Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
908/23.5T9CSC.L1-5
Relator: PEDRO JOSÉ ESTEVES DE BRITO
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
RECURSO PENAL
SUBSTITUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. Para verificar se no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, constam narrados todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena deve atender-se à globalidade daquele e não apenas à parte que o assistente efetua uma acusação alternativa;
II. No nosso sistema processual penal, em matéria de recursos, predomina o sistema de substituição, embora com limitações (cfr. art.º 426.º, n.º 1, do C.P.P.), pelo que, em caso de procedência, o conteúdo normal do recurso, que corresponde à sua finalidade, é a substituição da decisão recorrida por outra, não devendo a instância de recurso limitar-se a revogar aquela, mandando baixar o processo ao tribunal recorrido para que este profira uma nova decisão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório:
I.1. Da decisão recorrida:
No âmbito dos autos n.º 908/23.5T9CSC, que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em 04-09-2024, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA, por inadmissibilidade legal da instrução, dado que aquele não continha “os necessários elementos fatuais subjetivos”.
I.2. Do recurso:
Inconformada com a decisão, a assistente AA dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
A. O douto despacho de 04/09/2024, com a ref.ª 152658948, que rejeitou o RAI apresentado pela ora Recorrente, por falta de objecto, deve ser revogado por infração ao n.º 3 do artigo 287.º do CPP, pois andou mal ao considerar que a Assistente só aludiu aos elementos subjectivos do crime através das referências feitas nos artigos 275.º e 276.º do RAI, bem como ao sustentar que tais referências são insuficientes para integrar o dolo do crime de burla qualificada.6
B. De facto, o despacho recorrido ignorou que, a ora Recorrente, para além de ter feito as mencionadas referências genéricas ao dolo e à consciência da ilicitude dos Arguidos nos artigos 275.º e 276.º do RAI (que só por si seriam suficientes), ao longo do RAI, e em especial, na “acusação alternativa” ao arquivamento (constante dos artigos 148.º a 276.º do RAI), narrou todos os factos relevantes para a imputação do crime, designadamente no tocante aos elementos subjectivos que presidem à actuação dos Arguidos;
Senão vejamos:
C. Nos artigos 156.º a 158.º do RAI, a ora Recorrente narrou que os Arguidos “gizaram um plano tendente a enriquecerem ilegitimamente à custa do património da Recorrente”, o qual consistia “em criarem nesta [a Assistente] a falsa convicção de que a Sociedade Arguida iria proceder à construção de uma moradia” no terreno da sua propriedade”, e de “(…) fazendo-se valer dessa convicção, determinarem a Assistente a proceder à transferência para as suas esferas patrimoniais, do maior montante pecuniário possível, quando nunca foi intenção dos Arguidos edificarem qualquer moradia (…).”
D. No artigo 159.º do RAI, a Recorrente elencou todos os expedientes e artifícios astuciosamente provocados pelos Arguidos, para prosseguirem com a execução desse seu plano:
“- A redacção de orçamentos generalistas, de forma a poderem invocar que determinados serviços não estavam incluídos nos orçamentos apresentados e liquidados pela Assistente (por exemplo, apondo no orçamento as verbas “muros da moradia”, “piscina”, ou “cave”, para após alegarem que o orçamento não incluía todos os muros, os acabamentos da piscina ou a escada de acesso à cave);
- A colocação no terreno de materiais e a construção de elementos, de forma a fazerem crer à Assistente, que nele iriam construir a moradia, que na realidade nunca quiseram construir, nem dispunham de meios técnicos ou humanos para o efeito;
- O acordo de detalhes importantes da obra sempre de forma verbal;
- A insistência para a aceitação das alterações unilaterais dos orçamentos no sentido da subida de valores, sempre em fases de stress e de cumprimento de prazos (por exemplo, aquando do termo da validade da licença de construção ou do prazo para envio de documentos para o Banco para instruir pedido de empréstimo);
- A apresentação à Assistente de pelo menos um orçamento de aquisição de material a um subempreiteiro, por um determinado valor, como se o mesmo tivesse sido adjudicado, quando na realidade a Sociedade Arguida tinha adjudicado a compra desse material a outro empreiteiro por um valor consideravelmente inferior (de forma a os Arguidos poderem arrecadar a diferença entre os montantes pagos pela Assistente e o valor efectivamente despendido pela Sociedade Arguida com a aquisição do material);
- A dupla cobrança de materiais e serviços;
- O pedido de pagamento de valores não orçamentados;
- A indicação de uma conta bancária estranha à Sociedade Arguida (titulada pelo Arguido BB) para efeitos de transferência bancária de quantias alegadamente devidas à Sociedade Arguida;
- A não emissão de facturas e recibos relativamente a valores recebidos;
- O não cumprimento das condições de pagamento e solicitação de montantes superiores aos contratados;
- A descrição em reuniões presenciais de construções de sonho (tais como, piscina e Deck), sem que nunca os Arguidos tivessem a intenção de as edificar;
- Ignorar pedidos de reunião quando os assuntos diziam respeito à execução da obra, mas as mesmas não se traduziam em oportunidade de solicitar a transferência de mais quantias à Assistente;
- Não comunicação à Assistente de um cronograma de obra, um relatório do estado da obra etc.”
E. Nos artigos 160.º a 274.º do RAI, a Recorrente descreveu pormenorizadamente, todos os factos referenciados no artigo 159.º do RAI, astuciosamente provocados pelos Arguidos, com a intenção de a enganarem, a fim de obterem um enriquecimento ilegítimo, levando-a à prática de actos que lhe causaram prejuízos patrimoniais.
F. Ademais, a Recorrente narrou ainda em diversos pontos da sua “acusação alternativa” contida nos artigos 148.º a 276.º do RAI, qual foi o dolo dos Arguidos ao executarem cada um dos sobreditos actos (v.g. No artigo 179.º do RAI, descreveu que o Arguido CC, “de forma a convencer a Recorrente de que tinha a efectiva intenção de construir a moradia, acordou com esta pormenorizadamente, os detalhes da pretensa obra, tais como os materiais a aplicar, a piscina, os azulejos, um Deck exterior em madeira ao pé da piscina etc.”; No artigo 201.º do RAI, a Recorrente narrou que, “com a utilização de um orçamento que não tinha adjudicado, a Sociedade Arguida pretendeu determinar a Assistente ao pagamento de um valor superior em €43.185,14 (quarenta e três mil cento e oitenta e cinco euros e catorze cêntimos) àquele que era efectivamente devido pelo ‘aço leve’, quantia essa que a Sociedade Arguida quis fazer sua sem prestar qualquer contrapartida económica à Assistente.”)
G. Acresce que, ao longo do restante RAI, a ora Recorrente fez todas as devidas alusões ao elemento subjectivos do tipo legal de crime, designadamente, nos artigos 4.º a 5.º, 7.º, 23.º, 24.º, 46.º, 101.º a 104.º ou 120.º e 121.º (Nos artigos 4.º a 5.º, a ora Recorrente alegou que os Arguidos “nunca tiveram o propósito de construir a moradia que se propuseram construir”, tanto assim, que nunca dispuseram dos meios nem da competência técnica para construir o edifício em questão. No artigo 7.º do RAI, a Recorrente descreveu que todos os materiais que os Arguidos colocaram no local da obra e tudo o que nele construíram, “foi apenas um engodo para levar a Assistente a crer que ali iriam construir a moradia de acordo com o projecto, e para determinar a Assistente a efectuar-lhes os pagamentos das quantias que os Arguidos foram solicitando à Assistente que fizesse, no valor global de €106.000,00 (cento e seis mil euros).” No artigo 23.º do RAI, invocou a Recorrente que “A fim de ludibriar a Assistente, o CC referiu ainda que iria dar uma “benesse” à Assistente, uma vez que faria incluir o IVA na quantia de €9.100,00 (nove mil e cem euros) correspondente ao segundo orçamento apresentado, o que depois formalizaria por escrito.” No artigo 24.º do RAI, citou a Recorrente que “De forma a convencer a Assistente de que tinha a efectiva intenção de construir a moradia, o CC descreveu pormenorizadamente os detalhes da pretensa obra, tais como os materiais a aplicar, a piscina, os azulejos, bem como um Deck exterior em madeira ao pé da piscina etc.” No artigo 46.º do RAI, a Assistente mencionou que “em 16/05/2022, a DD enviou à Assistente, uma proposta de orçamento para a adjudicação do “...” através da empresa “...”, no valor de €79.415,14 (setenta e nove mil quatrocentos e quinze euros e catorze cêntimos), mais IVA, “fazendo a Assistente crer que seria esta a empresa subcontratada pela Sociedade Arguida, e por este valor.” Nos artigos 101.º, 102.º, 103.º e 104.º do RAI, descreveu a Assistente que “O CC enviou um orçamento à Assistente da empresa “...“ para contratação do “...” (Doc. n.º 61 da Queixa) com o valor de €79.415,14 (setenta e nove mil quatrocentos e quinze euros e catorze cêntimos), fazendo-a crer que contratou esse orçamento; E enviou ao Arquitecto EE para o mesmo efeito, um orçamento da ...” com um outro valor de €57.815,11 (cinquenta e sete mil oitocentos e quinze euros e onze cêntimos), fazendo-o crer que tinha contratado esse orçamento; Quando, na realidade, a Sociedade Arguida, representada pelo CC contratou uma 3.º empresa “...” por um valor significativamente mais baixo, de €36.230,00 (trinta e seis mil duzentos e trinta euros) – cf. Docs n.ºs 108 a 112 da Queixa. Com este artificio, designadamente mediante a apresentação à Assistente de um orçamento que não tinha adjudicado, a Sociedade Arguida solicitou à Assistente o pagamento de quase o dobro do valor para a adjudicação do ..., do que aquele que realmente a Sociedade Arguida tinha contratado.”). Nos artigos 120.º e 121.º do RAI, rematou a ora Recorrente que “Face à factualidade supra descrita, e maioritariamente demonstrada pelo teor dos documentos juntos com a Queixa, é evidente que a Sociedade Arguida e os seus representantes nunca tiveram qualquer intenção de executar os trabalhos, pelos quais cobraram à Assistente a quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros). E, parece evidente que a cobrança da quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros), sem que tenha sido prestada a respectiva contrapartida económica é um acto eticamente reprovável aos olhos da sociedade;”)
H. Ora, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 287.º do CPP, “O requerimento [de abertura de instrução] só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”, prevendo-se no artigo 287.º, n.º 2, do CPP, que o RAI deve conter “em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.”
I. De acordo com o mesmo normativo, ao RAI, quando formulado pelo assistente, “é aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...)”, o que significa que o RAI apresentado pelo assistente está sujeito ao formalismo da acusação7, isto é, nas situações em que o Ministério Público não acusa, o RAI apresentado pelo Assistente deve corresponder a uma “acusação alternativa”.8
J. Tal sucede porque na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação, pronunciará o arguido por esses factos (artigos 308.º e 309.º), não havendo neste caso lugar a uma nova acusação, pois o RAI desempenha o papel de acusação e, desse modo, respeita-se a acusatoriedade do processo.9
K. Ainda que nos termos do artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a narração dos factos possa ser sintética, a verdade é que tem de ser suficiente para poder fundamentar a aplicação de uma pena, verificando-se essa suficiência quando o RAI contém todos os elementos subjectivos e objectivos indispensáveis à subsunção da infracção, bem como, quando o RAI tem a virtualidade de poder funcionar como uma peça processual autónoma (sem que para que se verifiquem esses elementos, se tenha de recorrer a outras peças do processo).
L. Os requisitos supra impõem-se, pois, pela exigência demarcar os factos concretos susceptíveis de integrar os ilícitos que o assistente pretende indiciados, porque o processo penal rege-se pelos princípios do acusatório e do contraditório, tendo o escopo de tal demarcação dois fundamentos:
- Um, respeitante ao objectivo imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação, que tem que reportar-se à imputação de factos concretos delimitados para que se possa demarcar o âmbito do objecto desta fase do processo e para que o arguido se possa defender; e
- Outro, respeitante a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
M. No fundo, o importante é que o objecto do processo esteja bem delimitado e que os dados de facto susceptíveis de evidenciarem elementos psicológicos, como o dolo e a consciência da ilicitude, sejam de tal modo claros e evidentes que não tenha sentido algum pôr em causa a sua imputação.
N. Ora, face às citações supra mencionadas, é por demais evidente que o RAI posto em causa pelo douto despacho recorrido, permite fundamentar a aplicação de penas aos arguidos, porquanto a factualidade narrada pela Recorrente preencherá os elementos correspondentes à tipicidade objectiva e subjectiva do ilícito criminal em apreço, podendo os Arguidos defender-se em conformidade, não saindo, nessa medida, violados os princípios do acusatório ou do contraditório.
O. O RAI cumpre, portanto, cabalmente a função processual para que está vocacionado, pois a Assistente fez a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, tendo enumerado de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende ver indiciados, susceptíveis de integrarem a prática de um ilícito típico que permite a aplicação de uma pena.
P. E, ainda que a ora Recorrente não tivesse feito essa enumeração, a verdade é que as fórmulas contidas nos artigos 275.º e 276.º do RAI, não são mais nem menos do que as menções feitas pelo digno Ministério Público na esmagadora maioria das Acusações por si deduzidas, pelo que, decidir-se que as mesmas são insuficientes para integrar os elementos subjectivos, equivaleria a abrir um precedente susceptível de tornar legalmente inadmissíveis, por falta de objecto, a quase totalidade das Acusações proferidas pelo digno MP.
Q. Daí que mesmo que a Recorrente não tivesse concretizado (como concretizou ao longo dos artigos que acima referimos) o elemento subjectivo do tipo legal de crime, sempre seriam as menções contidas nos artigos 275.º e 276.º do RAI suficientes para esse efeito.
R. Por outro lado, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, o facto de se ter alegado (ou não) que os Arguidos quiseram ou representaram como consequência necessária ou possível da sua conduta que a Assistente viria a ficar em difícil situação económica, sendo-lhes indiferente o resultado, não faz parte do tipo legal subjectivo do crime de burla qualificada, p. e p. nos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal (CP);
Senão vejamos:
S. Dispõe o artigo 217.º, n.º 1 do CP, “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
T. Daqui resulta, serem 3 (três), os elementos típicos do crime de burla: (1) intenção do agente de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo; (2) erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; (3) prática por outrem de actos que lhe causem, ou causem a terceira pessoa, prejuízos patrimoniais.10
U. Por sua vez, dispõe a alínea a) do n.º 2 do artigo 218.º do CP, que “2 - A pena é a de prisão de dois a oito anos se o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado”; e a alínea b) do artigo 202°, que se define o valor consideravelmente elevado como aquele que excede 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.
V. À data dos factos (anos de 2021, 2022, 2023 e 2024), a Unidade de Conta, manteve-se fixada em €102,00 (cento e dois euros)11
W. Conforme invocou a ora Recorrente no artigo 275.º do RAI, in casu, é de €106.000,00 (cento e seis mil euros) o prejuízo patrimonial causado pela conduta dos Arguidos.
X. Ora, dos mencionados preceitos legais resulta que, para que se verifique o elemento subjectivo do crime de burla, basta que se verifique a intenção do agente de obter um enriquecimento ilegítimo, mediante erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, levando à prática por outrem de actos que lhe causem, prejuízos patrimoniais, não sendo necessário que o agente queira ou represente como consequência necessária ou possível da sua conduta que o ofendido venha a ficar em difícil situação económica.
Y. No caso vertente, o facto de a Assistente ter ficado em grandes dificuldades económicas foi sim uma consequência gravosa da conduta dos Arguidos, que aliás agrava a sua censurabilidade, em especial, porque a Recorrente ficou sem casa para viver, com os empréstimos que contraiu para a sua “construção” para liquidar e necessita urgentemente de vender o terreno, enquanto os Arguidos, bem sabendo da aflição económica em que se encontra, nem sequer se dignam a receber as interpelações para remoção de todos os materiais/lixo que ali deixaram, o que inviabiliza a comercialização do imóvel.
Z. Face ao exposto, é forçoso concluir que o RAI apresentado pela ora Recorrente contém a narração dos factos relevantes para a imputação do crime, designadamente no tocante aos elementos subjectivos que presidiram à actuação dos agentes, pelo que por infração ao disposto no n.º 3 do artigo 287.º do CPP, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e, em sua substituição, ser ordenada a abertura de instrução requerida pela Recorrente.
6 Os artigos 275.º e 276.º do RAI têm a seguinte redação: “Ao agirem da forma descrita, os FF, CC, DD e BB, levaram a Assistente a fazer-lhes o pagamento da quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros) o que beneficiou financeiramente os Arguidos e prejudicou financeiramente a Assistente, que em virtude da conduta dos Arguidos teve um prejuízo no mencionado valor.” e “Em tudo, os Arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, conheciam toda a factualidade exposta, tendo actuado da forma como quiseram agir, bem sabendo que as suas condutas eram, e são, proibidas e puníveis por lei”.
7 Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, pág. 139, o requerimento de abertura de instrução deve conter “uma verdadeira acusação”.
8 Vide a este respeito, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 12/05/1998, BMJ n.º 477.º, pág. 555; da Relação do Porto de 15/04/1998, BMJ n.º 476.º, pág. 487; da Relação de Lisboa de 2/12/1998, BMJ n.º 482.º, pág. 294; da Relação de Lisboa de 21/10/1999, CJ, XXII pág. 158; e da Relação de Lisboa de 9/02/2000, CJ, XXIII, 1.º, 153.
9 Cf. obra citada, pág. 140.
10 Tal como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por douto Acórdão de 12/10/2006 , “I - São elementos típicos do crime de burla: a) intenção do agente de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo; b) erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; c) prática por outrem de actos que lhe causem, ou causem a terceira pessoa, prejuízos patrimoniais.
11 Cf. artigo 232.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro; artigo 9.º da Lei n.º 99/2021, de 31 de Dezembro; artigo 98.º da Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro; e artigo 121.º da Lei n.º 82/2023, de 29 de Dezembro.
Terminou pedindo a revogação do despacho recorrido e, em sua substituição, que fosse ordenada a abertura de instrução.
O referido recurso foi admitido por despacho de 18-09-2024.
I.3. Da resposta:
A este recurso respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pela sua procedência, concluindo da seguinte forma:
- A leitura na íntegra do requerimento de abertura de instrução, não só a parte final, mas também, apelando ao já vertido ao longo do mesmo, permite que os elementos factuais subectivos do crime de burla qualificada se considerem suficientemente indiciados.
- Para o efeito, na sua globalidade, conjugando e articulando as partes indicadas pela assistente e vertidos nos art.ºs 4º, 5º, 7º, 23º, 24º, 156º, 157º, 158º, 159º, 275º e 276º do requerimento de abertura de instrução.
Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
I.4. Do parecer:
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer através do qual propugnou pela procedência do recurso, acompanhando a resposta do Ministério Público em 1.ª instância e ainda de acordo com o seguinte:
“(…) O despacho recorrido inicia com uma exegese dos textos legais que estabelecem o quadro normativo em que se move o JIC, mormente em sede de Instrução, revertendo num segundo momento ao RAI em apreço.
Identifica então, expressa e peremptoriamente, a razão da rejeição do RAI: omissão dos elementos subjectivos necessários ao crime de burla qualificada, aquele que o assistente acredita ter sido cometido contra si. Afirmando-se que nada é alegado acerca do propósito que moveu os arguidos, nem sobre o entendimento que os mesmos teriam sobre as repercussões económicas dos seus actos, rejeita-se o RAI, assim morrendo a Instrução pretendida pela assistente.
De acordo com o art.º 287.º CPP, o RAI não está sujeito a formalidades especiais, devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, o que foi o caso, já que o MP entendeu, em sede de Inquérito, que quanto muito se indiciaria um ilícito civil.
Dispõe ainda a norma citada (n.º 3) que o RAI só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, o que assaz reduz (aparentemente) os motivos de rejeição deste recurso à protecção de jurisdição que assiste aos cidadãos num Estado de direito democrático, que é a Instrução.
Ora, é função do juiz de instrução, segundo a Constituição e o processo penal, actuar na fase de Instrução como garante de que só será levado a julgamento aquele cidadão relativamente ao qual tiverem sido produzidos indícios suficiente pela investigação – vide art.ºs 286.º n.º 1 CPP e 202.º n.º 2 CRP
Esta relevante função atribuída ao JIC, para além de constituir um direito do cidadão configura uma sublime garantia do processo penal, constitucionalmente protegida, o que deveria ser causa de exclusão de qualquer interpretação restritiva dos motivos de rejeição da Instrução.
O caminho seguido pela jurisprudência, porém, tem levado a uma interpretação sucessivamente ampliada dos motivos de rejeição do RAI, muito para lá daquele esquálido elenco desenhado pelo legislador como razão de rejeição: extemporaneidade, incompetência do juiz ou impossibilidade legal.
Porventura se olvida que o RAI, como peça vestibular de uma fase processual de recurso, está naturalmente em desvantagem na comparação - que lhe é imposta como arquétipo - com a acusação, peça produzida em sede de Inquérito no termo de, por vezes, morosas e complexas investigações.
Justamente se lê em recente acórdão2 desta Relação que “apenas razões de natureza formal e adjectiva se encontram legalmente previstas como fundamento para rejeição da instrução, já não questões de mérito do próprio requerimento que apenas podem justificar o indeferimento de diligências que hajam sido requeridas por não serem necessários à realização das finalidades da instrução (cfr. artigo 291º, nº 1). Quanto às questões de mérito as mesmas constituem o cerne do objeto do debate instrutório e só aí serão apreciadas e não na fase inicial de admissão da fase de instrução”.
Posto o que vai dito, temos para nós não ser rigorosa a asserção avançada pelo M.º JIC como fundamento de rejeição da Instrução. A peça apresentada pela assistente, não sendo primorosa, não seguindo uma escola muito própria da acusação pública, não deixa de referir “o propósito que moveu os arguidos”, como facilmente se conclui pela leitura dos seus §§ 120.º, 156.º. 157.º, 158.º, 177.º, 179.º e 275.º, entre outros que o MP junto do tribunal a quo e a assistente referem.
Acresce que os factos ilícitos imputados aos arguidos se inscrevem no núcleo clássico do direito penal (a burla), pelo que há que olhar para o RAI como descrevendo um elaborado embuste perpetrado pelos arguidos, com intuitos de beneficiar economicamente e de prejudicar a assistente, mantido e crido pelos arguidos ao longo de vários meses.
Estamos assim em crer que o despacho recorrido enferma de rigoroso formalismo que diminui os direitos dos cidadãos para lá dos limites do quadro legal vigente.
Deveria assim obter provimento, o recurso em apreço.
Não obstante, a final melhor se dirá.
2 Ac. prolatado no proc. n.º 968/23.9PVLSB.L1
I.5. Da tramitação subsequente:
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C.P.P., foi apresentada resposta ao dito parecer, pela assistente que, em síntese, renovou todas as considerações já tecidas na sua peça recursiva.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso:
Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-2995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, págs. 8211 e segs.3).
Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidos, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar.
II.2. Da questão a decidir:
A esta luz, a única questão a conhecer reside em saber se devia ter sido rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P., por não conter a factualidade referente ao tipo de ilícito subjetivo e ao tipo de culpa.
II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar a questão objeto do recurso:
Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte:
II.3.A. Do despacho de arquivamento (cfr. ref.ª 150355095 de 20-05-2024):
No âmbito do inquérito n.º 908/23.5T9CSC, que correu termos no Departamento de Investigação e Ação Penal - 3ª Secção de Cascais, em 20-05-2024 o Ministério Público, nos termos do disposto no art.º 277.º, n.º 2, do C.P.P., proferiu despacho arquivamento relativamente aos factos denunciados pela assistente AA e que poderiam, em abstrato, configurar um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal (C.P.) e um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos arts. 205.º, n.ºs 1 e 4, al. a), do C.P.
II.3.B. Do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente (cfr. ref.ªs 151390258 de 04-06-2024, 151390342 de 04-06-2024, 25815910 de 12-06-2024 e 25887536 de 24-06-2024):
A assistente AA foi notificada do dito despacho de arquivamento, por via postal simples, por meio de carta que se mostra depositada em 06-06-2024, e o seu ilustre mandatário foi notificado do mesmo por via eletrónica enviada em 04-06-2024.
Nessa sequência, e inconformada com tal despacho de arquivamento, em 24-06-2024 a assistente autoliquidou a taxa de justiça no montante de 1 UC e apresentou requerimento de abertura de instrução com o seguinte teor:
AA, Assistente nos autos supra identificados, notificada do douto despacho de arquivamento, vem, muito respeitosamente, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, requerer a V. Ex.ª se digne declarar a:
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
o que faz, porquanto:
1. O Digno Ministério Público (MP) determinou o arquivamento do Inquérito por considerar, em suma, não terem sido recolhidos indícios suficientes da verificação dos elementos do tipo de crime de burla, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP).
2. Para tanto, fundamentou o Digno MP, em síntese, que não se reuniram os índices que a Jurisprudência vem considerando que devem ocorrer para que, ao invés de um simples ilícito civil, se verifique o crime de burla:
a) O propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico;
b) A verificação de um dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;
c) Uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;
d) A existência de fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;
e) A impossibilidade de se reparar o dano; e
f) O intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.
3. Salvo o devido respeito, que é muito, da prova carreada no inquérito resultam reunidos todos os sobreditos indícios que a Jurisprudência vem entendendo que devem ocorrer para que se verifique o crime de burla, ao invés de um simples ilícito civil.
Senão, vejamos:
4. Os Arguidos nunca tiveram o propósito de construir a moradia que se propuseram construir;
5. Tanto assim é, que nunca os Arguidos dispuseram dos meios nem da competência técnica para construir o edifício em questão.
6. Prova disso mesmo, é o relatório de obra, de 09/01/2023, elaborado pelo Engenheiro GG, constante dos Docs. n.º 125 e 126 da Queixa, que dá conta não só da impossibilidade de conclusão da obra dentro dos prazos contratuais e legais, como também de deficiências graves em tudo o que começou a ser construído.
7. Efectivamente, todos os materiais que os Arguidos colocaram no local da obra e tudo o que nele construíram, foi apenas um engodo para levar a Assistente a crer que ali iriam construir a moradia de acordo com o projecto, e para determinar a Assistente a efectuar-lhes os pagamentos das quantias que os Arguidos foram solicitando à Assistente que fizesse, no valor global de €106.000,00 (cento e seis mil euros).
Vejamos:
8. Em 09/08/2021, a DD em representação da Sociedade Arguida, enviou à Assistente, que a aceitou em 10/08/2021 (cf. Docs. n.º 7 a 9 da Queixa), uma proposta orçamental, no valor de €30.000,00 + IVA, constante dos Docs. n.º 2 a 6 anexos à Queixa, que incluía a realização dos seguintes trabalhos:
- Limpeza de terras de encosto das paredes para fazer drenagem de água;
- Reboco de paredes exteriores e aplicar 2 de mãos de flitecoto e aplicar tela de alcatrão nas mesmas;
- Aplicar tela pictonada em todas as paredes bem como manta geotêxtil;
- Fazer caleira com descaimento no fundo das paredes e aplicar flitecoto e tubos de drenagem perfurado;
- Colocação de brita por cima do tubo e fazer aterro de acosto às paredes;
- Fazer pilares, lenteis e vigas para suporte da laje; e
- Fazer laje de toda a casa conforme projecto.
9. De acordo com a proposta inicialmente formulada pela Arguida, DD, esse valor de €30.000,00 + IVA, seria pago da seguinte forma:
- 50% no início dos trabalhos;
- 40% quando estivessem realizados 50% da totalidade dos trabalhos; e
- 10% no final da obra.
cf. Doc. n.º 6
10. Contudo, em 10/08/2021, pelas 14:25 horas, por acordo, a Assistente e o CC, pelo telefone, alteraram a modalidade de pagamento do mencionado orçamento, para que diferentemente do inicialmente previsto, o pagamento do valor de €30.000,00 + IVA, passasse a ser efectuado da seguinte forma:
- Pagamento de 30% aquando a adjudicação (€11.070,00);
- Pagamento de 30% para realização do aterro e muralhas (€11.070,00);
- Pagamento de 30% antes de encher a ... (€11.070,00); e
- Pagamento de 10% aquando conclusão de trabalhos (€3.690,00).
11. A Assistente concordou com a proposta orçamental apresentada, bem como com a forma de pagamento acordada com o CC;
12. E, em 17/08/2021, a Assistente efectuou o pagamento da quantia de €11.070,00 (onze mil e setenta euros), através de transferência para a conta bancária com o NIB ..., que lhe fora indicado pela Arguida, DD - cf. Doc. n.º 10 da Queixa.
Sucede que:
13. Logo em 04/09/2021, à margem do orçamento inicialmente apresentado, a Arguida, DD enviou um email à Assistente, solicitando-lhe o pagamento adicional da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), alegadamente, para fazer face ao pagamento do ferro – cf. Doc. n.º 11 da Queixa.
14. Em 06/09/2021, a Assistente, confiando que tal pagamento era efectivamente necessário para a aquisição do ferro, efectuou o pagamento da dita quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), através de transferência para a conta bancária com o NIB ..., que lhe foi indicada pela DD - cf. Doc. n.º 12 da Queixa.
15. Nesse mesmo dia, 06/09/2021, a Arguida, DD enviou mais um email à Assistente, contendo um 2.º orçamento (06092021), solicitando o pagamento da quantia de 9.100,00 (nove mil e cem euros) mais IVA, alegadamente, para:
- A construção da laje;
- A construção da piscina;
- A construção de escada interior em cofragem;
- A aquisição de ferro e betão.
16. Acontece, que a construção da laje e da escada interior em cofragem já estavam incluídas no 1.º orçamento e a Assistente já tinha pago €15.000,00 (quinze mil euros), alegadamente, para aquisição do ferro;
17. Perante isto, a Assistente telefonou ao CC e confrontou-o com a dupla cobrança dos serviços, bem como com o facto de lhe estar a pedir mais dinheiro sem ter ainda executado o primeiro orçamento, tendo ambos acordado reunirem para discutirem o assunto.
Nisto:
18. Em 21/09/2021, a DDenviou mais um email à Assistente, a solicitar-lhe o pagamento de €10.000,00 (dez mil euros), supostamente, para “reforço dos orçamentos” – cf. Doc. n.º 17 da Queixa.
19. Apesar de ter suspeitado deste pedido, mais a mais quando nem tinha aprovado o segundo orçamento, a Assistente, em 23/09/2021, acedeu ao solicitado e transferiu a quantia de €10.000,00 (dez mil euros) conta bancária com o NIB ..., que lhe fora indicado pela Arguida, DD - cf. Docs. n.ºs 18 e 19 da Queixa.
20. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre 24/09/2021 e o final de Outubro de 2021, a Assistente e o CC, na presença do filho da HH, reuniram-se no local de trabalho da Assistente, sito na ....
21. Nessa reunião, o CC mencionou à Assistente que não se preocupasse porque os envios dos orçamentos seriam meras referências, por ser difícil elencar todos os trabalhos num orçamento.
22. O CC solicitou ainda à Assistente que confiasse nele, garantindo que no final tudo bateria certo e iria ser feito como a Assistente pretendia.
23. A fim de ludibriar a Assistente, o CC referiu ainda que iria dar uma “benesse” à Assistente, uma vez que faria incluir o IVA na quantia de €9.100,00 (nove mil e cem euros) correspondente ao segundo orçamento apresentado, o que depois formalizaria por escrito.
Ademais:
24. De forma a convencer a Assistente de que tinha a efectiva intenção de construir a moradia, o CC descreveu pormenorizadamente os detalhes da pretensa obra, tais como os materiais a aplicar, a piscina, os azulejos, bem como um Deck exterior em madeira ao pé da piscina etc.
Acontece que:
25. Em 07/10/2021, o CC enviou um terceiro orçamento desigando “Chave na Mão”, com o n.º 0610-2021, no valor total de €195.000,00 (cento e noventa e cinco mil euros), ao qual acresceria o valor do IVA - cf. Docs. n.ºs 20 a 26 da Queixa.
26. Em 13/07/2021, a Assistente recebeu um email proveniente da conta de email da Sociedade Arguida (sem assinatura), aludindo aos valores já liquidados e informando que apenas faltava liquidar a quantia de €830,00 (oitocentos e trinta euros), por conta do primeiro orçamento - cf. Doc. n.º 26 “A” da Queixa..
27. Contudo, nesse email, ao contrário do prometido pelo CC, não foi descontado o valor da dupla cobrança da “laje” e do “ferro”, o que já tinha sido pago pela Assistente aquando do primeiro orçamento.
28. Neste contexto, a Assistente voltou a telefonar ao CC, a alertando-o para a dupla cobrança da “laje” e do “ferro”, face ao que o mesmo respondeu que a empresa iria rectificar o email, assegurando contudo que o que valia seria o verbalmente acordado entre ambos.
29. Porém, o CC nunca rectificou nem o segundo orçamento, nem o email, no sentido de excluir os serviços que já estavam incluídos e pagos aquando do primeiro Orçamento;
30. Pelo contrário, em 19/10/2022, o CC telefonou à Assistente e solicitou-lhe que efectuasse o pagamento do valor total do 2.º orçamento de €9.100,00 (nove mil e cem euros), com IVA incluído, indicando-lhe uma conta bancária para a qual tinha preferência que realizasse o pagamento.
31. De seguida, o CC enviou à Assistente, por Whatsapp, o NIB de uma conta bancária do ..., estranha à sociedade Arguida, titulada pelo BB, um dos seus filhos: PT50 0010 0000 5280 7340 001 03 - cf. Doc. n.º 26 “B” da Queixa.
32. Sendo certo que, como a Assistente sempre conheceu e se referiu ao CC como “…”, quando efectuou a transferência bancária, não desconfiou que o titular da conta de destino, “BB”, não fosse o mesmo.
33. Assim, em 19/10/2021, a Assistente transferiu para essa conta titulada pelo BB o valor total do segundo orçamento, na quantia de €9.100,00 (nove mil e cem euros), bem como o valor de €830,00 (oitocentos e trinta euros), que faltava para liquidar integralmente o primeiro orçamento, ficando o CC de lhe enviar todas as facturas e recibos dos pagamentos, conforme solicitado por telefone e por escrito – cf. Doc.n.º 26 parte final e Docs. n.ºs 27 e 28 da Queixa.
34. Em consequência, ainda em 19/10/2021, a Assistente, por email, enviou à Sociedade Arguida os comprovativos das transferências, solicitando as respectivas facturas e recibos - cf. Doc. n.º 26 “A” da Queixa.
35. Em 28/10/2021, a DD enviou um email à Assistente anexando uma factura apenas relativa ao valor pago pelo primeiro orçamento, a qual não elencava, porém, a totalidade dos trabalhos ali previstos – cf. Docs. n.ºs 29 e 30 da Queixa.
36. Após, o CC voltou a solicitar o pagamento respeitante ao terceiro orçamento (n.º 0610-2021), para a construção da moradia “chave na mão”, pelo valor de €200.000,00 (duzentos mil euros) com IVA incluído, tudo de acordo com o projecto de construção em vigor.
37. Em 23/11/2021, a Assistente enviou um email à Sociedade Arguida informando que já tinha efectuado o pagamento de €20.000,00 (correspondente a 10% do valor total do orçamento, com IVA incluído), reforçando por escrito o acordado e enviando o respectivo comprovativo de pagamento, conforme Doc. n.ºs 31 e 32 da Queixa.
38. Após este último pagamento, a partir de Dezembro de 2021, os Arguidos não mais regressaram ao local da obra, nem ali realizaram qualquer trabalho;
39. Com efeito, a Assistente passou por várias vezes no terreno e não viu ninguém, nem a trabalhar, nem a descarregar material.
Mais:
40. A Assistente tentou comunicar com o CC através de telefone, mensagens, mas sem sucesso, apenas tendo como algumas respostas por parte do mesmo:
- “Posso ligar mais tarde?” - nunca o fazendo;
- “Marque para outro dia” - face às reuniões agendadas e pedidos de reunião por parte da Assistente
- Vide a título de exemplo, mensagens de 22/12/2021 a 23/05/2022, constantes do Doc. n.º 33 da Queixa.
41. Desde então, a Assistente deixou de conseguir estabelecer qualquer contacto com os Arguidos, os quais, não só deixaram de atender as sucessivas chamadas telefónicas realizadas pela Assistente, como também não mais responderam aos emails e mensagens que por si lhe foram enviados.
Com isto:
42. Uma vez que a licença de construção terminava em 28/02/2022 e que desde o final de Novembro de 2022, não houve quaisquer avanços na obra, a Assistente teve de requerer à Câmara Municipal de ... uma prorrogação da licença, pagando os respectivos custos inerentes, no montante de €288,60 (duzentos e oitenta e oito euros e sessenta cêntimos), bem como teve de liquidar a quantia de €400,00 (quatrocentos euros), pelos honorários referentes ao trabalho técnico elaborado pelo Arquitecto EE, para a preparação do pedido de prorrogação - cf. Docs. n.ºs 41 e 34 a 50.
43. Entretanto, em 14/02/2022, a Assistente conseguiu chegar à fala com o CC, altura em que celebrou um contrato de Empreitada, com a Sociedade Arguida, documento exigido pelo ... para a concessão de um empréstimo à Assistente para a realização das obras - cf. Doc.º n.ºs 51 a 57.
44. Apesar disso, nem o CC nem nenhum funcionário da sociedade Arguida retomou a obra.
Face ao que:
45. A Assistente enviou numerosas mensagens e telefonou ao CC, para saber o que se passava e para pedir-lhe que retomasse a obra, mas sem sucesso, pois o CC dizia sempre que apareceria na obra e não cumpria, assim como confirmava a presença em reuniões e nunca comparecia – cf. Doc. n.º 58 junto com a Queixa.
Apesar disso:
46. Em 16/05/2022, a DD enviou à Assistente, uma proposta de orçamento para a adjudicação do “...” através da empresa “...”, no valor de €79.415,14 (setenta e nove mil quatrocentos e quinze euros e catorze cêntimos), mais IVA, fazendo a Assistente crer que seria esta a empresa subcontratada pela Sociedade Arguida, e por este valor.
47. Neste contexto, em 23/05/2022, a Assistente, na presença do seu filho HH, reuniu-se com o CC, tendo ambos acordado que a Sociedade Arguida iria proceder com urgência à realização dos trabalhos em atraso adjudicados e já pagos (Doc. n.º 62 a 64 da Queixa), a saber:
- A título de cumprimento do 1.º Orçamento: Construção da cave e muros no valor de €36.900,00 (trinta e seis mil e novecentos euros), já liquidados pela Assistente; e
- A título de cumprimento do 2.º Orçamento: Construção da piscina completa, para o que foram escolhidos em reunião a cor dos mosaicos/pastilhas para forro da piscina.
48. Ficou ainda acordado nessa reunião que a Assistente faria um adiantamento, no valor de €20.000,00 (vinte mil euros), que corresponderia a 10% do valor da obra referente aos pisos 0 e 1, por forma à Sociedade Arguida dar seguimento aos trabalhos na obra e encomendar material para a estrutura em “...”.
49. Nessa reunião, o CC garantiu à Assistente que os referidos trabalhos seriam realizados rapidamente e que poderia continuar a confiar nele.
Contudo:
50. A Assistente estava dependente da libertação de uma segunda tranche do empréstimo bancário que pedira ao ... para a realização das obras, pelo que solicitou ao CC que lhe enviasse cópia do contrato de empreitada, que o Banco lhe exigia.
Sucede que:
51. Em 25/05/2022, a DD, enviou à Assistente um contrato de Empreitada unilateralmente modificado, face ao assinado, no qual o valor da adjudicação passou de €200.000,00 (duzentos mil euros), com IVA incluído, para €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), com IVA incluído, o que representava um aumento de €50.000,00 (cinquenta mil euros) – cf. Docs. n.º 65 a 72 da Queixa.
52. Contudo, o recebimento pela Assistente desse contrato de empreitada “actualizado”, ocorreu em vésperas do fim do prazo de que dispunha para enviar ao Banco os documentos necessários para a libertação da 2.ª tranche do empréstimo.
53. Assim, sem reparar na alteração do valor efectuada pelos Arguidos, e no sentido de instruir o pedido ao banco para libertação da segunda tranche do empréstimo, a Assistente solicitou ainda à DD o envio do respectivo orçamento, que após recepcionou e remeteu para o Banco na sua boa fé - cf. Doc. n.º 73 da Queixa.
54. Todavia, o Banco informou a Assistente que existia uma discrepância entre o valor do contrato em vigor/assinado (€200.000,00 com IVA) e o orçamento apresentado (€200 000,00 mais IVA), só assim se apercebendo que lhe tinha sido enviado pela Sociedade Arguida, um orçamento de valor significativamente superior ao acordado - vide Doc. n.º 74 da Queixa.
55. Não obstante a Assistente não ter concordado com esse aumento do valor da adjudicação, a Sociedade não se ficou por aí e em 26/05/2022, enviou um novo orçamento com mais uma actualização unilateral, contrária ao acordado, segundo o qual o valor da adjudicação já não era de €200.000,00 (duzentos mil euros) com IVA incluído, nem de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) com IVA incluído, mas sim de €307.761,94 (trezentos e sete mil setecentos e sessenta e um euros e noventa e quatro cêntimos), com IVA incluído – cf. Docs. n.ºs 75 e 76 da Queixa.
56. Perante isto, em 27/05/2022, julgando a Assistente que a alteração dos valores se tratava de um lapso, comunicou de imediato o sucedido aos CC, pedindo com urgência uma reunião e a rectificação do valor, explicando que para que se pudesse realizar a escritura do crédito ainda nessa semana, o valor do orçamento teria de ser igual ao do contrato que ambos assinaram – cf. Doc. n.º 77 da Queixa.
57. Após, em 31/05/2022, de manhã, a Assistente, voltou a comunicar com o CC alertando que a obra se mantinha paralisada - cf. Doc. n.º 74.
58. Depois, em 31/05/2022, de tarde, a Assistente já inquieta com receio de atrasar ainda mais a aprovação da 2.ª tranche por parte do Banco e temendo o incumprimento dos prazos permitidos excecionalmente pela prorrogação da licença, voltou a enviar uma SMS ao CC pedindo a rectificação do orçamento em conformidade, advertindo que caso contrário seria impossível a realização da escritura do crédito – cf. Doc. n.º 74 da Queixa, parte final.
59. Em 31/05/2022, a DD enviou um email à Assistente assumindo que tinha havido um lapso por parte da sociedade Arguida, mas que esse lapso estaria no Contrato de Empreitada assinado, o qual previa inequivocamente que o valor da adjudicação de €200.000,00 (duzentos mil euros), incluía o IVA.
60. Apesar de o contrato assinado prever que o valor da adjudicação incluía o IVA, mediante esse email, a DD enviou novamente à Assistente a minuta do contrato para aceitação, com o valor de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) - cf. Doc. n.º 78 da Queixa.
61. Ora, não só o valor de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) não constava do contrato assinado, como foi diversas vezes verbalmente acordado o valor €200.000,00 (duzentos mil euros), com IVA incluído, com o CC, o que aliás sucedeu na reunião de 23/05/2022.
62. De resto, nem a Assistente dispunha desse acréscimo, nem tinha como consegui-lo, o que aliás era do conhecimento do CC.
Depois disto:
63. O CCdeixou novamente de atender as chamadas telefónicas realizadas pela Assistente e de responder às suas mensagens;
64. E das raras vezes que respondia dizia que ia à obra mas na verdade nunca mais ali se dirigiu.
Com efeito:
65. O CC nunca mais se deslocou ao local da obra ou ali realizou qualquer trabalho – cf. Doc. n.º 79 da Queixa;
66. Na mesma linha, a DDdeixou de atender as chamadas telefónicas realizadas pela Assistente e de responder às suas mensagens – cf. Docs. n.ºs 79 a 82 da Queixa.
Em suma:
67. Os Arguidos CC e DD só enviavam mensagens e emails à Assistente a pedir mais dinheiro, anexando propostas de alterações ao valor acordado e consignado no contrato de empreitada assinado.
68. Enquanto isso, o prazo para a Assistente enviar a documentação para o banco para aprovação do empréstimo e realização da escritura, encontrava-se a expirar;
69. Pelo que, a Assistente não teve alternativa senão a de aceitar um orçamento enviado do email da Sociedade Arguida em 06/06/2022, em cujo valor da adjudicação era de €200.410,00 (duzentos mil quatrocentos e dez euros);
70. Porquanto, apesar não ter sido esse o valor acordado, a Assistente em face da urgência quanto à aprovação do crédito, não teve outro “remédio” se não o de aceitar – cf. Docs. n.ºs 83 e 84.
71. Por conseguinte, ainda em 06/06/2022, a Assistente enviou o dito orçamento para o Banco, solicitando a escritura no mais curto prazo possível, com receio que expirasse a licença de construção e de ainda não ter a obra feita – cf. Docs. n.º 85 e 86 da Queixa.
Após:
72. Em 13/07/2022, por email, a Assistente informou o CC que já tinha sido libertado pelo Banco o valor de €40.000,00 (quarenta mil euros), equivalente a 20% do valor total do contrato assinado e que com esse pagamento estava concluído o pagamento de 30% do pagamento do valor total da Obra “Chave na Mão” (10% pagos em 23/11/2021 e 20% a pagar após aceitação por email) – cf. Doc. n.º 87 da Queixa.
73. Mediante esse email, a Assistente solicitou ainda uma resposta rápida, de modo a proceder à transferência do dinheiro para a conta bancária constante do contrato de empreitada, de modo a cumprir os prazos contratuais estabelecidos.
74. De imediato, a DD enviou um email à Assistente a aceitar o pagamento da segunda tranche referente ao contrato – cf. Doc. n.º 88.
Perante isto:
75. Ainda em 13/07/2022, a Assistente transferiu para a conta bancária com o NIB ..., que lhe fora indicado pela Arguida, DD, a quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros), tendo enviado o respectivo comprovativo por email para o CC – cf Docs. n.º 89 a 91 da Queixa.
76. Esclareça-se, que contrariamente ao afirmado pelo CC a fls.149 a 152, não é verdade que entre esse pagamento e a chegada do ferro, a Assistente tenha feito qualquer alteração do projecto junto da empresa “...” sem a autorização do Arquitecto responsável pela empreitada, EE;
77. Porquanto, como se pode verificar pelo teor da troca de emails que ora se junta sob o Doc. n.º 1, quer o Arquitecto EE, quer o CC, acompanharam todas as alterações ao projecto.
78. De resto, se o Arquitecto EE não tivesse conhecimento da alteração, não teria cobrado os respectivos honorários, conforme resulta do email de 13/08/2022, constante do Doc. n.º 1.
Isto posto:
79. Em 17/08/2022, o Arquitecto EE enviou uma comunicação ao CC, alertando que a empresa à qual foi adjudicado o “...” precisava da obra limpa e desimpedida, mencionando o acordado em reunião realizada em 12/08/2022, juntando a acta da reunião e colocando a Assistente em “cc”– cf. Docs n.ºs 92 e 93.
80. Nesse email, o Arquitecto EE, alertou ainda, que segundo o acordado em reunião realizada em 27 de Maio de 2022 com o Eng. II, Director de Fiscalização de Obra, ainda existiam situações a serem aferidas, sugerindo nova reunião, bem como informando que a Assistente tinha ligado para saber o ponto da situação.
Todavia:
81. Não houve qualquer resposta por parte do CC e encontravam-se por realizar os trabalhos de montagem e estrutura;
82. Pelo que, em 17/08/2022, o Eng.º II enviou um email ao CC solicitando o comprovativo da encomenda de material ao subempreiteiro, registando ainda os trabalhos que não se encontravam executados em obra, e que já deveriam estar, de acordo com o combinado na reunião de 23/05/2022, a saber:
a) Colocação da placa de obra devidamente preenchida com o n.º de processo da ...;
b) Limpeza do Lote nomeadamente resíduos e capim existente;
c) Retificação da fundação do muro adjacente com o vizinho;
d) Impermeabilização de todos os muros e paredes enterradas (cave e piscina);
e) Reparação de todos os elementos de betão armado da estrutura da cave, pois encontravam-se armaduras expostas;
f) Execução de paredes de alvenaria na cave, colocação de isolamento PS e rebocos;
g) Fecho da Parede/muro ao acesso do piso -1;
h) Execução de drenos em falta junto ao aos muros da cave;
i) Execução da casa das máquinas e restantes trabalhos associados da piscina (infraestruturas); e
j) Colocação de vedação adequada e guardas de segurança na obra.
83. Nesse email, o Eng. II, informou ainda o CC, que a ora Assistente procedeu ao pagamento de €106.000,00 (cento e seis mil euros), e que os trabalhos executados até então, não se coadunavam com o montante acumulado já pago, solicitando ao dito Arguido que tomasse as medidas necessárias em obra para dar cumprimento do acordado com a Assistente;
Perante isto:
84. Em 18/08/2022 de Agosto, a DD, através de email, veio rebater o email do Engenheiro II, (cf. Docs. 94 e 95 e da Queixa), alegando que:
- Alguns dos trabalhos até tinham sido feitos;
- Não compreendia o referido pelo Sr. Engenheiro na sua comunicação;
- O contrato de empreitada tinha o valor de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), depois de toda a troca de emails e envio de documentação para o Banco;
- Os orçamentos se encontravam concluídos, quando se encontrava por executar os serviços elencados pelo Eng.º II, todos constantes dos orçamentos, nomeadamente o término da piscina e a cave completa;
- A transferência da quantia de €20.000,00 (vinte mil euros) serviria para realização de serviços que já se encontravam enquadrados nos orçamentos anteriores (ao contrário do previsto nos orçamentos e contrariamente ao constante do email de 10/08/2021);
- No que respeita à transferência da quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros) pela Assistente, alegou que já tinha sido adjudicado o “aço leve”, mas não fazendo prova disso, ignorando o solicitado.
85. Atentas as inverdades expressas no mencionado email da DD, em 19/08/2022, a Assistente enviou um email ao CC, ainda na fé que a Sociedade Arguida cumprisse com tudo o que estava em falta, esclarecendo que:
- Na proposta 0908_2021, o pagamento tinha sido realizado na totalidade;
- No email de 10/08/2021, caso dúvidas houvesse tinha sido reduzido a escrito o acordado verbalmente, ou seja que a proposta adjudicada, incluía a execução de todos os muros da casa, pois caso contrário não teria sentido;
- A alegação de que o valor de €20.000,00 (vinte mil euros) pago, relativo à proposta “chave na mão”, tinha servido para construção dos muros, portões e vedação não era correcta, pois estes serviços estavam contemplados nos orçamentos anteriores;
- A Proposta ...0..._2021 sempre foi apresentada pelo CC à Assistente como correspondendo ao término dos trabalhos da Cave, limpeza e preparação do terreno exterior e construção de todos os muros da casa; e que
- A Assistente sempre cumprira com todas as suas obrigações e manteve sempre transparência naquilo que estava a ser acordado.
Cf. Docs. n.º 96 e 97 da Queixa.
86. Mais expressou a Assistente, que para além de desconhecer os termos e nomes dos materiais, na sequência do que o CC sempre lhe disse: “os orçamentos são referências, por ser impossível contemplar exaustivamente todos os serviços”;
87. Razão pela qual, o orçamento deveria estar de acordo com aquilo que foi detalhadamente acordado de forma verbal, sob pena de uma das partes se estar a aproveitar da falta de conhecimento da outra do serviço contratado, ao não incluir no orçamento escrito tudo aquilo que foi acordado verbalmente;
88. Pois que, acordar verbalmente detalhes e enviar orçamentos generalistas fazendo-se valer disso, não parecia de boa-fé.
Neste contexto:
89. Pese embora a Assistente tenha reduzido a escrito a maior parte do acordado verbalmente através dos emails trocados, e de estes nunca terem sido contraditados na altura, o CC dava agora a entender que apenas eram relevantes os orçamentos redigidos de forma generalista, escamoteando todo o processo negocial escrito desenvolvido entre as partes.
90. Ora, como é evidente, não tem, nem poderá ter qualquer sentido à luz das mais elementares regras da experiência comum, contratar-se a realização de uma cave sem que essa construção contemple a escada interior que pertence à cave lhe dá acesso; ou contratar-se a construção de uma piscina (e não um buraco no chão!), sem que a essa construção contemple os acabamentos finais e mosaicos de modo a que possa ser usada; ou contratar-se a construção dos “muros da casa”, sem que essa expressão abranja todos os muros da casa etc.
91. De resto, na reunião que a Assistente teve com o CC, a mesma perguntou-lhe abertamente se era viável a realização da moradia pelo valor acordado, pois esse seria o montante máximo que poderia despender, ao que aquele respondeu que sim, que iria ser possível manter os valores contratualizados.
92. Finalmente, neste email de 19/08/2022, a Assistente solicitou que dali em diante, e para se salvaguardar, todas as comunicações relevantes fossem realizadas por email ou SMS via WhatsApp;
Todavia:
93. A partir 19/08/2022, a Assistente não voltou a receber comunicações por parte dos Arguidos;
94. Nunca nenhum dos Arguidos voltou a comparecer na obra ou a nela construir fosse o que fosse;
95. Em 07/09/2022 e 12/09/2022 a Assistente solicitou aos Arguidos, mas sem sucesso:
- Um relatório do trabalho realizado nas últimas semanas, pedindo para ser informada sobre a chegada do “aço”;
- Informação sobre se a obra estava operacional para o aço ser implementado;
- Informação sobre o estado da obra, e respectiva calendarização dos trabalhos;
Cf. Doc. n.º 98 da Queixa
96. Em 30/09/2022, a Assistente enviou um email aos Arguidos a comunicar que continuava sem resposta aos emails, alertando que a obra parecia uma lixeira abandonada e que nem sequer tinha sido colocada a placa obrigatória da obra.
Isto posto:
97. Em 20/09/2022, a Assistente, perante a falta de quaisquer respostas por parte dos Arguidos, solicitou ainda ao Sr. Arquitecto EE, informações a respeito do avanço da obra – cf. Doc. n.º 99 da Queixa.
98. E, nessa mesma data, a Assistente enviou a todos os intervenientes (Arquitecto EE, ao Eng.º II, à Sociedade Arguida e aos Arguidos CC e DD) um vídeo espelhando o estado da obra nesse dia - cf. vídeo junto sob os Docs. n.º 100 e Doc.º n.º 101 (vídeo da obra) da Queixa – que também é perceptível nas fotos juntas sob o Doc. n.º 102-A da Queixa.
Como se não bastasse:
99. Volvidos quase 3 meses sem comunicações, em 02/11/2022, a DD enviou um email à Assistente a solicitar o pagamento da alteração do aço leve (...), ao qual a Assistente respondeu na mesma data, que conforme informou o Arquitecto EE, aguardava factura da empresa do ... em seu nome, preferindo realizar o pagamento directamente – cf. Doc. n.º 102 da Queixa.
100. Na sequência de contactos com o Sr. Arquitecto EE para realização do pagamento directo à empresa, a Assistente descobriu que existiam problemas no pagamento por parte da Sociedade Arguida à empresa subcontratada de fornecimento do “...”, pois apenas tinha sido pago o valor de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), quando a respectiva factura totalizava o valor de €7.246,00 (sete mil duzentos e quarenta e seis euros) - cf. Docs. 103 a 105 da Queixa.
Para além disso, a Assistente descobriu ainda que:
101. O CC enviou um orçamento à Assistente da empresa “...“ para contratação do “...” (Doc. n.º 61 da Queixa) com o valor de €79.415,14 (setenta e nove mil quatrocentos e quinze euros e catorze cêntimos), fazendo-a crer que contratou esse orçamento;
102. Mas, enviou ao Arquitecto EE para o mesmo efeito, um orçamento da ...” com um outro valor de €57.815,11 (cinquenta e sete mil oitocentos e quinze euros e onze cêntimos), fazendo-o crer que tinha contratado esse orçamento;
103. Quando, na realidade, a Sociedade Arguida, representada pelo CC contratou uma 3.º empresa “...” por um valor significativamente mais baixo, de €36.230,00 (trinta e seis mil duzentos e trinta euros) – cf. Docs n.ºs 108 a 112 da Queixa.
104. Com este artificio, designadamente mediante a apresentação à Assistente de um orçamento que não tinha adjudicado, a Sociedade Arguida solicitou à Assistente o pagamento de quase o dobro do valor para a adjudicação do ..., do que aquele que realmente a Sociedade Arguida tinha contratado.
105. De tal modo, que julgava a Assistente que através da transferência da 2.ª tranche do empréstimo só tinha pago uma percentagem do valor do aço, quando na verdade já tinha pago o aço na totalidade, tendo ainda sobrado valores, que a Sociedade Arguida fez seus.
106. Para a agravar a situação, em 14/10/2022, o Eng. II cessou funções como Director de Fiscalização de Obra alegando motivos pessoais – cf. Doc. n.º 113 da Queixa.
107. Em 14/11/2022, a Assistente solicitou ao CC o envio do cronograma das atividades realizadas até àquela data na obra, como as que iria realizar até ao final do contrato que terminaria a 14 de Fevereiro de 2022, solicitando um agendamento de reunião para breve – cf. Docs. n.ºs 114 e 115 da Queixa;
108. Em 01/11/2022, face à impossibilidade de qualquer comunicação com o CC, por este a ignorar, a Assistente enviou um email ao mesmo a solicitar uma justificação para não se encontrar ninguém na obra, sublinhando que:
- A cave estava a meter água por se encontrar inacabada;
- O “OSB” (oriented strand board, em português, painel de tiras de madeira orientadas) poderia ficar severamente danificado por não se encontrar impermeabilizado, interrogando por que ainda não se encontra impermeabilizado; e
-Questionando por que razão a Sociedade Arguida não se encontrava a realizar o seu trabalho que estava devidamente pago;
- cf. Doc. n.º 114 da Queixa;
109. Em 17/11/2022, a Assistente enviou um novo email à Sociedade Arguida, referindo que continuava sem qualquer resposta aos emails enviados, perguntando por que razão o CC não se dirigiu mais à obra e solicitando resposta com urgência aos mails anteriores dada a importância dos assuntos - cf. Docs. n.ºs 114 e 115 da Queixa.
110. Perante a total falta de respostas por parte dos Arguidos, a Assistente pediu aconselhamento junto dos técnicos da obra (Engºs /Arquitectos), os quais a informaram que, com a obra parada, com o pouco tempo que faltava para o fim do Contrato (14 de Fevereiro de 2023), com o aproximar da data de expiração da licença de Construção (27 de Fevereiro 2023) e considerando o que faltava fazer, apresentava-se como quase impossível, se não mesmo impossível, o cumprimento dos prazos.
Neste contexto:
111. Em 23/11/2022, a Assistente enviou uma carta registada com aviso de recepção, para a morada da Sociedade Arguida, constante do contrato de empreitada, interpelando-a para no prazo de 7 dias regularizar os trabalhos em falta ou pelo menos retomar a obra, sob pena de persistindo essa inacção, tal ser interpretado como desinteresse no cumprimento contratual e abandono de obra - cf. Docs. n.º 116 a 121 da Queixa.
112. Como não houve qualquer resposta da Sociedade Arguida, nem os trabalhos foram retomados ou concluídos, a Assistente, em 13/12/2022, enviou uma nova carta à Sociedade Arguida resolvendo o Contrato de Empreitada, com a apresentação dos seus fundamentos e motivos – cf. Docs. n.º 122 a 124.
Finalmente:
113. A Assistente solicitou ao Engenheiro Civil, GG, a elaboração de um relatório sobre a obra – cf. Docs. n.º 125 e 126 da Queixa.
114. Conforme, resulta desse relatório, e ao arrepio dos orçamentos apresentados pela Sociedade Arguida, devidamente liquidados pela Assistente, no Piso -1 Cave:
- Não foi sequer construída a ...,
- Inexistem drenos;
- Inexiste permeabilização entre a estrutura e todas as terras envolventes;
- Foram detectadas lacunas graves na estabilidade da estrutura da cave, pelo que será obrigatório intervenção para garantir a boa execução da mesma;
- A Escada interior de acesso da cave ao piso 0 encontra-se inacabada e com desalinhamento em relação ao projectado, sendo obrigatório intervenção para correcção da mesma;
115. Em suma, a edificação da cave tem de ser corrigida e acabada, pois encontra-se em tosco e com bastantes diferenças em relação ao projecto, quer estruturais quer de implantação, encontrando-se na área da cave um enorme depósito de entulho e lixo variado.
116. Por sua vez, a “piscina”, cuja construção foi integralmente liquidada pela Assistente, é referida como uma estrutura de betão inacabada em tosco e um tanque de compensação inacabado em tosco.
117. No mencionado relatório esclarece-se que em 18/08/2022, o fiscal de obras enviou à Sociedade Arguida um alerta de preocupação pelo estado da obra, e que nada foi feito em consequência.
118. Mais se explicita que atendendo a que o prazo de execução de empreitada expirava a 14/02/2022 e tendo em conta a extensão do atraso na obra, que teria a Assistente de tentar pedir junto da Câmara Municipal de ...novo pedido de prorrogação da licença, novamente por imputação à Sociedade Arguida.
119. Esclarece-se ainda que de acordo com a documentação existente em obra, não existiam quaisquer adjudicações para as actividades inerentes ao acabamento da mesma, nos respectivos prazos contratados, designadamente:
- O capoto, cobertura, alumínios.
- Cantarias, carpintarias, electricidade, canalizações e trabalhos de construção civil.
Ora:
120. Face à factualidade supra descrita, e maioritariamente demonstrada pelo teor dos documentos juntos com a Queixa, é evidente que a Sociedade Arguida e os seus representantes nunca tiveram qualquer intenção de executar os trabalhos, pelos quais cobraram à Assistente a quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros).
121. E, parece evidente que a cobrança da quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros), sem que tenha sido prestada a respectiva contrapartida económica é um acto eticamente reprovável aos olhos da sociedade;
122. Sendo certo, que o exercício de tais actos no tráfego comercial representa um grave perigo social, susceptível de arruinar a vida das pessoas que se endividem para fazer face ao pagamento de tais quantias sem obterem qualquer contrapartida económica, o que, aliás, sucedeu com a Assistente.
123. Note-se que o dispêndio dessa quantia sem que tivesse sido realizada a obra que os Arguidos se comprometeram realizar, deixou a Assistente em grandes dificuldades económicas;
Porquanto:
124. A Assistente está divorciada desde ...;
125. Tem 3 filhos, a seu cargo (A JJ, o KK e o LL, respectivamente, com 9, 4 e 25 anos de idade);
126. Aufere um salário mensal de apenas €1.280,00 (mil e duzentos e oitenta euros), conforme documentado nos autos (requerimento da Assistente de 26/02/2024);
127. É com esse salário que a Assistente assegura o pagamento das suas despesas e dos filhos, dois deles em idade escolar, sem qualquer ajuda do Pai (encontrando-se aliás pendente um incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, que corre termos pelo Juízo de Família e Menores de Cascais - Juiz 2, sob o proc. n.º 1653/24.0T8CSC).
128. Em virtude dos factos praticados pelos Arguidos, a Assistente viu-se obrigada a endividar-se para lhes pagar, acreditando que aqueles construiriam a sua casa com os montantes que lhes entregou.
129. Para tanto, a Assistente pediu um empréstimo para construção da habitação, pelo que se encontra a pagar uma prestação mensal no valor de €412,64 (quatrocentos e doze euros e sessenta e quatro cêntimos), estando actualmente em dívida a quantia de €75.399,24 (setenta e cinco mil trezentos e noventa e nove euros e vinte e quatro cêntimos) – cf. Detalhe de empréstimo, junta sob o Doc. n.º 2 do requerimento da Assistente de 26/02/2024.
130. Contudo, os Arguidos não cumpriram a promessa de construírem a habitação, levando a Assistente a ficar sem dinheiro, sem casa para morar e com uma dívida ao Banco.
131. Face ao que, a Assistente teve de se mudar para a casa da sua mãe, onde reside actualmente com os seus três filhos, partilhando quartos.
132. Pelo que, por via da conduta dos Arguidos, a situação económica da Assistente tornou-se catastrófica.
133. De modo que, neste momento, a única forma de a Assistente reorganizar a sua situação financeira e de conseguir prover pela sua subsistência e pelo sustento dos seus filhos, passa necessariamente por vender o imóvel;
134. De forma a realizar algum dinheiro para, pelo menos, arrendar um imóvel para habitação.
135. Nesse sentido, a Assistente até já celebrou um contrato de mediação imobiliária, tendo em vista a venda da moradia, objecto dos autos – cf. Doc. n.º 3 do requerimento da Assistente de 26/02/2024;
Todavia:
136. Conforme resulta do teor das fotografias anexas sob os Docs. n.º 100.º, 101.º e 102.º - A anexos à queixa, os Arguidos, para além de não terem executado a obra que se comprometeram realizar, levaram para o imóvel, designadamente, entulho diverso, andaimes não certificados, uma betoneira inoperacional, sacos de cimento deteriorado, para darem a aparência de que iriam realizar os trabalhos;
137. Elementos esses que os Arguidos ali abandonaram e que ali permanecem.
138. Tais actos dos Arguidos geraram, e continuam a gerar, uma situação que prejudica significativamente a Assistente;
139. Pois, a presença desses elementos no local impossibilita a venda do imóvel, uma vez que nenhum potencial comprador está disposto a adquirir a propriedade em tais condições.
140. E, na verdade, nem sequer a propriedade se encontra em condições de ser visitada por qualquer eventual interessado.
Isto posto:
141. Considerando que a Assistente pretende alienar o imóvel, e que disso depende a sua subsistência e o sustento dos seus filhos, torna-se imperativo que os Arguidos procedam à remoção imediata de todos os elementos que deixaram no imóvel, para que se restabeleça a possibilidade da sua comercialização, já de si difícil por se tratar da venda de um prédio em construção.
142. Contudo, os Arguidos nem sequer recebem a correspondência que a Assistente lhe envia, a fim de interpelá-los para retirarem do imóvel todos aqueles elementos – cf. Docs n.º 1 a n.º 3 do requerimento da Assistente, de 01/04/2024.
143. Toda a conduta dos Arguidos consubstancia, pois, uma violação da ordem jurídica que, pela sua intensidade e gravidade, exige como única sanção adequada uma sanção penal.
144. Mais, em face da degradação dos materiais decorrentes do abandono da obra pela Sociedade Arguida, a Assistente viu-se obrigada a contratar um terceiro para colocar o capoto.
145. Sendo esse o motivo pelo qual o Arguido CC, ouvido em sede de inquérito (cf. fls.149 a 152), mencionou ter visto terceiros no terreno a trabalharem.
146. É, contudo, absolutamente falso que alguém tenha utilizado os andaimes que a Sociedade Arguida abandonou no terreno, desde logo, porquanto se tratam de andaimes sem certificação e que não cumprem as exigências mínimas de segurança – conforme resulta do teor do Relatório da Protecção Civil, de fls. 237 e ss.
147. Nestes termos, salvo melhor e douta opinião de V.ª Ex.ª, Mm.ª Juiz, deveria o digno Ministério Público ter proferido despacho de Acusação contra os Arguidos:
- FF, pessoa colectiva n.º ..., com sede na ...;
- CC, ..., casado, nascido em .../.../1973, filho de MM e de NN, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até .../.../2023, residente na ...;
- BB, ..., solteiro, nascido em .../.../1997, filho de CC e de DD, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até .../.../2026, com domicílio na ...;
- DD, ..., casada, nascida em .../.../1976, filha de OO e de PP, portadora do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até .../.../2031, residente na ...;
Porquanto, indiciam suficientemente os autos:
148. A FF é uma Sociedade comercial por quotas, que tem por objecto social, a construção de edifícios.
149. Desde o momento da constituição da sociedade Arguida, e até à presente data, a Sociedade Arguida tem como único sócio e gerente, QQ.
150. Contudo, em 07/09/2018, QQ outorgou uma procuração ao CC seu pai, concedendo-lhe todos os poderes gerência e representação da Sociedade Arguida, onde se incluem, os poderes para contratar com os clientes - fls. 187 a 193.
151. Ao abrigo dessa procuração, desde 07/09/2018, até à presente data, foi o CC, quem de facto exerceu em exclusivo todos os poderes de gerência e representação da Sociedade Arguida.
152. O BB é filho dos Arguidos CC e DD e não possui qualquer vínculo com a Sociedade Arguida.
153. A DD é casada com o CC mãe do BB e à data dos factos que adiante se expõem, trabalhava na Sociedade Arguida enquanto técnica administrativa;
154. Em meados de 2021, a Assistente procurava uma empresa para a construção de uma moradia no terreno de que era (e é) proprietária, sito na ..., na freguesia de ..., concelho de Cascais, onde já tinham sido realizados trabalhos por terceiros, designadamente limpeza, escavação, chão da cave/laje e levantamento de algumas paredes.
155. Neste contexto, em meados de Julho de 2021, um amigo da Assistente apresentou-lhe o CC.
156. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre o início de Julho de 2021 e 04/08/2021, a sociedade Arguida e os Arguidos CC, DD e BB, gizaram um plano tendente a enriquecerem ilegitimamente à custa do património da Assistente.
157. Tal plano consistia em criarem a falsa convicção na Assistente de que a Sociedade Arguida iria proceder à construção de uma moradia no terreno da sua propriedade, sito na ..., na freguesia de ..., concelho de …, propriedade da Assistente;
158. E de, fazendo-se valer dessa convicção, determinarem a Assistente, a proceder à transferência para as suas esferas patrimoniais, do maior montante pecuniário possível, quando nunca foi intenção dos Arguidos edificarem qualquer moradia no terreno da Assistente.
159. Para esse efeito, os Arguidos prevaleceram-se dos seguintes expedientes:
- A redacção de orçamentos generalistas de forma a poderem invocar que determinados serviços não estavam incluídos nos orçamentos apresentados e liquidados pela Assistente (por exemplo, apondo no orçamento as verbas “muros da moradia”, “piscina”, ou “cave”, para após alegarem que o orçamento não incluía todos os muros, os acabamentos da piscina ou a escada de acesso à cave);
- A colocação no terreno de materiais e a construção de elementos, de forma a fazerem crer à Assistente, que nele iriam construir a moradia, que na realidade nunca quiseram construir, nem dispunham de meios técnicos ou humanos para o efeito;
- O acordo de detalhes importantes da obra sempre de forma verbal;
- A insistência para a aceitação das alterações unilaterais dos orçamentos no sentido da subida de valores, sempre em fases de stress e de cumprimento de prazos (por exemplo, aquando do termo da validade da licença de construção ou do prazo para envio de documentos para o Banco para instruir pedido de empréstimo);
- A apresentação à Assistente de pelo menos um orçamento de aquisição de material a um subempreiteiro, por um determinado valor, como se o mesmo tivesse sido adjudicado, quando na realidade a Sociedade Arguida tinha adjudicado a compra desse material a outro empreiteiro por um valor consideravelmente inferior (de forma a aos Arguidos poderem arrecadar a diferença entre os montantes pagos pela Assistente e o valor efectivamente despendido pela Sociedade Arguida com a aquisição do material);
- A dupla cobrança de materiais e serviços;
- O pedido de pagamento de valores não orçamentados;
- A indicação de uma conta bancária estranha à Sociedade Arguida (titulada pelo BB) para efeitos de transferência bancária de quantias alegadamente devidas à Sociedade Arguida;
- A não emissão de facturas e recibos relativamente a valores recebidos;
- O não cumprimento das condições de pagamento e solicitação de montantes superiores aos contratados;
- A descrição em reuniões presenciais de construções de sonho (tais como, piscina e Deck), sem que nunca os Arguidos tivessem a intenção de as edificar;
- Ignorar pedidos de reunião quando os assuntos diziam respeito à execução da obra, mas as mesmas não se traduziam em oportunidade de solicitar a transferência de mais quantias à Assistente;
- Não comunicação à Assistente de um cronograma de obra, um relatório do estado da obra etc.
Na execução desse plano:
160. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre o início de Julho de 2021 e 04/08/2021, o CC, reuniu-se com a Assistente.
161. Nessa reunião, o CC, apresentou a Sociedade Arguida como sendo uma empresa especializada na reabilitação de edifícios com 7 anos de experiência e que integrava, nos seus quadros, técnicos experientes cuja principal função era garantir a qualidade dos trabalhos que se propunha efectuar.
162. Em consequência, em 04/08/2021, a Assistente enviou ao CC o projecto da casa pretendida, com as peças desenhadas e a demais documentação, a fim de obter um orçamento.
163. Em 09/08/2021, a DD, em representação da Sociedade Arguida, enviou à Assistente, que o aceitou em 10/08/2021, um orçamento no valor de €30.000,00 + IVA, a ser pago da seguinte forma: 50% no início dos trabalhos; 40% quando estivessem realizados 50% da totalidade dos trabalhos; e 10% no final da obra.
164. Esse orçamento incluía a realização dos seguintes trabalhos:
- Limpeza de terras de encosto das paredes para fazer drenagem de água;
- Reboco de paredes exteriores e aplicar 2 de mãos de flitecoto e aplicar tela de alcatrão nas mesmas;
- Aplicar tela pictonada em todas as paredes bem como manta geotêxtil;
- Fazer caleira com descaimento no fundo das paredes e aplicar flitecoto e tubos de drenagem perfurado;
- Colocação de brita por cima do tubo e fazer aterro de acosto às paredes;
- Fazer pilares, lenteis e vigas para suporte da laje; e
- Fazer ... de toda a casa conforme projecto.
165. Contudo, em 10 de Agosto de 2021, pelas 14:25 horas, por acordo, a Assistente e o CC, pelo telefone, alteraram a modalidade de pagamento do valor constante do orçamento, para que diferentemente do inicialmente previsto, o pagamento do aludido valor de €30.000,00 + IVA, passasse a ser efectuado da seguinte forma:
- Pagamento de 30% aquando a adjudicação (€11.070,00);
- Pagamento de 30% para realização do aterro e muralhas (€11.070,00);
- Pagamento de 30% antes de encher a ... (€11.070,00); e
- Pagamento de 10% aquando da conclusão de trabalhos (€3.690,00).
166. A Assistente concordou com o orçamento apresentado e com a forma de pagamento acordada e em 17/08/2021, liquidou a quantia de €11.070,00 (onze mil e setenta euros), através de transferência para a conta bancária com o NIB ..., que lhe fora indicado pela Arguida, DD.
167. Em 04/09/2021, à margem do orçamento inicialmente apresentado, a Arguida, DD enviou um email à Assistente, solicitando o pagamento da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), alegadamente, para fazer face ao pagamento do ferro.
168. Em 06/09/2021, a Assistente, confiando que tal quantia era efectivamente necessária para a aquisição do ferro, efectuou o pagamento do dito valor de €15.000,00 (quinze mil euros), através de transferência para a conta bancária com o NIB ..., que lhe fora indicado pela Arguida, DD.
169. Ainda em 06/09/2021, a Arguida, DD enviou mais um email à Assistente, contendo um 2.º orçamento (06092021), solicitando o pagamento da quantia de €9.100,00 (nove mil e cem euros) mais IVA, alegadamente, para a construção da ...; a construção da piscina; a construção de escada interior em cofragem e aquisição de ferro e betão.
170. Sendo certo, no entanto, que a construção da ... e da escada interior em cofragem já estavam incluídas no 1.º orçamento e a Assistente já tinha pago a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), alegadamente para aquisição do ferro;
171. Em 21/09/2021, a DD enviou mais um email à Assistente, a solicitar-lhe o pagamento de €10.000,00 (dez mil euros), supostamente, para “reforço dos orçamentos”.
172. A Assistente suspeitou deste novo pedido de pagamento porque nem sequer tinha aprovado o segundo orçamento (06092021), de 06/09/2021.
173. Contudo, em 23/09/2021, a Assistente acedeu ao solicitado e transferiu a quantia de €10.000,00 (dez mil euros) para a conta bancária com o NIB ..., que lhe fora indicado pela Arguida, DD - cf. Docs. n.ºs 18 e 19 da Queixa.
174. Face à preocupação da Assistente com a circunstância de a Sociedade Arguida lhe estar sucessivamente a solicitar entregas de dinheiro não acordadas, e face à duplicação da cobrança do valor da “laje” e do “ferro” a Assistente solicitou uma reunião ao CC.
Assim:
175. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre 24/09/2021 e o final de Outubro de 2021, a Assistente e o CC, na presença do filho da HH, reuniram-se no local de trabalho da Assistente, sito na ....
176. Nessa reunião, o CC mencionou à Assistente que não se preocupasse porque os envios dos orçamentos eram meras referências, por ser difícil elencar todos os trabalhos num orçamento, solicitando à Assistente que confiasse nele, e assegurando que no final tudo bateria certo e iria ser feito como pretendia.
177. Na dita reunião, a fim de ludibriar a Assistente, o CC mencionou-lhe também que iria dar-lhe uma “benesse”, uma vez que faria incluir o IVA na quantia de €9.100,00 (nove mil e cem euros), correspondente ao segundo orçamento apresentado, o que depois formalizaria por escrito.
178. Nessas circunstâncias, o CC prometeu também à Assistente que iria descontar o valor da dupla cobrança da “laje” e do “ferro” que já se encontrava contemplado no primeiro orçamento e que tinha sido pago pela Assistente.
Ademais:
179. De forma a convencer a Assistente de que tinha a efectiva intenção de construir a moradia, o CC acordou com a Assistente pormenorizadamente, os detalhes da pretensa obra, tais como os materiais a aplicar, a piscina, os azulejos, um Deck exterior em madeira ao pé da piscina etc.
Consequentemente:
180. Em 07/10/2021, o CC enviou à Assistente um terceiro orçamento, denominado de “Chave na Mão”, com o n.º 0610-2021, no valor total de €195.000,00 (cento e noventa e cinco mil euros), ao qual acresceria IVA.
181. Em 13/07/2021, a Assistente recebeu ainda um email proveniente da conta de email da Sociedade Arguida (sem assinatura), aludindo aos valores já liquidados e informando que apenas faltava liquidar a quantia de €830,00 (oitocentos e trinta euros), por conta do primeiro orçamento - cf. Doc. n.º 26 “A” da Queixa.
182. Contudo, nesse email, ao contrário do prometido pelo CC, não foi descontado o valor da dupla cobrança da “laje” e do “ferro” que já tinha sido pago pela Assistente aquando do primeiro orçamento.
183. Pelo que, a Assistente voltou a telefonar ao CC, a alertá-lo para a dupla cobrança, face ao que o mesmo respondeu que a empresa iria rectificar o email, assegurando contudo que o que valia seria o acordado entre ambos.
184. Porém, o CC nunca rectificou nem o segundo orçamento, nem o email no sentido de excluir os serviços que já estavam incluídos e pagos aquando do primeiro Orçamento;
185. Pelo contrário, em 19/10/2022, o CC telefonou à Assistente e solicitou-lhe que efectuasse o pagamento do valor total do 2.º orçamento acordado de €9.100,00 (nove mil e cem euros), com IVA incluído, indicando-lhe uma conta bancária para onde tinha preferência que realizasse o pagamento.
186. De seguida, o CC enviou à Assistente, por Whatsapp, o NIB de uma conta bancária do ..., que era estranha à sociedade Arguida, o que a Assistente desconhecia, titulada pelo BB, um dos seus filhos: PT50 0010 0000 5280 7340 001 03.
187. Assim, em 19/10/2021, a Assistente transferiu para essa conta bancária titulada pelo BB o valor total do segundo orçamento, na quantia de €9.100,00 (nove mil e cem euros), bem como o valor de €830,00 (oitocentos e trinta euros), que faltava para liquidar integralmente o primeiro orçamento.
188. Em consequência, ainda em 19/10/2021, a Assistente, por email, enviou à Sociedade Arguida os comprovativos das transferências bancárias por si realizadas, solicitando as respectivas facturas e recibos.
189. Face ao que, em 28/10/2021, a DD enviou um email à Assistente anexando uma factura (mas apenas relativa ao valor pago pelo primeiro Orçamento), a qual não elencava porém a totalidade dos trabalhos ali previstos.
190. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre 28/10/2021 e 23/11/2021, o CC voltou a solicitar à Assistente o pagamento respeitante ao terceiro orçamento (n.º 0610-2021), para a construção da moradia “chave na mão”, pelo valor de €200.000,00 (duzentos mil euros) com IVA incluído, alegadamente, tudo de acordo com o projecto de construção em vigor.
Consequentemente:
191. Em 23/11/2021, a Assistente enviou um email à Sociedade Arguida informando que já tinha efectuado o pagamento da quantia de €20.000,00 (10% do valor total com IVA incluído), reforçando por escrito o acordado e enviando o respectivo comprovativo de pagamento.
192. Após este último pagamento, a partir de Dezembro de 2021, o CC e os trabalhadores da Sociedade Arguida deixaram de se dirigir ao local da obra e de ali realizarem qualquer trabalho.
193. Face ao que, de 22/12/2021 a 23/05/2022, a Assistente tentou comunicar com o CC através de telefone, mensagens, mas sem sucesso, apenas obtendo do mesmo respostas evasivas como: “Posso ligar mais tarde?” ou “Marque para outro dia”.
194. Desde então, a Assistente deixou de conseguir estabelecer qualquer contacto com o CC, o qual, não só deixou de atender as sucessivas chamadas telefónicas realizadas pela Assistente, como também não mais respondeu aos emails e mensagens que por si lhe foram enviados.
195. Uma vez que a licença de construção terminava em 28/02/2022 e que desde o final de Novembro de 2021 não houve quaisquer avanços na obra, a Assistente teve de requerer à Câmara Municipal de ... uma prorrogação da licença, pagando os respectivos custos inerentes, no montante de €288,60 (duzentos e oitenta e oito euros e sessenta cêntimos), bem como teve de liquidar a quantia de €400,00 (quatrocentos euros), pelos honorários referentes ao trabalho técnico para a preparação do pedido de prorrogação.
196. Entretanto, em 14/02/2022, a Assistente conseguiu chegar à fala com o CC, altura em que a Assistente celebrou um contrato de Empreitada, com a Sociedade Arguida, documento exigido pelo ... para a concessão de um empréstimo para a realização das obras - cf. Doc.º n.ºs 51 a 57.
197. Apesar disso, nem o CC nem nenhum funcionário da sociedade Arguida retomou a obra.
Face ao que:
198. A Assistente passou a enviar mensagens e a telefonar aos Arguidos insistentemente, para saber o que se passava, mas sempre sem sucesso, pois o CC dizia sempre que iria retomar a obra e não cumpria, assim como confirmava o agendamento de reuniões mas nunca comparecia.
Não obstante:
199. Em 16/05/2022, a DD enviou à Assistente, uma proposta de orçamento para a adjudicação do “...” através da empresa “....” no alegado valor de €79.415,14 (setenta e nove mil quatrocentos e quinze euros e catorze cêntimos), mais IVA, fazendo a Assistente crer que seria esta a empresa subcontratada e este o valor da adjudicação daquele material.
200. Isto quando, na realidade, a Sociedade Arguida, representada pelo CC tinha contratado a adjudicação do “...” à Sociedade “...” pelo valor de apenas €36.230,00 (trinta e seis mil duzentos e trinta euros).
201. Com este artificio, designadamente mediante a utilização de um orçamento que não tinha adjudicado, a Sociedade Arguida pretendeu determinar a Assistente ao pagamento de um valor superior em €43.185,14 (quarenta e três mil cento e oitenta e cinco euros e catorze cêntimos), àquele que era efectivamente devido pelo “aço leve”, quantia essa que a Sociedade Arguida quis fazer sua sem prestar qualquer contrapartida económica à Assistente.
Após:
202. Em 23/05/2022, a Assistente reuniu-se com o CC, tendo ambos acordado que a Sociedade Arguida iria proceder com urgência à realização dos trabalhos em atraso adjudicados e já pagos, a saber:
- A título de cumprimento do 1.º Orçamento: Construção da cave e dos muros no valor de €36.900,00 (trinta e seis mil e novecentos euros), já liquidados pela Assistente; e
- A título de cumprimento do 2.º Orçamento: Construção da piscina completa, para o que foram escolhidos em reunião a cor dos mosaicos/pastilhas para forro da piscina.
203. Ficou ainda acordado nessa reunião que a Assistente faria um adiantamento, no valor de €20.000,00 (vinte mil euros), que corresponderia a 10% do valor da obra referente aos pisos 0 e 1, por forma à Sociedade Arguida dar seguimento aos trabalhos na obra e encomendar material para a estrutura em “...”.
204. Nessa reunião, o CC garantiu à Assistente que os referidos trabalhos seriam realizados rapidamente e que deveria continuar a confiar nele.
Contudo:
205. A Assistente estava dependente da libertação de uma segunda tranche do empréstimo bancário que pedira ao ... para a realização das obras, pelo que solicitou ao CC que lhe enviasse cópia do contrato de empreitada, que o Banco lhe exigia.
Sucede que:
206. Em 25/05/2022, a DD, enviou à Assistente uma minuta do contrato de Empreitada unilateralmente modificada face ao contrato assinado, no qual o valor da adjudicação passou de €200.000,00 (duzentos mil euros), com IVA incluído, para €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), com IVA incluído, o que representava um aumento de €50.000,00 (cinquenta mil euros).
207. Contudo, o recebimento pela Assistente desse contrato de empreitada “actualizado”, ocorreu em vésperas do fim do prazo de que aquela dispunha para enviar ao Banco os documentos necessários para a libertação da 2.ª tranche do empréstimo.
208. Assim, sem reparar na alteração do valor, e no sentido de instruir o pedido ao banco para libertação da segunda tranche do empréstimo, a Assistente solicitou ainda à Sociedade Arguida, o envio do respectivo orçamento, que recepcionou e remeteu para o Banco na sua boa fé.
209. Porém, o Banco informou a Assistente que existia uma discrepância entre o valor do contrato em vigor/assinado (€200.000,00, com IVA) e o orçamento apresentado (€200.000,00, mais IVA), só assim se apercebendo que lhe tinha sido enviado pela Sociedade Arguida, um orçamento de valor significativamente superior ao acordado.
210. Não obstante a Assistente não ter concordado com esse aumento do valor da adjudicação, a Sociedade Arguida não se ficou por aí e em 26/05/2022, enviou um novo orçamento à Assistente com mais uma actualização unilateral, contrária ao acordado, segundo o qual o valor da adjudicação já não era de €200.000,00 (duzentos mil euros) com IVA incluído, nem de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) com IVA incluído, mas sim de €307.761,94 (trezentos e sete mil setecentos e sessenta e um euros e noventa e quatro cêntimos), com IVA incluído.
211. Perante isto, em 27/05/2022, julgando que a alteração dos valores se tratava de um lapso, a Assistente alertou de imediato o CC, pedindo com urgência uma reunião e a rectificação do valor, explicando que para que se pudesse realizar a escritura do crédito ainda nessa semana, o valor do orçamento teria de ser igual ao constante do contrato que ambos assinaram.
212. Após, em 31/05/2022, de manhã, a Assistente, voltou a comunicar com o Arguido alertando que a obra se mantinha paralisada.
213. Em 31/05/2022, à tarde, a Assistente, receosa de atrasar ainda mais a aprovação da 2.ª tranche do crédito pelo Banco e temendo o incumprimento dos prazos permitidos excecionalmente pela prorrogação da licença, voltou a enviar uma SMS ao CC pedindo a rectificação do orçamento em conformidade, advertindo que caso contrário seria impossível a realização da escritura.
214. Em 31/05/2022, a DD enviou um email à Assistente assumindo que tinha havido um lapso por parte da sociedade Arguida, mas que esse lapso estaria no Contrato de Empreitada assinado, o qual previa inequivocamente que o valor da adjudicação de €200.000,00 (duzentos mil euros), incluía o IVA.
215. Apesar de o contrato assinado prever que o valor da adjudicação incluía o IVA, mediante tal email, a DD enviou novamente à Assistente a minuta do contrato para aceitação, com o valor de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros).
216. Isto quando, não só o valor de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) não constava do contrato assinado, como tinha sido diversas vezes verbalmente acordado entre a Assistente o CC (o que aliás sucedeu na reunião de 23/05/2022) o valor €200.000,00 (duzentos mil euros), com IVA incluído.
217. De resto, nem a Assistente dispunha desse acréscimo, nem tinha como conseguir obtê-lo, o que aliás era do conhecimento do CC.
Depois disto:
218. O CCdeixou novamente de atender as chamadas telefónicas realizadas pela Assistente e de responder às suas mensagens;
219. E, das raras vezes que respondia à Assistente, prometia-lhe que ia retomar a obra mas nunca mais ali se dirigiu.
Com efeito:
220. Desde Maio de 2021, o CC nunca mais se deslocou ao local da obra ou ali realizou qualquer trabalho.
221. Desde Maio de 2021, nunca mais nenhum funcionário da Sociedade Arguida se deslocou ao local da obra ou ali realizou qualquer trabalho.
222. Desde Maio de 2021, a DD deixou de atender as chamadas telefónicas realizadas pela Assistente e de responder às suas mensagens.
Em suma:
223. Os Arguidos CC e DD só enviavam mensagens e emails à Assistente a pedir mais dinheiro, anexando propostas de alterações ao valor acordado e consignado no contrato de empreitada assinado.
224. Enquanto isso, o prazo para a Assistente enviar a documentação para o banco para aprovação do empréstimo e realização da escritura, encontrava-se a expirar;
225. Pelo que, a Assistente não teve alternativa senão a de aceitar um orçamento enviado do email da Sociedade Arguida em 06/06/2022, em cujo valor da adjudicação era de €200.410,00 (duzentos mil quatrocentos e dez euros);
226. Porquanto, apesar não ter sido esse o valor acordado, a Assistente em face da urgência quanto à aprovação do crédito, não teve outro “remédio” se não o de aceitar.
227. Por conseguinte, ainda em 06/06/2022, a Assistente enviou o dito orçamento para o Banco, solicitando a celebração da escritura no mais curto prazo possível, com receio que expirasse a licença de construção e de ainda não ter a obra feita.
Após:
228. Em 13/07/2022, por email, a Assistente informou o CC que já tinha sido libertado pelo Banco o valor de €40.000,00 (quarenta mil euros), equivalente a 20% do valor total do contrato assinado e que com esse pagamento estava concluído o pagamento de 30% do pagamento do valor total da Obra “Chave na Mão” (10% pagos em 23/11/2021 e 20% a pagar após aceitação por email.
229. Mediante esse email, a Assistente solicitou ainda ao CC uma resposta rápida, de modo a proceder à transferência do dinheiro para a conta bancária constante do contrato de empreitada e a cumprir os prazos contratuais estabelecidos.
230. De imediato, a DD, vislumbrando a hipótese de a Assistente fazer uma nova transferência, enviou um email à Assistente a aceitar o pagamento da segunda tranche referente ao contrato de empreitada.
Perante isto:
231. Ainda em 13/07/2022, a Assistente transferiu para a conta bancária com o NIB ..., que lhe fora indicado pela Arguida, DD, a quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros), tendo enviado o respectivo comprovativo por email para o CC.
Contudo:
232. Em 17/08/2022, o Arquitecto EE, responsável pelo projecto, enviou uma comunicação ao CC, alertando que a empresa à qual foi adjudicado o “...” precisava da obra limpa e desimpedida, mencionando o acordado em reunião realizada em 12/08/2022, juntando a acta da reunião e colocando a Assistente em “cc”.
233. Nesse email, o Arquitecto EE, alertou ainda, que segundo o acordado em reunião realizada em 27 de Maio de 2022 com o Eng. II, Director de Fiscalização de Obra, ainda existiam situações a serem aferidas, sugerindo nova reunião, bem como informou que Assistente tinha ligado para saber o ponto da situação.
Todavia:
234. Não houve qualquer resposta por parte do CC e encontravam-se por realizar os trabalhos de montagem e estrutura.
235. Pelo que, em 17/08/2022, o Eng.º II enviou um email ao CC solicitando o comprovativo da encomenda de material ao subempreiteiro, registando ainda os trabalhos que não se encontravam executados em obra, e que já deveriam estar realizados, de acordo com o combinado na reunião de 23/05/2022, a saber:
a) Colocação da placa de obra devidamente preenchida com o n.º de processo da ...;
b) Limpeza do Lote nomeadamente resíduos e capim existente;
c) Retificação da fundação do muro adjacente com o vizinho;
d) Impermeabilização de todos os muros e paredes enterradas (cave e piscina);
e) Reparação de todos os elementos de betão armado da estrutura da cave, pois encontravam-se armaduras expostas;
f) Execução de paredes de alvenaria na cave, colocação de isolamento PS e rebocos;
g) Fecho da Parede/muro ao acesso do piso -1;
h) Execução de drenos em falta junto ao aos muros da cave;
i) Execução da casa das máquinas e restantes trabalhos associados da piscina (infraestruturas); e
j) Colocação de vedação adequada e guardas de segurança na obra.
236. Nesse email, o Eng. II, mencionou ainda ao CC, que a ora Assistente procedeu ao pagamento total da quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros), e que os trabalhos executados até então, não se coadunavam com o montante acumulado já pago, solicitando-lhe que tomasse as medidas necessárias em obra para dar cumprimento do acordado com a Assistente.
Perante isto:
237. Em 18/08/2022 de Agosto, a DD, através de email, veio rebater o email do Engenheiro II, (cf. Docs. 94 e 95 e da Queixa), alegando que:
- Alguns dos trabalhos tinham sido feitos;
- Não compreendia o referido pelo Sr. Engenheiro na sua comunicação;
- O contrato de empreitada tinha o valor de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), depois de toda a troca de emails e envio de documentação para o Banco;
- Os orçamentos se encontravam concluídos (quando se encontrava por executar os serviços elencados pelo Eng.º II, todos constantes dos orçamentos, nomeadamente o término da piscina e a cave completa);
- A transferência da quantia de €20.000,00 (vinte mil euros) serviria para realização de serviços que já se encontravam enquadrados nos orçamentos anteriores (ao contrário do previsto nos orçamentos e contrariamente ao constante do email de 10/08/2021);
- No que respeita à transferência da quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros) pela Assistente, que já fora adjudicado o “aço leve”, mas não fazendo prova disso, ignorando o solicitado.
238. Atentas as inverdades expressas no mencionado email da DD, em 19/08/2022, a Assistente enviou um email ao CC, ainda na fé de que a Sociedade Arguida cumprisse com tudo o que estava em falta, esclarecendo que:
- Na proposta …_2021, o pagamento tinha sido realizado na totalidade;
- No email de 10/08/2021, caso dúvidas houvesse tinha sido reduzido a escrito o acordado verbalmente, ou seja que a proposta adjudicada, incluía a execução de todos os muros da casa, pois caso contrário não teria sentido;
- A alegação de que o valor de 20 000,00€ pago, relativo à proposta “chave na mão”, tinha servido para construção dos muros, portões e vedação não era correcta, pois estes serviços estavam contemplados nos orçamentos anteriores;
- A Proposta ...0..._2021 sempre foi apresentada pelo CC à Assistente como correspondendo ao término dos trabalhos da Cave, limpeza e preparação do terreno exterior e construção de todos os muros da casa; e que
- A Assistente sempre cumprira com todas as suas obrigações e manteve sempre transparência naquilo que estaria a ser acordado;
239. Mais relembrou a Assistente, que para além de desconhecer os termos e nomes dos materiais, na sequência do que o CC sempre lhe dissera: “os orçamentos são referências”, por ser impossível contemplar exaustivamente todos os serviços;
240. Razão pela qual, o orçamento deveria estar de acordo com aquilo que foi detalhadamente acordado de forma verbal, sob pena de uma das partes se estar a aproveitar da falta de conhecimento da outra do serviço contratado, ao não incluir no orçamento escrito tudo aquilo que foi acordado verbalmente;
Neste contexto:
241. Pese embora a Assistente tenha reduzido a escrito a maior parte do acordado verbalmente através dos emails trocados, e de estes nunca terem sido contraditados na altura, o CC mencionava agora que apenas eram relevantes os orçamentos redigidos de forma generalista, escamoteando todo o processo negocial escrito desenvolvido entre as partes.
242. Neste âmbito, a título de exemplo, o CC mencionou à Assistente que:
- A construção da cave, que constava do orçamento, totalmente liquidada pela Assistente, não contemplava a escada interior que lhe dá acesso;
- A construção da piscina, que constava do orçamento, totalmente liquidada pela Assistente, não contemplava os acabamentos finais e mosaicos de modo a que pudesse ser usada; e que
- A construção dos “muros”, que constava do orçamento, totalmente liquidada pela Assistente, não abrangia todos os muros da casa.
243. Neste email de 19/08/2022, a Assistente solicitou que dali em diante, e para se salvaguardar, todas as comunicações relevantes fossem realizadas por email ou SMS via WhatsApp;
Todavia:
244. A partir 19/08/2022, a Assistente não voltou a receber comunicações por parte dos Arguidos;
245. Nunca mais nenhum funcionário da Sociedade Arguida ou qualquer dos Arguidos voltou a comparecer na obra ou a nela construir fosse o que fosse;
246. Em 07/09/2022 e 12/09/2022 a Assistente solicitou aos Arguidos, mas sem sucesso:
- Um relatório do trabalho realizado nas últimas semanas, pedindo para ser informada sobre a chegada do “aço”;
- Informação sobre se a obra estava operacional para o aço ser implementado;
- Informação sobre o estado da obra e respectiva calendarização dos trabalhos;
247. Em 30/09/2022, a Assistente enviou um email aos Arguidos a comunicar que continuava sem resposta aos emails, alertando que a obra parecia uma lixeira abandonada e que nem sequer tinha sido colocada a placa obrigatória da obra.
Isto posto:
248. Em 20/09/2022, a Assistente, perante a falta de quaisquer respostas por parte dos Arguidos, solicitou ainda ao Sr. Arquitecto EE, informações a respeito do avanço da obra.
249. E, nessa mesma data, a Assistente enviou a todos os intervenientes (Arquitecto EE, ao Eng.º II, à Sociedade Arguida e aos Arguidos CC e DD) um vídeo espelhando o estado da obra nesse dia.
Como se não bastasse:
250. Volvidos quase 3 meses sem comunicações, em 02/11/2022, a DD enviou um novo email à Assistente a solicitar o pagamento da adjudicação do aço leve (...), ao qual a Assistente respondeu na mesma data, que conforme informou o Arquitecto EEEE, aguardava a factura da empresa do ... em seu nome, preferindo realizar o pagamento directamente.
251. Tendo sido, na sequência de contactos com o Sr. Arquitecto EE para realização do pagamento directo à empresa do “...”, que a Assistente descobriu que o “...” tinha sido adjudicado à empresa “...” pelo valor de €36.230,00 (trinta e seis mil duzentos e trinta euros), e não à empresa “...”, no valor de €79.415,14 (setenta e nove mil quatrocentos e quinze euros e catorze cêntimos).
252. Para a agravar a situação, em 14/10/2022, o Eng. II cessou funções como Director de Fiscalização de Obra alegando motivos pessoais.
253. Em 14/11/2022, a Assistente solicitou ao CC o envio do cronograma das atividades realizadas até à data na obra, como as que iria realizar até ao final do contrato que terminaria a 14 de Fevereiro de 2022, solicitando um agendamento de reunião para breve.
254. Em 01/11/2022, face à impossibilidade de qualquer comunicação com o CC, por este a ignorar, a Assistente enviou um email ao mesmo a solicitar uma justificação para não se encontrar ninguém na obra, sublinhando que:
- A cave estava a meter água por se encontrar inacabada;
- O “OSB” (oriented strand board, em português, painel de tiras de madeira orientadas) poderia ficar severamente danificado por não se encontrar impermeabilizado, interrogando por que ainda não se encontra impermeabilizado; e
-Questionando por que razão a Sociedade Arguida não se encontrava a realizar o seu trabalho que se estava devidamente pago;
255. Em 17/11/2022, a Assistente enviou um novo email à Sociedade Arguida, referindo que continuava sem qualquer resposta aos emails enviados, perguntando por que razão o CC não se dirigiu mais à obra e solicitando resposta com urgência aos mails anteriores dada a importância dos assuntos.
256. Perante a total falta de respostas por parte dos Arguidos, a Assistente pediu aconselhamento junto dos técnicos da obra (Engºs /Arquitectos), os quais a informaram que, com a obra parada, com o pouco tempo que faltava para o fim do Contrato (14 de Fevereiro de 2023), com o aproximar da data de expiração da licença de Construção (27 de Fevereiro 2023) e tendo em conta do que faltava fazer, apresentava-se como quase impossível, se não mesmo impossível, o cumprimento dos prazos.
Neste contexto:
257. Em 23/11/2022, a Assistente enviou uma carta registada com aviso de recepção, para a morada da Sociedade Arguida, constante do contrato de empreitada, interpelando-a para no prazo de 7 dias regularizar os trabalhos em falta ou pelo menos retomar a obra, sob pena de persistindo essa inacção, tal ser interpretado como desinteresse no cumprimento contratual e abandono de obra.
258. Como não houve qualquer resposta dos Arguidos, nem os trabalhos foram retomados ou concluídos, a Assistente, em 13/12/2022, enviou uma nova carta à Sociedade Arguida, comunicando a resolução do Contrato de Empreitada, com a apresentação dos seus fundamentos e motivos.
259. A partir dessa data, a Assistente não mais foi contactada pelos Arguidos ou logrou entrar em contacto com os mesmos, nem sequer para interpelá-los para retirarem o lixo que abandonaram na obra.
260. Ao arrepio dos orçamentos apresentados pelos Arguidos, que determinaram a Assistente a entregar-lhes a quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros), a Sociedade Arguida limitou-se a colocar alguns materiais na obra e a fazer pequenas construções, para levarem a Assistente a crer que ali iriam construir a moradia de acordo com o projecto,
261. Na realidade, a Sociedade Arguida fez do terreno onde se comprometeu a construir a moradia da Assistente, um estaleiro onde depositou materiais velhos e lixo.
262. Com efeito, na área da cave, a Sociedade Arguida nem sequer construiu a laje, colocou drenos, impermeabilizou a estrutura e todas as terras envolventes ou terminou a respectiva escada interior de acesso, tendo deixado essa área em tosco e com bastantes diferenças, quer estruturais quer de implantação, em relação ao projecto, tendo ali deixado um enorme depósito de entulho e lixo variado.
263. Na área onde deveria ter sido construída a piscina, a Sociedade Arguida apenas fez um buraco, onde erigiu uma estrutura de betão inacabada em tosco e um tanque de compensação inacabado em tosco.
264. Ademais, a Sociedade Arguida nem sequer adjudicou as actividades essenciais inerentes à construção da obra, tais como, o capoto, cobertura, alumínios, cantarias, carpintarias, electricidade, canalizações e trabalhos de construção civil.
265. Pelo que, nunca a Sociedade Arguida ou os demais Arguidos tiveram qualquer intenção de executar os trabalhos, pelos quais cobraram à Assistente a quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros).
266. Na realidade, nunca a Sociedade Arguida construiu nenhuma casa de raiz, nem tinha meios técnicos e/ou humanos para fazê-lo.
267. De resto, a Sociedade Arguida nem sequer dispunha de Alvará para construção de edifícios;
268. E, até à data dos factos aqui descritos, a Sociedade Arguida apenas tinha feito trabalhos de remodelação em edifícios.
269. Mais, em face da degradação dos materiais decorrentes do abandono da obra pela Sociedade Arguida, a Assistente viu-se obrigada a contratar um terceiro para colocar o capoto.
270. Sendo certo que a Sociedade Arguida e os demais Arguidos, para além de não terem executado a obra que se comprometeram realizar, levaram para o imóvel, designadamente, entulho diverso, andaimes não certificados, uma betoneira inoperacional, sacos de cimento deteriorado, para darem a aparência de que iriam realizar os trabalhos;
271. Elementos esses que ali abandonaram e que ali permanecem, o que gera prejuízos à Assistente, que pretende vender o imóvel de forma a minimizar os prejuízos;
272. Sendo que, a presença desses elementos no local impossibilita a venda do imóvel, uma vez que nenhum potencial comprador está disposto a adquirir a propriedade em tais condições.
273. E, na verdade, nem sequer a propriedade se encontra em condições de ser visitada por qualquer eventual interessado.
274. Contudo, os Arguidos não recebem as missivas que a Assistente lhes envia para interpelá-los para a remoção desses elementos do imóvel.
Em suma:
275. Ao agirem da forma descrita, os Arguidos FF, CC, DD e BB, levaram a Assistente a fazer-lhes o pagamento da quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros) o que beneficiou financeiramente os Arguidos e prejudicou financeiramente a Assistente, que em virtude da conduta dos Arguidos teve um prejuízo no mencionado valor.
276. Em tudo, os Arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, conheciam toda a factualidade exposta, tendo actuado da forma como quiseram agir, bem sabendo que as suas condutas eram, e são, proibidas e puníveis por lei;
Com a conduta descrita cometeram os Arguidos, em autoria material:
- FF, um crime de burla qualificada previsto e punido nos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal;
- CC, um crime de burla qualificada previsto e punido nos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal;
- BB, um crime de burla qualificada previsto e punido nos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal; e
- DD, um crime de burla qualificada previsto e punido nos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal.
Termos em que, muito respeitosamente, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º e ss. do CPP, vem, a Assistente requerer a Abertura de Instrução, requerendo que a final, seja proferido despacho de pronúncia contra os Arguidos nos termos supra descritos.
Mais se requer que sejam tomadas declarações à Assistente para esclarecimento dos artigos 77.º a 79.º do presente requerimento, de que a mesma tem conhecimento directo e que se afiguram essenciais à decisão instrutória, e ainda, que se digne ordenar a inquirição da testemunha, Engenheiro II, o qual foi Director de Fiscalização de Obra, e tem conhecimento de que os trabalhos ali realizados pelos Arguidos, não se coadunam nem com os orçamentos apresentados nem com os montantes pagos pela Assistente.
Junta: 1 documento, DUC e comprovativo de pagamento da taxa de justiça.
II.3.C. Da decisão recorrida:
Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em 04-09-2024 foi proferida a seguinte decisão:
Requerimento que antecede:
Notificada do despacho de proferido nos presentes autos pelo Digno Magistrado do Ministério Público, veio AA apresentar requerimento para abertura de instrução, no qual expõem, além do mais e enquanto assistentes as razões de discordância quanto a tal despacho.
Invoca a assistente que nos autos existem indícios suficientes da prática pelos arguidos FF, CC, DD e BB de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de burla qualificada previsto e punido nos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal.
Cumpre apreciar o requerimento apresentado.
O exercício da ação penal compete ao Ministério Público (art. 48º do CPP), que, findo o inquérito determinará o arquivamento, se tiverem sido recolhidas provas de não se ter verificado o crime, de o arguido o não ter praticado ou for legalmente inadmissível o procedimento e, ainda, se não houver indícios bastantes da sua verificação ou de quem foram os agentes (art. 277º, nºs 1 e 2 do CPP); se, pelo contrário, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, deduzirá acusação contra este (art. 283º, nº 1, do CPP).
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1 do CPP), podendo ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público tiver deduzido acusação; e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art. 287º, nº 1, als. a) e b) do CPP).
O requerimento para abertura de instrução deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e de outros se espera provar (art. 287º, nº 3).
Assim sendo, o requerimento de instrução constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: a investigação autónoma mas autónoma dentro do tema fatual que lhe é proposto através do referido requerimento, como se deu nota no Acórdão da Relação de Lisboa de 27/01/2004, proferido no processo nº 840/03, disponível in www.dgsi.pt).
O processo penal tem estrutura acusatória, sendo o seu objeto fixado pela acusação, que assim delimita a atividade cognitória e decisória do Tribunal; esta vinculação temática do Tribunal tem a ver fundamentalmente com as garantias de defesa, protegendo o arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objeto do processo e possibilitando-lhe a preparação da defesa no respeito pelo princípio do contraditório.
Deduzida acusação, o arguido fica a saber qual o objeto do processo, quais os factos que lhe são imputados.
Requerida a instrução pelo assistente relativamente a factos de que o Ministério Público se tenha abstido de acusar, o respetivo requerimento tem de enunciar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, “que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e a elaboração da decisão instrutória” (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 541).
A atividade cognitória do juiz de instrução está limitada, pois, pelo objeto da investigação (no caso de não ter havido acusação, pelos factos que o assistente pretende provar), o que implica a absoluta necessidade da respetiva enunciação no requerimento de instrução, até para possibilitar a sua realização.
Na realidade, como sublinha o Dr. Souto de Moura (in “Jornadas de Direito Processual Penal”, p. 120) “se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber quais são os factos que o assistente gostaria de ver acusados (…).
Aliás, um requerimento de instrução sem fatos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objeto (cfr. Ac. do TRE, de 17/04/2012, proferido no processo nº 138/10.6PAETZ.E1, disponível in www.dgsi.pt, que aqui acompanhamos de perto e que vai em sentido análogo à jurisprudência dominante).
No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Germano Marques da Silva (in “Do Processo Penal Preliminar”, p. 264): “O juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação do Ministério Público (…)”.
O requerimento para abertura de instrução formulada pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo Ministério Público) que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. Deve, pois, dar cumprimento ao disposto no art. 283.º, n.º 3 do CPP.
Que assim é resulta do disposto nos arts. 303º e 309º do CPP, onde se prevê a alteração não substancial e substancial dos factos constantes do requerimento para abertura de instrução, cominando-se com nulidade a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos ... no requerimento para abertura de instrução”.
No caso vertente, a assistente refere os pontos pelos quais discordam das conclusões e decisão do Ministério Público, referindo factos que na sua óptica poderão integrar a prática de um crime de burla qualificada pelos arguidos, nomeadamente o contrato de empreitada da moradia da assistente mas não refere os elementos subjetivos necessários do ilícito de burla qualificada que pretende ver imputado aos arguidos e que, por isso, não são passíveis de serem comprovados em sede de produção de prova nem de serem rebatidos pelos próprios arguidos.
Com efeito, da acusação deve conter a narração dos fatos relevantes para a imputação do crime, abrangendo todos os elementos fatuais (objetivos e subjetivos) que constituam pressupostos da responsabilidade criminal e a determinação da espécie e da medida da sanção, sob pena de nulidade e de ser manifestamente infundada.
Neste sentido, vejam-se, entre outros, os seguintes arestos sumariados em www.dgsi.pt:
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30.09.2009, proferido no proc. nº 910/08TAVIS.CI
“1. São os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do caráter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência grosseira.
2. Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o fato criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).”;
- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 6.12.2010, proferido no proc. nº 1211/09.4TAAVV.G1
“ I) O dolo constitui matéria de fato e, por isso, têm de ser devidamente alegados os fatos donde tal se possa concluir. II) Assim sendo, não é legítimo afirmar o dolo simplesmente a partir das circunstâncias externas da ação concreta pois, a não ser assim, o arguido estaria impedido de se defender cabalmente por ignorar a modalidade do dolo. III) Admitir um requerimento de instrução completamente omisso quanto ao elemento subjetivo do crime imputado ao arguido e prosseguir com a instrução estando o juiz limitado nos seus poderes cognitivos por esse requerimento, seria praticar ato inútil, o que é proibido por lei – art. 137.º do C. P. Civil, ex vi do art. 4.º do CPP).”
No mesmo sentido se pronuncia o Prof Germano da Silva, segundo o qual “ (…) Na instrução, o juiz está limitado pelos fatos da acusação e, como entendemos, também pela sua qualificação jurídica” (vd. “Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 161).
No caso em apreço, o requerimento de abertura de instrução não contém a narração dos fatos relevantes para a imputação do crime, designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à atuação dos agentes.
Com efeito é insuficiente para integrar o dolo do crime de burla qualificada a referência feita pela assistente de que “Ao agirem da forma descrita, os Arguidos FF, CC, DD e BB, levaram a Assistente a fazer-lhes o pagamento da quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros) o que beneficiou financeiramente os Arguidos e prejudicou financeiramente a Assistente, que em virtude da conduta dos Arguidos teve um prejuízo no mencionado valor” ou que “ Em tudo, os Arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, conheciam toda a factualidade exposta, tendo actuado da forma como quiseram agir, bem sabendo que as suas condutas eram, e são, proibidas e puníveis por lei” – cfr. nºs. 275 e 276 do requerimento de abertura de instrução.
Com efeito, no requerimento em apreço nada é alegado acerca do propósito que moveu os arguidos, nomeadamente quando a assistente contratou com estes a empreitada da sua moradia e mais tarde quando lhes efetuou o pagamento da referida quantia, nada sendo dito sobre se os arguidos quiseram ou representaram como consequência necessária ou possível que a vítima viria a ficar em difícil situação económica, sendo lhes indiferente o resultado.
Assim e porque o requerimento apresentado pela assistente não contém os necessários elementos fatuais subjetivos, pressupostos da responsabilidade criminal, os arguidos não poderão ser pronunciados pela prática do crime de burla qualificada com base no requerimento para abertura de instrução tal como está formulado pela mesma.
Conclui-se, pois, de todo o exposto, que a presente instrução é inadmissível por falta de objecto, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no art. 287º, n.º 3 do CPP, rejeito o requerimento de abertura de instrução.
Taxa de justiça, pelo mínimo, devida pela assistente (art. 515º do CPP).
Notifique.
II.4. Da apreciação da questão objeto do recurso:
O requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, o disposto no art.º 283.º, n.º 3, als. b) e d), do C.P.P., não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas (cfr. art.º 287.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do C.P.P.).
Assim, o requerimento de abertura de instrução, quando apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, tem que conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (cfr. 283.º, n.º 3, als. b) e d), do C.P.P.).
Aliás, tal é imposto pelo desenho constitucional do processo penal português, em especial a estrutura acusatória do mesmo (cfr. art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa – C.R.P.), que se projeta:
- Na garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, o que impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida pelo assistente a abertura da instrução, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, em ordem a permitir a organização da defesa;
- Na vinculação temática do juiz de instrução diante do requerimento de abertura de instrução do assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (cfr. arts. 288.º, n.º 4, 303.º, n.º 3, e 309.º, n.º 1, do C.P.P.);
o que implica que o mesmo se configure materialmente como uma acusação (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-01-2011, processo n.º 3/09.0YGLSB.S14; acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/04, de 19-05-20045; ANTUNES, Maria João, in Direito Processual Penal, 5.ª edição, Almedina, 2023, pág. 125).
Assim, é inegável que os elementos pertencentes ao tipo de ilícito subjetivo e ao tipo de culpa, porque também necessários a fundamentar a aplicação ao arguido de uma reação criminal, terão que constar do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (cfr. ALBERGARIA, Pedro Soares de, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, pág. 1206; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22-05-2024, processo n.º 574/20.0T9ACB.C16).
Cumpre salientar que, de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, para fixação de jurisprudência, de 12-05-20057, a falta dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido não é suprível por convite formulado pelo tribunal, regime que, obviamente, terá que se estender à omissão da indicação das disposições legais aplicáveis.
Acresce que o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de não julgar inconstitucional a norma resultante do art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P., segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objeto fáctico da pretendida instrução (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 175/2013, de 20-03-20138).
Por outro lado, o fundamento da rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da mesma (cfr. art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.), abrange as situações em que aquele que foi apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, não seja, nos termos expostos, autossuficiente quanto aos factos pertinentes ao tipo de crime imputado, onde se incluem, como resulta do já exposto, os elementos pertencentes ao tipo de ilícito subjetivo e ao tipo de culpa (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-11-2023, processo n.º 1093/20.0T9PRT.P19; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07-11-2023, processo n.º 741/22.1GBABF.E110; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12-01-2021, processo n.º 1118/17.6T9EVR.E111; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05-02-2018, processo n.º 270/16.2T9CHV.G112; acórdão do tribunal da relação de Coimbra, de 13-09-2017, processo n.º 36/15.7MAFIG.C113; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11-07-2017, processo n.º 649/16.0T9BRG.G114).
E isto sem que a inexistência de prévio convite ao aperfeiçoamento possa ser tida como violadora de quaisquer garantias do processo criminal (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 46/2019, de 23-01-201915, cuja fundamentação é aplicável à situação em apreço).
No presente caso, segundo a assistente, estará em causa o crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do C.P.
De acordo com o despacho recorrido (cfr. II.3.C.), o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não deduziu acusação, “não contém a narração dos fatos relevantes para a imputação do crime, designadamente no tocante aos elementos subjetivos que presidem à atuação dos agentes”. Mais aí se considerou que é “insuficiente para integrar o dolo do crime de burla qualificada a referência feita pela assistente de que “Ao agirem da forma descrita, os Arguidos FF, CC, DD e BB, levaram a Assistente a fazer-lhes o pagamento da quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros) o que beneficiou financeiramente os Arguidos e prejudicou financeiramente a Assistente, que em virtude da conduta dos Arguidos teve um prejuízo no mencionado valor” ou que “ Em tudo, os Arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, conheciam toda a factualidade exposta, tendo actuado da forma como quiseram agir, bem sabendo que as suas condutas eram, e são, proibidas e puníveis por lei” – cfr. nºs. 275 e 276 do requerimento de abertura de instrução.” Na verdade, segundo aí foi considerado, “no requerimento em apreço nada é alegado acerca do propósito que moveu os arguidos, nomeadamente quando a assistente contratou com estes a empreitada da sua moradia e mais tarde quando lhes efetuou o pagamento da referida quantia, nada sendo dito sobre se os arguidos quiseram ou representaram como consequência necessária ou possível que a vítima viria a ficar em difícil situação económica, sendo lhes indiferente o resultado.
Comete o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (cfr. art.º 217.º, n.º 1, do C.P.), que será qualificado se o prejuízo patrimonial foi de valor consideravelmente elevado (cfr. art.º 218.º, n.º 2, al. a), do C.P.), isto é, aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto (cfr. art.º 202.º, al. b), do C.P.).
O bem jurídico que se visa tutelar reside no património globalmente considerado e não a lealdade, transparência, boa-fé, verdade das transações ou a confiança da comunidade nessa mesma lealdade, transparência, boa-fé ou verdade das transações, isoladamente ou em conjunto com o património (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 16).
O crime de burla constitui um crime de dano uma vez que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de terceiro, mesmo que não ocorra efetivo enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 17).
Em sentido jurídico-penal, deve entender-se por património o conjunto das situações ou posições com valor ou utilidade económica, detida por uma pessoa e cuja disponibilidade e fruição por banda do sujeito passivo o ordenamento jurídico proteja e tutele ou, pelo menos, não desaprove (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in “Crime de emissão de cheque sem provisão”, Coletânea de Jurisprudência, 1992, Tomo III, pág. 66).
A burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos próprios ou alheios (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-05-2002, processo n.º 1318/0216).
Porém, não basta o simples emprego de um meio enganoso, tornando-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. Por seu turno, também não basta a simples verificação do estado de erro sendo necessário que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos atos de que decorre o prejuízo patrimonial (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 39).
Assim, deverá, pois, existir um duplo nexo de imputação objetiva entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial. A qualquer dos momentos em que se desdobra o duplo nexo de imputação objetiva subjazem os pressupostos da chamada teoria da adequação (cfr. art.º 10.º, n.º 2, do C.P.) pelo que a sua verificação depende das circunstâncias do caso, aí se incluindo as características do burlado (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-12-2006, processo n.º 06P338317).
Exige a lei que o erro do sujeito passivo tem que ser provocado astuciosamente. Assim, a conduta do agente tem de comportar a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reações do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objetivo em vista. Longe de envolver, de forma inevitável, a adoção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de economia de esforço, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima, pelo que a adequação dos meios empregues, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o ponto ótimo no menos sofisticado dos procedimentos. Ora, é numa tal adequação de meios que radica a inteligência ou astúcia que preside ao crime da burla, sendo que só tal perspetiva se harmoniza com o entendimento de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, págs. 41 e segs.).
Tendo presente que a burla é um crime com participação da vítima uma vez que é o próprio sujeito passivo que pratica os atos de diminuição patrimonial, a burla integra, em último termo, uma hipótese de autolesão estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio do facto do homem de trás deriva precisamente do estado de erro do executor. Ora, também no caso da burla se exige um domínio do erro como pressuposto da responsabilização do agente pelo crime consumado, sendo em tal domínio, na medida em que exprime a adequação do comportamento do agente às características do caso concreto, que terá de ancorar o fundamento da imputação do resultado à conduta, esgotando, pois, o conteúdo útil a dar ao advérbio “astuciosamente”.
Contudo, apesar da acentuação da vertente solidarista do Estado de direito social, persiste a convicção de que, em primeira linha, compete a cada pessoa cuidar dos seus interesses, assumindo a obrigação de salvaguardar bens jurídicos alheios um carácter subsidiário e residual. Ora, nas relações patrimoniais, em particular no mundo dos negócios, no contexto de uma economia de mercado, assente nos mecanismos da livre concorrência, o sucesso liga-se, muitas vezes, ao superior conhecimento do sujeito acerca das características do concreto sector e, assim, em termos comparativos, ao erro ou ignorância dos seus competidores. Dentro de certos limites, o domínio do erro consubstancia, por isso, um elemento constitutivo ou intrínseco do regular funcionamento de uma economia de mercado, pelo que o correspondente exercício se apresenta conforme à ordem jurídica, nunca podendo integrar um ilícito criminal.
Assim sendo, nem todo e qualquer efetivo domínio do erro implica a punição do agente a título de burla, mas tão só o domínio do erro jurídico-penalmente relevante. O limite da relevância do domínio do erro no quadro do crime de burla deve ser traçado pelo princípio da boa-fé, isto é, pelo critério da lealdade em face dos interesses legítimos da outra parte que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, assim, pelo que se apresenta como permitido ou proibido à luz do princípio da boa-fé. Deste modo, só um domínio do erro que viole os ditames da boa-fé e que, assim, reflita uma deslealdade inadmissível no comércio jurídico poderá consubstanciar, desde que preenchidos os demais pressupostos, o desvalor característico do crime de burla.
É comum distinguirem-se três modalidades do crime de burla. A primeira ocorre quando o agente provoca o erro de outrem descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas, precisas e inequívocas (sob a forma oral, escrita ou gestual), uma falsa representação da realidade. A segunda verifica-se quando o erro é ocasionado por atos concludentes, isto é, condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas que se mostram adequadas, de acordo com as regras da experiência e dos parâmetros ético-sociais vigentes no sector da atividade, a criar uma falsa convicção sobre certo facto, seja ele passado, presente ou futuro. Em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão na qual o agente não provoca o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar-se do estado de erro em que ele já se encontra (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 49).
Dado que, na burla por atos concludentes, a produção do engano do sujeito passivo resulta de uma deficiência de esclarecimento acerca do significado ou alcance da conduta do agente, torna-se muitas vezes difícil distingui-la da burla por omissão. O critério de distinção passa por integrar a burla por atos concludentes apenas os casos em que a conduta do sujeito ativo cria, assegura ou aprofunda o engano da vítima, restringindo-se a burla por omissão às hipóteses onde, na formação do erro, não intervém qualquer contributo positivo do agente, sendo que só se poderá falar desta quando ocorra a violação de um dever de garante pela não verificação do resultado (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, págs. 50 e 51).
Contudo, como o crime de burla constitui um crime material ou de resultado, a sua consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infração, independentemente de se verificar ou não um enriquecimento do agente ou de terceiro (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 18).
Por seu turno, a expressão valor consideravelmente elevado assume o sentido que lhe é dado pelo art.º 202.º, al. b), do C.P., ou seja, aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.
Ora, a partir de 20-04-2009 a unidade de conta corresponde à quantia monetária equivalente a ¼ do valor do indexante dos apoios sociais vigente em dezembro do ano anterior, arredondada à unidade Euro, sendo assim atualizada anual e automaticamente, cifrando-se à data dos factos aqui em causa em 102 EUR (cfr. arts. 22.º, 26.º, 27.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, tendo presente o art.º 156.º da Lei n.º 64-A/2009, de 31-12, e 5.º, n.º 2, e n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, 2.º da Portaria n.º 9/2008, de 03-01, 3.º do Decreto-Lei n.º 323/2009, de 24-12 e 232.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31-12 e 9.º da Lei n.º 99/2021, de 31-12).
Assim, à data dos factos imputados pela assistente, o valor consideravelmente elevado era aquele que fosse superior a 20 400 EUR (cfr. art.º 202.º, al. b), do C.P.).
Como elementos subjetivos, o crime de burla exige o dolo, em qualquer uma das suas modalidades de dolo direto, necessário ou eventual (cfr. art.º 14.º do C.P.). Assim, é necessário o conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo) por parte do agente de, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial, demonstrando, com a sua execução, uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal (elemento emocional) (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa, in Direito Penal, Lições da cadeira de Direito Penal (3.º ano), 1996, pág. 268/9).
Tratando-se a burla de um delito de intenção, no seu recorte subjetivo, este tipo legal de crime revela ainda uma intencionalidade específica que deve presidir à atuação do agente, isto é, a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, que mais não é do que um plus que acresce ao dolo genérico referido (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 58).
Ora, considerando o requerimento de abertura de instrução no seu todo, verifica-se que nele constam descritos, de forma que se afigura suficiente, as circunstâncias de facto que permitem a averiguação probatória indiciária, não apenas dos elementos do tipo de ilícito objetivo, mas também no que respeita ao tipo de ilícito subjetivo e ao tipo de culpa.
Conforme já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, é tradicional tais elementos subjetivos serem expressos por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude) (cfr. 10.2.3 da fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, para fixação de jurisprudência, de 20-11-201418).
Ora, no requerimento de abertura de instrução em apreço a assistente imputa que:
os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, conheciam toda a factualidade exposta, tendo actuado da forma como quiseram agir, bem sabendo que as suas condutas eram, e são, proibidas e puníveis por lei” (cfr. ponto 276 de II.3.B.).
Acresce que, face às expressões utilizadas “conheciam toda a factualidade exposta, tendo actuado da forma como quiseram agir”, embora de forma não totalmente perfeita, a assistente imputa aos arguidos o conhecimento (elemento intelectual) e a vontade (elemento volitivo) de praticarem os atos que, anteriormente e sob o ponto de vista objetivo, lhes assacou.
Ora, em diversos pontos anteriores do requerimento de abertura de instrução em apreço é possível constatar a imputação aos arguidos do conhecimento e vontade de provocar erro ou engano na assistente sobre factos que astuciosamente provocaram, levando-a a efetuar sucessivas disposições patrimoniais e, assim, de atos que beneficiaram os arguidos e causaram prejuízo patrimonial à assistente, bem como a intenção de obterem enriquecimento ilegítimo.
É o caso, nomeadamente, para além do já mencionado, dos seguintes pontos (cfr. II.3.B.):
4. Os Arguidos nunca tiveram o propósito de construir a moradia que se propuseram construir;
5. Tanto assim é, que nunca os Arguidos dispuseram dos meios nem da competência técnica para construir o edifício em questão.
7. Efectivamente, todos os materiais que os Arguidos colocaram no local da obra e tudo o que nele construíram, foi apenas um engodo para levar a Assistente a crer que ali iriam construir a moradia de acordo com o projecto, e para determinar a Assistente a efectuar-lhes os pagamentos das quantias que os Arguidos foram solicitando à Assistente que fizesse, no valor global de €106.000,00 (cento e seis mil euros).
23. A fim de ludibriar a Assistente, o CC referiu ainda que iria dar uma “benesse” à Assistente, uma vez que faria incluir o IVA na quantia de €9.100,00 (nove mil e cem euros) correspondente ao segundo orçamento apresentado, o que depois formalizaria por escrito.
24. De forma a convencer a Assistente de que tinha a efectiva intenção de construir a moradia, o CC descreveu pormenorizadamente os detalhes da pretensa obra, tais como os materiais a aplicar, a piscina, os azulejos, bem como um Deck exterior em madeira ao pé da piscina etc.
120. Face à factualidade supra descrita, e maioritariamente demonstrada pelo teor dos documentos juntos com a Queixa, é evidente que a Sociedade Arguida e os seus representantes nunca tiveram qualquer intenção de executar os trabalhos, pelos quais cobraram à Assistente a quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros).
156. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre o início de Julho de 2021 e 04/08/2021, a sociedade Arguida e os Arguidos CC, DD e BB, gizaram um plano tendente a enriquecerem ilegitimamente à custa do património da Assistente.
157. Tal plano consistia em criarem a falsa convicção na Assistente de que a Sociedade Arguida iria proceder à construção de uma moradia no terreno da sua propriedade, sito na ..., na freguesia de ..., concelho de Cascais, propriedade da Assistente;
158. E de, fazendo-se valer dessa convicção, determinarem a Assistente, a proceder à transferência para as suas esferas patrimoniais, do maior montante pecuniário possível, quando nunca foi intenção dos Arguidos edificarem qualquer moradia no terreno da Assistente.
177. Na dita reunião, a fim de ludibriar a Assistente, o CC mencionou-lhe também que iria dar-lhe uma “benesse”, uma vez que faria incluir o IVA na quantia de €9.100,00 (nove mil e cem euros), correspondente ao segundo orçamento apresentado, o que depois formalizaria por escrito.
179. De forma a convencer a Assistente de que tinha a efectiva intenção de construir a moradia, o CC acordou com a Assistente pormenorizadamente, os detalhes da pretensa obra, tais como os materiais a aplicar, a piscina, os azulejos, um Deck exterior em madeira ao pé da piscina etc.
265. Pelo que, nunca a Sociedade Arguida ou os demais Arguidos tiveram qualquer intenção de executar os trabalhos, pelos quais cobraram à Assistente a quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros).
275. Ao agirem da forma descrita, os Arguidos FF, CC, DD e BB, levaram a Assistente a fazer-lhes o pagamento da quantia de €106.000,00 (cento e seis mil euros) o que beneficiou financeiramente os Arguidos e prejudicou financeiramente a Assistente, que em virtude da conduta dos Arguidos teve um prejuízo no mencionado valor.
Na verdade, sendo imputado aos arguidos o traçar de um projeto com tão bem definido objetivo (“gizaram um plano tendente a enriquecerem ilegitimamente à custa do património da Assistente”), tal significa a definição antecipada de um conjunto de ações e, assim, de uma intenção de as levar a cabo e de alcançar aquele.
Na verdade, um dos significados de “gizar” é definir antecipadamente um conjunto de ações ou intenções19, sendo projeto, desígnio, intenção ou fito significados de “plano20.
É certo que, desta forma, se atendeu a pontos do requerimento de abertura de instrução localizados na parte em que a assistente narrou todas as circunstâncias que, no seu entender, relevam para enformar a atuação criminalmente censurável dos arguidos (cfr. pontos 147 a 276 de II.3.B.), mas também a outros que, embora contidos no dito requerimento, não constam dessa parte (cfr. pontos 1 a 146 de II.3.B.).
Contudo, não se descortina do regime previsto nos artigos 287.º, n.º 2 do C.P.P. que a avaliação do preenchimento dos pressupostos necessários à admissibilidade de instrução requerida pelo assistente em caso de decisão de arquivamento do inquérito por parte do Ministério Público, deva processar-se por referência apenas a um segmento específico do requerimento de abertura de instrução, devendo antes ser efetuado por reporte à globalidade do seu teor (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27-09-2023, processo n.º 2984/16.8T9VNG.P121).
Ora, assim sendo, há que concluir que o objetivo visado pelos arts. 283.º, n.º 3, als. b) e d), e 287.º, n.º 2, do C.P.P. foi cumprido, estando suficientemente narrados os factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena, nomeadamente os referentes ao tipo de ilícito subjetivo e ao tipo de culpa, pelo que não se mostra justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08-11-2023, processo n.º 192/18.2T9MFR.L1-322).
Deste modo, merece provimento o recurso interposto pela assistente, o que conduz à revogação da decisão recorrida.
No nosso sistema processual penal, em matéria de recursos, predomina o sistema de substituição, embora com limitações (cfr. art.º 426.º, n.º 1, do C.P.P.), pelo que, em caso de procedência, o conteúdo normal do recurso, que corresponde à sua finalidade, é a substituição da decisão recorrida por outra, não devendo, pois, a instância de recurso limitar-se a revogar aquela, mandando baixar o processo ao tribunal recorrido para que este profira uma nova decisão (cfr. ponto 3.1. da fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016, para fixação de jurisprudência, de 21-01-201623).
Uma vez que o requerimento de abertura de instrução é legalmente admissível, a assistente tem legitimidade para o efeito, o requerimento é tempestivo e aquela autoliquidou a taxa de justiça devida, importa, em substituição da decisão recorrida, declarar aberta a instrução (cfr. arts. 286.º, n.ºs 1 e 2, 287.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do C.P.P. e 8.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais – R.C.P.).
II.5. Das custas:
Tendo a recorrente obtido total vencimento no recurso por si interposto, não há lugar a condenação em custas (cfr. art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P.).

III. Decisão:
Julga-se totalmente procedente o recurso interposto pela assistente AA e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido de 04-09-2024 do Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste e, em sua substituição, declara-se aberta a instrução.
Caberá ao tribunal recorrido, para além do mais, pronunciar-se sobre as diligências de prova requeridas pela assistente no requerimento de abertura de instrução que apresentou.
Sem custas.

Lisboa, 19-12-2024
Pedro José Esteves de Brito
Sandra Oliveira Pinto
João Simões Grilo de Amaral
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1. https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf↩︎
2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/458ff4110b557ba080258ac5002d2825?OpenDocument↩︎
3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf↩︎
4. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/88ae0dde5cdd5dbb802578c6003bd3f0?OpenDocument↩︎
5. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040358.html↩︎
6. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/315c4c002780939c80258b32004e9620?OpenDocument↩︎
7. https://files.diariodarepublica.pt/1s/2005/11/212a00/63406346.pdf↩︎
8. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130175.html↩︎
9. http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/616bb017c59eb4e280258a8d004d447f?OpenDocument↩︎
10. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b95b320e34bdbc9980258a6a003727f0?OpenDocument↩︎
11. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/095013b18d6b92d68025867200744cd9?OpenDocument↩︎
12. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/6ADF803AB7ACC45B8025824300392443↩︎
13. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/e0c1f177f667a29e8025819f0038caf1?OpenDocument↩︎
14. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/7760946dafed05ec80258161003c2ddb?OpenDocument↩︎
15. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190046.html↩︎
16. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/0fdd0aa4bad15aff80256bcd00475da3?OpenDocument↩︎
17. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a9ef63c0027e4e6e802572a7003b3acd?OpenDocument↩︎
18. https://files.diariodarepublica.pt/1s/2015/01/01800/0058200597.pdf↩︎
19. https://dicionario.priberam.org/gizar↩︎
20. https://dicionario.priberam.org/plano↩︎
21. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c5c579fbe40c804e80258a58003f3c4f?OpenDocument↩︎
22. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ee4891ad0d5a6fa080258a6a00507b4a?OpenDocument↩︎
23. https://files.diariodarepublica.pt/1s/2016/02/03600/0053200542.pdf↩︎