Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1509/22.0YLPRT.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ERRO-VÍCIO
RAU
MORTE DO ARRENDATÁRIO
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - O erro-vício que incida seja sobre o objecto do negócio ou que decorra de uma falsa representação de regras jurídicas ou ainda o erro que recaia nos motivos determinantes da vontade, mas se não refira à pessoa do destinatário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se o declaratário conhecer ou não dever ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro ou desde que as partes hajam reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo.
2 - De acordo com o regime transitório consagrado no artigo 57º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção original, o arrendamento para habitação celebrado antes da vigência do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, não caducava por morte do primitivo arrendatário e transmitia-se para o filho do primitivo arrendatário se lhe sobrevivesse filho menor de idade e que com ele convivesse há mais de um ano, frequentando estabelecimento de escolaridade ou filho maior de idade, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A [ A, UNIPESSOAL, LDA]., com sede à Rua …, n.º .., Porto apresentou, em 30 de Agosto de 2022, junto do Balcão Nacional do Arrendamento, requerimento de procedimento especial de despejo contra B e C, residente à Rua …, n.º …, 1º andar, Câmara de Lobos com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento, relativo ao primeiro andar, com entrada pelo n.º … de polícia da Rua …, do prédio urbano sito à Rua …, n.º … e Rua …, n.º …., freguesia e concelho de Câmara de Lobos, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo …, juntando o contrato de arrendamento, factura/recibo, contrato de comodato, escritura pública de partilha parcial e comprovativo do pagamento do imposto de selo, para além da procuração forense (cf. Ref. Elect. 4881535, 4881529, 4881534, 4881533, 4881532, 4881531 e 4881530).
Tendo sido notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15º-D do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro[1], os requeridos deduziram oposição alegando, em síntese (cf. Ref. Elect. 4881542):
- O contrato de arrendamento apresentado é nulo, porquanto contém a data de 1 de Outubro de 2010 e a requerida C reside no locado desde que nasceu, em … de … de 1965, onde viveu a sua mãe, MS, após o casamento, falecida em 3 de Janeiro de 2009 e onde antes dela, ali viveram, como inquilinos, os respectivos pais, avós da requerida, RH;
- O contrato primitivo transmitiu-se dos avós para a mãe da requerida e da mãe para esta;
- O contrato de arrendamento foi assinado por erro, pois era desnecessário face à transmissão do arrendamento, desconhecendo os inquilinos as consequências do que estavam a assinar;
- Os requeridos vivem com dificuldades financeiras, tendo auferido, em 2021, o rendimento bruto de 15.140,33€ e pago para a Segurança Social 1.655,44€;
- O requerido está desempregado;
- A requerida C sofre de “perturbação depressiva e ansiosa […] episódio actual muito grave”, “apresenta crises de ansiedade compatíveis com ataques de pânico, tem agora fobia associada”;
- Não foi cumprido o disposto no art.º 15º do NRAU, nem foi indicado o fundamento do despejo.
Os requeridos deduziram pedido de diferimento da desocupação, por razões sociais, face à situação que alegaram e concluíram pedindo a declaração de nulidade do contrato de arrendamento celebrado a 1 de Outubro de 2010, declarando-se a transmissão da posição contratual por morte da anterior arrendatária, MS, mãe da requerida ou o diferimento da desocupação do imóvel pelo prazo máximo legalmente estabelecido.
Os autos foram remetidos à distribuição e em 2 de Novembro de 2022 foi proferido despacho que convidou a autora a responder à matéria de excepção, o que esta veio fazer por requerimento de 14 de Novembro de 2022, argumentando que à data do óbito da mãe da requerida o arrendamento celebrado antes da vigência do RAU não se transmitia à filha, por não se verificar nenhuma das situações previstas no art.º 57º do NRAU, tendo a requerida assinado o contrato de 2010 de livre vontade, figurando neles como outorgantes/senhorios os avós da sócia-gerente da autora, tanto mais que a própria manifestou a vontade da sua renovação, por carta de 1 de Junho de 2015, terminando o contrato em 30 de Setembro de 2020; mais sustentou não estarem verificados fundamentos para o diferimento da desocupação do imóvel, pois não se trata de resolução por falta de pagamento por rendas, nem a arrendatária tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60% (cf. Ref. Elect. 52554199 e 4964670).
Em 5 de Maio de 2023 foi proferida decisão que julgou improcedente o incidente de diferimento da desocupação do imóvel e convidou a requerente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial (cf. Ref. Elect. 53417067).
A requerente acedeu ao convite apresentando o requerimento de 6 de Junho de 2023, onde reiterou a celebração do contrato de arrendamento apresentado, com estipulação de um prazo fixo que se renovaria apenas por uma única vez; por morte dos primitivos senhorios e efectuada a respectiva escritura de partilha, em 25 de Outubro de 2017, foi adjudicado à herdeira A a verba n.º 38, que corresponde ao prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1726, cujo primeiro andar é o objecto locado, sendo que aquela, em 22 de Janeiro 2018, através da celebração de um contrato de comodato, cedeu o prédio à empresa A, ora requerente, que assumiu a qualidade de senhoria e passou desde então a emitir os respectivos recibos de renda à inquilina C; tendo existido uma primeira e única renovação do contrato, este terminou no dia 30 de Setembro de 2020, data em que se verificou a sua caducidade (cf. Ref. Elect. 5279577).
Os requeridos deram por reproduzido o por si alegado na contestação (cf. Ref. Elect. 5291480).
Efectuado o saneamento dos autos e realizada a audiência de julgamento, em 12 de Março de 2024 foi proferida sentença que julgou o procedimento procedente, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 54984557):
“a) declaro que o contrato de arrendamento habitacional celebrado em 01/10/2010 entre a requerida C e os então senhorios JP e MP, correspondente ao prédio urbano situado na Rua …, n.º …, 1.º andar, em Câmara de Lobos, cessou, por caducidade;
b) condeno os requeridos C e B na entrega à requerente A, Unipessoal Lda., do prédio urbano situado na Rua …, nº …, 1.º andar, em Câmara de Lobos, livre e devoluto de pessoas e bens.
Condeno os requeridos no pagamento das custas processuais, sem prejuízo da protecção jurídica de que beneficiem.”
Inconformados com esta decisão, os réus vieram interpor o presente recurso, cuja motivação terminam com as seguintes conclusões (cf. Ref. Elect. 5708990):
1. Através de sentença proferida no dia 12 de março de 2023, o tribunal a quo decidiu julgar procedente o procedimento de despejo deduzido pela recorrida.
2. Incidindo o presente recurso sobre tal decisão, por se afigurar que face às provas carreadas para os autos e face às normas plasmadas no direito substantivo e adjectivo imponha-se decisão diversa.
3. Conforme consta da sentença recorrida e do teor dos pontos 1) e 3), o tribunal a quo julgou como não provado, designadamente o facto de o contrato de arrendamento habitacional com a data de 01/10/2010 ter sido assinado por erro, por engano, por desnecessidade; o facto de a Sra. Dra. A, e não a recorrida, ter tratado de obter a assinatura dos recorrentes no “novo” contrato, como se estes não tivessem o direito de aí residir como inquilinos; e, por fim, o facto de os recorrentes terem assinado o que não era necessário, não sabendo o que estavam a assinar, nem sabendo as consequências do mesmo, sempre com a convicção de que o contrato manter-se-ia.
4. Com o devido respeito, que é muito, cumpre realçar que, dos meios de prova escrutinados, emergem conclusões de onde entendemos não ter sido feita uma correcta análise do caso concreto.
5. Os recorrentes não ignoram, de todo, que o princípio da livre apreciação da prova em nada impede que o julgador tome uma posição quanto à credibilidade de certa parte de um depoimento de uma testemunha, e já não quanto a outra parte desse mesmo depoimento, segundo as regras da experiência comum e de acordo com a sua livre convicção.
6. Não é, parece-nos, compatível com as regras da experiência comum, a desconsideração das declarações de parte da recorrente C e do depoimento prestado pela testemunha da recorrida, PD apenas na parte em que favorece a versão dos factos da recorrida e desconsidera a versão que, por seu turno, corrobora a os factos apresentados pelos recorrentes, como melhor se exporá infra.
7. Entendeu o tribunal a quo que: “1) O contrato de arrendamento habitacional com a data de 01/10/2010 foi assinado por erro, por engano, por desnecessidade.” (…) 3) Os requeridos assinaram o que não era necessário, não sabendo o que estavam a assinar, nem sabendo as consequências do mesmo, e sempre julgaram que o contrato manter-se-ia.
8. Como já foi oportuno referenciar, os recorrentes entendem que perante as declarações de parte da recorrente e, bem assim, do depoimento da testemunha PD, impunha-se que o douto tribunal tivesse decidido de forma distinta.
9. Conforme declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, a recorrente foi peremptória no sentido de afirmar que assinou um contrato no qual fizeram-na crer que ficaria no locado “para sempre”.
10. Repare-se que nos seus esclarecimentos, a recorrente foi clara ao afirmar que a mãe da recorrida sempre transmitiu à sua mãe, MS, que esta última e a sua família, iriam ficar a residir “para sempre” no locado.
11. As declarações de parte da recorrente encontram-se gravadas através do sistema gravação digital disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu no minuto 00:00:01 e o seu termo aos 00:18:38 do dia 17.01.24 e consta como ficheiro n.º 20240117101708_1762181_2871391, sendo que relevam as passagens entre o minuto 1:00 a 1:31 e 5:51 a 6:27.
12. Conforme as suas declarações, foi prometido à recorrente que a esta iria residir no locado durante 10 anos e depois haveria nova renovação.
13. Questionada sobre se se sentia enganada, a mesma foi assertiva ao responder afirmativamente. Isto porque referiu não ser conhecedora, nem mesmo ter a mínima noção das leis aplicáveis ao caso concreto, confiando sempre na palavra da recorrida e dos seus familiares de que o seu direito à habitação estaria salvaguardado mesmo após a morte da sua mãe, estando convicta de que poderia permanecer a residir na habitação em causa.
14. Veja-se que a mesma realçou tal facto, referindo que como a sua família sempre lá residiu e sempre presenciou a sua mãe a entregar o montante correspondente ao valor da renda e o respectivo recibo, - tal como a própria recorrente fez durante certo período de tempo - nunca pensou que a sua assinatura tivesse tanto impacto, como está a ter no caso concreto.
15. Para o que releva, as declarações de parte da recorrente encontram-se gravadas através do sistema gravação digital disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu no minuto 00:00:01 e o seu termo aos 00:18:38 do dia 17.01.24 e consta como ficheiro n.º 20240117101708_1762181_2871391, sendo que relevam as passagens entre o minuto 7:20 a 7:41 e 8:15 a 8:30 e ainda minutos 9:30 a 9:45.
16. Quando questionada pelo Ilustre Mandatário da recorrida, a recorrente manteve o seu discurso, referindo que o que a levou a assinar o contrato em causa foi o facto de lhe terem feito crer que iria permanecer a viver naquela habitação.
17. Afirmou, ainda, – isenta de quaisquer dúvidas – que fora na casa dos seus senhorios que assinou o contrato, concretizando que havia sido no mesmo local onde pagava a renda, em mão, antigamente.
18. As declarações de parte da recorrente enunciadas supra encontram-se gravadas através do sistema gravação digital disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu no minuto 00:00:01 e o seu termo aos 00:18:38 do dia 17.01.24 e consta como ficheiro n.º 20240117101708_1762181_2871391, sendo que relevam as passagens entre o minuto 14:04 a 14:47.
19. Note-se que a recorrente declarou, ainda, que lera o contrato, mas que não percebia nada do que lá estava escrito.
20. E uma vez que a sua família sempre viveu no locado em questão, desde tempos imemoriais, pensou que se tratava apenas de um mero formalismo burocrático. No fundo, pensou que teria de um novo documento de 5 em 5 anos, para que fosse possível permanecer no locado.
21. Tornando-se, pois, evidente, que a recorrente sempre apresentou um elevado nível de confiança com a recorrida e os seus familiares – antigos senhorios.
22. As declarações de parte da recorrente encontram-se gravadas através do sistema gravação digital disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu no minuto 00:00:01 e o seu termo aos 00:18:38 do dia 17.01.24 e consta como ficheiro n.º 20240117101708_1762181_2871391, sendo que relevam as passagens entre o minuto 15:00 a 15:40.
23. Ora, conforme a identificação prestada pela testemunha, trata-se, do tio da sócio-gerente da recorrida, que referiu ter conhecimento que a sua sobrinha gere uma empresa, bem como que conhece os recorrentes do tempo em que eram vizinhos.
24. Questionado sobre como eram feitos os procedimentos legais, o mesmo afirmou que quem tratava de tudo era o advogado da família, nomeadamente o Dr. Fernando.
25. O depoimento da testemunha, encontra-se gravado através do sistema gravação digital disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu no minuto 00:00:21 e o seu termo aos 00:17:07 do dia 17.01.24 e consta como ficheiro n.º 20240117103714_1762181_2871391, sendo que relevam as passagens entre o minuto 04:19 a 4:25.
26. Corroborou, ainda, o que fora dito pela recorrente, no sentido de que o contrato teria sido assinado na casa dos senhorios, tendo o advogado da família se deslocado lá a esse local e auxiliado nos procedimentos tendentes à conclusão do mesmo.
27. Para o que aqui releva, o depoimento da testemunha, encontra-se gravado através do sistema gravação digital disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu no minuto 00:00:21 e o seu termo aos 00:17:07 do dia 17.01.24 e consta como ficheiro n.º 20240117103714_1762181_2871391, sendo que relevam as passagens entre o minuto 6:00 a 6:30 e 12:37 a 12:50.
28. Quando a testemunha confirmou que a sócia-gerente da recorrida sabia de tudo e tinha sido informada do que se passava com o locado.
29. E ainda confirmou ter ouvido, na casa dos seus pais, que a recorrente tinha sido enganada (!) Concretizando o momento em que ouviu tal expressão, referiu que teria sido na segunda vez que a recorrente se dirigiu à moradia dos senhorios para assinar um outro documento.
30. O depoimento da testemunha enunciado supra, encontra-se gravado através do sistema gravação digital disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu no minuto 00:00:21 e o seu termo aos 00:17:07 do dia 17.01.24 e consta como ficheiro n.º 20240117103714_1762181_2871391, sendo que relevam as passagens entre o minuto 8:19 a 8:21 e 10:00 a 10:30.
31. Veja-se que a testemunha ao ser questionada sobre se a recorrente soubesse que ao assinar o contrato, tal só lhe conferia o direito a ficar, no máximo, 10 anos locado, se mesmo assim assinava, o mesmo foi peremptório ao dizer: “Claro que não!”
32. Referiu, ainda, que achava que os seus pais, sabendo que a recorrente tinha nascido naquela casa e mesmo antes, os seus pais e avós, nunca iriam querer colocar a recorrente “na rua”.
33. Acrescentou que tudo o que os seus pais fizeram, foi sempre a conselho do seu advogado uma vez que não existia contrato escrito, mas que o objectivo era que a família da recorrente, e a própria, ficassem sempre a residir naquela habitação.
34. No que a esta parte diz respeito, o depoimento da testemunha, encontra-se gravado através do sistema gravação digital disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu no minuto 00:00:21 e o seu termo aos 00:17:07 do dia 17.01.24 e consta como ficheiro n.º 20240117103714_1762181_2871391, sendo que relevam as passagens entre o minuto 13:59 a 14:47.
35. Não se percebe como é que o tribunal a quo, face ao depoimento da testemunha em causa, isenta, credível e desprendida de qualquer relação para com os recorrentes, possa não ter merecido qualquer tipo de ponderação em relação à versão dos factos apresentada pelos recorrentes.
36. Pelo que, só por si, indica que o contrato de arrendamento contraído por aqueles foi assinado por manifesto erro.
37. Salvo melhor opinião, apenas se pode concluir que entre os familiares da sócia-gerente da recorrida e a recorrente, existiu sempre um ambiente caracterizado pelo informalismo, decorrente dos longos anos de convivência entre os seus antepassados.
38. Nessa senda, e a conselho do Ilustre Advogado da família da recorrida, foi formalizado um contrato, quando a verdadeira intenção daqueles era permitir que a mesma ficasse lá a residir com a sua família. Ora, a recorrente mulher, decorrente da boa relação existente assinou algo que não devia, tendo sido induzida em erro e não sabendo o que estava a assinar, nem tão pouco sabia, as consequências do mesmo e sempre julgou que o contrato manter-se-ia.
39. Foram precisamente as declarações de parte da recorrente que demonstraram que a mesma não tem qualquer conhecimento jurídico, que nunca foi auxiliada por Advogado ou pessoa conhecedora de direito. Foram estes mesmos factos corroborados com o depoimento da testemunha PD, que afirmou que os seus pais – antigos senhorios dos recorrentes - nunca tiveram como objectivo desalojar a família destes últimos.
40. Nem se diga que o facto de a recorrente não saber justificar a razão pela qual remeteu a carta constante de fls. 76, nomeadamente se desconhecia que o contrato era a termo, é motivo de descredibilizá-la. Isto porque, conforme os factos dados como provados e, também, como já supra-referido, a recorrente nunca teve auxílio de ninguém entendido na matéria nem o achou necessário, tendo em conta que entendia se tratar de um mero formalismo burocrático, sem qualquer impacto negativo na sua esfera pessoal e familiar.
41. Face a tudo o que foi aqui exposto, bem como dos meios de prova constantes nos autos, s.m.o., impunha-se decisão diversa sobre os pontos 1) e 3) dos factos dados como não provados, pelo que, nos termos do artigo 640 n. º1 alínea a) e b) do Código de Processo Civil, deverá a sentença ser alterada, sendo dado como provado que: “ - O contrato de arrendamento habitacional com a data de 01/10/2010 foi assinado por erro, por engano, por desnecessidade. (…) - Os requeridos assinaram o que não era necessário, não sabendo o que estavam a assinar, nem sabendo as consequências do mesmo, e sempre julgaram que o contrato manter-se-ia.”
42. E nesta senda, aditado um novo ponto, passando a ter a seguinte redacção:
“- Em todo o procedimento, os familiares da sócia e gerente da recorrida foram sempre auxiliados por um advogado.”
43. Pelo que o tribunal a quo deveria ter dado os factos enunciados supra como provados, impondo-se, assim, essa a alteração.
44. Consequentemente, o contrato subscrito pelos recorrentes não pode subsistir na ordem jurídica, uma vez que padece de um vício estruturante.
45. O erro-vício traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância – se tivesse exacto conhecimento da realidade, os recorrentes não teriam realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.
46. Assim, estamos perante um vício de vontade quando o processo de formação da vontade negocial sofreu qualquer desvio em confronto com o modo julgado normal.
47. Na sequência do vício, que fere a vontade, também a declaração negocial em que esta se manifesta fica viciada.
48. Consequentemente, o contrato de arrendamento subscrito padece de um vício, o que acarreta a anulação do negócio jurídico, e como tal não pode o contrato não subsistir na ordem jurídica, devendo os recorrentes serem absolvidos do pedido.
49. Sem prescindir, Antes de tudo, dir-se-á, que o abuso de direito é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito.
50. Sendo certo que o tribunal está vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito se do conjunto dos factos alegados e provados resultarem provados os respectivos pressupostos legais.
51. Julgam os recorrentes que existem factos que manifestamente apontam, sem qualquer dúvida, no sentido de o direito ter sido ilegitimamente accionado. Melhor dizendo, da matéria dada como provada e não provada, revela-se uma necessidade clamorosa de convocar os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e/ou pelo fim económico-social e económico, pois o titular do direito exerce-o, excedendo manifestamente aqueles limites, em clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.
52. Temos a recorrente mulher, dotada de parca literacia, face ao facto de apenas possuir o 4º ano de escolaridade, que nasceu e viveu toda a sua vida numa habitação juntamente com os seus pais e avós, nomeadamente, num prédio humilde localizado numa zona da ilha da Madeira, caracterizada por uma taxa diminuta de alfabetismo e pela actividade piscatória.
53. A recorrente, desde cedo, sempre viu os seus familiares deslocarem-se a uma moradia de forma a liquidarem o valor da renda da casa onde moravam. E, conforme factos dados como provados em I), J), K) e L), a recorrente ficou a residir permanentemente no locado dos autos logo após o seu casamento de forma a cuidar da sua mãe que faleceu aos 03/01/2009.
54. Contudo, mesmo antes da sua mãe, MS, residiam como inquilinos os pais desta - avós da recorrente -, RH e SS.
55. Chegados aos tempos hodiernos, temos uma senhora com cerca de 59 (cinquenta e nove) anos de idade que construiu todo o seu seio familiar naquela habitação e tudo à vista dos familiares da recorrida. E foi nessa mesma casa que ambos os recorrentes constituíram a sua família, conforme facto dado como provado em M).
56. No que tange ao perfil económico dos recorrentes, conforme resulta dos factos dados como provados N), O), P) e Q), é certo que ambos têm extremas dificuldades financeiras.
57. Sendo que a falta de pagamento de IRS no ano de 2021 é um claro reflexo das pressões financeiras e da falta de liquidez a que estão sujeitos. No mais, conforme facto dado como provado P), o recorrente está desempregado, tendo subscrito um acordo de actividade ocupacional com o Instituto de Emprego da Madeira. Desta feita, auferindo um modesto salário de €683,35 (seiscentos e oitenta e três euros e trinta e cinco cêntimos).
58. É importante salientar que os recorrentes não possuem quaisquer bens imóveis, o que agrava ainda mais sua situação financeira e habitacional.
59. A recorrente mulher enfrenta graves problemas de saúde mental, incluindo uma perturbação depressiva e ansiosa grave, crises de ansiedade e agorafobia.
60. Contudo, por outro lado, temos a recorrida com habilitações literárias acima da média, com experiência profissional, devidamente assistida por Advogado qualificado e conhecedora dos meandros da lei.
61. É este o perfil e a inserção sociológica da recorrida, totalmente díspar dos recorrentes, o que, naturalmente, não chega, por si só, para provar o que quer que seja, mas que pode (e deve) ajudar o julgador a contextualizar a questão em causa nos autos, nas suas diferentes vertentes.
62. Ora, conforme o aditamento aos factos dados como provados peticionados nesta sede, e bem assim pelas declarações de parte da recorrente, bem como pela corroboração – plena – do depoimento da testemunha PD - tio da legal representante da recorrida -, concluímos que, salvo melhor opinião, a recorrente e sua família desenvolveram uma relação próxima com os pais da recorrida e os demais herdeiros.
63. Tendo permanecido no locado através de um contrato de arrendamento verbal, o que, por si só, demonstra a relação de confiança e desprendida de quaisquer formalidades existente entre todos.
64. Assim sendo, o abuso de direito, autoriza, assim, os recorrentes a reagirem contra o titular do direito abusivamente exercido.
65. No caso em concreto, o exercício do direito ao despejo foi exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
66. A consequência da utilização abusiva por parte da recorrida, traduz-se tão só e unicamente no despejo imoral para com os recorrentes.
67. À luz deste instituto jurídico deve ficar impedido o exercício do direito da recorrida – de despejar os recorrentes da sua habitação, pelo que, deve a sentença proferida ser substituída por outra que reconheça a existência de abuso de direito por parte da recorrida.
Terminam pedindo a procedência do recurso e revogação da decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que os absolva do pedido.
A autora/recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 5736382).
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[2], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
De notar, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 135
Uma vez que a excepção de abuso do direito foi invocada apenas nas alegações de recurso, a oportunidade dessa invocação poderá ser questionada.
Como é sabido, o abuso do direito obsta ao seu exercício, ou seja, constitui uma causa impeditiva, pelo que configura uma excepção peremptória – cf. art.º 334º do Código Civil e art.º 576º, n.º 3 do CPC.
Conforme decorre do disposto do princípio da concentração da defesa consagrado no art.º 573º, n.ºs 1 e 3 do CPC, depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes, e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
Não obstante, a lei processual consagra quatro excepções a esse princípio:
- os incidentes que devem ser deduzidos em separado;
- os meios de defesa supervenientes, ou seja, os fundados em factos que se verifiquem depois de esgotado o prazo para contestar ou deduzir oposição (superveniência objectiva), ou de que o demandado só tenha conhecimento depois de esgotado esse prazo (superveniência subjectiva);
- os meios de defesa que a lei expressamente admita após tal momento;
- os meios de defesa de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente.
Como decorrência deste princípio, a doutrina e a jurisprudência têm sublinhado que os recursos não servem para apreciar questões (de direito ou de facto) novas, mas apenas reapreciar questões já debatidas.
Relativamente à figura do abuso do direito, a jurisprudência tem entendido que tendo aquela por fundamento princípios de ordem pública, constitui uma excepção de conhecimento oficioso (cf. art.º 579º do CPC), e que por tal razão pode ser invocada pela primeira vez em sede de alegações perante a Relação, no âmbito de recurso de apelação – cf. neste sentido acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2013, processo n.º 161/09.3TBGDM.P2.S1; de 14-07-2018, processo n.º 1530/15.5T8STS-C.P1.S1 e de 12-07-2018, processo n.º 2069/14.1T8PRT.P1.S1[3].
Assim, perante as conclusões da alegação dos réus/recorrentes há que apreciar as seguintes questões:
a) A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
b) A validade do contrato de arrendamento;
c) A verificação de abuso de direito.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
A) Em 01/10/2010 foi celebrado entre a arrendatária C e os então senhorios JP e MP, um contrato de arrendamento habitacional, correspondente ao prédio urbano situado na Rua …, n.º …, 1.º andar, em Câmara de Lobos.
B) A Cláusula Terceira do contrato de arrendamento em causa prevê o seguinte: “PRAZO: A duração efectiva do contrato de arrendamento é de 5 (cinco) anos, e tem o seu início no dia 01 de Outubro de 2010 e término em 30 de Setembro de 2015, renovando-se por igual prazo de 5 (cinco) anos e por uma única vez, mediante declaração unilateral da arrendatária emitida com a antecedência mínima de 120 (cento e vinte dias) em relação ao termo do prazo inicial de vigência.”
C) Foi estipulado pelas partes contratantes que o contrato apenas se renovaria por uma única vez, por igual período de cinco anos, mediante vontade expressa da arrendatária.
D) O contrato chegou ao seu término em 30/09/2015 e, por comunicação e vontade da requerida C, expressa na carta entregue em 01/06/2015, renovou-se por uma única vez, com término em 30 de Setembro de 2020.
E) Posteriormente e por morte dos primitivos senhorios foi efectuada a respectiva escritura de partilha em 25/10/2017, onde foi adjudicado à herdeira A, a verba n.º 38, que corresponde ao prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1726, onde no primeiro andar está o objecto do locado em causa.
F) Em seguida, em 22/01/2018, a referida A, na qualidade de proprietária do mencionado prédio urbano, através da celebração de um contrato de comodato, cedeu o prédio à empresa A, Unipessoal Lda., ora requerente.
G) Pessoa colectiva esta que assumiu a qualidade de senhoria e passou desde então a emitir os respectivos recibos de renda à inquilina C, ora requerida.
H) Foi efectuada a liquidação do respectivo imposto de selo em 11/10/2010.
I) A requerida C reside no locado desde que nasceu aos 24/04/1965.
J) É filha de MS e de JS.
K) E a sua mãe MS também aí viveu logo após o seu casamento, para cuidar da sua mãe que faleceu aos 03/01/2009.
L) E antes da sua mãe, MS, residiam como inquilinos os pais desta (avós da requerida), RH e SS.
M) A requerida reside no locado com o seu marido, aqui requerido B, e a sua filha Telma.
N) Os requeridos auferiram em conjunto um rendimento bruto em 2021 de €15.140,33, e pagaram para a Segurança Social €1.655,44.
O) Os requeridos não pagaram IRS em 2021.
P) O requerido subscreveu com o Instituto de Emprego da Madeira um Acordo de actividade ocupacional em 31/01/2022 por estar desempregado.
Q) O ordenado do requerido no mês de Agosto de 2022 foi o de 683,35€.
R) Os requeridos não têm quaisquer prédios, seus ou herdados, ou em comodato, em Portugal.
S) A requerida C sofre de “perturbação depressiva e ansiosa … episódio actual muito grave”, “apresenta crises de ansiedade compatíveis com ataques de pânico, tem agorafobia associada”.
T) Os requeridos têm como habilitações literárias 4º ano (B) e 6º ano (C).
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O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:
1) O contrato de arrendamento habitacional com a data de 01/10/2010 foi assinado por erro, por engano, por desnecessidade.
2) A senhoria, Sra. Dra. A, e não a sociedade comercial “A, Unipessoal Lda.”, tratou de obter a assinatura dos requeridos no “novo” contrato, como se os requeridos não tivessem o direito de aí residir como inquilinos.
3) Os requeridos assinaram o que não era necessário, não sabendo o que estavam a assinar, nem sabendo as consequências do mesmo, e sempre julgaram que o contrato manter-se-ia.
4) Esse contrato de comodato não foi comunicado aos requeridos, que nem sabiam que quando recebiam os recibos da renda era dessa sociedade unipessoal.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1. Da Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Estabelece o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2016, processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1.
Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
À luz do normativo transcrito, afere-se que em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escritos – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que é exigido no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 201, nota 345.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2016, processo n. 1393/08.7YXLSB.L1-7 refere-se:
“É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum.”
Os recorrentes convocam para reapreciação os factos vertidos nos pontos 1) e 3) dos factos não provados e pretendem o aditamento de um novo facto não considerado pelo tribunal recorrido, indicando a prova em que assentam a sua convicção de que tais factos se encontram provados, pelo que se passa à apreciação da matéria de facto impugnada.
Importa, desde já, realçar que enquanto a primeira instância toma contacto directo com a prova, nomeadamente os depoimentos e declarações de parte, e os depoimentos das testemunhas, com a inerente possibilidade de avaliar elementos de comunicação não-verbais como a postura corporal, as expressões faciais, os gestos, os olhares, as reacções perante as demais pessoas presentes na sala de audiências, a Relação apenas tem acesso ao registo áudio dos depoimentos, ficando, pois, privada de todos esses elementos não-verbais da comunicação que tantas vezes se revelam importantes para a apreciação dos referidos meios de prova.
Atente-se, antes de se avançar que, tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-06-2018, processo n.º 18613/16.7T8LSB.L1-2:
“[…] no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a Lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial. De harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.
Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do CPC, o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência […]
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada […]
É certo que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade. Mas, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
Ademais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente. Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso […]”
Releva ainda a circunstância de se manterem em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, sabendo-se que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, de tal modo que a Relação só deve lançar mão dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Procedendo a Relação à audição efectiva da prova gravada, deverá alterar a matéria de facto provada quando conclua, com a necessária segurança, no sentido de os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontarem em direcção diversa daquela que foi encontrada pela 1ª instância – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2017, processo n.º 216/14.2T8EPS.G1 – “O que se acaba de dizer encontra sustentação na expressão “imporem decisão diversa” enunciada no n.º 1 do art.º 662º, bem como na ratio e no elemento teleológico desta norma. Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.”
Neste enquadramento, há ainda que ter presente que “A prova não é (nunca é) certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica). E isso significa que à vida em sociedade não escapa um certo nível de incerteza; havendo é que descortinar a partir de quando é que esse nível é aceitável; ou, ao invés, intolerável. Julgamos sempre que, se ao cidadão razoável e medianamente esclarecido não chocar tomar como certo um dado segmento de vida, é já consciencioso assumi-lo como provado; mas se ao invés a mesma consciência ainda ali se puder comportar como hesitante ou indecisa, só imprudentemente a prova pode ser assumida e afirmada.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2012, processo n.º 1267/06.6TBAMT.P2.
Pontos 1) e 3) dos factos não provados
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos.
1) O contrato de arrendamento habitacional com a data de 01/10/2010 foi assinado por erro, por engano, por desnecessidade.
3) Os requeridos assinaram o que não era necessário, não sabendo o que estavam a assinar, nem sabendo as consequências do mesmo, e sempre julgaram que o contrato manter-se-ia.
O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto impugnada nos seguintes termos:
“No que diz respeito à matéria de facto provada e não provada, a convicção do tribunal formou-se com base nas alegações efectuadas pelas partes, em parte havendo admissão por acordo, e nos documentos juntos aos autos, tudo cotejado entre si e analisado de acordo com as regras da ciência e do raciocínio e com as máximas da experiência, de acordo com o previsto pelo artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil […]
As declarações de parte da requerida C, no tocante à matéria de facto provada, serviram para assentar a não provada por documento nos termos antes tratados (a saber: factualidade em I), K), L), M) e T)). Neste particular se revestiram de credibilidade, dado se tratarem de factos de conhecimento próprio. Já quanto à matéria de facto não provada, careceu a requerida de crédito, em face da dissonância com a prova documental. Com efeito, a vontade expressa no contrato (o qual assinado por si, reconheceu) e na respectiva renovação única do contrato de arrendamento (encontrando-se a tendente carta outrossim assinada) suportam probatoriamente a versão factual da requerente, em detrimento da versão factual dos requeridos. Veja-se que a requerida não logrou justificar a expressão de tal vontade, não colhendo a argumentação em torno de um suposto erro ou engano. Pois que a requerida não conseguiu explicar a razão pela qual remeteu a carta constante de fls. 76 se desconhecia que o contrato era a termo. Salvo melhor juízo, o contrato e sua renovação são lineares e a actuação da requerida ao seu abrigo também.
A demais prova cingiu-se à audição de quatro testemunhas, sendo uma apresentada pela requerente e três apresentadas pelos requeridos: PD (tio da legal representante da requerente), FC (vizinha dos requeridos), PP (filho dos requeridos), FJ (cunhado da requerida). Ora e desde logo, a prova testemunhal num procedimento desta natureza tendencialmente serve a complementaridade da prova documental (artigo 393.º do Código Civil). Ademais, a relação familiar e de vizinhança das testemunhas naturalmente que compromete a credibilidade dos respectivos depoimentos. Não se descurando, porém, o demonstrado conhecimento directo dos factos - mormente sobre os contextos familiares, não tanto acerca dos concretos termos contratuais - bem como a espontaneidade e segurança dele advindos.
Nestes termos, foram assim consignados os factos correspondentes como provados.
Relativamente aos factos tidos por não provados, assim foram consignados porquanto não se logrou quanto aos mesmos fazer prova suficientemente credível, segura e cabal. Ou são eles total ou parcialmente contrários aos provados. Neste particular, remete-se para as considerações tecidas a propósito das declarações de parte da requerida.”
Os apelantes pretendem que tais factos sejam dados como provados, para o que convocam, por um lado, as declarações de parte da requerida C, que terá dito, de modo peremptório, que assinou o contrato por a terem feito acreditar que ficaria no locado “para sempre”, até porque a mãe da recorrida sempre transmitiu à sua mãe que a família ficaria ali para sempre, tendo confiado nessa palavra e na dos seus familiares, acreditando que estava em causa apenas um “formalismo burocrático” e, por outro, o depoimento da testemunha PD, tio da sócia-gerente da recorrida, que disse ter ouvido que a recorrente tinha sido enganada, num momento em que esta foi à casa dos pais para assinar um outro documento, acrescentando que estes, anteriores senhorios, nunca iriam querer despejar a recorrente, apenas tendo assinado o contrato sob conselho do advogado, pelo que também a recorrente o assinou induzida em erro e não sabendo o que estava a assinar.
A autora/recorrida opõe-se a tanto referindo que as declarações de parte não são bastantes para infirmar a convicção do tribunal recorrido, servindo apenas para coadjuvar a prova de um facto em conjugação com outros elementos de prova, sendo que, neste caso, as declarações da ré não merecem credibilidade, posto que não forneceu qualquer explicação para ter remetido a carta de renovação de 1 de Junho de 2015[4], nem tais declarações foram confirmadas por outros elementos probatórios; afastou também o relevo do depoimento da testemunha PD, que não presenciou ou participou nas negociações e assinatura do contrato de arrendamento.
Nos termos do art.º 466º, n.º 3 do CPC, o Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se estas constituírem confissão.
O valor probatório a conferir às declarações de parte tem sido objecto de interpretações divergentes na doutrina e na jurisprudência, que conferem uma maior ou menor preponderância em função do momento em que são prestadas, da assistência ou não da parte à audiência de julgamento, da corroboração ou não dos factos que delas emergem por outros meios de prova.
Acompanha-se, neste aspecto, a posição do Professor Miguel Teixeira de Sousa, in Para que serve afinal a prova por declarações de parte?[5], quando refere:
“Não se ignora, como é evidente, que a prova por declarações de parte merece uma especial ponderação pelo tribunal, dado que é a própria parte que depõe em juízo sobre factos que, em princípio, lhe são favoráveis. Isto é, no entanto, coisa completamente diferente de se entender que, à partida e independentemente de qualquer valoração específica em função das circunstâncias do caso concreto, a prova por declarações de parte não pode ter um valor probatório próprio. […] a não atribuição de um valor probatório próprio à prova por declarações de parte é contraditória com a faculdade, resultante da conjugação do disposto no art.º 466.º, n.º 2, CPC com o estabelecido no art.º 452.º, n.º 1, CPC, de o juiz ordenar oficiosamente essa prova. Se o tribunal tem o poder de ouvir as partes sobre, por exemplo, um aspecto das negociações de um contrato, isso só pode querer significar que o tribunal tem o poder de avaliar, para efeitos probatórios, as declarações que as partes venham a produzir (ou mesmo, como é claro, a declaração que só uma delas venha a produzir, pela recusa de depoimento ou por um depoimento evasivo da outra). Qualquer outra interpretação diminuiria a relevância ou retiraria mesmo qualquer justificação para os poderes oficiosos atribuídos ao tribunal pelos referidos preceitos. Do exposto resulta que nada justifica a desqualificação, à partida, do valor probatório da prova por declarações de parte. Esta prova tem o valor probatório que, em função do caso, for justificado atribuir segundo a prudente convicção do juiz. […] Se é certo que se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, também é verdade que não há que, à partida, desqualificar o valor probatório dessa prova. Em suma: a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos, pode ainda precisar-se.”
No sentido de uma posição ampla e permissiva sobre a potencialidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz pronuncia-se também, Luís Filipe Pires de Sousa, in As Declarações de Parte. Uma Síntese, pág. 33 e s.[6], sustentando que a credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstractas pré-constituídas, sob pena de se esvaziar a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova.
Ainda de acordo com este autor, os critérios de valoração das declarações de parte hão-de coincidir essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Nada obsta, contudo, que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.
Neste mesmo sentido se pronuncia Rui Pinto defendendo “a normalização do valor probatório das declarações de parte: são um meio de prova que, como outro qualquer, pode suportar, só por si, uma decisão sobre um facto, em função dos resultados obtidos em sede de livre apreciação da prova (cf. artigo 607º n.º 5).” – cf. Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pág. 680; no mesmo sentido, ao que se depreende, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-06-2015, processo n.º 3852/09.5TJVNF.G1.S1.[7]
As declarações de parte assumirão especial relevo quando apenas as partes tiveram intervenção nos factos que integram os temas de prova ou, como sucede no caso, contendem com estados de espírito, motivações ou intenções que se produzem a nível interno e que apenas a própria pessoa pode, em real verdade, conhecer.
Ora, como é evidente, a sua posição de parte na causa implica necessariamente, ao menos por regra, que venha a juízo sustentar precisamente aquilo que alegou no respectivo articulado, para além de ser natural que conheça bem os factos e os disseque ao pormenor, como disso mesmo se dá conta, nomeadamente, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-04-2017, processo n.º 18591/15.0T8SNT.L1-7:
“Antes do julgamento, a parte relatou por múltiplas vezes a sua versão dos factos ao respetivo mandatário tendo em vista a articulação dos factos pelo mandatário no processo. Em conformidade, é expectável que as declarações da parte primem pela coerência, tanto mais que a parte pode mesmo ter-se preparado para prestar declarações. Assim, o funcionamento da coerência como parâmetro de credibilização das declarações de parte deve ser secundarizado.
Também é expectável que a parte, durante as suas declarações, incorra na afirmação de detalhes oportunistas em seu favor. A parte, à semelhança da testemunha, tem uma estratégia de autoapresentação, pretendendo dar a melhor imagem de si própria, pelo que não deixará passar o ensejo de enxertar no relato detalhes que favoreçam a posição que sustenta, com maior ou menor convicção e verdade, no processo. Daí que este parâmetro deva ser também relativizado na avaliação das declarações da parte.”
Tendo presente o relevo a conferir a este meio de prova e tendo-se procedido à audição integral da prova gravada, adianta-se, desde já, não se discernirem razões para afastar aquela que foi a convicção probatória formulada pela 1ª instância.
As declarações de parte da ré C pautaram-se, como era previsível, pela confirmação da tese já trazida aos autos em sede da oposição deduzida, eivada apenas de afirmações conclusivas ou manifestações daquele que seria o seu convencimento à data da assinatura do contrato de arrendamento referido na alínea A) dos factos provados, totalmente despojado de referências a dados objectivos indiciadores ou catalisadores dessa convicção ou confiança, que não encontra arrimo em qualquer outro dado probatório que haja sido carreado para os autos.
Note-se, antes de mais, que a recorrente pretendeu transmitir de si a imagem de alguém totalmente insciente quanto à configuração real ou jurídica das circunstâncias em que habitava naquela que foi a sua casa desde o seu nascimento, sendo pessoa despojada de conhecimentos em matérias dessa natureza ou até, da própria realidade da vida, pois que, a ser verdade tudo quanto afirmou, se teria de a tomar como pessoa totalmente desinformada e bem abaixo de um cidadão médio integrado na sociedade actual e com padrões normais de conhecimento.
Mesmo considerando que, tal como ficou vertido na alínea T) dos factos provados, a recorrente possui o 6º ano de escolaridade, não se pode deixar de ter presente que estamos perante uma pessoa nascida na segunda metade do século XX, ainda na casa dos cinquenta anos de idade, basicamente instruída, que exerce a profissão de empregada de balcão - tal como declarou aquando da sua inquirição – e que se encontra familiar e socialmente integrada, pelo que, na ausência de outros dados, não se toma por boa a ideia que quis fazer passar de uma pessoa limitada, desinformada e crédula.
E tanto não o é que tal se extrai de diversas passagens das suas declarações, que revelam bem o conhecimento que a recorrente tinha da situação habitacional em que se encontrava, tornando pouco crível o erro que invocou e sob o efeito do qual teria assinado o mencionado contrato de arrendamento.
Note-se que logo ao início das suas declarações explicitou claramente que os seus familiares/ascendentes sempre viveram no locado, tendo, porém, cabal conhecimento que este pertencia a um Dr. HJ, mas actualmente pertence à herdeira A, sócia-gerente da sociedade autora.
Apesar de a maioria das perguntas que lhe foram formuladas pelo seu ilustre mandatário terem sido direccionadas a uma resposta de mera confirmação, contendo na questão a resposta pretendida, o que desvirtua, como é sabido, a sua isenção e credibilidade, não deixou a declarante de manifestar também segurança ao referir que efectuava o pagamento das rendas através de transferência bancária, situando o momento em que o teria passado a fazer – e não mediante a entrega de dinheiro na casa dos avós da referida A – algum tempo depois de a mãe falecer, talvez há uns 15 anos, como disse, ou seja, momento claramente próximo da data em que assinou o contrato de arrendamento, o que, por si só, já indicia conhecimento das vicissitudes ocorridas a propósito da sua permanência no locado – cf. minuto 4.30 e seguintes das suas declarações.
Apesar da alusão a que a sua mãe, já muito doente, teria pedido à Sr.ª MP, avó de A, para que a filha, a recorrente, se mantivesse no locado, tal afirmação não se mostra suficientemente credível, nem foram explicitadas as circunstâncias em que essa conversa teria tido lugar, tanto mais que nem se percebe porque seria necessária essa tomada de posição da anterior senhoria, quando, conforme pretendeu demonstrar a recorrente, esta estaria convencida de que o arrendamento, por morte da mãe, se transmitiria para si. Ou bem que estava convencida da desnecessidade da celebração de qualquer outro contrato, porque se manteria o anterior – que, note-se, nem sequer resultou positivamente demonstrado que tivesse sido celebrado, sequer verbalmente, embora na alínea L) dos factos provados se aluda aos falecidos avós de A como inquilinos -, ou bem que sabia que seria necessária a celebração de um novo contrato. Além disso, as suas declarações não permitem identificar os comportamentos da contraparte que a teriam induzido a celebrar o contrato de arrendamento de 2010, ainda com os avós da sócia-gerente da autora como senhorios, e menos ainda que tenha sido a autora ou a sua representante a asseverar que lhe seria facultado permanecer no locado para sempre.
Aliás, a instâncias do ilustre mandatário da autora/recorrida, a recorrente, referindo não ter entendido nada do contrato, que leu, adiantou que, como tinha vivido ali toda a vida, achou que para lá continuar bastaria assinar o contrato, mas com a necessidade de este ser renovado de cinco em cinco anos, o que é incongruente, pois que, para qualquer pessoa de mediano conhecimento comum, a necessidade de assinar um documento de cinco em cinco anos indicia que a situação não é definitiva. Releva também o facto de a declarante ter mencionado que, estando embora convencida que teria esse direito, já os filhos não o teriam, o que revela um maior conhecimento da dinâmica do contrato de arrendamento do que aquele que a recorrente pretendeu transmitir ao tribunal.
Acresce que, se assim fosse, e se estava convencida que tudo continuaria normalmente como antes do óbito da mãe, o comportamento que assumiu também não é compaginável com essa convicção, pois que a própria requerida se aprestou a comunicar aos senhorios, conforme afirmou, a ocorrência de tal evento, altura em que lhe disseram que teria de fazer um novo contrato, que terá assinado sem saber, mas sem explicar exactamente o que não sabia então e que, sabendo, a levaria a não assinar o contrato, não sendo admissível, mesmo para alguém sem qualquer tipo de formação jurídica, tomar como bom que poderia manter-se num locado indefinidamente, na sequência do óbito de anterior inquilino – cf. minuto 6.04 e seguintes das suas declarações.
Ademais, é a instâncias do seu próprio mandatário – e, recorde-se, as perguntas por este formuladas foram, quase integralmente, direccionadas à resposta pretendida, sem qualquer intervenção/objecção por parte da senhoria juíza a quo – que a recorrente refere que tinha prazo para sair e que seriam uns 10 anos, para, logo depois, infirmar tal declaração acabando por dizer: “mas não era para sair, era para continuar a renovar, podia ficar lá 10 anos e depois continuava a renovar o contrato”, sem se perceber como se manteria o contrato indefinidamente, nem tal tendo sido esclarecido pela declarante, que se limitou a concluir que foi enganada, porque nada percebia de leis, não lhe tendo sido explicado que podia continuar no locado por óbito da mãe, estando convencida que “nunca iria sair” porque “tinha o prazo de dez anos” – cf. minuto 7.19 e seguintes das suas declarações.
A inconsistência destas declarações é tanto mais patente se se atentar que a recorrente foi incapaz de explicar a razão pela qual entendeu necessário, em 2015, dirigir à ré a carta mencionada na alínea D) dos factos provados, referindo apenas que lhe teria sido dito – não se sabe por quem – que apenas teria de mandar uma carta e continuava lá, não se lembrando muito bem desse facto, sem deixar, porém, de reconhecer assertivamente que a assinatura aposta em tal carta lhe pertence – cf. minuto 10.15 das suas declarações.
Independentemente de a ré ter ou não sido aconselhada por advogado – e nada nos autos revela que tivesse sido impedida ou não tivesse tido a possibilidade de obter esse aconselhamento – e, mais ainda, de ter sido o advogado da família da sócia-gerente da autora a convocá-la para a assinatura do contrato, seguro é que as declarações prestadas, com o enquadramento supra mencionado, são, de todo, imprestáveis para modificar o sentido da decisão proferida pelo Tribunal recorrido a propósito dos factos descritos nos pontos 1) e 3) da factualidade não provada, tanto mais que nem sequer é concretamente imputado seja à sócia-gerente, seja ao seu advogado ou à sua família, um qualquer comportamento ou prestação de informação incorrecta que a tenha levado a assinar o mencionado contrato de arrendamento.
De igual modo, o depoimento da testemunha PD, bancário reformado, tio de A é, contrariamente ao visado pela recorrente, insuficiente para modificar a factualidade dada como não provada.
Seguro é que a testemunha disse que a sócia-gerente da autora, à data em que adquiriu o locado na sequência das partilhas, tinha conhecimento e sabia da existência de inquilinos naquele prédio, o que, por si só, não significa que isso representasse saber que estaria perante uma situação de transmissão de arrendamento por morte do arrendatário, o que sequer foi aventado pela testemunha.
Por outro lado, não obstante a testemunha revelar conhecimento genérico da situação nada especificou de concreto quanto às condicionantes da celebração do contrato de arrendamento em discussão nos autos que, aliás, não acompanhou, tendo apenas referido, de forma pouco especificada e sem que se perceba a que se estava exactamente a reportar, ter ouvido em casa dos pais que a recorrente teria sido enganada, numa ocasião em que esta lá teria ido para assinar um novo contrato, que não assinou. Ora esta referência não permite sequer perceber que documento ou contrato estaria em causa, nem tem qualquer valia para convencer que alguém teria enganado a ré, tanto mais quando foi afirmado pela testemunha, a instâncias do ilustre mandatário da ré – numa inquirição, mais uma vez, dirigida e orientada para a resposta pretendida -, que os pais eram pessoas de bem e que não enganariam a ré, pelo que teriam sido também «enganados» pelo próprio advogado que os representava – cf. minutos 10.02 e seguintes e 12.32 e seguintes do seu depoimento.
Acresce que a testemunha não deixou de referir, que, não querendo os pais que a recorrente fosse para a rua, também, no seu entender, não era intenção deles que a ré ficasse no locado enquanto viva fosse – cf. minuto 16.10 do seu depoimento.
Sendo este o acervo probatório disponível convocado pela recorrente para a alteração da matéria de facto pretendida e não sendo possível retirar da restante prova testemunhal produzida qualquer elemento em abono da tese visada, pois que apenas se repetiram as generalidades mencionadas pela declarante, nada há a alterar na matéria de facto provada, que se deve manter inalterada.
Relativamente ao novo facto que a apelante pretende introduzir nos factos provados – “Em todo o procedimento, os familiares da sócia e gerente da recorrida foram sempre auxiliados por um advogado” -, importa referir, desde logo, que não foi matéria sequer alegada nos autos, ainda que se possa admitir que tenha sido objecto da instrução ou dela resulte.
De todo o modo, há que ter presente que o direito à impugnação da decisão de facto não subsiste por si, mas assume um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito.
Assim, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(veis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-05-2014 – “Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada”, situação que, diga-se, sempre se verificaria no caso presente.”
É precisamente esta circunstância que se verifica neste caso. O eventual aditamento do facto em causa não teria qualquer préstimo para interferir na solução jurídica do pleito, seja qual for a perspectiva que se adopte, pois que essa nova realidade, por si só ou conjugada com a restante factualidade apurada, em nada contribuiria para a aferição do erro que a apelante invocou e que não logrou demonstrar.
Consequentemente, não há lugar à reapreciação da matéria de facto na perspectiva do aditamento de tal facto concreto, por não ser susceptível de, face às circunstâncias do caso, assumir relevância jurídica, pelo que tal actividade processual seria inconsequente e contrária aos princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138º do CPC.
Improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se inalterados os factos apurados em 1ª instância.
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3.2.2. Da validade do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Outubro de 2010
Os apelantes, assim como alegaram na sua oposição, vieram sustentar a nulidade do contrato de arrendamento de 1 de Outubro de 2010, com fundamento em ter sido este celebrado em erro sobre a sua necessidade, posto que sempre viveram no locado, assim como a mãe da recorrente antes deles, pelo que o arrendamento que vigorava entre esta e os senhorios à data do respectivo óbito se teria transmitido para a filha, não havendo lugar à celebração de novo contrato.
Em face dos factos provados e não provados, a decisão recorrida considerou que não se verificava a nulidade do contrato e, por outro lado, que não ocorreu a transmissão da posição contratual por morte da mãe da recorrente, à face do regime legal aplicável a essa data, ou seja, o NRAU.
Já em sede de alegações, os apelantes reiteraram a existência de um erro-vício traduzido numa representação inexacta das circunstâncias de facto que determinaram a ré a celebrar o negócio, que não teria realizado se estivesse esclarecida sobre tais dados.
A validade de um acto jurídico exige a verificação dos requisitos de que a lei faz depender a validade de qualquer acto querido e assumido por um sujeito jurídico que se destine a regular e a dispor sobre as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas.
A pessoa que se disponha a efectuar uma declaração que encerre uma disposição de vontade, querida e assumida, deve, no momento em que a materializa e profere, estar investida de plena consciência do acto que pretende realizar. Ou seja, o sujeito que se dispõe a concretizar um acto jurídico deve, no momento em que o materializa, estar na plenitude da sua capacidade de perceber, entender e ditar sobre as consequências, efeitos e alcance do acto que vai realizar.
O n.º 1 do art.º 252º do Código Civil estatui: “O erro que recaia nos motivos determinantes da vontade, mas se não refira à pessoa do destinatário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo.
Trata-se de um caso de erro-vício que recai sobre os motivos determinantes da vontade, que não se refiram à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio.
Em face do requisito exigido quanto ao reconhecimento, por acordo, da essencialidade do motivo subjacente à celebração do negócio, deve aceitar-se que a lei consagra, como regra, o regime da irrelevância do erro-nos-motivos – cf. neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4ª Edição Revista e Actualizada, pág. 236.
Com efeito, as pessoas podem formular declarações pelos motivos mais variados, que apenas dizem respeito a cada, e que nada tenham que ver com o objecto do negócio ou com o declaratário, de modo que, não incidindo sobre um elemento nuclear do negócio, ainda que o destinatário o conheça, tal não justifica a supressão do contrato. Só assim não sucederá quando ambas as partes tenham reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo.
O acordo exigido para a relevância dos motivos pode ser tácito. Haverá um “recíproco reconhecimento” quando “ambas as partes associam a sua vontade à essencialidade do motivo, identificando-o minimamente na sua configuração e no seu papel” – cf. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I – Parte Geral, CIDP 2020, pág. 743.
Não tendo a apelante demonstrado que assinou o contrato de arrendamento na convicção de que nada se alteraria e que este se manteria de modo definitivo, ou seja, de que poderia manter-se no locado pelo menos até ao final da sua vida ou ainda que o tenha feito apenas porque desconhecia que o contrato de arrendamento que vigorava entre a sua mãe falecida e a senhoria se lhe transmitia por morte daquela, não só está demonstrado o erro sobre os motivos determinantes da sua vontade como, além disso, não se provou a existência de acordo, ainda que tácito, sobre a essencialidade desse motivo, pelo que não se provaram factos que determinem a anulabilidade do negócio (que não nulidade).
E ainda que se houvesse de configurar a situação como um erro sobre o objecto, um erro de direito por falsa representação das regras jurídicas aplicáveis, sempre seria necessária a prova do conhecimento pela contraparte da essencialidade desse erro para o declarante, prova que não foi feita – cf. art.ºs 251º e 247º do CPC.
Por outro lado, tendo sido invocado um engano de que a apelante teria sido vítima, nada se apurou quanto a ter existido da parte da autora qualquer sugestão ou artifício utilizado para induzir ou manter a apelante em erro sobre as circunstâncias da celebração do contrato de arrendamento e sobre a reunião dos pressupostos para a transmissão do arrendamento por morte da anterior arrendatária, pelo que também não se configura aqui qualquer situação de dolo passível de tornar o contrato anulável – cf. art.ºs 253º e 254º do Código Civil.
Aliás, nem a situação de erro invocada pela apelante beneficia de qualquer consistência jurídica.
Com efeito, uma das formas de cessação do contrato de arrendamento é a caducidade - cf. art.º 1079º do Código Civil.
Tal caducidade pode verificar-se por morte do locatário (art.º 1051º do Código Civil), excepto se ocorrer a transmissão da posição de arrendatário – cf. art.ºs 1106º e 1113º do Código Civil.
Embora não resulte da factualidade provada o momento da celebração ou acertamento de negócio relativo ao locado estabelecido entre os mencionados JP e MP e RH e SS, avós da apelante, ficou vertido nas alíneas I) a M) que esta ali reside desde o seu nascimento, em 24 de Abril de 1965, que antes dela ali residiam a sua mãe e antes desta os respectivos pais, enquanto inquilinos, pelo que a existir um arrendamento destinado a habitação este foi celebrado antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
Mais se apurou que o prédio dos autos foi adquirido por A na sequência da partilha do acervo hereditário dos anteriores senhorios, tendo aquela comodatado o prédio à sociedade aqui autora – cf. alíneas E) e F) dos factos provados.
Na redacção do Código Civil que antecedeu a entrada em vigor do RAU estabelecia o art. 1111º, n.º 3, al. b) e n.º 4 daquele código que falecendo o inquilino o contrato de arrendamento não caducaria se lhe sobrevivesse cônjuge ou, na falta deste, descendentes, pelo que neste caso o arrendamento se transmitiria a estes.
Na vigência do RAU esta solução manteve-se, prevista no respectivo art.º 85º, n.ºs 1 a 3.
Posteriormente, o NRAU veio regular esta matéria de novo no Código Civil, no respectivo art.º 1106º n.º 1.
Todavia, esta disposição legal não se aplica ao caso dos autos, pois que o art.º 27º do NRAU estabelece expressamente que relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU se aplicam as disposições constantes do Capítulo II do NRAU, aqui se incluindo o art.º 57º, que tem por epígrafe “Transmissão por morte”.
Dispunha o art.º 57º, n.º 1, alíneas d) e e) do NRAU, na sua versão original (Lei n.º 6/2006), que o arrendamento para habitação não caducava por morte do primitivo arrendatário se lhe sobrevivesse “filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior” e “filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%”.
Por outro lado, o n.º 4 do mesmo preceito estatuía que a transmissão a favor do filho do primitivo arrendatário verificava-se ainda por morte daquele a quem tivesse sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 ou nos termos do número anterior.
Neste contexto, o filho do inquilino falecido poderia adquirir a qualidade de arrendatário, quer directamente, numa primeira transmissão, caso não existissem nenhuma das pessoas identificadas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do art.º 57º do NRAU (como cônjuge, unido de facto ou ascendente), que sobre ele tinham preferência legal (art.º 57º n.º 2 do NRAU), quer indirectamente, ou por segunda transmissão, na sequência da morte de uma das pessoas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 57º.
Neste contexto, resta concluir que, por efeito do falecimento da mãe da apelante, no ano de 2009, a posição de arrendatária não se transmitiu para esta porque não se está perante filha menor de idade ou de idade inferior a 26 anos a frequentar o ensino básico, médio ou superior e, embora sendo filha da anterior arrendatária, maior de idade, não alegou ou comprovou ser portadora de deficiência com incapacidade superior a 60%. Além disso, a ter existido uma eventual transmissão dos avós da recorrente para a sua mãe, sempre se não verificariam os pressupostos para a subsequente transmissão para a apelante.
Logo, não só a apelante não logrou demonstrar ter subscrito o contrato de arrendamento em erro sobre os motivos ou erro em que tenha sido induzida pela apelada ou alguém em sua representação ou sequer em erro sobre o objecto do negócio.
O contrato de arrendamento celebrado em 1 de Outubro de 2010 é válido e não foram demonstrados factos susceptíveis de possibilitarem a sua anulação.
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3.2.3. Do abuso de direito
O Tribunal recorrido concluiu que, subsistindo o contrato de arrendamento qua tale, e tendo nele sido estipulado um prazo de cinco anos, susceptível de uma única renovação, por igual período, por declaração unilateral da arrendatária, verificada essa renovação, o contrato cessou em 30 de Setembro de 2020, por caducidade, pelo que o procedimento especial de despejo deveria proceder.
Os apelantes não colocaram em crise este segmento da decisão, que se secunda, pois que nada obsta a que se celebre um contrato de arrendamento, por um prazo determinado não renovável, decorrido o qual o contrato caduca – cf. art.º 1054º do Código Civil; Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2017 – 3º Edição, pág. 297.
Contudo, vêm os réus/recorrentes sustentar que a autora, ao pretender exercer o direito ao despejo do locado, age em abuso de direito, para o que convocam a sua situação socioeconómica deficitária, a baixa literacia, a circunstância de a ré mulher residir no locado desde o seu nascimento, a situação de desemprego do réu e o facto de não serem proprietários de quaisquer bens imóveis e ainda os problemas de saúde mental de que padece a ré mulher, circunstâncias que, no confronto da posição da recorrida – melhor seria dizer, da legal representante da recorrida –, com habilitações literárias acima da média e aconselhada por advogado, revelariam, associadas à proximidade que a mãe da recorrente manteve com os anteriores senhorios, uma situação de confiança, sem preocupação de formalidades, em que os réus teriam acreditado, o que tornaria abusivo o exercício do direito ao despejo por caducidade do contrato de arrendamento.
O procedimento especial de despejo aplica-se, como decorre do estatuído no art.º 15º do NRAU, à cessação do contrato por revogação, por caducidade pelo decurso do prazo, por oposição à renovação, por denúncia livre pelo senhorio, por denúncia para habitação do senhorio ou filhos ou para obras profundas, por denúncia pelo arrendatário, bem como à resolução do contrato de arrendamento por não pagamento de renda por mais de dois meses ou por oposição pelo arrendatário à realização de obras coercivas.
Ora, o PED não se destina a fazer cessar o contrato mas, pelo contrário, pressupõe que este já tenha cessado e destina-se a efectivar essa cessação independentemente do fim a que aquele se destine, desde que o arrendatário não desocupe o locado como deveria ser sua obrigação.
Já a oposição tem por fim evitar que se constitua título executivo para desocupação do locado e, no mais, dificultar a cessação extrajudicial do contrato de arrendamento, ou seja, destina-se a evitar a formação de título de desocupação – cf. António José Lopes Regadas, Procedimento Especial de Despejo - A eventual limitação de Direitos Fundamentais, pp. 22-27[8].
O abuso do direito exprime um concreto exercício de posições jurídicas que, embora correcto em si, é inadmissível por colidir com o sistema jurídico na sua globalidade.
O art.º 334º do Código Civil estipula que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
De acordo com o normativo em apreço agir de boa-fé significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança e expectativa dos outros.
Os bons costumes correspondem à moral social e “traduzem um conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico acolhidas, pelo Direito, em cada momento histórico. Não estando embora codificadas, tais regras provocam consenso em concreto, pelo menos em casos-limites.” – cf. A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, pág. 243.
O fim social ou económico do direito corresponde ao interesse ou interesses que o legislador visou proteger através do reconhecimento do direito em causa. Tem a ver com a sua configuração real a apurar através da interpretação.
A paralisação do exercício abusivo do direito não visa suprimir ou extinguir o direito, mas apenas impedir que, em certas circunstâncias concretas, esse direito seja exercido de forma a ofender gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade.
O abuso de direito está construído sobre limites indeterminados à actuação jurídica individual que advêm de conceitos como os de função, bons costumes e de boa-fé já acima mencionados. Tais conceitos carecem de concretização para que sejam passíveis de aplicação em concreto.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
A aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os respectivos pressupostos.
É puramente objectivo, logo, não depende de culpa do agente; todavia, implicará sempre uma ponderação global da situação em presença em que a intenção das partes pode relevar para a sua concretização – cf. António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, 3ª edição aumentada e actualizada à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 136.
Verificado o abuso do direito tal conduzirá à sua supressão, à cessação do concreto exercício abusivo, a um dever de restituir ou a um dever de indemnizar verificados que sejam os pressupostos da responsabilidade civil.
O abuso de direito reconduz-se, pois, ao exercício inadmissível de posições jurídicas figurando entre elas situações como as classificadas de exceptio doli, supressio ou o venire contra factum proprium.
A exceptio doli é o poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor por este ter incorrido em dolo. Não tendo um conteúdo dogmático próprio, reconduz-se, de forma genérica, aos comportamentos contrários à boa fé.
A figura da supressio surge quando o exercente deixa passar um tal lapso de tempo sem exercer o seu direito que, quando o faça, contraria a boa fé.
O tu quoque suporta a ideia de que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo a outrem o acatamento de consequências daí resultantes. Assim, não é de admitir que alguém pretenda prevalecer-se da própria violação (sendo que, por outro lado, não se pode admitir que alguém possa perpetrar violações jurídicas a pretexto de outrem já o ter feito). Para a verificação desta excepção é necessário um nexo muito estrito entre a situação violada pelo abusador e aquela de que este se pretende prevalecer.
A expressão venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Ou seja, existem dois comportamentos da mesma pessoa, diferidos no tempo e que, por si, são lícitos, mas em que o primeiro é contrariado pelo segundo.
Podem configurar-se três grupos: 1) o titular-exercente manifesta a intenção de não exercer um direito potestativo, mas exerce-o; 2) o titular-exercente indicia não ir exercer um direito subjectivo comum, mas exerce-o; 3) a pessoa age ao abrigo de uma permissão genérica de actuação e não de um direito subjectivo, potestativo ou comum; nesse âmbito declara não ir tomar determinada atitude, mas acaba por assumi-la - cf. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra 1997, págs. 745 a 747.
A confiança será, pois, um critério para a proibição do venire contra factum proprium. “A concretização da confiança prevê: a actuação de um facto gerador de confiança em termos que concitem interesse por parte da ordem jurídica; a adesão do confiante a esse facto; o assentar, por parte dele, de aspectos importantes da sua actividade posterior sobre a confiança gerada – um determinado investimento de confiança – de tal forma que a supressão do facto provoque uma iniquidade sem remédio”. O factum proprium daria o critério de imputação da confiança gerada e das suas consequências – cf. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 758.
Existe ainda uma outra categoria de comportamentos abusivos constituída pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas que se subdividem em: a) o exercício danoso inútil (é contrário à boa fé exercer direitos de modo inútil, com o objectivo de provocar danos na esfera alheia); b) dolo agit qui petit quod statim redditurus est (é contrário à boa fé exigir o que de seguida se deva restituir); c) a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem – cf. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, pág. 265.
Como já acima se referiu, representando o instituto do abuso de direito a consagração de uma “forma de antijuricidade ou ilicitude” é sempre permitida sua apreciação oficiosa, por estar em causa a violação de princípios de interesse e ordem pública, mesmo quando o manifesto excesso no exercício do direito redunda em violação de interesses individuais.
O Tribunal deve apreciar a sua verificação enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito.
Por essa razão, ainda que de questão nova se trate, no sentido de não submetida ao julgamento do Tribunal recorrido, o Tribunal de segunda instância está vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito se – e só se – do conjunto dos factos alegados e provados resultarem provados os seus pressupostos legais – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-12-2022, processo n.º 8281/17.4T8LSB.L1.S1.
No caso em apreço, os réus/recorrentes pretendem sustentar uma actuação abusiva por parte da autora na pretensão de restituição do locado com base numa alegada situação de confiança em que a ré teria agido, impelida pela menor formalidade que teria existido na relação contratual estabelecida entre os seus pais e os anteriores senhorios, invocando ainda, ao que se depreende, uma desproporção entre os meios, o conhecimento e o domínio da situação revelados, de um lado, pela recorrente e, de outro, pela sociedade recorrida.
Sucede que nenhum destes argumentos encontra acolhimento no instituto do abuso de direito, nem os factos apurados revelam uma actuação que objectivamente possa ser censurada à autora/recorrida, designadamente, por assumir uma atitude diversa àquela que teria levado os apelantes a confiarem que a situação existente em torno da ocupação do locado se manteria.
Como acima se expendeu, o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente implica que existam dois comportamentos da mesma pessoa, diferidos no tempo e que, por si, são lícitos, mas em que o primeiro é contrariado pelo segundo.
No caso em apreço, os recorrentes nem sequer enquadram factualmente os dados objectivos que revelariam essa discrepância, não bastando invocar como primeiro comportamento uma situação de informalidade e de proximidade – que nem sequer resultou demonstrada - entre os anteriores senhorios e a arrendatária falecida, para justificar que a desocupação do locado, por caducidade do contrato de arrendamento, viola a boa fé ou o dever de agir com zelo e lealdade em face dos interesses da contraparte.
À luz dos factos provados e não provados é evidente que os autos não revelam uma qualquer actuação por parte da autora/recorrida em violação dos deveres de boa fé e lealdade, nem qualquer comportamento susceptível de criar uma situação de confiança por parte dos réus, no sentido de que, mesmo em face do contrato de arrendamento celebrado com um prazo de duração de cinco anos, apenas renovável por uma única vez, estes poderiam permanecer no locado indefinidamente.
Assim, não se tendo apurado positivamente um dos pressupostos da confiança, nem, por outro lado, se configurando nos autos uma situação em que a autora visasse exercer o seu direito ao despejo em situação diversa da finalidade natural e inerente à cessação válida de um contrato de arrendamento ou contra a razão justificativa da sua existência e contra o sentimento jurídico dominante, não se mostram verificados os pressupostos do abuso do direito, pelo que não existem razões para obstar ou paralisar o direito que a apelada pretende exercer.
Improcede integralmente a apelação, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A pretensão que os apelantes trouxeram a juízo foi julgada totalmente improcedente, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.
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Lisboa, 21 de Maio de 2024
Micaela Marisa da Silva Sousa
Ana Rodrigues da Silva
Ana Mónica Mendonça Pavão
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[1] Adiante designando pela sigla NRAU.
[2] Adiante designado pela sigla CPC.
[3] Acessíveis na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt.
[4] Documento n.º 1 junto com o requerimento de 14 de Novembro de 2022 com a Ref. Elect. 4964670.
[5] Blog do IPPC, entrada de 25-05-2018, acessível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=valora%C3%A7%C3%A3o+declara%C3%A7%C3%B5es+parte.
[6] Disponível em http://www.trl.mj.pt/PDF/As%20declaracoes%20de%20parte.%20Uma%20sintese.%202017.pdf.
[7] Em sentido diverso, ao que se depreende, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 309 – “A apreciação que o juiz faça das declarações de parte (se estas não constituírem confissão) é livre, nos termos do n.º 3; mas, como esta liberdade não equivale a arbitrariedade, a apreciação importará, as mais das vezes, apenas, como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas […]”
[8] Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Maio de 2017, acessível em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/83864/1/disserta%C3%A7%C3%A3o_com_capa.doc.pdf, consultado em 12 de Maio de 2024.