ultrapassada a divergência jurisprudencial (a menos que se logre afastar a natureza de relação de consumo do litígio em presença), posto que se impõe reconhecer que a competência para a apreciação da relação aqui submetida a juízo está hoje, como estava à data da interposição do requerimento de injunção, expressamente atribuída aos tribunais da jurisdição comum.
Note-se que na Exposição de Motivos(13) que acompanhou o Projecto de Lei nº 167/XIII, que deu origem à referida Lei nº 114/2019 consta o seguinte:
“Cumpre realçar também as alterações propostas para o âmbito da jurisdição e da competência dos tribunais administrativos e fiscais. A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
Como tal, afigura-se de meridiana clareza que com a entrada em vigor desta Lei, e por força da nova alínea e) do nº 4 do art. 4 do ETAF, os tribunais administrativos e fiscais não têm competência para as acções que, como a presente, se destinem a apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva”.
Não havendo dúvida de que, quando a presente acção foi instaurada, em 20-01-2020, já se encontrava em vigor a mais recente versão do art. 4º do ETAF, com o expresso afastamento da competência dos tribunais administrativos e fiscais para a apreciação de litígio atinente a cobrança de dívida pela prestação de serviço público essencial, não há sequer que convocar para a sua aplicação o regime de excepção previsto na segunda parte do n.º 2 do art. 38º da LOSJ, conjugado com os art.ºs 211º, n.º 1 e 212º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (que autoriza o afastamento da regra geral de que o tribunal competente é o determinado pela data da propositura da acção)
Em consonância, tendo presente a situação sub judice e a aplicabilidade da alínea e) do n.º 4 do art.º 4º do ETAF, introduzida pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro, impõe-se concluir pela competência dos tribunais comuns para a apreciação da presente lide e pela necessária revogação da decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, tendo presente a competência material do tribunal, ordene o prosseguimento dos trâmites processuais que se impuserem.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A pretensão que a apelante trouxe a juízo merece provimento.
Dado que o requerido/recorrido não influenciou a decisão recorrida nem a decisão deste recurso, não pode ser considerado vencido para os efeitos previstos no art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Por sua vez, quem do recurso tirou proveito e, por isso, seria responsável pelo pagamento das respectivas custas, seria a recorrente.
No entanto, estando paga a taxa de justiça devida pela interposição do recurso porque a recorrente procedeu ao seu pagamento (cf. Ref. Elect. 17660098) e ninguém contra-alegou, e como o recurso não envolveu a realização de despesas (encargos), não há lugar ao pagamento de custas (cf. art. 529º, n.º 4 do CPC).
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IV– DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em revogar a decisão impugnada e, em consequência, declarar o Tribunal a quo materialmente competente para conhecer da presente causa, devendo ser ordenado o prosseguimento dos autos, se a tanto nada obstar.
Sem custas.
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Lisboa, 27 de Abril de 2021(14)

Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro

(1)-Adiante designado pela sigla CPC.
(2)-Adiante designado pelo acrónimo ETAF.
(3)-Adiante designada pela sigla LOSJ.)
(4)-Em https://www.aguasdecascais.pt/wp-content/uploads/2018/05/Contrato-de-Concess%C3%A3o.reduzido.pdf.
(5)-Cf.Estatutos da Sociedade acessíveis em https://www.aguasdecascais.pt/wp-content/uploads/2018/04/Estatutos-da-Sociedade.pdf..
(6)-Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.
(7)- Adiante designada pela sigla LSPE.
(8)-Cf. Litígios entre as Concessionárias do Serviço Público de Abastecimento de Água e os Consumidores - Questão da Jurisdição Competente, Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Setembro 2014, pág. 15 acessível em https://www.fd.uc.pt/cedipre/wp-content/uploads/pdfs/co/public_24.pdf.
(9)-Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre) Coimbra, 2015 acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/29871/1/O%20contrato%20de%20concessao%20de%20servico%20municipal.pdf.
(10)-Acessível em https://outrosacordaostrp.com/2016/06/02/voto-de-vencido-no-ac-do-trp-de-02062016-8556515-6yiprt-competencia-dos-tribunais-tributarios-para-questoes-relativas-ao-pagamento-do-custo-de-construcao-dos-ramais-de-ligacao-de-edificios-par/.
(11)-Com a seguinte redacção: “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: […] e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”
(12)-Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito - Julho de 2015, acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/16179/1/Mendes_2015.pdf.
(13)-Acessível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43155.
(14)-Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.