Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1004/07.8TMLSB-G.L1-6
Relator: JOÃO MANUEL P. CORDEIRO BRASÃO
Descritores: PROCESSO TUTELAR DE MENORES
INCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
INCIDENTE DE EXECUÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: –No âmbito do Regime Geral do Processo Tutelar Cível - Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro, podemos afirmar que o procedimento consagrado no art. 41º do RGPTC é aplicável quando esteja em causa o incumprimento do que tiver sido acordado/decidido relativamente à situação da criança, em caso de incumprimento da obrigação de prestar alimentos tem já lugar o procedimento previsto no art. 48º do RGPTC.

–Estamos, pois, a invocar dois mecanismos processuais distintos, com diferentes pressupostos na sua aplicação e sujeitos a uma tramitação diferenciada.

–Tendo-se prevalecido a parte do incidente de incumprimento (art. 41º do RGPTC), por falta de previsão legal e inadequação processual, não pode aquela enxertar neste ou sequer pretender a sua convolação para o mecanismo previsto no artº 48º daquele diploma.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa


I.–O relatório


SOFIA … interpôs com carácter de urgência, nos termos do artigo 13º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível - Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro (adiante designado por RGPTC), incidente de incumprimento contra JOÃO …, relativo aos filhos menores de ambos M e X, peticionando ao Tribunal o seguinte:

a)- atribuir carácter urgente ao presente incidente;
b)- ordenar ao Requerido que retome o pagamento de pensão de alimentos devida no valor global de € 801,50 (oitocentos e um euros e cinquenta cêntimos) por menor;
c)-ordenar ao Requerido o pagamento das pensões de alimentos em falta no valor de € 1.619,00 (mil seiscentos e dezanove euros), acrescido de juros vincendos até integral pagamento;
d)-ordenar ao Requerido o pagamento do montante em dívida de € 12.606,28 (doze mil seiscentos e seis euros e vinte e oito cêntimos) acrescido de juros vincendos até integral pagamento;
c)-caso não seja feita prova em cinco dias pelo Requerido dos pagamentos acima, que seja oficiada a Entidade Patronal do Requerido em Portugal – H… Portugal, Lda, Av. … Lisboa para proceder ao desconto de 1/2 da remuneração do mesmo até perfazer os montantes em dívida acrescidos de juros vincendos até integral pagamento;
d)-seja oficiado igualmente a mencionada Entidade Patronal para que a partir da presente data transfira para o IBAN PT…2 pertencente à Requerente, mensalmente, o valor relativo às duas pensões dos menores de € 1.603,00 (mil seiscentos e três euros).

O requerido JOÃO … ofereceu resposta ao abrigo disposto do art.º 41º, n.º 3, do RGPTC, pugnando pelo indeferimento da pretensão da requerente e, ainda, que seja esta condenada como litigante de má- fé, nos termos do disposto no n.º 1 e nº 2, als. a) e b) do art.º. 542.º do CPC, ao pagamento de multa no valor não inferior a quatro UCS.

A requerente respondeu ao articulado do requerido.

Subsequentemente, foi proferido despacho com o seguinte teor decisório:

Designada data para realização de conferência de pais, em face da contestação do requerido, importa aguardar pela realização da mesma, não sendo possível accionar o mecanismo previsto no artigo 48º do RGPTC o qual implica a existência de uma obrigação e a verificação do incumprimento da mesma, sendo que esta última condição ainda se encontra por apurar.
Assim, indefere-se, por ora, o requerido.

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Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
a)-O direito a alimentos é irrenunciável e impenhorável e cabe a ambos os progenitores prover ao sustento dos filhos.
b)-O cumprimento da obrigação de alimentos é essencial à sobrevivência e ao desenvolvimento são dos menores.
c)-No apenso B, foi determinado que o Recorrido – entre outras prestações – pagaria aos seus dois filhos M e X uma pensão de alimentos, no valor global de 700€.
d)-O Recorrido desde Julho de 2022, tem vindo a pagar a título de pensão de alimentos apenas 293€, acrescido de 100€ a que está obrigado a titulo de adiantamento para fazer face pela Recorrente a despesas extra.
e)-Ou seja, o Recorrido unilateralmente reduziu a pensão de alimentos devida aos menores para menos de metade da pensão de alimentos a que estava obrigado a pagar.
f)-A Convenção sobre os Direitos da Criança, no nº 4 do artigo 27º estipula que: “Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas tendentes a assegurar a cobrança da pensão alimentar devida à criança, de seus pais ou de outras pessoas que tenham a criança economicamente a seu cargo, tanto no seu território quanto no estrangeiro.”
g)- Em Portugal, tais medidas estão espelhadas no art. 41º e 48º do RGPTC.
h)-Contudo, de nada adiantam se a cada incidente de incumprimento este seja encarado como um processo declarativo de fixação de novos termos do exercício das responsabilidades parentais, e não como um meio de coercivamente impor o cumprimento aos faltosos.
i)-A pensão de alimentos em questão é devida aos menores, foi fixada em 2013 e paga até Julho de 2022.
j)-Nenhum motivo tem o Tribunal “a quo” para duvidar da existência da obrigação ou do seu incumprimento por parte do Recorrido.
k)-Andou mal o Tribunal “a quo” ao indeferir o requerimento da Recorrente e ao decidir que: “Designada data para realização de conferência de pais, em face da contestação do requerido, importa aguardar pela realização da mesma, não sendo possível accionar o mecanismo previsto no artigo 48º do RGPTC o qual implica a existência de uma obrigação e a verificação do incumprimento da mesma, sendo que esta última condição ainda se encontra por apurar.”
l)-Despacho que deve ser de imediato revogado e substituído por outro que ordene o desconto do vencimento das pensões de alimentos em falta e das que se venham a vencer-se na pendência da acção.”
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O réu contra-alegou, invocando a inadmissibilidade do recurso e defendendo a improcedência do presente recurso.
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O Ministério Publico apresentou resposta formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1.–A Recorrente intentou um incidente de incumprimento, relativamente à obrigação de pagamento da pensão de alimentos.
2.–O Requerido apresentou a sua contestação, ora impugnando a existência de tal incumprimento, ora referindo que não lhe foram enviadas as faturas, ora afirmando que foram efetuados os respetivos pagamentos.
3.–Foi designada a conferência a que alude o art. 35.º do RGPTC, tendo a mesma sido adiada em virtude da greve dos funcionários judiciais – agendando-se nova data para 04 de maio de 2023.
4.–Lançando mão do mecanismo constante do art. 48.º do RGPTC, a Recorrente deu entrada de um novo incidente de incumprimento.
5.–Porém, encontrando-se designada data para realização de conferência de pais, e em face da contestação do Recorrido, foi proferido despacho no sentido de não ser possível acionar o mecanismo previsto no artigo 48º do RGPTC, porquanto não se verificavam os reunidos os seus pressupostos.
6.–SOFIA …, veio recorrer do douto despacho que indeferiu o seu requerimento, alegando em suma que o Recorrido encontra-se a pagar menos de metade do montante relativo à prestação de alimentos, a que se encontra obrigado.
7.–Porém, em momento algum, o Tribunal veio declarar a existência de qualquer incumprimento, e, muito menos, a respetiva medida.
8.–Pelo que, não está demonstrado o incumprimento do progenitor, o ora requerido JOÃO …, no que tange ao pagamento da pensão de alimentos devida aos seus filhos menores.
9.–Não se encontra assim verificado o preenchimento de um dos requisitos de aplicação do art. 48.º do RGPTC, pelo que, não é assim possível acionar o mecanismo aí previsto.“
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo, não nos merecendo qualquer reparo o despacho de admissão do mesmo, concretamente quanto à questão da inadmissibilidade do recurso suscitada pelo recorrido, concordando-se inteiramente com a posição tomada a este respeito, bem como com as normas invocadas, nada tendo nós a acrescentar quanto a tal matéria.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.–O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, é a seguinte a questão a resolver por este Tribunal:
-saber se, tendo sido suscitado, pela recorrente,  incidente de incumprimento das responsabilidades parentais imputável ao recorrido, relativo aos dois filhos menores de ambos, na pendência do mesmo estavam já reunidos os pressupostos para lançar mão do mecanismo processual regulado no art. 48º do RGPTC, o qual prevê diversos modos de tornar efectiva a prestação de alimentos quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento.
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III.–Os factos
Considerando que a questão a decidir se afigura meramente processual, quanto aos factos a tomar em conta na decisão deste recurso são os já mencionados no relatório constante de supra.
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IV.–O Direito
A aqui recorrente instaurou processo de incumprimento de regulação do exercício de responsabilidades parentais, sendo consabido que de acordo com a nossa tradição jurídica, tal processo constitui uma instância incidental (tramitada por apenso), relativamente ao processo principal (o de regulação dessas responsabilidades), destinada à verificação, especificamente, quanto a uma concreta/alegada situação de incumprimento culposo/censurável de obrigações decorrentes de regime parental (provisório ou definitivo) já estabelecido.

O art.º 41.º (com a epígrafe “Incumprimento”) do RGPTC, cujo n.º 1 dispõe assim “Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor
requerente ou de ambos.

Na pendência do processo de incumprimento de regulação do exercício de responsabilidades parentais a autora/recorrente suscitou o incidente previsto no art. 48º do RGPTC, que sob a epígrafe “Meios de tornar efetiva a prestação de alimentos”, estabelece no seu nº 1 a seguinte disciplina:

1- Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
a)- Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;
b)- Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;
c)- Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.”

A questão a dirimir convoca a problemática de saber qual o âmbito de aplicação dos diversos mecanismos jurídico-processuais previstos em diplomas vários e ao dispor de daqueles que, no âmbito das responsabilidades parentais, têm legitimidade para dos mesmos se prevalecerem para pôr termo à conduta de progenitores relapsos. 
   
O mecanismo previsto no artigo 48.º do RGPTC visa reintegrar ou restaurar o direito do credor de alimentos, que foi violado, afigurando-se ter feição executiva. O artigo 48.º do RGPTC tem por objetivo a cobrança coerciva da prestação de alimentos, traduzida na dedução de rendimentos do devedor. Concomitantemente, se o obrigado a alimentos não satisfizer as quantias que se encontram em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, a lei prevê a sua realização coativa, sendo necessário que a prestação de alimentos, bem como a sua periodicidade, tenham sido fixadas judicialmente, devendo o mecanismo ser intentado no processo que as fixou, com este entendimento:
“(…)
Deste modo, acompanhamos REMÉDIO MARQUES quanto ao facto de que, sendo que as obrigações alimentares devidas a crianças ou jovens implicam a prévia condenação do obrigado a prestar alimentos, a providência especial executiva do artigo 48.º do RGPTC é um modo de obter o cumprimento coercivo dessa obrigação. A verdade é que, como nos diz a própria epígrafe do artigo em análise, este mecanismo enumera meios de tornar efetiva a prestação de alimentos, pelo que se tem como intuito a coatividade da prestação, parecendo-nos, claramente, que estamos perante um preceito de natureza executiva” (Cfr. Andreia Cristina Nascimento Canha, Cumprimento Coercivo das Obrigações Alimentares (a Crianças e Jovens), Dissertação apresentada ao Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra, 2016, pp. 31-32, consultada em https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/17870/1/Andreia_Canha.pdf).
                                                                                   …
“Uma questão que se coloca quanto a esta matéria é de saber se, atendendo ao incumprimento efetivo de uma obrigação de alimentos a criança ou jovem, partimos imediatamente para o mecanismo previsto no artigo 48.º, ou se, por outro lado, recorremo-nos do artigo 41.º do mesmo diploma legal, que respeita ao incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, sendo que na regulação do exercício das responsabilidades parentais, está incluída a matéria de alimentos (…).
A par da questão suscitada, urge questionar se, estando previsto o mecanismo do artigo 48.º do RGPTC vocacionado para o incumprimento de alimentos, deverá ser utilizado, para obter o cumprimento coercivo da prestação alimentícia, o mecanismo do artigo 41.º do mesmo diploma legal.
Na senda de REMÉDIO MARQUES, e de modo a dar resposta a ambas as questões, tratando-se de um incumprimento efetivo de uma obrigação de alimentos devida a um menor, aplica-se o processo executivo especialíssimo do artigo 48.º do RGPTC, sem necessidade de incitar o incidente de incumprimento do artigo 41.º do mesmo diploma. No mesmo sentido, TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO diz-nos que se se trata apenas de incumprimento quanto à prestação de alimentos, partimos logo para o artigo 48.º do RGPTC.
Também do mesmo entendimento, HELENA BOLIEIRO e PAULO GUERRA opinam no sentido de que o incidente de incumprimento deve ser incitado independentemente do mecanismo do artigo 48.º, corroborando jurisprudencialmente a sua opinião através do Acórdão da Relação de Lisboa de 09/02/1988, que proferiu que “o procedimento previsto na alínea a) do artigo 189.º da OTM [correspondente ao artigo 48.º do RGPTC] não tem de ser precedido por notificação ao requerido para dizer o que tiver por conveniente, nem de inquérito sumário, pois não lhe é aplicável o estabelecido no artigo 181.º [que corresponde ao artigo 41.º do RGPTC]; o requerido só tem de ser notificado do despacho que haja ordenado os descontos no seu vencimento, após estes se terem iniciado” (Da citada autora, Andreia Cristina Nascimento Canha, Cumprimento Coercivo das Obrigações Alimentares (a Crianças e Jovens), Dissertação apresentada ao Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra, 2016, p. 35).

Estando nós a laborar no âmbito do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e porque irrelevante, vamos desligar da análise o mecanismo da execução especial por alimentos prevista nos artigos 933.º e ss. do CPC.

Desta forma, podemos concluir que tanto o credor de alimentos como o Ministério Público podem lançar mão, quer do incidente previsto no artigo 41.º, quer a providência constante do artigo 48.º, ambos do RGPTC.

Chamando aqui à colação o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-02-2020, neste refere-se:
Ambos os institutos comportam vantagens e desvantagens relativamente ao credor e ao devedor de alimentos. Assim, o incidente de incumprimento do artigo 41.º permite ao credor solicitar a condenação do devedor faltoso em multa até vinte UC, o que configura um elemento desvantajoso para o devedor, relativamente ao mecanismo do artigo 48.º. Mas, ao invés, intentado o incidente de incumprimento, o devedor pode exercer o seu direito de contradizer, podendo comportar tal contraditório algum elemento modificativo da obrigação a cargo do devedor de alimentos. Por outro lado, se intentado o mecanismo dos descontos, o devedor não terá ao seu alcance o prévio exercício do contraditório (Acórdão proferido no proc. 1642/19.6 T8PDL.L1-1, versão integral em www.dsgi.pt)

Concluindo, podemos afirmar que o procedimento consagrado no art. 41º do RGPTC é aplicável quando esteja em causa o incumprimento do que tiver sido acordado/decidido relativamente à situação da criança, em caso de incumprimento da obrigação de prestar alimentos tem já lugar o procedimento previsto no art. 48º do RGPTC. Estamos, pois, a invocar dois mecanismos processuais distintos, com diferentes pressupostos na sua aplicação e sujeitos a uma tramitação diferenciada. 

Revertendo ao caso dos autos, não nos suscita dúvidas que a autora se prevaleceu do mecanismo previsto no art. 41º do RGPTC, desde logo porque tal resulta cristalinamente do requerimento inicial pela referência a Incidente de Incumprimento na indicação da forma de processo e, ainda,  porque é aquele artigo que se menciona no art. 8º do dito requerimento -bem como no seu petitório- e, nessa sequência, foi seguida pelo Tribunal de 1ª instância (e bem) a tramitação do art. 41º nº 3 do RGPTC ordenando-se a convocação de uma conferência.

Como corolário do princípio do dispositivo - enformador do nosso sistema processual civil (cfr. art. 5º nº 1 do CPC) -cabe às partes, em exclusivo, definir o objecto do litígio através da dedução das suas pretensões - ou seja, enunciar o pedido ou pedidos formulados por via da acção ou da reconvenção – e a essa definição ajustam-se as acções/procedimentos judiciais previstos nos mais diversos diplomas tendentes à apreciação jurisdicional daquelas pretensões.

No caso vertente, tendo-se prevalecido a autora do incidente de incumprimento (art. 41º do RGPTC), por falta de previsão legal e inadequação processual, não pode aquela enxertar neste ou sequer pretender a sua convolação para o mecanismo previsto no artº 48º, o qual visa satisfazer de forma coerciva a prestação alimentícia, ainda mais num contexto em que é controvertido o incumprimento- o requerido apresentou contestação, impugnando a existência de tal incumprimento, referindo que não lhe foram enviadas as faturas e afirmando que foram efetuados os respetivos pagamentos - importa, tal como foi sublinhado na decisão recorrida, apurar previamente se se verifica uma situação de incumprimento e declará-la em caso afirmativo para, posteriormente, avançar-se para uma fase coerciva na cobrança de alimentos em caso de não acatamento voluntário da decisão.
Não vemos, pois, razão para discordar do acerto da decisão recorrida, daí a improcedência da apelação.
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V.–A decisão                                                       
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam na improcedência da apelação e na manutenção da decisão recorrida.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 28/09/2023

João Brasão
Nuno Gonçalves
Octávia Viegas