Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1944/21.1T8CSC.L1-6
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
ACTIVIDADE PERIGOSA
EXCLUSÃO DE COBERTURA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - À luz do princípio do dispositivo, consagrado no artigo 5.º, do Código de Processo Civil, cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. Excepcionando a ré a exclusão do âmbito de cobertura do seguro o risco de morte resultante de actividade manifestamente perigosa, a altura ao solo de 3,5 metros constitui facto principal que fundamenta tal excepção. Em face desse princípio, não se verifica qualquer omissão da sentença, nem é lícito ao tribunal suprir a falta de alegação do facto que se pretende introduzir em julgamento, a pretexto da modificação da matéria de facto.
- Provou-se apenas que o sinistrado faleceu na sequência de queda do mesmo de cima do telhado da sua casa, quando se encontrava a limpar a respectiva caleira. A limpeza de uma caleira no telhado de uma casa poderá ser uma actividade perigosa. Mas não é manifesto que o seja. Também poderá ser uma actividade de reduzido ou inexistente perigo. Tudo dependerá do conceito de perigo que seja adoptado e das circunstâncias particulares em que essa actividade é desempenhada.
- No âmbito de um contrato de seguro de acidentes pessoais cuja apólice foi elaborada pela seguradora, não havendo outros elementos para integrar o entendimento do destinatário relativamente a uma cláusula de exclusão de cobertura, prevalece o princípio IN DUBIO CONTRA PROFERENTEM.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
1.1. A autora A, viúva, por si, e na qualidade de progenitora e legal representante do autor B, menor de idade, e ainda C, demandaram a ré Ocidental- Companhia de Seguros, S.A., peticionando que esta seja condenada a pagar àqueles a importância segura de €50.000, acrescida de juros de mora vencidos desde fevereiro de 2020 até à data da entrada em juízo da petição, computados à taxa legal 4%, e que perfazem a quantia de €2.591,78 e ainda, nos vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral e efectivo pagamento.
Alegaram que em 12.08.2016 faleceu D, marido da primeira A. e pai da segunda e terceiro AA.. Faleceu em consequência de acidente ocorrido na sua residência. Sucederam-lhe como únicos e universais herdeiros os autores.
Em 10-11-2010, na Agência do Banco Comercial Português (Millennium BCP) de Peso da Régua, mediador, foi celebrado um contrato de seguro entre a Ocidental Companhia de Seguros S.A., ora Ré, e a Sociedade Agrícola Quinta do Beato, Lda. Contrato de seguro esse, denominado de “Acidentes pessoais – Protecção Capital Empresas”. No referido contrato, titulado pela apólice AG …61, e entre outros, a pessoa segura foi o referido D.
Em 5.02.2020 foi a participação do falecimento formalizada junto da ora ré, que se recusa a assumir a sua responsabilidade em pagar aos autores a importância segura, no montante de €50.000.
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1.2. A ré contestou a acção, referindo desconhecer em que moldes faleceu o Sr. D. Fazendo fé no que lhe foi participado, o acidente terá ocorrido da forma descrita na participação e que aqui se dá por integralmente reproduzida: “No dia 12 de Agosto de 2016, pela manhã subiu ao telhado para limpar os caleiros, de seguida caiu, foi chamado o INEM que chegou após 30 minutos. Foi levado para o hospital de vila real e +/- pelas 14H, faleceu”. As Condições Gerais do Seguro - artigo 9º, parágrafo 7 – excluem expressamente a cobertura relativamente aos acidentes verificados no exercício de atividades de construção civil e conexas.
A tarefa de limpeza de calheiros corresponde a uma atividade de construção civil ou, pelo menos, é atividade conexa. Caso assim não se entenda, é manifesto que se trata de atividade manifestamente perigosa.
Pelo que, em qualquer caso, a cobertura do acidente ocorrido durante essa limpeza está excluída do âmbito do contrato de seguro.
Terminou referindo que deverá ser julgada procedente a exceção invocada ou, caso assim não se entenda, deverá a presente ação ser julgada improcedente.
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1.3. Os autores responderam que o D faleceu em consequência de um acidente ocorrido na sua residência, não se encontrando por isso, a desenvolver qualquer actividade de âmbito profissional ou a prestar algum serviço a terceiros ao abrigo de qualquer contrato de trabalho ou prestação de serviços. Querer, como pretende a Ré, enquadrar sem mais, a actuação do falecido D, como sendo a prática de uma “actividade manifestamente perigosa” e assim pretender justificado o não pagamento do prémio de seguro aos seus herdeiros, é, salvo o devido respeito e melhor entendimento, contrário ao princípio da boa fé, aos ditames legais, Jurisprudência e Doutrina dominantes.
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1.4. Os autos foram saneados e, após julgamento, foi proferida sentença que decidiu julgar integralmente procedente o peticionado e, em consequência, condenou a ré Ocidental Companhia de Seguros, S.A., a pagar aos autores o valor de €50.000,00 (Cinquenta mil euros), acrescido de juros de mora vencidos desde o mês de Fevereiro de 2020 até à data de 15-6-2021 (momento em que a presente acção foi instaurada), computados à taxa legal 4%, e que perfazem a quantia de € 2591,78 (Dois mil, quinhentos e noventa e um euros e setenta e oito cêntimos); e, ainda, condenou a ré nos juros de mora vincendos desde a data da sua citação e até integral e efectivo pagamento.
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1.5. A ré insurge-se contra a sentença, mediante a presente apelação, que concluiu da seguinte forma:
i. Tendo em conta o depoimento da testemunha D (dia 21- 11-2023, entre 34:00 e 34:40), impõe-se dar como provado o seguinte facto: ““F. D falece na sequência de queda do mesmo de cima do telhado da sua casa, quando se encontrava a limpar a respectiva caleira, a cerca de três metros e meio do solo.”.
ii. Pelo que se requer que o Tribunal da Relação de Lisboa decida pela alteração do facto f da matéria de facto dada como provada.
iii. Foi dado como provado que D falece na sequência de queda do mesmo de cima do telhado da sua casa, quando se encontrava a limpar a respetiva caleira [a cerca de três metros e meio do solo].
iv. Importa subsumir este facto dado provado à previsão do artigo 9.º, n.º 4, das condições gerais e especiais aplicáveis ao contrato de seguro.
v. Tratando-se o seguro celebrado entre as partes de um negócio jurídico formal – de natureza facultativa, reforce-se –, haverá que contar com a aplicação das regras gerais dos negócios jurídicos estabelecidas nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil.
vi. O que determina a qualificação de uma atividade como manifestamente perigosa é a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que resulta da sua própria natureza ou da natureza dos meios utilizados.
vii. Entende a Recorrente que um qualquer declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, perante a sobredita cláusula, não pode deixar de qualificar a subida a um telhado para limpeza de caleiras, sem qualquer resguardo e equipamento de segurança, como atividade manifestamente perigosa.
viii. Resta concluir que a douta sentença incorreu em erro na interpretação e aplicação do Direito ao não considerar preenchida a previsão do artigo 9.º, n.º 4, das condições gerais e especiais aplicáveis ao contrato de seguro, erro esse que urge retificar, revogando a douta sentença recorrida.
ix. Termos em que deve ser julgada improcedente a ação em relação ao pedido formulado pelos Autores (ora Recorridos), deste absolvendo a ora Recorrente.
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1.6. Os autores contra-alegaram referindo que não deve ser modificada a matéria de facto, com base no teor parcial do depoimento da testemunha, e reiterando a posição já expressa no articulado de resposta. Deverá o recurso ser julgado totalmente improcedente e a douta sentença recorrida confirmada.
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1.7. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da recorrente e centram-se no seguinte:
- Aditamento do seguinte facto: [a queda do sinistrado ocorreu] a cerca de três metros e meio do solo; e,
- Se a subida a um telhado para limpeza de caleiras, sem qualquer resguardo e equipamento de segurança, se reconduz a uma atividade manifestamente perigosa e excluída da cobertura da apólice de seguro.
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2. Fundamentação.
2.1. Foi julgado provado que:
a. A Autora A casou com D.
b. Os Autores B e C são filhos de D.
c. Pela apólice n.º AG…61, a Ré declarou perante a “Sociedade Agrícola Quinta do Beato Lda.” (…) Condições Gerais e Especiais da Apólice Seguro de Acidentes Pessoais - Proteção Capital Empresas Artigo preliminar Entre a Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., adiante designado por Segurador, e o Tomador do seguro mencionado nas Condições Particulares e nos Certificados Individuais, estabelece-se um contrato de seguro que se regula pelas presentes Condições Gerais, Especiais e Particulares da Apólice, de harmonia com as declarações prestadas na Proposta que lhe serve de base e da qual fica a fazer parte integrante.
Artigo 1.º - DEFINIÇÕES Para efeitos do presente contrato entende-se por: ACIDENTE: acontecimento fortuito, súbito e violento, devido a causa exterior e estranha à vontade do Tomador do Seguro, do Beneficiário e da Pessoa Segura e que nesta origine lesões corporais, Invalidez Temporária ou Permanente ou Morte, clínica e objetivamente constatada; (…) BENEFICIÁRIO: pessoa singular ou coletiva, destinatária do benefício garantido; (…)
Artigo 2.º - OBJETO DO CONTRATO 1- Pelo presente contrato, o Segurador garante, o pagamento das indemnizações contratualmente estabelecidas em consequência de acidente sofrido pela Pessoa Segura de que resulte Invalidez Total e Permanente ou Morte, através do pagamento de uma renda mensal e de um capital inicial ou de um capital único (…)
Artigo 4.º - COBERTURAS BASE Pelo presente contrato ficam garantidos em caso de acidente os seguintes riscos: (…) 2 - Morte da Pessoa Segura - no caso de Morte da Pessoa Segura em consequência de acidente coberto pelo presente contrato, ocorrida imediatamente ou no decurso de dois anos, o Segurador pagará as indemnizações aos respetivos Beneficiários. (…)
Artigo 9.º - RISCOS RELATIVAMENTE EXCLUÍDOS Ficam igualmente excluídos os riscos a seguir discriminados, salvo convenção expressa em contrário, constante das Condições Particulares ou do Certificado Individual, e mediante o pagamento do respetivo sobreprémio: (…)
4 - Acidentes decorrentes do exercício de ocupações ou atividades manifestamente perigosas, tais como: a participação em corridas de veículos automóveis e respetivos treinos e percursos, caça de animais ferozes, boxe, tauromaquia outros desportos análogos na sua perigosidade e que não sejam mencionados no n.º 2.3 do Artigo 5. (…)
7 - Acidentes verificados no exercício de atividades de construção civil e conexas, demolições, fabricação, transporte e utilização ou manuseamento de explosivos, trabalhos em minas, obras públicas, em estaleiros, serrações, atividades de tecelagem e outras atividades de natureza e perigosidade semelhante e bem assim profissões de pilotos, motoristas, choferes, condutores, tripulação de: navios e barcos, de Aviação (ar e terra), Forças Armadas, serviços de ambulâncias, fábricas e estabelecimentos industriais. (…)
Artigo 21.º – CLÁUSULA BENEFICIÁRIA (…) 2 - Não havendo designação beneficiária em caso de Morte, o capital seguro será pago aos Herdeiros Legais da Pessoa Segura, segundo a ordem estabelecida nas alíneas a) a d) do n.º 1 do Artigo 2133 do Código Civil.
Condições particulares da Apólice (…) Detalhe da Pessoa Segura | Proteção Capital Empresas F3L Nome NIF Idade Data de Adesão Profissão D (…) Coberturas Base (…) Morte ou Invalidez Permanente €50.000,00 (…)».
d. D faleceu em 12 de Agosto de 2016.
e. A “Sociedade Agrícola Quinta do Beato Lda.” comunicou à Ré o facto referido na alínea d. em 05 de Fevereiro de 2020.
f. D falece na sequência de queda do mesmo de cima do telhado da sua casa, quando se encontrava a limpar a respectiva caleira.
g. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da Autópsia realizada a 13-01-2017 por Perito Médico do INM, Ip. – Gabinete Médico-legal e Forense do Douro (cfr. certidão extraída dos autos de inquérito n.º 1109/16.4T9VRL, junta pelos autores através do requerimento autuado a 12-9-2023). Do respectivo relatório da Autópsia transcreve-se aqui as conclusões: “Informação circunstancial, achados necrópsicos e análises toxicológicas compatíveis com morte de causa traumática em acidente doméstico.”.
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2.2. A pretendida modificação da matéria de facto.
O artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente o dever de obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A questão trazida pela apelante a propósito da matéria de facto, não se traduz em qualquer concreto ponto de facto que a mesma considere incorretamente julgado. Nenhuma objecção foi apontada ao tribunal a quo em termos de erro de julgamento.
Na realidade e como vimos, o tribunal julgou provado que:
f. D falece na sequência de queda do mesmo de cima do telhado da sua casa, quando se encontrava a limpar a respectiva caleira.
E a apelante pretende que se dê antes como provado que:
f. D falece na sequência de queda do mesmo de cima do telhado da sua casa, quando se encontrava a limpar a respectiva caleira, a cerca de três metros e meio do solo.
A única modificação consiste apenas no aditamento de um novo facto: [o D sofreu a queda quando se encontrava] a cerca de três metros e meio do solo.
Logo, a problemática não reside no erro de julgamento, mas sim na eventual omissão de pronuncia sobre um determinado facto: a altura ao solo.
Nos termos do disposto no art.º 6’7.º, do Código de Processo Civil, na elaboração da sentença, o juiz deverá identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar:
3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Se o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento a sentença será nula – art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. De qualquer forma, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Assim, em primeiro lugar, cumpre perguntar se o tribunal a quo omitiu a pronuncia sobre a questão da altura do solo. E a busca pela resposta deverá começar pela invocação do princípio do dispositivo, consagrado no artigo 5.º, do Código de Processo Civil:
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
(…)
Ora, era à ré que competia alegar o facto principal ou essencial em causa, visto que a altura de cerca de três metros e meio do solo relevará para eventualmente alcançar uma determinada conclusão ou juízo, nomeadamente quanto à perigosidade da actividade desenvolvida pelo infeliz D. No entanto, a ré não alegou tal facto, como era seu ónus. Tão pouco o fizeram os autores.
Por outro lado, ainda na perspectiva da apelante, a questão da altura não será um facto instrumental, pois “os factos instrumentais (ou probatórios) são os factos que permitem, através de uma presunção legal ou natural, inferir um outro facto, nomeadamente um facto essencial” – Miguel Teixeira de Sousa, A função dos factos instrumentais e a possibilidade de considerar não provado um facto essencial admitido por acordo, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2015/01/a-funcao-dos-factos-instrumentais-e.html. A apelante não se propõe com o pretendido aditamento (“a cerca de três metros e meio do solo”) que se presuma, legal ou naturalmente, qualquer outro facto concreto e essencial. Pelo menos, não o concretizou. E o perigo em si não é um facto, mas um juízo ou conclusão.
Assim, em face do princípio do dispositivo, não se verifica qualquer omissão da sentença, nem é lícito ao tribunal suprir a falta de alegação do facto que se pretende introduzir em julgamento, a pretexto da modificação da matéria de facto.
Por esse motivo, considera-se prejudicado o conhecimento da pretendida alteração da matéria de facto.
Em sentido concordante no que diz respeito à desconsideração dos factos essenciais só introduzidos em recurso de apelação, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/2/2021: “O facto novo invocado no recurso é, para esse efeito, estranho ao facto que consubstancia a excepção invocada na contestação: não se integra nesta, não a concretiza, nem a complementa.
Constitui, no fundo, um novo fundamento de defesa, entendendo-se, por isso, que não teria de ser considerado pela Relação ao abrigo da aludida disposição legal.
Importa, aliás, acrescentar que, da acta da audiência de julgamento nada consta a este respeito – consideração e aproveitamento do facto novo que teria resultado da instrução – não derivando dos autos notícia de que o Sr. Juiz ou as partes tenham tomado posição sobre essa questão.
Ora, o facto novo, concretizador ou complementar de outro facto principal anteriormente alegado, teria, para o aludido efeito, de resultar da instrução com um mínimo de consistência, não sendo suficiente, parece-nos, que, como no caso, no depoimento (contra-interrogatório) de uma testemunha, lhe seja feita uma referência breve, imprecisa e, de modo nenhum, inequívoca ["tanto quanto é possível (afirmar) até esta data (…). Estava confinado à tiroide"].
Daí que, de qualquer modo, não pudesse afirmar-se que ocorreu uma omissão censurável do julgador, por não ter considerado oficiosamente o novo facto invocado pela recorrente, sendo certo que isso implicaria ainda que fosse cumprido o contraditório (alertando as partes para a intenção de ampliar a matéria de facto) e se desse às partes oportunidade de requererem a produção de novos meios de prova sobre esse facto, o que também não se verificou no caso.
Em decorrência lógica do que acaba de dizer-se, também não parece possível que, sem o acordo das partes, a Relação pudesse, no âmbito da reapreciação da prova, aditar à matéria de facto um facto novo, nos termos do art.º 5º, nº 2, al. b), do CPC” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 51/19.1T8LRA.C1.S1.
Além disso, também se nota que a circunstância do D se encontrar a cerca de três metros e meio do solo – como propõe a apelante e é disputado pelos apelados – também é insuficiente para influenciar a decisão, pelas razões infra consignadas. O que torna igualmente desnecessário o conhecimento do indicado facto.
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2.3. A segunda questão trazida pela apelante reconduz-se à subsunção dos factos à previsão do artigo 9.º, n.º 4, das condições gerais e especiais aplicáveis ao contrato de seguro, que exclui os riscos discriminados de acidentes decorrentes do exercício de ocupações ou atividades manifestamente perigosas e verificados no exercício de atividades de construção civil e conexas.
Tal questão remete para a interpretação e integração do contrato de seguro e, particularmente, para o princípio geral enunciado no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil: “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
Evidencia-se dos autos, particularmente da apólice que a ré apresentou com a contestação, que as condições foram aí exaradas pela seguradora, incluindo as relativas aos riscos relativamente excluídos. O Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril) impõe ao segurador a obrigação de prestar todos os esclarecimentos exigíveis e informar o tomador do seguro das condições do contrato, nomeadamente do âmbito do risco que se propõe cobrir e das exclusões e limitações de cobertura – art.º 18.º.
Tratando-se de cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, o contrato está sujeito à disciplina do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, particularmente ao seu artigo 11.º, relativo às cláusulas ambíguas:
1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real. 
2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.
A redacção do mencionado art.º 9.º da apólice contém exclusões que se reputam relativamente inequívocas, tais como a indicação da participação em corridas de veículos automóveis, boxe ou tauromaquia. Mas também contém exclusões ambíguas, nomeadamente a exclusão de acidentes decorrentes do exercício de ocupações ou actividades manifestamente perigosas. A ambiguidade resulta da inexistência de uma definição contratual de ocupações ou actividades manifestamente perigosas.
Por vezes, a lei alude a uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados – cfr. art.º 493.º, do Código Civil. Mas nada resulta em como haja coincidência de conceitos entre o que está consagrado nessa ou noutra norma legal e o que a ré estipulou na apólice a que o tomador aderiu.
A ambiguidade da redacção do mencionado art.º 9.º é clamorosa, na medida em que foi elaborada por empresa que exerce comercialmente a actividade seguradora. A ré deveria conhecer as suas obrigações (nomeadamente quanto à informação) e ter o especioso cuidado e competência para redigir as cláusulas de exclusão com o maior rigor, exactidão e clareza, na medida em que potencialmente podem lesar os interesses dos tomadores e beneficiários e também porque as dúvidas sempre serão resolvidas contra si.
Não obstante, a seguradora refugia-se na redacção ambígua das suas próprias cláusulas e quer fazer-se prevalecer da sua interpretação, mediante uma construção argumentativa. Porém, a exigência do dever de informar e a natureza da actividade seguradora não se compadecem com construções argumentativas. O labor da seguradora deverá evidenciar-se na redacção clara e precisa da apólice e não nas alegações perante o tribunal, perante uma questão que podia e devia ter sido clara e inequivocamente explicitada nessa mesma apólice. Não obstante, as seguradoras continuam a comparecer perante o tribunal munidas de apólices com cláusulas desnecessariamente ambíguas. 
A ambiguidade da redacção da cláusula manifesta-se na lacónica escolha dos termos, nomeadamente na indefinição quanto ao perigo. Qual é exactamente o perigo a que alude o art.º 5.º? É o perigo de morte, de ocorrência de lesões físicas, de lesões psicológicas? À partida, até passear na praia ao sol poderá ser uma actividade perigosa, no sentido de ser apta a provocar insolação ou queimaduras, eventualmente incapacitantes. Porém, o perigo não consta das definições do artigo 1.º na apólice elaborada pela seguradora. A grande vantagem para a seguradora, ao não definir expressamente qual é o perigo relevante, é a circunstância de impedir qualquer juízo de incompatibilidade com as cláusulas que preveem a cobertura do seguro. Eventualmente, se a seguradora tivesse definido o perigo excluído pelo seguro, poder-se-ia colocar a questão da contradição com o proclamado âmbito garantido pelo seguro.
E a seguradora revelou uma ampla capacidade de enumerar actividades ou situações, como se alcança do artigo 5.º, § 2.3. da mesma apólice. Por conseguinte, a dificuldade não está na incapacidade de indicar as exclusões, mas sim na escolha de uma enunciação ambígua.
Por outro lado, para a exclusão não basta o perigo. É preciso que o perigo seja manifesto. O que remete para os conceitos de notório, do conhecimento geral e que qualquer pessoa de normal diligência pode notar.
Provou-se apenas que D faleceu na sequência de queda do mesmo de cima do telhado da sua casa, quando se encontrava a limpar a respectiva caleira. A limpeza de uma caleira no telhado de uma casa poderá ser uma actividade perigosa. Mas não é manifesto que o seja. Também poderá ser uma actividade de reduzido ou inexistente perigo. Tudo dependerá do conceito de perigo que seja adoptado e das circunstâncias particulares em que essa actividade é desempenhada, nomeadamente:
- A altura ao solo (a disputada altura de 3,5 metros apenas revela que a casa seria de apenas um piso ou relativamente baixa);
- A configuração e inclinação do telhado;
- As condições meteorológicas, eventualmente a ocorrência de chuva ou vento;
- A existência ou inexistência de medidas de protecção colectivas (vg. guarda-corpos) e individuais (vg. linha de vida);
- A exacta posição do sinistrado (vg. a andar em cima do telhado ou apenas debruçado sobre o telhado);
- Etc.
Basta atentar que, apesar de se referir expressamente a obras em telhados – o que não se afigura ser o presente caso, mas que se convoca por razões de interpretação sistemática –, o art.º 44.º do Decreto nº 41821, de 11 de Agosto de 1958, não reconhece automaticamente um nível de perigo a tais locais que justifique a imediata adopção de medidas de segurança, mas antes estabelece outros requisitos: “No trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo” – cfr. igualmente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/9/2017, disponível na base de dados da DGSI, processo 1855/11.9TTLSB, e demais arestos citados nas doutas contra-alegações. Se fosse manifesto que qualquer actividade desenvolvida num telhado fosse manifestamente perigosa, o legislador teria imposto em todas e quaisquer circunstâncias a tomada de medidas especiais de segurança. O que não sucedeu.
Não havendo outros elementos para integrar o entendimento do destinatário, prevalece o princípio IN DUBIO CONTRA PROFERENTEM, ou seja, o sentido mais favorável ao aderente – cfr. Moitinho de Almeida, in Contrato de Seguro, Coimbra, 2009, pág. 130, e o acórdão de 6/7/2023 desta Secção, disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 2040/22.3T8FNC.L1-6.
E o sentido mais favorável ao aderente (neste caso, os beneficiários) é que o contrato abrange o evento mortal e não está excluído pela circunstância do sinistrado ter caído do telhado quando procedia à limpeza de uma caleira.
Por conseguinte, a douta sentença recorrida não merece os reparos apontados na apelação, impondo-se a sua confirmação.
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3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença.
3.2. As custas são a suportar pela apelante.
3.3. Notifique.

Lisboa, 23 de Maio de 2024
Nuno Gonçalves
Jorge Almeida Esteves
João Manuel P. Cordeiro Brasão