Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12005/22.6T8LSB.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: CONDOMÍNIO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
MERA ADMINISTRAÇÃO
EXTINÇÃO DA SERVIDÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O condomínio resultante da propriedade horizontal tem personalidade judiciária no âmbito de ações que se inserem na esfera de poderes do administrador do condomínio (artigo 12.º, alínea e), do CPC).
II. A administração das partes comuns do edifício incumbe à assembleia de condóminos e a um administrador (artigo 1430.º, n.º 1, do CC).
III. Entre as funções do administrador do condomínio contam-se as que lhe sejam atribuídas pela assembleia de condóminos e a execução das deliberações da mesma assembleia que não tenham sido objeto de impugnação (n.º 1 do artigo 1436.º do CC).
IV. O pedido de extinção de uma servidão de passagem sobre um corredor lateral comum dos condóminos do prédio serviente, e que o onera a favor do prédio vizinho (dominante), constitui um ato de mera administração, que melhora ou valoriza o património, sem risco de perda ou de alteração material do mesmo.
V. O condomínio representado pelo respetivo administrador tem, na sequência de deliberação da assembleia de condóminos, personalidade judiciária e legitimidade ativa na ação que intenta contra os proprietários do prédio dominante contíguo, e pela qual pede a extinção de servidão de passagem que o onera.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo identificados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
Condomínio do Prédio sito na Avenida …, n.ºs 104 a 114, Lisboa, com o número único de matrícula e pessoa coletiva …, representado pelos seus administradores, intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra
Herança aberta por óbito de “BB”, contribuinte fiscal …, representada pela cabeça de casal “CC”, contribuinte fiscal n.º …,
“DD”, contribuinte fiscal n.º …,
“EE”, contribuinte fiscal n.º …, e
“FF”, contribuinte fiscal n.º …, pedindo que seja declarada extinta a servidão de passagem que incide sobre o prédio do autor a favor do prédio dos réus.
Para tanto e em síntese, alegou que:
- O prédio do autor situa-se na Av. …, n.ºs 104 a 114, em Lisboa e é contíguo ao prédio dos réus, com o n.º 116 da mesma avenida;
- Por escritura pública celebrada em 8 de maio de 1943, pelos então proprietários do prédio autor (serviente) foi constituída servidão de passagem a favor do prédio dos réus (dominante), “para peão pelo corredor lateral das nove horas até às dezanove horas de todos os dias”;
- Aquando da constituição da servidão, o prédio dominante era um terreno para construção, sem qualquer edificação e, presume, encravado, pois nenhuma outra razão encontra para a servidão;
- O prédio dos réus confronta com a via pública, pelo que não necessita da servidão;
- Em assembleia, os condóminos do autor deliberaram requerer judicialmente a extinção da servidão.
Após citação, foram apresentadas contestações, todas acompanhadas de reconvenções.
A ré herança alegou que a servidão constituída a favor do prédio dos réus constitui uma pura servidão voluntária que jamais teve a sua génese numa situação de encravamento, pois o prédio dos réus sempre teve, nomeadamente tinha em 8 de maio de 1943, comunicação direta com a via pública, em particular com a Avenida …
Termina pedindo que a ação seja julgada improcedente por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido, e que a reconvenção seja julgada procedente e o autor condenado a reconhecer a existência da servidão de passagem para peão sobre o seu prédio a favor do dos réus, e que incide sobre o corredor lateral em causa nos autos, para ser utilizado das 09:00 até às 19:00 todos os dias, conforme acordado na escritura pública outorgada em 8 de maio de 1943, bem como a permitir o acesso e o uso da mesma servidão aos utilizadores do prédio dos réus.
A ré “DD” contestou autonomamente, mas de modo substancialmente idêntico e com semelhante reconvenção.
Na sua contestação, os réus “EE” e “FF”, além de conteúdos semelhantes aos das anteriores contestações, suscitaram a ilegitimidade do autor, por entenderem que a ação apenas pode ser proposta por todos os condóminos, na medida em que influirá na extensão dos respetivos direitos de propriedade, e terminam pedindo que:
- a exceção da ilegitimidade ativa seja julgada procedente, com as legais consequências, designadamente, absolvição da instância;
- a ação seja julgada improcedente por não provada e, consequentemente, os réus absolvidos dos pedidos, com as legais consequências;
- a reconvenção seja julgada procedente por provada e, em consequência, o autor condenado a pagar aos reconvintes: i. uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 1.000,00 por cada dia em que mantiver o portão de acesso ao corredor objeto da servidão fechado sem fornecer chaves aos réus, ou impedir o uso do mesmo corredor para os efeitos da servidão de passagem; ii. a quantia de € 2.500,00 e de € 1.500,00 /mês, respetivamente correspondente aos apartamentos do 6.º andar e rés-do-chão do prédio dos réus, desde a data em que vierem a ser concluídas as obras em curso de remodelação dos apartamentos a fixar em sentença, até à data em que o autor vier a permitir o acesso e o uso da servidão, ou de outro valor que a instrução vier a revelar, através de avaliação, ou fixada por juízos de equidade, ou subsidiariamente a fixar em execução de sentença; e, iii. quantia correspondente ao valor do impedimento ao exercício da faculdade inerente ao seu direito de propriedade, que é a faculdade de disposição, até à data em que o autor vier a permitir o acesso e o uso da servidão, valor que no presente não é possível quantificar, e que será fixado depois da conclusão das obras dos dois apartamentos dos réus através da instrução dos autos, e através de avaliação, ou fixada por juízos de equidade, ou subsidiariamente a fixar em execução de sentença.
Por despacho de 10/01/2024, o autor foi convidado a pronunciar-se sobre a exceção de ilegitimidade invocada pelos réus “EE” e “FF”, o que fez, pedindo que a mesma seja julgada improcedente.
Por despacho de 08/02/2024, o tribunal a quo manifestou o entendimento de que a autora não teria personalidade judiciária e notificou as partes para se pronunciarem sobre o assunto.
Por despacho de 03/05/2024, o tribunal a quo absolveu os réus da instância, invocando falta de personalidade judiciária do autor.
O autor não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1ª- A presente ação peticiona a extinção de uma servidão de passagem, cfr. Doc. n.º 4 junto com a Petição Inicial.
2ª- O corredor de passagem é uma parte comum, nos termos do disposto alínea c) do n.º 1 do art.º 1421.º do CCiv.
3ª- Refere a Sentença recorrida que “não é possível afirmar, face ao alegado na petição inicial, estar em causa apenas as partes comuns do edifício, nos termos previstos do art.º 1421.º do Código Civil”.
4ª- Porém, nada nos autos é suscetível de criar tal dúvida, muito pelo contrário, pois como referido trata-se de um corredor de passagem, imperativamente zona comum.
5ª- Nos termos do art.º 1437.º do CC, a representação do condomínio em juízo é garantida pelo seu administrador quando aja no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
6ª- No caso do autos, o administrador age no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos, seja na realização de atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns, nos termos da al. g) do art.º 1436.º CC, seja na execução das deliberações da assembleia que não foram objeto de impugnação, nos termos da al. i) do art.º 1436.º CC
7ª- Estando por isso, salvaguardada a legítima representação do Condomínio pelo seu Administrador.
8ª- Encontra-se igualmente cumprido o segundo segmento da norma do nº 1 do art.º 1437.º CC, ou seja, foi o Administrador mandatado pela assembleia de condóminos para a propositura da presente ação, cfr. Doc. n.º 7 junto com a Petição Inicial.
9ª- A alínea e) do art.º 12.º do CPC apenas estende a personalidade judiciária ao “condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrado.”
10ª- Porém, não se vislumbra outro entendimento que não a hipótese de o condomínio também ter personalidade judiciária nos casos referidos no n.º 2 art.º 1437.º do CC, ou seja, quando o administrador tenha sido mandatado para o efeito, caso contrário, qual ficaria total e incompreensivelmente esvaziado o seu sentido.
11ª- Tal raciocínio terá de ser feito atendendo à recente alteração aos poderes de representação do condomínio em juízo, imposta pela Lei 8/2022 de 10 de Abril de 2022, ainda sem adaptação pelo art.º 12.º do CPC.
12ª- Aliás, sempre teve o administrador a possibilidade de intentar ações relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, conquanto fosse precedida de mandato para o efeito pela Assembleia de Condóminos,
13ª- E deverá continuar a ser assim interpretada, sob pena de clara subversão da vontade do legislador.
14ª- Também sempre foi neste sentido que Doutrina e jurisprudência pugnava.
15ª- Em conclusão, foram violadas as normas jurídicas pela interpretação errónea das disposições previstas no n.º 2 do art.º 1437.º do CC, bem como, alíneas g) e i) do artigo 1436.º do Código Civil e ainda alínea e) do art.º 12.º do CPC,
16ª- Devendo ser, ao invés, interpretadas no sentido de ter o Condomínio, representado pelo seu administrador, personalidade judiciária para intentar a presente ação. Pelo que,
17ª- Deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, considerando o Condomínio ter capacidade judiciária e prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, mormente, o conhecimento do mérito da ação.
Assim decidindo, será feita a costumada Justiça!»
Os réus “EE” e “FF” responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência, ou, caso assim não se entenda, mantendo que o autor é parte ilegítima e sugerindo que se o convide a sanar a sua ilegitimidade.
Os demais réus não ofereceram contra-alegações.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as questões de saber se o autor tem personalidade judiciária e legitimidade processual para a presente ação.

II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes sãos os que constam do relatório.

III. Apreciação do mérito do recurso
No recurso de apelação que nos é dado apreciar, está em causa saber se o condomínio autor tem personalidade judiciária e, na positiva, se é parte legítima na presente ação.
Alguns réus suscitaram a ilegitimidade ativa do autor, exceção dilatória que, a manter-se, conduziria à absolvição dos réus da instância.
O tribunal a quo julgou ex officio que o condomínio autor não tem personalidade judiciária.
Apreciando.
A personalidade judiciária – que, nos termos da definição legal constante do n.º 1 do artigo 11.º do CPC, consiste na suscetibilidade de ser parte –, é inerente à personalidade jurídica. Nas palavras do n.º 2 do citado artigo e diploma, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.
Há, no entanto, entidades sem personalidade jurídica às quais a lei atribui personalidade judiciária, ou seja, atribui a suscetibilidade de ser parte. Elas constam do artigo 12.º do CPC, epigrafado «Extensão da personalidade judiciária», cujas alíneas reproduzimos em seguida:
«a) A herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado;
b) As associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais;
c) As sociedades civis;
d) As sociedades comerciais, até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, nos termos do artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais;
e) O condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador;
f) Os navios, nos casos previstos em legislação especial
Notamos, a título de curiosidade relevante no caso em apreço, que, ao contrário do que sucede com os casos das alíneas a) a d) nas quais estão identificadas as entidades que, não tendo personalidade jurídica, têm personalidade judiciária (suscetibilidade de ser parte) em qualquer litígio, no caso da alínea e) – condomínio resultante da propriedade horizontal – só lhe é atribuída personalidade judiciária em certos casos. Diz a norma que o condomínio tem personalidade judiciária «relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador», o que obriga a que, para aferir do pressuposto processual em causa, se verifique previamente se pela ação intentada se pretende fazer valer um direito que o administrador tenha o poder de acionar, ou seja, que se inclua nas suas competências.
Na presente ação, o condomínio autor pede a extinção de uma servidão de passagem constituída por escritura pública, celebrada em 8 de maio de 1943, pelos então proprietários do prédio serviente a favor do prédio dos réus (dominante), “para peão pelo corredor lateral das nove horas até às dezanove horas de todos os dias”.
Os corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos são necessariamente parte comum do prédio em regime de propriedade horizontal, por força do disposto no n.º 1 do artigo 1421.º do CC. O direito que o autor pretende fazer valer nos presentes autos respeita, portanto, a uma parte comum do prédio.
As funções do administrador do condomínio, por seu turno, constam das alíneas do n.º 1 do artigo 1436.º do CC, em elenco não taxativo.
Destas funções destacamos, para o que ora releva, as das alíneas g) e i):
«g) Realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns»;
«i) Executar as deliberações da assembleia que não tenham sido objeto de impugnação, no prazo máximo de 15 dias úteis, ou no prazo que por aquela for fixado, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada».
Às funções expressamente descritas na lei acrescem as que lhe sejam atribuídas pela assembleia (corpo do n.º 1 do mesmo artigo e diploma).
A assembleia, por seu turno, apenas poderá incumbir o administrador de poder que ela própria tenha, a saber o de administração das partes comuns do edifício (artigo 1430.º, n.º 1, do CC).
A análise destas normas, que a seguir empreendemos, conduzirá à conclusão de que o que se pretende com a ação contém-se no conceito de administração das partes comuns do edifício e, como tal, no universo dos poderes do administrador do condomínio, pelo menos, em execução de função que lhe foi legitimamente atribuída pela assembleia, porque incluída nas atribuições desta.
Para chegarmos a esta conclusão há que assentar no que são atos de administração. Uma das classificações de atos na Teoria Geral do Direito contrapõe atos de administração e atos de disposição. Também os negócios se podem classificar sob o mesmo critério. Trata-se de uma partição classificatória doutrinária cuja necessidade se impôs pelas inúmeras referências das leis a atos e negócios de um tipo e do outro.
Comecemos por ler Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Almedina, 1966, pp. 62-63:
«É doutrina pacífica que entra na mera administração tudo quanto diga respeito:
1) a prover à conservação dos bens administrados;
2) a promover a sua frutificação normal.
Por outro lado é seguro também que não pertencem à mera administração – sendo atos de disposição – os negócios que alteram a própria substância do património administrado, que importem a substituição de uns bens por outros, que afectem, numa palavra, o capital administrado, pondo-o em risco, por importarem um novo e diverso investimento desse capital. Por ex.: vender os prédios que constituem o capital confiado ao administrador para dar qualquer outra aplicação ao respectivo preço; comprar prédios com dinheiro que faça parte do mesmo capital.
Começam as dúvidas e divergências quando se trate de promover uma frutificação anormal (excepcional) ou o melhoramento do património administrado, ainda mesmo à custa dos rendimentos obtidos. Vejamos, porém, antes de mais, no que consistem as diversas categorias de negócios que ficam indicadas.
a) Atos de conservação dos bens administrados são os destinados a fazer quaisquer reparações necessárias nesses bens tendentes a evitar a sua deterioração ou destruição.
b) Atos tendentes a prover à frutificação normal, que é a frutificação pelo modo habitual para os bens administrados, são, p. ex., os destinados a prover ao cultivo de uma terra nos termos usuais ou ao seu arrendamento.
c) Negócios tendentes a prover à frutificação anormal são, p. ex.: converter um pinhal em vinha ou em terra de semeadura, ou uma terra de semeadura em olival; abrir uma pedreira num terreno de cultivo, etc.
d) Atos tendentes a prover ao melhoramento do património administrado são, p. ex.: abrir um poço; cercar de muro um prédio rústico não havendo necessidade estrita disso; a aquisição duma servidão não indispensável, ou de um terreno vizinho complementar dum prédio do administrado ou a edificação duma casa num terreno destinado a construção.
Depois disto, é a altura de perguntar: serão consentidos aos meros administradores os negócios destinados a prover à frutificação anómala ou ao melhoramento do património administrado? A doutrina civilística tende para a solução afirmativa (aliás não costumando admitir-se a categoria intermédia — frutificação anormal). A nós parece-nos que esta orientação só poderá aceitar-se quando as despesas com os apontados negócios sejam feitas à custa dos rendimentos — e é o que geralmente se entende, segundo cremos — e quando os melhoramentos não consistem em novas aquisições de bens (compras de novos prédios, p. ex.), mas em quaisquer obras nos bens administrados. Todavia não temos sequer por inteiramente líquido que mesmo nestas condições o mero administrador — salvo indicações particulares em contrário, tiradas da lei para determinadas figuras de administradores (como seja principalmente o marido) — possa praticar tais negócios; que ele possa, em suma, ir além da frutificação normal. A razão do exposto está na ideia geral já aflorada; o mero administrador, por falta de interesse pessoal ou das aptidões normais tem de confinar-se nos limites de uma gestão muito comedida e prudente. É incumbido apenas, na gestão dos bens administrados, de deferir ao expediente dessa gestão; numa palavra, de fazer o trivial. Nada de voos arriscados. Nada de aventurosos empreendimentos, de iniciativas não isentas de perigos consideráveis».
Manuel de Andrade tinha, como o próprio reconhece nas primeiras frases do último parágrafo transcrito, um entendimento restritivo dos atos de administração. Ainda assim, considerando os pressupostos da sua exposição, temos por seguro que o ato de pedir em juízo que se considere extinta uma servidão que onera o prédio do solicitante se integra no universo dos atos de administração, e não no dos atos de disposição.
De entre os atos de administração, não será um ato de conservação, pois não se trata de realizar reparações no prédio tendentes a evitar a sua deterioração ou destruição, mas será um ato de frutificação normal. No caso, trata-se de um ato que conduz à desoneração do bem e à sua consequente valorização, pelo qual o solicitante não terá de entregar contrapartida, não implicando, também por isso, qualquer risco de perda ou de alteração material de património. O único dispêndio é o inerente à ação judicial e o risco é o de essa despesa não ser compensada como a procedência da ação.
A eventual improcedência da ação (cf. artigo 1569.º, n.ºs 2 e 3 do CC, escritura de constituição da servidão, vários documentos juntos pelos réus demonstrativos da configuração da servidão e, com isso, da sua utilidade, a apreciar oportunamente) não influi nos poderes do administrador, na personalidade judiciária do condomínio, na legitimidade processual do mesmo, nem na sua representação em juízo pelo administrador.
Lembramos, ainda, o ensinamento de Carlos Alberto da Mota Pinto, na sua Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1993, p. 407:
«Quando a lei restringe os poderes de certas pessoas aos atos de ordinária administração, sem mais especificações, necessário se torna conhecer o respetivo conceito. A distinção não assenta na natureza jurídica dos atos, mas nos riscos ou na importância patrimonial dos mesmos. (…) Quando a lei não esclarece, através de uma definição ou de uma enumeração, quais os tipos de atos que integram uma dada categoria, é uma consideração teleológica (de conformidade com o fim legal) que nos deve guiar».
Os atos de mera administração, continua mais adiante (p. 408), correspondem a «uma gestão comedida e limitada, donde estão afastados os atos arriscados, suscetíveis de proporcionar grandes lucros, mas também de causar prejuízos elevados. São os atos correspondentes a uma atuação prudente, dirigida a manter o património e a aproveitar as suas virtualidades normais de desenvolvimento, mas alheia à tentação dos grandes voos, que comportam risco de grandes quedas.
Ao invés atos de disposição são os que, dizendo respeito à gestão do património administrado, afetam a sua substância, alteram a forma ou a composição do capital administrado, atingem fundo, a raiz, o casco dos bens».
Procurando definir os conceitos que nos ocupam, Carvalho Fernandes, após percorrer amplamente a doutrina portuguesa, delimita «em geral, como atos de administração os que se traduzem no uso, fruição, conservação e melhoria dos elementos estáveis do património e no consumo ou alienação normais dos seus elementos instáveis.
Por seu turno, o ato de disposição define-se como o que envolve a alienação de elementos estáveis do património ou a alienação anormal dos seus elementos instáveis» - Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., UCP, 2017, p. 599.
Em suma, não duvidamos da natureza de mera administração do pedido de extinção, sem oferta de contrapartida, de uma servidão que onera o prédio administrado pelo solicitante.
Consequentemente, o condomínio autor tem personalidade judiciária na presente ação, além de legitimidade processual, estando, ainda, devidamente representado pelo seu administrador (v. artigo 1437.º do CC).
Porquanto exposto, revoga-se a decisão de 3 de maio de 2024, que absolveu os réus da instância.
Não tendo sido requerida pelos réus ampliação do âmbito do recurso, não nos podemos pronunciar sobre o mérito da causa. Determina-se o regresso dos autos à 1.ª instância para prosseguimento dos seus termos.

IV. Decisão
Face ao exposto, julga-se procedente a apelação e, considerando que o autor tem personalidade judiciária e legitimidade ativa, determina-se o prosseguimento dos autos.
Custas pelos réus.

Lisboa, 13/02/2025
Higina Castelo
António Moreira
Susana Maria Mesquita Gonçalves