Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13058/19.0T8SNT.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: PROCESSO DO TRABALHO
RECONVENÇÃO
CLÁUSULA DE CONFIDENCIALIDADE
DEVER DE LEALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I. Emerge directamente da relação laboral a cláusula segundo a qual o trabalhador assumiu a obrigação de "não se apropriar, utilizar ou divulgar informações, documentos ou instrumentos relacionados com a actividade profissional do empregador, contidas ou não em qualquer suporte documental, escrito ou informático".
II. A violação de cláusula de confidencialidade pode consubstanciar a violação do dever de lealdade do trabalhador e fazê-lo incorrer em responsabilidade civil (art.º 128.º, n.º 1 do CT).
III. O empregador pode reconvir contra o trabalhador para ser ressarcido dos danos por ele causados com a violação dessa cláusula, pois o pedido emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, é a mesma a forma de processo comum e o valor da causa excede o da alçada do Tribunal (art.ºs 30.º, n.º 1 e 48.º, n.º 3 do CT, e 126.º, n.º 1, alínea a) da LOSJ).
(Pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.
Na presente acção declarativa, com processo comum, que AAA intentou contra BBB., veio esta apelar da parte do despacho saneador que rejeitou a reconvenção que deduziu contra aquele, pedindo que seja revogado e substituído por outro que a admita, com todas as legais consequências, designadamente a da correcção do valor da acção nos termos do disposto no art.º 299.º do Código de Processo Civil , culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"1. Vem a presente Apelação interposta do despacho de 11.02.2020 na parte em que não admitiu a Reconvenção deduzida e, assim, fixou o valor à acção em €86.819,95.
2. O despacho que não admite a reconvenção põe termo ao processo relativamente a esse pedido, sendo por isso sempre recorrível nos termos do art.º 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
3. O Autor rescindiu unilateralmente, denunciando-o, o contrato de trabalho que mantinha com a R. e vem através da acção pedir da R. créditos relativos a alegados prémios mensais, horas de formação contínua não ministradas supostamente não pagos, e juros, a que se julga com direito, na sequência da cessação do contrato; tais créditos são alegadamente componentes da retribuição da sua anterior prestação de trabalho para a R.
4. Por sua vez, como contrapartida contratual directa dessa retribuição pela sua prestação laboral, o A. obrigou-se para com a R., nos termos da cláusula 10.ª do contrato de trabalho ('Confidencialidade e sigilo'), estando igualmente vinculado ao dever geral de lealdade imposto no art.º 128.º, na 1, alínea f), do CT, na vertente da proibição da concorrência, e na prática de actos de concorrência desleal estabelecidos no art.º 311.º CPI.
5. A aludida Cláusula de 'Confidencialidade e sigilo' resulta directamente do cargo e das funções remuneradas que o A. contratualmente desempenhava na R.; foi, por isso, estabelecida, por causa da relação laboral remunerada e em directa conexão com esta, e para vigorar mesmo após a cessação do contrato de trabalho.
6. O direito que a Ré pretendeu fazer valer por via da Reconvenção, emerge da responsabilidade contratual do Autor resultante da violação dos deveres de confidencialidade, sigilo, lealdade, não concorrência com o empregador, e não prática de actos de concorrência desleal, estabelecidos na cláusula 10.ª do contrato, que estabelece obrigações que perduram para além da vigência do contrato, e nos art.ºs 128.º, n.º 1, al. f), do CT e no art.º 311.º do CPI.
7. A assunção de tais deveres pelo Autor tem como contrapartida a retribuição pela sua prestação laboral,
8. Por seu lado, os pedidos deduzidos pelo Autor na acção reportam-se a alegados créditos laborais emergentes do mesmo contrato de trabalho, contrapartida da sua prestação laboral.
9. Assim é, em ambos os casos, a relação contratual de trabalho subordinado e remunerado, e o respectivo termo, o facto jurídico composto de que, mediatamente, emergem ambos os pedidos.
10. Entre ambos existe uma relação de conexão por acessoriedade, consubstanciada em os referidos créditos de ambas as partes sobre a outra emergirem num caso, da obrigação remuneratória do empregador acordada para a prestação laboral do trabalhador, e no outro, dos obrigações acessórias de lealdade e não concorrência do trabalhador para com o empregador que constitui contrapartida da retribuição, uma e outras fontes imediatas dos pedidos respectivamente formulados.
11. Sendo o contrato de trabalho um vínculo jurídico unitário, não pode ser decomposto em termos de se perder de vista a dita conexão, nas suas diversas modalidades (acessoriedade, complementaridade ou dependência) entre os co-respectivos direitos e obrigações das partes envolvidas, e até de terceiros.
12. O contrato de trabalho é, por essência, sinalagmático, sendo incindível a conexão entre os créditos reclamados pelo Autor e o direito invocado pela Ré. Existe sempre uma relação de conexão entre os direitos e obrigações emergentes para ambos as partes de um mesmo contrato individual de trabalho que é, em última análise, o denominador comum que permite sempre que contra a parte que acciona judicialmente créditos laborais emergentes desse contrato, sejam accionados, por via reconvencional, os créditos contratuais que a parte demandada, por seu lado, possa invocar contra o autor da acção.
13. Se os direitos do trabalhador emergem das obrigações que este assume para com o empregador, então os direitos do empregador não emergem menos das obrigações assumidas pelo trabalhador para consigo - in casu, os deveres de confidencialidade e sigilo -, existindo entre umas e outras, se têm por fonte o mesmo contrato, sempre e necessariamente esse facto jurídico comum.
14. A obrigação jurídica que se estabeleceu através da Cláusula 10.ª do contrato, e as obrigações de lealdade, não concorrência, confidencialidade e sigilo dela decorrentes, são directamente emergentes da relação de trabalho subordinado e remunerado, visando mesmo prolongar no tempo e na sua substância vários deveres que vigoram no âmbito da vigência dessa mesma relação, na qual o trabalhador não pode fazer concorrência ao empregador, não pode utilizar o seu know-how em prol de terceiros, não pode fomentar a saída de trabalhadores para outro empregador, etc.
15. Nos termos do art.º 126.º, n.º 1, alíneas b), n) e o), da LOSJ será lícito concluir que os violados deveres do A. de confidencialidade, sigilo, lealdade e não concorrência devem ser considerados acessórios dos seus direitos remuneratórios, reclamados no pedido principal formulado na acção.
16. Entre a relação que subjaz ao pedido do A. - a relação creditícia entre o trabalhador e o empregador com origem no dever de retribuição da prestação de trabalho subordinado -, e a relação que subjaz ao pedido reconvencional da R. - a relação de crédito de confidencialidade, sigilo, lealdade e não concorrência que o empregador tem sobre o trabalhador com origem na Cláusula 100 do contrato de trabalho e no dever geral plasmado no art.º 128.º, n.º 1, alínea f), do CT, e que se mantém mesmo além da cessação do contrato - existe, plasmada na letra da lei que regula a relação jus-laboral e na própria letra do contrato que reflectem essas obrigações acessórias da prestação laboral, uma relação de acessoriedade, consistente em estarem os deveres de lealdade e não concorrência dependentes da contratualização da prestação subordinada do trabalho remunerado do Autor.
17. Os deveres do trabalhador de confidencialidade, sigilo, lealdade e não concorrência, são contrapartida directa dos seus créditos remuneratórios. Podem, por isso, servir de causa de pedir ao pedido formulado por via de reconvenção que é assim um pedido adicional, mas acessório, em relação ao pedido principal formulado na acção.
18. Forçar a R. a intentar acção autónoma para haver do A. um crédito indemnizatório por violação do contrato de trabalho (CI. 10.ª) e do dever geral de lealdade ao empregador, quando o pedido do A. se funda igualmente na pretensa violação pela R. do mesmo contrato e do dever estabelecido no art.º 131.º do CT, sendo clara a relação de acessoriedade entre uma e outra, não faria qualquer sentido.
19. A não admissão da reconvenção deduzida, inviabilizaria mesmo a possibilidade de compensação dos créditos de A. e R., nos termos dos art.ºs 847.º e seguintes do CC, em caso de procedência parcial ou total dos pedidos formulados, o que redundaria em manifesto prejuízo da R., que veria consideravelmente diminuída a possibilidade de ver satisfeito em tempo útil o seu eventual crédito sobre o A., mais não seja pela possibilidade de ulteriores insolvência ou diminuição de garantias por dissipação ou ocultação de fundos deste.
20. O que constituiria grosseira violação do princípio da igualdade das partes, por cerceamento à R. de um essencial meio de defesa dos seus interesses no âmbito da relação jus-laboral sub judice.
21. Além de acarretar também violação do princípio da economia processual, na medida em que forçaria a Recorrente a lançar mão de nova acção autónoma para ver efectivado um direito claramente conexo por acessoriedade com o direito arrogado pelo Autor.
22. Ao assim decidir, o despacho recorrido enferma de violação das normas dos art.º 30.º, n.º 1, do CPT, e do art.º 126.º, n.º 3, alínea o), da LOSJ, para além de violar os princípios processuais de igualdade das partes e de economia processual.
23. O despacho recorrido padece também de absoluta falta de fundamentação já que neste se limita a afirmar que 'o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, nem tem com esse facto qualquer relação de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência' sem qualquer sustentação lógico-jurídica.
24. E nessa medida, a decisão é nula, por falta de fundamentação, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC".

O autor prescindiu expressamente de contra-alegar.

Admitido o recurso na 1.ª Instância para subir imediatamente e em separado dos autos, nesta Relação de Lisboa o relator proferiu despacho a conhecer das questões que pudessem obstar ao seu conhecimento[1] e determinou que os autos fossem com vista ao Ministério Público,[2] o que foi feito, tendo nessa sequência o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto sido de parecer que o recurso merece provimento, devendo revogar-se o despacho impugnado.

Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.

Colhidos os vistos,[3] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, ainda que sem prejuízo de se ter que atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[4] Assim, porque em qualquer caso nenhuma destas nele se coloca, as questões a resolver são as de saber se:
• o despacho é nulo, por falta absoluta de fundamentação (conclusão 23);
• deveria ter sido admitida a reconvenção da apelante ré.
***
II - Fundamentos.
1. O despacho recorrido:
"(…)
II – Da Reconvenção
Uma vez que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, nem tem com esse facto qualquer relação de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência – o facto jurídico que serve de fundamento à acção assenta numa alegada dívida da Ré por falta de pagamento do prémio mensal e de horas de formação que não foram ministradas e o pedido reconvencional assenta na violação de uma cláusula contratual da qual terá decorrido a prática de actos de concorrência desleal por parte do Autor – atento o disposto no artigo 30.º do CPT, não admito a reconvenção e, em consequência, considero não escritos os artigos 70.º a 128.º da contestação.
(…)".

2. O direito.
2.1 A nulidade do despacho.
Sustenta a apelante que o despacho recorrido é nulo, por falta absoluta de fundamentação (conclusão 23).

As causas de nulidade da sentença vêm previstas no art.º 615.º do Código de Processo Civil e na medida do possível valem também para os despachos (art.º 613.º, n.º 3 daquele diploma).

Entre essas causas conta-se o caso de "b) Não especifi[carem] os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão".

No entanto, como de resto vem sendo pacificamente considerado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, uma coisa é o despacho pura e simplesmente omitir os fundamentos e outra bem diferente é a sua eventual singeleza, como foi o caso no acórdão de 20-11-2019, no processo n.º 62/07.0TBCSC.L3.S1, publicado em http://www.dgsi.pt: "Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista no n.º 1 al. b) do art.º 615.º do Código de Processo Civil".[5]

Indo ao caso concreto, recordemos que o despacho recorrido tem esta redacção:
"Uma vez que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, nem tem com esse facto qualquer relação de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência – o facto jurídico que serve de fundamento à acção assenta numa alegada dívida da Ré por falta de pagamento do prémio mensal e de horas de formação que não foram ministradas e o pedido reconvencional assenta na violação de uma cláusula contratual da qual terá decorrido a prática de actos de concorrência desleal por parte do Autor – atento o disposto no artigo 30.º do CPT, não admito a reconvenção e, em consequência, considero não escritos os artigos 70.º a 128.º da contestação".

Ora, se é verdade que o despacho pode ter acolhido uma incorrecta leitura da lei, o que ora se admite por necessidade de raciocínio, também parece evidente que de modo algum podemos dizer que não fundamentou factual e juridicamente a decisão, pois que expressamente citou os factos ("o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção …) e os normativos (… atento o disposto no artigo 30.º do CPT)" que teve por relevantes para a ela chegar.

E porque assim é naturalmente que não incorreu na nulidade que lhe foi apontada pela apelante.

2.2 A admissibilidade da reconvenção da apelante ré.
Como decorre do n.º 1 do art.º 126.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), "compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: (…) b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho".

Por sua vez, estatui o n.º 1 do art.º 128.º do Código do Trabalho que "… o trabalhador deve: (…) f) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios".

Finalmente, estabelece o n.º 1 do art.º 30.º do Código de Processo do Trabalho[6] que "... a reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e nos casos referidos na alínea o) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal" e do n.º 2 que "não é admissível a reconvenção quando ao pedido do réu corresponda espécie de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor".

Ora, o apelado (autor) pediu que a apelante (ré) fosse condenada a pagar-lhe:
"a) € 84.700,00 (oitenta e quatro mil e setecentos euros) a título de prémio mensal referente aos meses de Junho, Julho e 17 dias do mês de Agosto de 2018, ou outro que se vier a apurar, ainda que em liquidação de Sentença, se necessário for;
b) € 2.119,95 (trezentos e vinte e nove euros e vinte e nove cêntimos) referente a horas de formação contínua que não foram administradas nos anos de 2016, 2017 e 2018;
c) Aos valores supra mencionados acrescem juros à taxa legal em vigor desde a data do vencimento de cada uma das prestações;
(…)".

Para o que, em resumo, convocou a seguinte ordem de razões:
"(…)
2.º
O A. foi admitido ao serviço da empresa BBB., em 03/05/2010, para sob as suas ordens, direcção e fiscalização desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de director técnico. Contrato de trabalho a termo certo que se junta sob Doc. 1 e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
(…)
9.º
Por carta datada de 18/06/2018 e entregue no mesmo dia, em mão, no Departamento de Recursos Humanos da R., o A. denunciou o contrato de trabalho com efeitos 18 de Agosto de 2018, cfr. Doc. 6.
(…)
12.º
Desde a incorporação por fusão da empresa BBB em 1 de Junho de 2018, conforme art.º 7.º, a R., não mais liquidou os montantes referentes ao referido prémio mensal '(…) de 0,22% sobre o volume de facturação do mês (…)' sobre os meses de Junho, Julho e 17 dias de Agosto de 2018, cfr. Doc. 24.
13.º
Não tendo o A. acesso à facturação e/ou relatório de contas e balancetes analíticos da R., estimando-se uma facturação mensal desta, no ano de 2018, de cerca de €15.000.000,00, esta deveria ter pago, ao A., por conta dos prémios dos meses de Junho, Julho e 17 dias do mês de Agosto de 2018, o montante de cerca de € 84.700,00 (oitenta e quatro mil e setecentos euros).
(…)
17.º
A R. nunca assegurou, ao A., formação contínua, durante o período em que vigorou o contrato de trabalho entre as partes.
(…)
24.º
O A. credor, da R., do montante de €2.119,98 (dois mil, cento e dezanove euros e noventa e oito cêntimos) por conta de 105 horas de formação contínua dos anos de 2016 a 2018".

Por sua vez, a apelante (ré) reconveio pedindo que:
"(…)
b) Deverá o pedido reconvencional ser julgado integralmente procedente por provado e em consequência ser o A. condenado no pagamento à Ré de uma indemnização no montante de EUR 55.469,00 pelos prejuízos que já lhe causou com a subtracção de 12 clientes, acrescida dum montante a liquidar em execução de Sentença, correspondente àqueles que se vierem ainda a concretizar com os actos de concorrência desleal que o Autor continua a praticar;
(…)".

Para o que e em síntese alegou o seguinte:
"A) Da Questão Prévia - Competência do presente tribunal
70.º O presente Tribunal é competente para dirimir a questão que adiante se suscita, conforme o disposto no artigo 126.º n.º 1 al. b) da LOSJ.
71.º Decorre do referido artigo que 'compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: (…) b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;'
72.º De facto, na situação ora em análise, como se verá, para além da violação evidente das normas da sã e leal concorrência impostas pelo dever de lealdade inerente ao contrato de trabalho, está em causa a violação directa do artigo 10.º do Contrato de trabalho entre Autor e Ré, artigo que manteve a sua vigência para além da cessação daquele.
73.º Sendo, como tal, uma questão emergente do contrato de trabalho.
74.º Para a qual é competente o presente tribunal.

B) Da Violação da Cláusula 10.ª do Contrato de trabalho
a. Dos Factos
75.º O Autor vinculou-se a um dever de confidencialidade e sigilo na cláusula 10.ª do contrato de trabalho que celebrou com a R. (cf. Documento n.º 1 junto com a p.i.)
76.º Na aludida cláusula 10.ª, o Autor assumiu a obrigação de 'não se apropriar, utilizar ou divulgar informações, documentos ou instrumentos relacionados com a actividade profissional do Empregador, contidas ou não em qualquer suporte documental, escrito ou informático', (cfr. n.º 3 da citada cláusula 10.ª do Documento 1 junto com a p.i.)
77.º Sendo que tais obrigações assumidas pelo Autor abrangiam 'todas as informações de que tome conhecimento, ainda que resultantes de contactos estabelecidos entre o empregador e outras entidades'. (cf. n.º 4 da citada cláusula 10.ª do Documento 1 junto com a p.i.)
78.º O Autor obrigou-se para com a Ré a manter estas obrigações de sigilo e confidencialidade, mesmo após a cessação do contrato de trabalho, seja a que título for. (cf. n.º 4 da citada cláusula 10.ª do Documento 1 junto com a p.i.)
(…)
80.º Por força das funções que, ao abrigo de contrato de trabalho, desempenhou ao serviço da Ré, o Autor adquiriu conhecimento da lista nominal de todos os clientes da Ré das áreas de sistemas, oriundos da BBB do conteúdo e condições dos vários tipos de contratos celebrados com os mesmos, dos custos de produção, das margens de negócio, dos preços praticados, das condições de desconto e condições contratuais praticados.
81.º Por força das funções que, ao abrigo de contrato de trabalho, desempenhou ao serviço da Ré, o Autor adquiriu conhecimento de todas as equipes da Ré (comerciais e técnicas) das áreas de sistemas, dos vencimentos que auferem e das carteiras de clientes que angariaram.
(…)
85.º No dia 18 de Junho de 2018, o A. enviou à R. carta de rescisão do contrato de trabalho, tendo o mesmo contrato terminado a 17 de Agosto de 2018.
86.º Em Setembro de 2018, o A. começou a trabalhar na sociedade (…)
87.º A sociedade (…) tem por objecto social a montagem de equipamentos de segurança; comércio e assessoria técnica; actividades de engenharia de segurança; gestão e manutenção de edifícios.
88.º Desenvolve a mesma actividade que era desenvolvido pelo BBB, correspondente precisamente àquela actividade que o Autor dirigia: Os sistemas.
89.º Uma vez ao serviço da (…), e na posse da identificação, contactos e condições contratuais dos técnicos e comerciais que integravam as equipes sob sua direcção na Ré, o Autor não hesitou em divulgar essa informação à sua nova entidade patronal - concorrente directa da Ré - com o propósito e objectivos de contactar, recrutar e contratar paro os seus serviços equipas inteiras da Ré, com o objectivo e resultado de aniquilar as forças comercial e técnica da Ré, desviando-as para a (…).
90.º Assim, o Autor aliciou e conseguiu que os mesmos pusessem termo aos contratos de trabalho que mantinham com a Ré quase toda a equipe técnicas e comerciais que, enquanto ao serviço da Ré, dirigia no exercício das suas funções.
91.º E assim, puseram termo aos respectivos contratos de trabalho e, pela mão do Autor, ingressaram nos quadros da (…):
(…)
97.º Assim, ao serviço da (…), ao invés de visitar outros operadores de mercado potenciais clientes, o Autor conhecedor das condições contratuais, técnicas e económicas, relativas aos serviços prestados pela Ré aos seus clientes, 'atacou' directa e cirurgicamente os clientes da Ré, a quem pôde oferecer condições melhores do que aquelas que ele bem conhecia por torça das funções que exercera.
98.º Assim, com recurso à informação que bem sabia estar inibido de utilizar, o Autor, ao serviço da (…) aliciou e desviou para a sua nova entidade patronal vários clientes, que prescindiram dos serviços da Ré, substituindo-se pela (…), designadamente.
99.º Com esta actuação, o Autor causou um prejuízo directo de EUR correspondente à perda de facturação que era gerada por aquelas clientes.
100.º São os seguintes os clientes perdidos pela Ré para a (…):
(…)
102.º Desta forma e através da utilização de informação proprietária do Ré que estava inibido de usar logrou o Autor desde Agosto de 2018 subtrair à Ré doze clientes.
(…)
105.º Com esta sua actuação ilícita, o Autor causou já um prejuízo à Ré de EUR 55.469,00 correspondente à facturação que era gerada por estes clientes que foram subtraídos à Ré.
106.º Mas a actuação do Autor continuou, designadamente através dos contactos com os clientes identificados supra em 100.º pelo que não é, neste momento e ainda possível à Ré quantificar a totalidade do prejuízo já causado pelo Autor e a causar.
(…)

b. Do Direito
108.º Com a actuação descrita, o Autor violou directamente as obrigações que vêm consignadas no artigo 10.º do seu contrato de trabalho, a que se vinculou durante e para além da vigência do mesmo.
Mas não só,
109.º Nos termos do artigo 128.º n.º 1 f) do Código do Trabalho constitui dever do trabalhador 'guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios'
(…)
123.º Ora, como já foi referido, a conduta ilícita do A. teve como consequência a perda de clientes por parte do R., que em substância correspondeu à perda de 20 contratos respeitantes aos 12 clientes perdidos.
124.º Gerando um prejuízo total de EUR 55.469,00, correspondente ao valor facturado a estes clientes, tendo por referência um período anual,
125.º Nesse sentido, sendo o A. responsável pela produção de danos à R., encontra-se constituído na obrigação de a indemnizar, em montante que, até à presente data se cifra já em EUR 55.469,00.
126.º Há que considerar, ainda, a possibilidade de ocorrência de prejuízos relativamente aos quais ainda não estão disponíveis dados que permitam quantificar à data da presente Contestação os prejuízos que a Ré Reconvinte venha, ainda, a sofrer com a perda de contratos com os seus Clientes que o Autor continua a desviar para a sua nova entidade patronal e cuja quantificação para apuramento em liquidação de sentença, nos termos previstos no artigo 609.º e 358.º e seguintes do CPC.
(…)".

Aqui chegados não poderemos deixar de concordar com o argumentário da apelante, pois que, como bem sustenta, o crédito que invoca contra o autor reconvindo e seu antigo trabalhador[7] resulta directamente da relação de trabalho que com ele manteve, traduzindo-se na violação de um dos deveres laborais contratualizados e também decorrente da lei e que directamente lhe terão causado prejuízos e assim continuará a ocorrer, dever esse que, de resto, acordaram que vigoraria mesmo para além da cessação do contrato (art.º 78.º da contestação / reconvenção).

Neste sentido, diga-se, segue a generalidade da jurisprudência, como ocorreu nos seguintes casos:
"2. Tendo as partes inserido no contrato de trabalho uma cláusula de confidencialidade para vigorar até três anos após a cessação do contrato de trabalho, esta obrigação, livremente assumida pela trabalhadora, é inerente à relação laboral e dela emerge directamente.
3. Sendo pedida a condenação da ex-trabalhadora no pagamento da indemnização estabelecida na cláusula penal, em consequência da violação da cláusula de confidencialidade, estão em causa questões emergentes de relações de trabalho subordinado, ainda que a violação tenha ocorrido após a cessação do contrato de trabalho, cabendo, por isso, a competência para a acção à secção do trabalho, nos termos do art.º 126.º, n.º 1, al. b) da LOSJ.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2016, no processo n.º 1267/15.5T8FNC-A.L1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt

"I - Numa acção em que a causa de pedir, complexa, assenta, por um lado, num alegado contrato de trabalho que existiu entre a Autora e o 1.º Réu e na violação, por parte deste, de deveres laborais, designadamente do dever de lealdade para com a sua entidade empregadora e, por outro lado, num alegado conluio entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré, durante a vigência daquele contrato de trabalho, conluio traduzido na circunstância desta, em concorrência desleal, ter levado o 1.º Réu a colaborar e a coordenar serviços prestados pela 2.ª Ré a clientes da Autora, na sequência do que ocorreu a transferência para a 2.ª Ré de boa parte do negócio que existia entre a Autora e uma sua cliente, para além de a 2.ª Ré ter levado a que, quer o 1.º Réu, quer outros quatro colaboradores da Autora, tivessem feito cessar os seus contratos de trabalho com esta e celebrassem imediatamente contratos de trabalho com a 2.ª Ré, decorrendo de tudo isto prejuízos para a Autora, a Secção do Trabalho é competente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de indemnização a pagar solidariamente pelos Réus a título de lucros cessantes;
II - Relativamente ao 1.º Réu aquela competência decorre do disposto no art.º 126.º n.º 1 al. b) da LOSJ aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26-08, enquanto em relação à 2.ª Ré essa competência verifica-se por conexão, nos termos da al. n) do mesmo preceito legal.
Acórdão da Relação de Lisboa, de 10-04-2019, no processo n.º 9376/2008-4, publicado em http://www.dgsi.pt

"Atenta a causa de pedir e pedido formulado, a violação de uma cláusula de não concorrência pós-contratual, configura uma questão emergente da relação de trabalho subordinado que vigorou entre as partes, pelo que, nos termos do artigo 85.º, n.º 1, alínea b) da LOFTJ, compete aos tribunais do trabalho apreciar e decidir a presente acção".[8]
Acórdão da Relação do Porto, de 16-04-2012, no processo n.º 9376/2008-4, publicado em http://www.dgsi.pt

Assim sendo, e uma vez que a forma de processo comum é também a adequada ao pedido reconvencional[9] e o valor da causa excede o da alçada do Tribunal a quo,[10] resta decidir em conformidade, revogando o despacho recorrido e determinar que, salvaguardando a existência de qualquer outro obstáculo diverso do aqui apreciado, a Mm.ª Juiz a quo o substitua por outro que admita a reconvenção da apelante.
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III - Decisão.
Termos em que se acorda conceder provimento à apelação, revogar o despacho recorrido e determinar que, salvaguardando a existência de qualquer outro obstáculo diverso do aqui apreciado, a Mm.ª Juiz a quo o substitua por outro que admita a reconvenção da apelante ré.
Custas pelo apelado (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais).
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Lisboa, 13-07-2020
António José Alves Duarte
Maria José Costa Pinto
Manuela Bento Fialho
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[1] Art.º 652, n.º 1 do Código de Processo Civil.
[2] Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
[3] Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[4] Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[5] No mesmo sentido seguiram, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-05-2015, no processo n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, de 02-06-2016, no processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1, de 22-01-2019, no processo n.º 19/14.4T8VVD.G1.S1, de 21-03-2019, no processo n.º 713/12.4TBBRG.B.G1.S1, de 15-05-2019, no processo n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1 e de 09-10-2019, no processo n.º 2123/17.8T8LRA.C1.S1, todos publicados em http://www.dgsi.pt.
[6] Revisto, considerando o disposto pelo art.º 9.º da Lei n.º 107/2019, de 9 de Setembro e que o despacho saneador foi proferido no dia 11-02-2020.
[7] E como sabemos, é a relação jurídica (causa de pedir e pedido) tal qual configurada pela parte, supondo que existe, que releva para a apreciação da competência material, como pacificamente de há muito vem sendo considerado (neste sentido, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, 1.ª edição, Coimbra Editora, páginas 90 e seguinte e os acórdãos do Tribunal dos Conflitos, de 26-04-2006, no processo n.º 06/05 e do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-03-2019, no processo n.º 9376/2008-4, publicados em http://www.dgsi.pt); como de resto acontece com todos os demais pressupostos processuais, como refere Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1978, II volume, AAFDUL, página 172.
[8] Embora proferido à luz da LOFTJ, a situação ajusta-se ao caso sub indicio na medida em que o seu art.º 85.º, n.º 1, alínea b) é gémeo do art.º 126.º n.º 1 al. b) da LOSJ.
[9] Art.º 48.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
[10] O valor da alçada dos tribunais judiciais de 1.ª Instância é de €5.000,00 (art.º 44.º, n.º 1 da LOSJ) e o despacho saneador fixou o valor da acusa em €86.819,95.