Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19538/19.0T8LSB.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO DA RETRIBUIÇÃO
CULPA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O artigo 394º nº5 do CT consagra uma presunção de culpa juris et de jure. Tal não significa que, não ocorrendo o circunstancialismo que faz operar tal presunção, ainda assim, não possa o trabalhador resolver o contrato, e que não possa provar-se a culpa do empregador, que, aliás, continua a ser onerada com uma presunção, desta feita juris tantum (artigo 799º do C.Civil).

II– Não basta, para afastar a culpa da empregadora pela falta de pagamento pontual e integral da retribuição, que a mesma invoque e prove que enfrentou dificuldades financeiras no período em causa, decorrentes de atrasos no recebimento de pagamentos por parte dos seus clientes, é preciso que alegue e prove que tudo fez para cobrar essas dívidas dos clientes, sem sucesso.

III– Se o dinheiro disponível não permite assegurar o pagamento das retribuições de todos os trabalhadores, deve a empregadora tratar todos de forma idêntica, rateando o valor disponível de forma proporcional, não lhe sendo legítimo, sem qualquer justificação, decidir pagar a uns e não a outros.

IV– Ocorre justa causa para resolução do contrato pela trabalhadora, quando esta foi a única a quem a retribuição não foi paga pontual e integralmente em cerca de dois meses, com o alegado fundamento de dificuldades de tesouraria, não fundamentadas nos termos referidos em II.


(Sumário da Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


I–Relatório


AA intentou a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma de processo comum, contra “BB, LDA.”, pedindo
a) - Seja confirmada a justa causa invocada para a resolução do seu contrato de trabalho;
b) - Em consequência, seja a ré condenada a pagar-lhe:
1. As retribuições e os subsídios de alimentação relativos aos últimos dias de Março e aos meses de Abril e Maio de 2019, a que acrescem, ainda, dias de Janeiro de 2019 e os meses de Março e de Abril de 2018, no valor total de € 3.490,14;
2. As quantias legalmente devidas, emergentes da cessação do contrato de trabalho, no total de € 4.489,48, que se compõe das seguintes parcelas:
- Retribuição e subsídio de alimentação de Junho de 2019: € 149,72;
- Férias vencidas e respectivo subsídio: € 3.000,00 ilíquidos;
- Proporcionais de retribuição de férias, de subsídio de férias e de subsídio de Natal: € 431,51;
- Horas de formação (35h x 3 anos), no valor total de € 908,25.
3. Uma indemnização, no valor de € 76.500,00, pela resolução do seu contrato de trabalho com justa causa, correspondente a 45 dias de retribuição base por cada ano de antiguidade;
4. A quantia de € 5.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, causados pela intimidação, assédio e discriminação da ré sobre a autora, assim como pela violação do seu direito à ocupação efectiva;
5. Juros de mora sobre todos os valores supra, à taxa legal em vigor, devidos desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Alega que, após uma baixa médica, regressou ao seu trabalho habitual nas instalações da Ré, no final de Março de 2019; porém, desde essa data, a gerência da Ré nunca mais lhe atribuiu qualquer função ou tarefa para desempenhar; foi-lhe ostensivamente negado o acesso a informação da empresa e o contacto com o trabalho, tendo ficado numa situação de total inatividade laboral, por decisão unilateral da Ré; apesar dessa situação, continuou a comparecer, diligentemente, no seu local de trabalho; a Ré deixou de lhe pagar as retribuições desde Março de 2019, tendo sido a única trabalhadora a quem isso aconteceu; já em Março e Abril de 2018 a Ré não lhe tinha pago as retribuições; resolveu então o contrato, com invocação de justa causa.
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Foi realizada audiência de partes, não sendo possível a sua conciliação.
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A Ré contestou, impugnando os factos alegados pela Autora, e pedindo a condenação desta como litigante de má-fé.
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A Autora respondeu à contestação, articulado este que apenas foi admitido na parte em que responde ao pedido de condenação como litigante de má-fé.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia.
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Foi proferido despacho saneador, o qual conheceu da validade e regularidade da instância.
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Foi dispensada a fixação da matéria de facto assente e da base instrutória.
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Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
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A sentença decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
I - Declaro com justa causa a resolução do contrato de trabalho operada pela autora;
II - Condeno a ré a pagar à autora:
a)- Uma indemnização no valor de € 25.500,00, acrescido de juros legais a partir do trânsito em julgado da presente sentença e até integral pagamento;
b)- A quantia de € 1.637,08, a título de retribuições dos meses de Março e Abril de 2018 e de Abril e Maio de 2019, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir das datas dos respectivos vencimentos e até integral pagamento;
c)- A quantia de € 3.581,23, a título de retribuição e subsídio de alimentação de Junho de 2019, a título de férias vencidas e respectivo subsídio e a título de proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal, do ano da cessação do contrato, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir das datas dos respectivos vencimentos e até integral pagamento.
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Inconformada, a Ré interpôs recurso, concluindo nas suas alegações que
(…)
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A Autora contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
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A Exma Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir
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II–Objecto
Considerando as conclusões de recurso apresentadas, que delimitam o seu objecto, cumpre decidir se ocorre justa causa para a resolução do contrato por parte da trabalhadora.
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III–Fundamentação de Facto

A – Matéria de Facto Provada
São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância:
A)- Nos 6 meses que antecederam a constituição formal da ora Ré, a Autora começou logo a trabalhar, num escritório arrendado, como Escriturária, no projecto que viria a dar origem à Ré, “BB, Lda.”.
B)- Nessa altura, as funções profissionais da Autora, ao serviço daquela que viria a ser a ora Ré, consistiam em contactar clientes, fornecedores, bancos e outras instituições, assegurando o trabalho administrativo necessário para que a empresa pudesse arrancar a sua actividade.
C)- Em Maio de 1985, a Ré é constituída, tendo como actividade (como ainda hoje) a montagem e reparações eléctricas e ar condicionado e ventilação, e tendo sede, nessa data, na Rua…
D)- Nessa altura, o capital social da Ré era constituído por duas quotas: uma quota de 99%, de que era titular o Sr. CC, Gerente e então companheiro da Autora, e uma quota de 1%, que ficou na titularidade da Autora.
E)- Já ao serviço da Ré, depois da sua constituição, a Autora continuou a desempenhar diariamente, com zelo e diligência, as tarefas administrativas descritas em B).
F)- A Ré foi crescendo e, em 1992, aumentou o seu capital social, adquiriu as quotas da empresa “H”, mudou a sua sede para a Rua dos ..... e contratou mais trabalhadores.
G)- Sensivelmente por essa altura, a Ré abriu ao público uma loja de material eléctrico e de electrodomésticos, tendo a Autora acumulado o atendimento ao público com as suas anteriores funções de Escriturária Especializada.
H)- Em 2002, a Ré adquiriu instalações próprias, tendo-se mudado para a sua actual sede, reforçou o seu capital social e contratou mais trabalhadores.
I)- Em 2004, com novo reforço do capital social da Ré e ampliação do seu objecto social, a Autora passou a deter 50% das quotas da Ré, tendo sido nomeada para o seu Conselho de Gerência.
J)- A nomeação da Autora para a gerência da Ré não teve qualquer impacto no dia a dia profissional, tendo continuado a desempenhar as funções que já antes executava, sendo que, as decisões a nível técnico eram tomadas pelo Sr. VF....., estando o trabalho administrativo a cargo da Autora.
K)- Em 2018, a relação matrimonial da Autora com o gerente da Ré, Sr. CC, culminou num difícil processo de divórcio.
L)- Em 2018, altura em que foi decretado o divórcio, a Autora renunciou à gerência da Ré.
M)- A Autora esteve na situação de baixa médica entre Agosto de 2018 e Março de 2019, altura em que retomou as suas funções na Ré.
N)- Entre 21 de Janeiro de 2004 e 30 de Agosto de 2018, a Autora exerceu o cargo de gerente da Ré.
O)- A Autora, pelo exercício da sua actividade profissional ao serviço da Ré, auferia uma retribuição base mensal de € 1.500,00 ilíquidos, acrescida de um subsídio de alimentação, no valor diário de € 7,63.
P)- A Autora não recebeu a retribuição referente aos dias trabalhados no mês de Março de 2019, no valor líquido de € 61,61, nem o subsídio de alimentação, no montante de € 7,62.
Q)- todos os restantes colaboradores da Ré auferiram pontualmente as respectivas retribuições de Março de 2019.
R)- Em Abril de 2019, a Ré processou à Autora os abonos e descontos discriminados no recibo de vencimento cuja cópia consta de fls. 17 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
S)- Ao contrário do que se verificou com a Autora, todos os restantes colaboradores da Ré, atingido o termo do mês de Abril, viram as suas retribuições serem integralmente pagas pela ré.
T)- Em Maio de 2019, a Ré processou à Autora os abonos e descontos discriminados no recibo de vencimento cuja cópia consta de fls. 17 vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
U)- Ao contrário da Autora e à semelhança do que se verificou nos meses anteriores, todos os colegas de trabalho da Autora receberam, pontual e integralmente, as suas retribuições.
V)- Nos meses de Março, Abril e Maio de 2019, a Autora não recebeu as retribuições devidas.
W)- Em Janeiro de 2019, a Ré processou à Autora os abonos e descontos discriminados no recibo de vencimento cuja cópia consta de fls. 18 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
X)- Em 11 de Junho de 2019, ao abrigo dos nºs 1 e 2 do artigo 395º do Código do Trabalho, a Autora comunicou à Ré, por carta registada e com aviso de recepção, cuja cópia consta de fls. 20 vº a 21 vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, recebida em 12 de Junho de 2019, a resolução do seu contrato de trabalho, alegando com justa causa.
Y)- Não foram pagas à Autora as quantias vencidas emergentes da cessação do contrato de trabalho.
Z)- A Ré enviou à Autora a carta cuja cópia consta de fls. 24 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 25/06/2019, invocando o abandono do trabalho por parte da Autora.
AA)- A Ré enviou à Autora a carta cuja cópia consta de fls. 25 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 28/06/2019, informando que, devido a dificuldades de tesouraria não lhe tinha sido pago o vencimento dos meses de Abril e Maio de 2019 e que, entretanto, fora efectuada uma transferência bancária, no montante de € 818,31, referente ao pagamento de Abril de 2019.
AB)- A Ré enviou à Autora a carta cuja cópia consta de fls. 25 vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 09/07/2019, informando que entendia que tinha ocorrido abandono do trabalho por parte da Autora, com as consequências daí resultantes.
AC)- Em resposta às cartas referidas em Z) e AA), a Autora, por intermédio das suas ilustres mandatárias, enviou à Ré a carta cuja cópia consta de fls. 26 e vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 11/07/2019.
AD)- A Ré preencheu e assinou a Declaração de Situação de Desemprego (Modelo RP-5044), cuja cópia consta de fls. 28 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 16/07/2019.
AE)- A Ré enviou à Autora a carta cuja cópia consta de fls. 28 vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 29/07/2019, informando que não reconhecia a existência de justa causa de resolução do contrato de trabalho, por parte da Autora.
AF)- A Autora, no período compreendido entre Janeiro de 2013 e 26/03/2018, manteve acompanhamento médico por problemas de depressão.
AG)- A Autora, no período compreendido entre 25/01/2019 e 18/03/2019, manteve acompanhamento psicoterapêutico.
AH)- Nos dias 25/01/2019, 29/01/2019, 04/02/2019, 11/02/2019, 18/02/2019,11/03/2019 e 26/03/2019, a Autora compareceu na Clínica Médica Y, por motivo de consulta médica.
AI)- No período compreendido entre 02/07/2018 e 05/06/2019, foi prescrita à Autora a medicação identificada nas guias cujas cópias constam de fls. 33 vº a 35 vº dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
AJ)- O Sócio-Gerente da Ré, CC, desempenhava funções essencialmente técnicas na Ré, enquanto a Autora executava tarefas administrativas.
AK)- A Autora exercia funções com total independência face ao Sócio-Gerente da Ré, CC (à data, seu marido), não executando as suas tarefas em cumprimento de ordens, regras ou orientações do mesmo ou de qualquer outro trabalhador da Ré.
AL)- Em 2018 e 2019, a Autora apresentou certificados de incapacidade temporária para o trabalho referentes aos seguintes períodos:
- De 22/05/2018 a 02/06/2018;
- De 03/06/2018 a 02/07/2018;
- De 03/07/2018 a 01/08/2018;
- De 02/08/2018 a 31/08/2018;
- De 01/09/2018 a 30/09/2018;
- De 01/10/2018 a 30/10/2018;
- De 31/10/2018 a 29/11/2018;
- De 30/11/2018 a 29/12/2018;
- De 30/12/2018 a 28/01/2019;
- De 29/01/2019 a 27/02/2019;
- De 28/02/2019 a 28/03/2019.
AM)- Em 24/01/2019, a Autora recebeu alta médica da Segurança Social.
AN)- Em 01/04/2019, a Autora apresentou-se ao serviço.
AO)- Entre Abril e Junho de 2019, a Autora não compareceu ao serviço diversos dias, nomeadamente:
- 09/04/2019, para acompanhamento da irmã a consulta médica;
- 12/04/2019, por motivo de consulta médica;
- 22/04/2019, por motivo de consulta médica;
- 08/05/2019, para acompanhamento do sobrinho a consulta médica;
- 16/05/2019, para acompanhamento do sobrinho a consulta médica;
- 17/05/2019, por motivo de consulta médica;
- 24/05/2019, por motivo de consulta médica;
- 29/05/2019, para acompanhamento do sobrinho a uma consulta médica.
AP)- A partir de 05/06/2019, inclusive, a Autora não voltou a apresentar-se ao serviço, tendo dito à testemunha DD que ia de férias.
AQ)- Em 2018 e 2019, a Ré enfrentou dificuldades financeiras, decorrentes de atrasos no recebimento de pagamentos por parte dos seus clientes, relativamente a facturas já emitidas.
AR)- A Ré arroga-se a um crédito sobre a Autora, por serviços prestados à mesma, de € 53.872,85, que está em litígio.
AS)- A Ré pagou o subsídio de alimentação à Autora, de € 152,60 (€ 7,63 x 20 dias úteis), no mês de Março de 2018, e de € 160,23 (€ 7,63 x 21 dias úteis), no mês de Abril de 2018.
AT)- Foi a Autora que, nesses meses, emitiu e assinou os cheques bancários da Ré para pagamento do subsídio de alimentação de todos os seus trabalhadores, incluindo a própria autora.
AU)- Foram pagas à Autora várias quantias por conta da remuneração referente aos meses de Março e Abril de 2018, nomeadamente:
- Em 16/07/2018, foram transferidos € 532,50 para a conta bancária da autora, com o comentário “parte ordenado atrasado mar 2018”;
- Em 31/07/2018, foram depositados € 600,00 em numerário na conta bancária da autora;
- Em 16/08/2018, foram transferidos € 200,00 para a conta bancária da autora.
AV)- O recibo de vencimento da Autora relativo ao mês de Janeiro de 2019, referido em W), foi objecto de rectificação, nos termos que constam do recibo de vencimento cuja cópia consta de fls. 122 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
AW)- O recibo de vencimento da Autora relativo ao mês de Março de 2019, foi objecto de rectificação, nos termos que constam do recibo de vencimento cuja cópia consta de fls. 123 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
AX)- O vencimento é, por regra, pago até ao último dia útil de cada mês.
AY)- Em Abril e Maio de 2019, a Ré não dispunha de meios para pagar o vencimento dos seus colaboradores.
AZ)- Por esse motivo, o Sócio-Gerente da ré, CC, fez vários empréstimos à Ré.
BA)- Foi em virtude das dificuldades de tesouraria que a Ré não procedeu ao pagamento pontual da retribuição à Autora, o que não fez, igualmente, relativamente ao seu Sócio-Gerente, CC.
BB)- Em 28/06/2019, a Ré procedeu ao pagamento à Autora, através de transferência bancária, do montante líquido de € 818,31, a título de retribuição base de Abril de 2019.
BC)- Regressando ao serviço, a Autora desempenharia as funções de Escriturária.
BD)- A Autora desempenhava tarefas administrativas, também contactando com bancos e outras instituições, como fazia antes de ter entrado de baixa.
BE)- Habitualmente a divisão de tarefas era feita da seguinte forma: a Autora encarregava-se de encetar os contactos com os bancos e outras instituições para negociação de pagamentos; a DD efectuava orçamentos e emitia facturas, também contactando com bancos, se fosse o caso.
BF)- No primeiro dia em que regressou ao trabalho, a Autora consultou fisicamente pastas de clientes e fornecedores da Ré e também tirou fotocópias.
BG)- A Autora não tinha, nem teve, superior hierárquico a quem reportasse ou de quem recebesse ordens de trabalho e que exercesse controlo sobre o trabalho da mesma, nem em momento algum existiu algum outro trabalhador ou gerente da Ré a atribuir funções à Autora, antes ou após o regresso ao serviço.
BH)- Quando regressou ao trabalho, a Autora não deu conta que a sua secretária tivesse sido mexida na sua ausência e continuou a usar o telemóvel e o veículo de serviço.
BI)- Posteriormente, o sócio-Gerente da Ré solicitou a utilização da viatura para uma deslocação em trabalho ao Algarve, não tendo a Autora voltado a utilizar a viatura.
BJ)- No período em causa estavam em curso negociações para a Autora vender a sua participação na Ré ao Sócio CC e a Autora manteve a liberdade de aceder, solicitar ou copiar documentação referente à empresa.
***

IV–Apreciação do Recurso
Insurge-se a Ré contra a sentença, por a mesma ter considerado verificada justa causa para a resolução do contrato pela trabalhadora, por falta culposa de pagamento das retribuições.
É a seguinte a fundamentação da sentença: “(…) No caso dos autos, ficou provado que a autora enviou à ré a carta, registada e com aviso de recepção, cuja cópia consta de fls. 20 vº a 21 vº dos autos, datada de 11/06/2019 e recebida em 12/06/2019, através da qual comunicou a resolução do seu contrato de trabalho, alegando, além do mais, a falta de pagamento de retribuições relativas aos meses de Março, Abril e Maio de 2019.
Mais se provou que:
- A autora, pelo exercício da sua actividade profissional ao serviço da ré, auferia uma retribuição base mensal de € 1.500,00 ilíquidos, acrescida de um subsídio de alimentação, no valor diário de € 7,63;
- A autora não recebeu a retribuição referente aos dias trabalhados no mês de Março de 2019, no valor líquido de € 61,61, nem o subsídio de alimentação, no montante de € 7,62;
- Ao contrário dos seus colegas de trabalho, nos meses de Março, Abril e Maio de 2019, a autora não recebeu as retribuições devidas;
- Em 28/06/2019, a ré procedeu ao pagamento à autora, através de transferência bancária, do montante líquido de € 818,31, a título de retribuição base de Abril de 2019.
Cfr. alíneas O), P), V) e BB), dos factos provados.
(…)
Ora, em vista dos factos provados, conclui-se que a trabalhadora logrou provar as prestações pecuniárias correspondentes à sua retribuição, relativas aos meses de Março, Abril e Maio de 2019.
Sendo que, ao invés, a ré não logrou provar o pagamento atempado de tais retribuições, nomeadamente as referentes aos meses de Abril e Maio de 2019, cujo não pagamento foi fundamento da resolução levada a cabo pela autora.
Assim, estão verificados os pressupostos formais enunciados no artigo 395º, nº 1, do CT, estando, também, reunidos os requisitos de natureza objectiva e subjectiva supra referidos.
Temos, assim, que, no caso dos autos, a autora logrou fazer a prova de factos que constituem fundamento de resolução do contrato, com justa causa - art. 394º, n.º 2, al. a), e nº 5, do CT.”

Desde logo, nada cumpre decidir acerca da caducidade invocada na conclusão D), porquanto a sentença não fundamentou a licitude da resolução do contrato nos factos ocorridos em 2018, antes nos ocorridos em Março, Abril e Maio de 2019.
Face à data da resolução do contrato, e visto o disposto no art. 7º nº1 da Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro, e nos art. 9º e 11º da Lei 23/2012 de 25 de Junho, é o Código do Trabalho, na versão aprovada por esta última Lei, o aplicável ao presente caso.
Decorre da lei que o trabalhador tem ao seu alcance duas formas de cessação do contrato de trabalho : a denúncia (art. 400º a 402º do CT) e a resolução (cfr. art. 394º a 399º do CT), considerando que a figura do “abandono do trabalho” corresponde a uma situação de ruptura irregular do contrato, em que o trabalhador simplesmente se vai embora e não pretende regressar ao trabalho(cfr. art. 403º do CT), e que a figura da revogação do contrato é consensual.
A resolução implica a ruptura imediata do contrato, pois o trabalhador tem um motivo, grave (exigindo-se que ocorra justa causa, tal como delineada no art. 394º do CT), que o impede que prosseguir aquela relação contratual, enquanto a denúncia tem efeito diferido, inexigindo ao trabalhador a alegação de qualquer razão, bastando que pré-avise o empregador, nos termos da lei.
A Autora decidiu resolver o contrato que a ligava à Ré.
Constitui um dos deveres do empregador “Pagar pontualmente a retribuição, que deve ser justa e adequada ao trabalho(artigo 127º nº 1 al.b) do CT).
E de acordo com o nº 1 do artigo 278º do CT, “O crédito retributivo vence-se por períodos certos e iguais que, salvo estipulação ou uso diverso, são a semana, a quinzena e o mês do calendário, sendo que, nos termos do nº 4 do mesmo artigo, “O montante da retribuição deve estar à disposição do trabalhador na data do vencimento ou em dia útil anterior.
Fica o empregador constituído em mora se o trabalhador, por facto que não lhe seja imputável, não puder dispor do montante da retribuição na data do vencimento (nº 5 do artigo 278º do CT).
Assim, a obrigação de pagar pontualmente a retribuição acarreta para o empregador o dever de pagar a retribuição ao trabalhador na data e nos montantes acordados.
Nos termos do artigo 394º nº1 do CT, Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.
A propósito deste artigo escreve a Professora Maria do Rosário Palma Ramalho[1]: “as situações de justa causa, indicadas para efeitos de resolução do contrato de trabalho, no artigo 394º nº 2 e 3 reconduzem-se a duas categorias: as situações de justa causa subjectiva (art.394º nº 2) cujo enunciado é assumidamente exemplificativo e as situações de justa causa objectiva (394º nº 3). As situações de justa causa subjectiva reportam-se a comportamentos do empregador que traduzem uma violação culposa dos seus deveres. Para este efeito relevam entre outros, os seguintes comportamentos:
i) Comportamentos de violação de deveres contratuais, como a falta culposa do pagamento pontual da retribuição ou a violação das garantias convencionais do trabalhador (als.a) e b) do nº 2 do artigo 394 e ainda nº 5 do artigo 394º.
ii)Comportamentos de violação de deveres legais, como a violação das garantias legais do trabalhador, a aplicação de sanção abusiva (nos termos do artigo 331 do CT), ou o incumprimento culposo de deveres atinentes à segurança, higiene e saúde no trabalho (als.b) c), e d) do nº 2 do artigo 394º.
iii) Comportamentos de deveres gerais, como a lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador, as ofensas à integridade física ou moral, à liberdade, à honra ou dignidade do trabalhador, puníveis por lei e que tenham sido praticadas pelo empregador (als.c)e f) do nº 2 do artigo 394CT.
(…)
[2]para aferição concreta da justa causa, a lei manda atender aos critérios de apreciação da justa causa disciplinar (art.394º nº 4), que são indicados pelo artigo 351º nº 3 com as necessárias adaptações (…) A jurisprudência tem acentuado a necessidade da presença de três requisitos para que se configure uma situação de justa causa subjectiva para a resolução do contrato:
i)Um requisito objectivo, que é o comportamento do empregador violador dos direitos ou garantias do trabalhador;
ii) Um requisito subjectivo, que é a atribuição, desse comportamento ao empregador a título de culpa. Contudo, no que se refere ao requisito da culpa é de presumir a sua verificação, uma vez que estamos no âmbito da responsabilidade contratual, ou seja, por aplicação da regra geral do artigo 799º do CC. Desta presunção decorre o ónus da prova do empregador demonstrar que a situação subjectiva de justa causa alegada pelo trabalhador não procedeu de um comportamento culposo.
iii) Um terceiro requisito que relaciona aquele comportamento com o vínculo laboral, no sentido de tornar imediata e praticamente impossível para o trabalhador, a subsistência desse vínculo (ou seja, em termos comparáveis aos da justa causa subjacente ao despedimento disciplinar). Este requisito retira-se da exigência legal de que a resolução do contrato seja promovida num lapso de tempo muito curto (30 dias sobre o conhecimento desses factos pelo trabalhador, nos termos do artigo 395º nº 1) mas não pode deixar de ser reconduzido à ideia de simples inexigibilidade da manutenção do vínculo laboral.”

Elucidativo é ainda o que, a este propósito, se refere no acórdão do STJ de 6.12.2017: “Donde termos de concluir que para ocorrer justa causa tem que existir um comportamento ilícito do empregador, que seja violador dos deveres que lhe são impostos e das garantias do trabalhador, e que o seu grau de culpa condicione de tal forma a relação laboral que não lhe seja exigível que se mantenha vinculado à empresa.
Impõe, no entanto, o nº 4 do artigo 394º que na sua apreciação devem ser tomadas em consideração as circunstâncias enunciadas no n.º 3 daquele artigo 351º.
Por isso, a resolução do contrato com justa causa e por iniciativa do trabalhador respeita a situações anormais e particularmente graves, em que deixa de ser-lhe exigível que permaneça ligado à empresa por mais tempo.
E assim, só existirá justa causa para o trabalhador se despedir, quando a conduta do empregador satisfizer estes três requisitos:
um de carácter objectivo, traduzido num ou vários comportamentos deste que violem as garantias legais do trabalhador ou ofendam a sua dignidade;
outro de carácter subjectivo, consistente no nexo de imputação desta conduta a culpa exclusiva do empregador;
mas para além disso, exige-se ainda que esta conduta do empregador gere uma situação de imediata impossibilidade de subsistência do contrato, tornando inexigível ao trabalhador que permaneça vinculado por mais tempo à empresa.
Donde termos de concluir que para ocorrer justa causa tem que existir um comportamento ilícito do empregador, que seja violador dos deveres que lhe são impostos e das garantias do trabalhador, e que o seu grau de culpa condicione de tal forma a relação laboral que não lhe seja exigível que se mantenha vinculado à empresa.
Daí que, nem toda a violação de obrigações contratuais por parte do empregador confira ao trabalhador o direito de resolver o contrato.”

Assim, para que se possa concluir pela existência de justa causa de resolução do contrato de trabalho ter-se-á de verificar a falta de pagamento pontual da retribuição, que tal falta decorra de facto imputável e culposo da Ré, e determine a inexigibilidade da manutenção da relação laboral.
Não está em causa a tipificação do contrato como de trabalho, o que as partes aceitam.
Nos termos do disposto no art. 395º nº1 do CT 1- O trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.
2 – No caso a que se refere o nº5 do artigo anterior, o prazo para resolução conta-se a partir do termo do período de 60 dias ou da declaração do empregador.
De acordo com o nº5 do art. 394º Considera-se culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue pelo período de 60 dias, ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão de não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo.”

De acordo com as regras de repartição do ónus da prova, plasmadas no art. 342º nº1 do Código Civil, incumbia à Autora alegar e provar os factos por si invocados para justificar a resolução do contrato de trabalho, porque constitutivos do direito alegado, ou seja, a falta de pagamento pontual de retribuições relativas aos meses de Março, Abril e Maio de 2019.
À Ré cabia provar que a falta de cumprimento da obrigação, a existir, não procedeu de culpa sua (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil) e provar ainda o pagamento das retribuições em falta, dado tratar-se de matéria de excepção (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

Não corresponde à realidade que “ não se aplicando a segunda parte do n.º 5 do artigo 394.º n.º 5 CT, só após decorrido um período de 60 dias contado da data de vencimento da obrigação de pagamento da retribuição é que se considera que há culpa do empregador, e só a partir desse momento é que a Recorrida poderia invocar o artigo 394.º n.º 2 al. a) do CT para resolver o contrato de trabalho. (sic alegações).

De facto, o artigo 394º nº5 do CT consagra uma presunção de culpa juris et de jure. Tal não significa que, não ocorrendo o circunstancialismo que faz operar tal presunção, ainda assim, não possa o trabalhador resolver o contrato, e que não possa provar-se a culpa do empregador, que, aliás, continua a ser onerada com uma presunção, desta feita juris tantum (artigo 799º do C.Civil).[3]
Com interesse para a decisão, resulta provado que, à data da resolução do contrato
- a Autora não recebeu a retribuição referente aos dias trabalhados no mês de Março de 2019, no valor líquido de € 61,61, nem o subsídio de alimentação, no montante de € 7,62 (ponto P);
- nos meses de Março, Abril e Maio de 2019, a Autora não recebeu as retribuições devidas (ponto V);
- Em Abril e Maio de 2019, a Ré procedeu ao pagamento de determinadas quantias (Pontos R e T);
- Parte da retribuição de Abril foi paga em Junho de 2019 (Pontos AA e BB).
Quanto à retribuição de Março de 2019, é preciso ter em consideração que a Autora esteve incapacitada para o trabalho entre 28-02-2019 e 28-03-2019, pelo que apenas tem a receber a quantia de 61,61€, acrescida do montante de 7,62€ referente ao subsídio de alimentação (pontos P, AL, NA dos factos provados). Portanto, quanto às quantias referentes a este mês, as mesmas, à data da resolução, eram devidas há mais de 60 dias, dado que deviam ter sido pagas até ao último dia útil de cada mês (ponto AX), sendo de considerar culposo o incumprimento da Ré, quanto ao não pagamento atempado dessa retribuição, nos termos do artigo 394º nº5 do CT.
Quanto às retribuições de Abril e Maio de 2019, à data da resolução do contrato não estavam em dívida há mais de 60 dias, não operando a presunção de culpa a que alude o nº5 do artigo 394º do CT, ainda assim vigorando a presunção geral a que alude o artigo 799º do C.Civil, presunção esta ilidível.

São os seguintes os factos provados, com relevância para o apuramento da culpa da Ré na falta de pagamento atempado das referidas retribuições:
- em Abril de 2019, a Ré processou à Autora os abonos e descontos discriminados no recibo de vencimento cuja cópia consta de fls. 17 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida. (ponto R dos factos provados);
- ao contrário do que se verificou com a Autora, todos os restantes colaboradores da Ré, atingido o termo do mês de Abril, viram as suas retribuições serem integralmente pagas pela Ré (ponto S dos factos provados);
- em Maio de 2019, a Ré processou à Autora os abonos e descontos discriminados no recibo de vencimento cuja cópia consta de fls. 17 vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida (ponto T dos factos provados);
- ao contrário da Autora e à semelhança do que se verificou nos meses anteriores, todos os colegas de trabalho da Autora receberam, pontual e integralmente, as suas retribuições (ponto U dos factos provados);
- nos meses de Março, Abril e Maio de 2019, a Autora não recebeu as retribuições devidas (ponto V dos factos provados);
- a Ré enviou à Autora carta, datada de 28/06/2019, informando que, devido a dificuldades de tesouraria não lhe tinha sido pago o vencimento dos meses de Abril e Maio de 2019 e que, entretanto, fora efectuada uma transferência bancária, no montante de € 818,31, referente ao pagamento de Abril de 2019 (ponto AA dos factos provados);
- em 2018 e 2019, a Ré enfrentou dificuldades financeiras, decorrentes de atrasos no recebimento de pagamentos por parte dos seus clientes, relativamente a facturas já emitidas (ponto AQ dos factos provados);
- em Abril e Maio de 2019, a Ré não dispunha de meios para pagar o vencimento dos seus colaboradores (ponto AY dos factos provados);
- por esse motivo, o Sócio-Gerente da Ré, CC, fez vários empréstimos à Ré (ponto AZ dos factos provados);
- foi em virtude das dificuldades de tesouraria que a Ré não procedeu ao pagamento pontual da retribuição à Autora, o que não fez, igualmente, relativamente ao seu Sócio-Gerente, CC (ponto BA dos factos provados);
- em 28/06/2019, a Ré procedeu ao pagamento à Autora, através de transferência bancária, do montante líquido de € 818,31, a título de retribuição base de Abril de 2019 (ponto BB dos factos provados).
Não há dúvida que nos anos de 2018 e 2019 a Ré se deparou com dificuldades financeiras e que, nos meses de Abril e Maio, a Ré não possuía meios financeiros para proceder ao pagamento aos seus colaboradores, o que levou a que o Sócio-Gerente da Ré, CC, tivesse feito vários empréstimos à Ré.
Por um lado, como se afirma no acórdão desta Secção supra referido na nota 1 Mas não basta a invocação de problemas de tesouraria para afastar o juízo de censura ético-jurídico em que se traduz a culpa.
Em primeiro lugar, porque a expressão “dificuldades de tesouraria” é conclusiva e de concreto nada esclarece, configurando, quando muito, uma mera “difficultas praestandi” e não uma impossibilidade de pagar.
Em segundo lugar, porque esses problemas de tesouraria podem, eles próprios, ter resultado de condutas culposas da própria Ré ou do seus sócios, e para afastar a mencionada presunção de culpa era essencial que a mesma demonstrasse, em termos concretos, em que consistiram esses problemas de tesouraria qual a sua génese, que não contribuíram para o seu surgimento, nem para o seu agravamento e que adoptaram todas as diligências que lhes eram exigíveis para remover esses problemas e pôr termo a essa situação para poder efectuar o pagamento pontual da retribuição aos seus trabalhadores.
No caso vertente apenas se provou que as aludidas dificuldades de tesouraria se deveram à falta de pagamento de clientes à existência de penhoras de contas bancárias. Mas só se a recorrida e os seus sócios gerentes conseguissem demonstrar que tudo fizeram para cobrar as dívidas dos clientes, sem o conseguirem, ou que as dívidas contraídas pela empresa e de que resultaram as penhoras dos saldos bancários não se deveram a actuação censurável dos seus gerentes e que estes actuaram, nas circunstâncias concretas, como o faria um “bom pai de família” na mira de cumprir pontualmente as suas obrigações salariais, só então a sua actuação seria insusceptível de um juízo de censura ou de reprovação.
Mas essa demonstração não ocorreu no caso em apreço.” Tal como acontece no presente caso, em relação aos atrasos no recebimento de pagamentos por parte dos clientes.
Por outro lado, certo é que, nos dois meses em causa, a Ré pagou a todos os demais colaboradores (excepto ao sócio gerente, CC), o que fez pontual e integralmente. Ora, se a Ré, mesmo por via dos empréstimos feitos pelo seu sócio gerente, conseguiu algum capital que lhe permitiu assegurar o pagamento das retribuições dos seus colaboradores, e se o dinheiro não lhe chegava para pagar à Autora, teria a obrigação de tratar todos de forma idêntica, rateando o valor disponível por todos de forma proporcional. O que não lhe era legítimo era, sem qualquer justificação, que a Ré decidisse pagar a todos os seus trabalhadores, excluindo um deles, sem qualquer justificação.
Não está, portanto, excluída a culpa da empregadora.
Determina o nº4 do artigo 394º que A justa causa é apreciada nos termos do n.º 3 do artigo 351.º, com as necessárias adaptações.”
Ou seja, tal como sucede nos restantes casos enumerados no nº 2 do artigo 394º do CT, o trabalhador sempre terá de alegar e provar os restantes elementos integradores do conceito de justa causa a que alude o nº 3 do artigo 351º, embora de modo mais mitigado do que é exigível ao empregador, posto que, diferentemente deste, não lhe é concedido um leque vasto de reacções perante o incumprimento do empregador, como sucede com este perante o incumprimento do trabalhador.
Face à natureza alimentar e essencial da retribuição, ao valor da retribuição mensal auferida pela Autora, e ao  valor das retribuições em falta, correspondentes a cerca de dois meses, é de concluir que não lhe era exigível, naquelas circunstâncias, manter a relação laboral.
Assim, em consequência do exposto, é de considerar, como considerou o Tribunal a quo, que assistia à Autora o direito de resolver o contrato de trabalho com justa causa com fundamento na falta culposa de pagamento pontual da retribuição, assistindo-lhe, assim, o direito a ser indemnizada nos termos do artigo 396º do CT, nos valores já fixados pelo Tribunal a quo e que não mereceram contestação por parte da Recorrente, a não ser na medida em que considerou que não existia justa causa para a resolução do contrato, desiderato no qual decaiu.

Julga-se, portanto, improcedente a apelação.
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VI–Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente o recurso interposto por BB, LDA., e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Registe.
Notifique.



Lisboa, 25 de Outubro de 2023



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(Paula de Jesus Jorge dos Santos)
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(1º adjunto- Alves Duartevencido conforme declaração que anexo)
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(2º adjuntoLeopoldo Soares)
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Voto vencido porquanto considero não provada a existência de contrato de trabalho entre as partes, pois que a isso se opõe a circunstância de se ter provado a qualidade de gerente da autora e também que a mesma não obedecia a ordens do outro gerente da ré.

Com efeito, a questão de saber se a gerência por sócio de sociedade por quotas pode conviver com a de trabalhador subordinado é, para dizer o menos, muito controversa, precisamente pela eventual impossibilidade de discernir vontades entre o trabalhador e o gerente se reunidos na mesma pessoa e, consequentemente, a admissibilidade de estabelecimento de vínculos de subordinação jurídica e de um modo mais amplo apartar interesses contraditórios daquele e da sociedade enquanto pessoa jurídica autonomizada dos sócios.

Apesar dessa dificuldade, parte significativa da jurisprudência tem considerado que na ausência de interdição legal dessa possibilidade a hipótese não deve ser sem mais excluída, desde logo em homenagem ao princípio sacrossanto civilístico da liberdade contratual que de há muito nos rege e é agora genericamente enunciado no n.º 5 do art.º 405.º do Código Civil. Mas mesmo nesses casos a jurisprudência tem enfatizado a relevância do trabalhador demonstrar[4] o modo efectivo como são realizadas ambas as funções no seio da sociedade para que se possa vislumbrar para lá de qualquer dúvida que afinal a posição de trabalhador subordinado convive com a de gerente da sociedade que o emprega e, naturalmente, como se efectiva a subordinação jurídica perante a sociedade que o contrato de trabalho sempre supõe. Assim foi nos seguintes casos:
VI- Nada estando apurado sobre o modo de execução, por parte da A., da actividade de cozinheira no âmbito da referida sociedade, nomeadamente se enquanto sócia gerente da mesma estava na dependência hierárquica e funcional do outro sócio gerente – cumprindo um determinado horário de trabalho e cumprindo ordens e instruções da sociedade – e não assumindo particular relevância qualificativa o local da prestação, uma vez que a A., necessariamente, tinha de desenvolver as suas funções no restaurante, é de concluir que a A. não logrou provar, como lhe cabia, que, estivesse vinculada à referida sociedade por contrato de trabalho.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-04-2010, no processo n.º 506/06.8TTGRD.C1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt

I- São elementos do contrato de trabalho a subordinação económica, que se concretiza pelo pagamento do trabalho, e a subordinação jurídica, que se manifesta pelo poder que a entidade empregadora tem de dar ordens e instruções para a execução do trabalho, as quais são vinculativas para o trabalhador, subordinação esta que distingue o contrato de trabalho dos contratos afins, designadamente o de prestação de serviços e o de mandato.
II- Em princípio, é incompatível a cumulação na mesma pessoa das posições jurídicas emergentes do contrato de trabalho e da qualidade de sócio-gerente de uma sociedade por quotas. Só assim não será se se provar existir uma relação de subordinação entre o sócio-gerente e a sociedade comercial.
III- Não estando provada nos autos a relação de subordinação, atendendo ao carácter de efectividade das funções de gerência, tem-se por cessada a relação laboral no momento de aquisição das quotas, em que o agora sócio, ex-trabalhador, passou a ter as funções de gerente, visto ter terminado aí a subordinação jurídica dele à sociedade comercial.
Acórdão da Relação de Guimarães, de 13-02-2014, no processo n.º 2690/12.2TBGMR-B.G1, publicado em http://www.dgsi.pt

2. Nas sociedades por quotas, detendo o gerente poderes de autoridade, direcção, fiscalização e disciplina dos respectivos trabalhadores, ocorre, em princípio, uma situação de incompatibilidade entre o exercício simultâneo dessas funções de gerente e as de trabalhador.
3. Admite-se, porém, que possa ocorrer a coexistência do contrato de trabalho com o exercício das funções de gerente de sociedade por quotas, nomeadamente nas situações de anterioridade do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio-gerente, à existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes, e ao exercício de tarefas não tipicamente de gerência.
4. Ao sócio que foi um dos fundadores da sociedade, detendo ultimamente metade do capital social, tendo sempre exercido as funções de gerente e sendo nos últimos anos o único gerente, não podem ser-lhe reconhecidos créditos de natureza laboral, por incompatibilidade do exercício daquelas funções com a subordinação jurídica característica do contrato de trabalho.
Acórdão da Relação de Évora, de 06-04-2017, no processo n.º 127/15.4T8STR-B.E1, publicado em http://www.dgsi.pt

I- A qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas não impede o reconhecimento da qualidade, também, de trabalhador, não vigorando aqui o impedimento estabelecido no art.º 398.º, n.º 1 do CSC para as sociedades anónimas.
II- Contudo, esse reconhecimento de um vínculo laboral depende sempre da demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo, sendo o respectivo ónus de prova do autor.
III- O mero pagamento, pela sociedade, de um rendimento mensal não chega para se concluir, quer pela existência de um contrato de trabalho, quer pela existência de créditos por retribuições em atraso, subsídios de férias e/ou de natal (posto que estas prestações são inerentes a um contrato daqueles).
Acórdão da Relação do Porto, de 21-01-2019, no processo n.º 12602/16.9T8PRT.P1, publicado em http://www.dgsi.pt

Ainda que se admita a possibilidade de exercício de gerência de sociedade mediante contrato de trabalho, tal sempre dependeria da prova da subordinação jurídica, com demonstração do circunstancialismo demonstrativo de tal subordinação, como os efectivos poderes sobre tal gerente, por parte da sociedade ou de outro gerente.
Acórdão da Relação de Guimarães, de 16-12-2021, no processo n.º 1154/20.5T8BCL-A.G1, publicado em http://www.dgsi.pt

Todavia, apesar disto o que ocorre no caso é que, como vimos atrás, a apelada era gerente da ré e também que não obedecia a ordens do outro gerente desta, ou seja, existe uma completa confusão entre aquela e esta qualidade, pelo que assim sendo não é admissível considerar provada a existência de um vínculo de subordinação jurídica entre as partes e muito menos ainda presumir que assim fosse.

               ____________
(Alves Duarte)



[1]Direito do Trabalho Parte II-Situações Laborais Individuais”, pag.1007.
[2]Páginas1010 e 1011 da mesma obra.
[3]No mesmo sentido, acórdão desta Secção, de 12-10-2016 – Processo 244/14.8TTALM.L1, em cujo sumário se pode ler – “I–Com o CT 2009, quer o atraso no cumprimento do pagamento da retribuição seja inferior ou superior a 60 dias, a resolução do contrato é sempre efectuada (apenas) ao abrigo do regime consagrado no seu art. 394°, com a única diferença de que, na primeira situação, o atraso se presume, nos termos do art. 799º do Cod. Civil, culposo, presunção essa ilidível e, no segundo caso, a lei, por via do n° 5 desse art. 394° do CT, ficciona esse incumprimento como culposo, presunção esta inilidível.”
[4]Pois é ele quem se mostra onerado com o respetivo ónus, nos termos do art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil.