Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2437/19.2T8LSB-C.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
REPÚDIO DA HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- A resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, consubstancia um mecanismo legal que se destina a prevenir os atos que prejudiquem a integridade da massa insolvente.
II- No caso da resolução incondicional, a que se refere o artigo 121.º do CIRE, os requisitos gerais da resolução são dispensados. Os atos aí referidos são resolúveis, independentemente de quaisquer outros requisitos, para além dos previstos nesta mesma disposição legal, não estando assim tal resolução condicionada à verificação ou concreta demonstração da prejudicialidade do ato, que o legislador presumiu iuris et de iure, e não se exigindo também o requisito da má fé do terceiro, salvo o ressalvado no n.º 2 do art.º 121.º.
III- Estando provado nos autos que o insolvente, no ano anterior à sua apresentação à insolvência, repudiou a herança aberta por óbito da sua mãe, herança composta por vários imóveis e móveis, preenchido se encontra o consagrado na al. b) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE, o que conduz à resolução daquele ato jurídico.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
Massa Insolvente de LM…, legalmente representada pela Administradora da Insolvência, intentou a presente ação de resolução de negócio em benefício da massa insolvente contra LM…, CS….., JG….., JR… e mulher HG, todos com demais sinais nos autos, pedindo que, na procedência da ação, seja declarado resolvido em benefício da massa insolvente o ato jurídico de repúdio da herança aberta por óbito de MM ….., mediante escritura pública datada de 23/02/2018, no cartório notarial da Drª …, sito na cidade de …., com fundamento na alínea b), n.º 1, do art.º 121.º do CIRE (resolução incondicional) e que, subsidiariamente e apenas no caso de improcedência do pedido formulado em 1, seja declarado resolvido em benefício da massa insolvente o ato jurídico acima melhor descrito, com fundamento no artigo 120.º do CIRE (resolução condicional); que os Réus sejam condenados nas custas dos autos, por lhes terem dado causa.
Para tanto, alegou, em síntese que a administradora de insolvência tomou conhecimento que o insolvente, por escritura pública datada de 23/02/2018, repudiara a herança aberta por óbito de sua mãe, falecida em 17/07/2009, herança essa composta por vários bens imóveis e veículos. O insolvente encontrava-se em situação de insolvência à data de celebração do ato jurídico em resolução, porquanto já não dispunha de meios financeiros ou patrimoniais suficientes para liquidar ou garantir a totalidade do passivo contraído, tal como resulta da relação de credores apresentada nos autos de insolvência.
O aludido ato de repúdio é assim prejudicial à massa insolvente, foi outorgado de má fé e deve ser declarado resolvido em benefício da massa insolvente, nos termos previstos na alínea b) do art.º 121.º do CIRE ou, mais genericamente, nos termos previstos no art.º 120.º do mesmo diploma, pois que, como é óbvio, este ato de repudio da herança teve como único fim retirar do património do Insolvente a parte que lhe cabia nos bens imóveis e móveis acima descritos que, assim, ficariam, como ficaram, inacessíveis à ação dos credores do insolvente repudiante, com óbvio prejuízo daqueles, uma vez que viram substancialmente diminuído o património do insolvente e impedidos, pelo menos em parte, de recuperar os seus créditos.
Regularmente citados, os Réus LM… e CS…. (ambos insolventes) e JG… apresentaram contestação, impugnando parcialmente os factos alegados na petição inicial, alegando as circunstâncias em que o negócio foi efetuado e os respetivos termos, argumentando que os réus nunca estiveram de má-fé na renúncia à herança aqui em crise e que não houve qualquer intuito de prejudicar a massa insolvente e credores.
Também HG… apresentou contestação nos autos, alegando tudo desconhecer, estando separada do réu JR…, não sabendo que o réu LM… se apresentara à insolvência e renunciara à herança aberta por óbito da sua sogra.
O réu JR… foi editalmente citado e não contestou, após o que foi citado o MP, nos termos do art.º 21.º do CPC, não sendo igualmente junta qualquer contestação nos autos.
Foi realizada audiência prévia e proferido despacho saneador, com seleção de temas da prova e foi realizada a audiência de julgamento.
Em julgamento foi homologada a «desistência do pedido formulado pela autora contra JR… e HM…, julgando-se assim extinto o direito que relativamente a estes dois Réus a Autora pretendia fazer valer».
Foi então proferida sentença, que julgou a ação procedente, por provada, e, em consequência, declarou resolvido, em benefício da massa insolvente, o ato de repúdio à herança aberta por óbito da mãe do insolvente, condenado os réus nas custas do processo.
Inconformado, o insolvente interpôs o presente recurso, que finalizou com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
«a) A decisão recorrida julgou erradamente a conduta do Insolvente, considerando a mesma como intencional e culposa, fundamentando a resolução em benefício da massa insolvente do ato de repúdio.
b) Ora, conforme resulta provado à saciedade nos autos, o ora Recorrente, ao repudiar à herança aberta por óbito da sua mãe apenas visava colocar termo nos conflitos familiares com o seu irmão e nunca prejudicar ninguém.
c) Situação que é corroborada pelos documentos juntos aos autos e pelas declarações prestadas em sede de audiência de julgamento.
d) Pois, em 2018, quando renunciou à herança, o ora Recorrente não cogitava como sequer possível vir a ser forçado a apresentar-se à insolvência.
e) Situação que apenas foi despoletada com a sentença proferida em 06/12/2018 a qual, no âmbito do processo 5.620/15.6 T8LSB, condenou o ora Apelante ao pagamento da quantia de 7.548,64€.
f) Ora, esse valor acrescido a todos os encargos que o Recorrente já tinha, e que vinha a cumprir, conduziu à situação de insolvência.
g) Processo que o Insolvente iniciou prontamente em fevereiro de 2019.
h) Na condução do processo de insolvência o ora Recorrente sempre agiu com lisura, foi colaborante e prestou todas as informações pedidas e todos os documentos solicitados.
i) O ora Recorrente ao repudiar à herança aberta por óbito de sua mãe não agiu com dolo ou intenção de prejudicar os seus credores.
j) E na ausência de culpa na sua ação não pode ser determinada a resolução em benefício da massa insolvente do ato de repúdio.
k) Devendo assim ser proferida decisão que determine a não resolução em benefício da massa insolvente do repúdio efetuado em fevereiro de 2018».
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi admitido o recurso interposto, e, colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, conforme decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, as questões que cumprem decidir neste recurso prendem-se em aferir se estão, ou não, verificados nos autos os pressupostos para determinar a resolução, em benefício da massa insolvente, do ato de repúdio, datado de 23/02/2018, à herança aberta por óbito da mãe do insolvente.
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III-/ Fundamentação de facto:
Na decisão da 1ª instância foram considerados os seguintes factos:
1. A Autora, massa insolvente, resultou da declaração judicial de insolvência de LM…, nos autos de insolvência n.º 2437/19.2T8LSB, que correm termos nos autos principais.
2. A atual representante da autora foi nomeada administradora da massa insolvente que resultou dos autos acima identificados.
3.O réu JG … é pai do insolvente (declarações do Insolvente).
4. E JR… e mulher HM …., respetivamente, irmão e cunhada do Insolvente.
5. Em 17/07/2009, falece MG…., mãe do insolvente.
6. Em 13/09/2009, o réu JG…, na qualidade de cabeça de casal, outorgou escritura de “Habilitação”, no cartório notarial da Dr.ª …, sito na cidade de …., na qual indicou como herdeiros de sua falecida mulher, para além dele próprio outorgante, os respetivos filhos do casal, ou seja, o insolvente e JR…, mais tendo declarado não haver quem, segundo a lei, pudesse com esta concorrer à sucessão.
7. A herança aberta pelo falecimento da mãe do insolvente era, e é, composta pelos seguintes bens imóveis:
- Prédio Urbano, composto por cada de habitação com cave, r/c com 5 divisões, e sótão amplo, sito em Carvoeiro, na freguesia …., omisso na descrição predial e inscrito na matriz urbana sob o artigo …;
- Prédio rústico, composto de cultura arvense, e amendoal/pomar, sito em…., omisso na descrição predial e inscrito na matriz rústica sob o artigo …;
- Prédio Rústico, composto de cultura arvense, sito em ….., omisso na descrição predial e inscrito na matriz rústica sob o artigo ….;
- Prédio misto, composto de vinha, onde se encontra implantada uma moradia térrea com 5 divisões assolhadas, cozinha, 4 casas de banho, 2 halls, 2 marquises, terraço e garagem, sito ….., descrito na conservatória do registo predial sob o número …., inscrito na matriz urbana sob o artigo …. e rústica sob o artigo …;
- Prédio urbano, sito na Rua Particular à Azinhaga Torre Fato, n.º …, freguesia de Carnide, concelho de Lisboa, omisso na descrição predial, inscrito na matriz urbana sob o artigo …;
- Prédio urbano, fração autónoma designada pela letra “J”, correspondente a habitação no 4.º andar, esquerdo, sito na Rua …., freguesia …., concelho de Lisboa, descrito na conservatória do registo predial sob o número …, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….;
- Prédio urbano, fração autónoma designada pela letra “J”, correspondente a armazém no 5.º piso, lado esquerdo, sito na Rua ….., freguesia…., descrito na conservatória do registo predial sob o número …, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….;
- Prédio urbano, fração autónoma designada pela letra “I”, correspondente a armazém no 5.º piso, lado direito, sito na Rua …., concelho …., descrito na conservatória do registo predial sob o número …. e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …..
8. E pelos seguintes bens móveis:
- Veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Mercedes, com a matrícula - FM;
- Veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Mercedes, com a matrícula - SG;
- Veículo automóvel, ligeiro comercial, marca Citroen, com a matrícula -EU.
9. O valor patrimonial tributário dos bens imóveis é de 582.884,29 € (quinhentos e oitenta e dois mil oitocentos e oitenta e quatro euros e vinte e nove cêntimos).
10. Por escritura pública datada de 23/02/2018, outorgada no cartório notarial da Dr.ª ……, sito na cidade de …., repudiou a herança aberta por óbito de sua mãe, MG…., falecida em 17/07/2009.
11. O insolvente apresentou-se à insolvência a 01/02/2019, na sequência de diversos créditos vencidos, e de (o insolvente tinha sido notificado e era do seu conhecimento) execução – Processo nº 5620/15.6T8LSB do Credor - JD, que obteve sentença datada de 06/12/2018.
12. O Devedor à data do aludido repúdio sabia que se encontrava em situação de incumprimento das suas obrigações e que a breve trecho deixaria de poder assumir as suas responsabilidades (Tema 2 da Prova).
13. Na petição de insolvência alegou que:
“O Requerente é divorciado, vive, por caridade e bondade, na casa do pai, com quem partilha as despesas, na morada acima indicada, desde o seu divórcio. Contudo o pai, do ora requerente não sabe (porque o requerente pretende salvaguardar o pai de preocupações) do estado precário que o mesmo se encontra.
O Requerente, em altura que não sabe precisar, ainda na constância do casamento com CS…, começou a compreender que detinha diversas dívidas, em comum com a ex-mulher. E outras só em seu nome.
O ora Requerente ficou sem trabalho. E passou vários meses a tentar encontrar uma solução, contudo e também devido à sua idade, atualmente com 44 anos, não conseguiu trabalho com facilidade.
Foi fazendo alguns trabalhos “precários”, para pagar a pensão de alimentos ao filho … e ajudar o pai nas despesas da casa.
Foi, cada vez maior, a sua incapacidade para gerir a situação em que ficou, conduzindo a sua vida para uma posição precária. Porém, o Requerente, antes de 2015 e após o divorcio, já detinha diversos processos judiciais e extrajudiciais, que tentou liquidar por acordos.
Foi liquidando o que lhe foi possível, face à situação de precariedade que já vive.
O Requerente tem uma dívida para com o Banco Comercial Português, conforme mapa de responsabilidades do Banco de Portugal, que se junta como Doc. 3, que ascende os 77.862€ (setenta e sete mil oitocentos e sessenta e dois euros), de crédito pessoal e ultrapassagem de crédito, que foi parte do crédito contraído com a ex-cônjuge.
Tem, também, o Requerente, dívida ao Banco Santander Totta, no montante de 5.193€ (cinco mil cento e noventa e três euros), de crédito pessoal e facilidade de descoberto, conforme Doc. 3 já junto.
Deve à Autoridade Tributária, por impostos, juros e encargos, o ascendente de 10.120,09€, como se pode verificar no print de ecrã da página do portal das finanças (Doc. 4).
Detém, o Requerente, um processo executivo, que decorre Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo de Execução de Loures - Juiz … sob o nº 5620/15.6T8LSB, no qual foi condenado a pagar ao exequente a quantia de 7.548,64€.
Infelizmente, e com tantos problemas, o ora Requerente, vive por caridade, na casa do pai.
Porém, paga ao pai, o que lhe é possível, de ajudas para as despesas da casa, nomeadamente água, luz, gás e outras despesas inerentes a habitação. Contribuindo em média com 100€ para as despesas e compra também o que pode de alimentação, higiene e afins, para viver.
Com as dividas que detém, e o processo judicial, há anos que não consegue ter uma vida condigna.
Vivendo, atualmente e desde Abril de 2017 com pouco mais de 500€, pagando a pensão de alimentos ao filho …., no valor de 250€, ficando com outros 250€ para sobreviver e ajudar o pai com as despesas da casa. O Requerente não tem outra solução que não se apresentar à insolvência.
E o Requerente assumiu dívidas aos seus credores, no montante de 100.723,73€».
14. Do teor da lista de créditos reclamados, que o valor ascende a 97.211.39€.
15. Também a Ré CS… que se apresentou à insolvência por dificuldades patenteadas anteriormente, e relativamente ao Réu por trabalharem para a mesma entidade patronal e estarem ligados desde à longa data pelo casamento, apesar de interrompido.
16. A Administradora de Insolvência tomou conhecimento do ato à data da elaboração do relatório após tomada de funções e nomeação em funções.
17. Não foram apreendidos quaisquer bens para a massa, nem qualquer contrapartida por conta daquele ato de repúdio, sabendo o Devedor que, com o aludido ato de repúdio um ano antes de se apresentar à insolvência, conseguia evitar o pagamento àqueles dos seus créditos através dos bens que integrariam ao cervo hereditário identificados supra.
Com interesse para a decisão não ficou provado, por falta de qualquer meio prova que o sustentasse, que:
- No processo de insolvência da R. CS…., declarada em 18/09/2019, no P. 13205/19.1 T8lsb do J3 do Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira, foi reconhecido ao Banco BCP, o mesmo crédito comum que na insolvência do R. LG… no montante de 75.737,65€, num total de 83.086,61€.
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IV-/ Do mérito do recurso:
Como resulta dos autos, por via da presente ação, e em primeira linha, a Massa Insolvente de LG…., pretendia que o ato de repúdio da herança levado a cabo pelo insolvente fosse declarado resolvido. Para fundamentar a pretendida resolução invocou o consagrado no artigo 121.º n.º 1 al. b) do CIRE (resolução incondicional).
Na sentença recorrida, que julgou procedente a ação de resolução, consignou-se que «O Insolvente apresentou-se à insolvência em 1-2-2019, tendo a sentença sido proferida nos autos principais em 18-02-2019. O ato jurídico sob resolução foi celebrado em 23-02-2019, tendo ocorrido, dentro da janela temporária dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência. Não existiu qualquer contrapartida financeira por conta deste ato, o que impediu a Administradora de Insolvência, de apreender qualquer quantia que pudesse imputar à prática daquele ato. Deste modo, ato de repúdio de herança outorgado pelo Insolvente não pode deixar de ser qualificado como um ato de natureza gratuita, à luz do disposto no art.º 121/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e como tal a resolver em benefício da massa insolvente da A, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 121 do CIRE».
No entender do recorrente, tal tese não pode vingar. E porquê?
(i) Porque sempre agiu com lisura e respeito por todos os seus credores, tendo sido compelido a repudiar a herança aberta por óbito da sua mãe em face das ações adotadas pelo seu irmão que o estavam a esgotar física e emocionalmente;
(ii) Porque sempre considerou que a herança pertencia ao seu pai, e nunca pretendeu sonegar quaisquer bens nem descapitalizar o seu património visando prejudicar os seus credores, pois que considerava, e considera, que a sua quota-parte dos bens do acervo patrimonial dos seus pais apenas passariam para a sua esfera patrimonial à morte do último, e não sabia, nem foi devidamente informado das consequências do ato de repúdio à herança aberta por óbito da sua mãe;
(iii) Porque o acervo hereditário não tem o valor exorbitante de mais de quinhentos mil euros que lhe é atribuído, o qual é manifestamente especulativo, tratam-se de bens imóveis vazios, arrendados e degradados, com baixas rendas, sendo um dele a casa de morada de família do pai do ora Recorrente que necessita das rendas para fazer face ao seu sustento.
(iv) Porque em fevereiro de 2018 o ora Recorrente não estava ainda em incumprimento, pois havia renegociado as suas dividas, nem cogitava como possível vir a ter de se apresentar à insolvência, pois sempre pensou conseguir fazer face a todas as suas obrigações financeiras e que apenas com a sentença condenatória no processo 5.620/15.6 T8LSB-A é que se viu numa situação de impossibilidade de fazer face às suas obrigações, ou seja, constatou que estava numa situação de insolvência.
Vejamos então.
A resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, consubstancia um mecanismo legal que se destina a prevenir os atos que prejudiquem a integridade da massa insolvente, sendo o ato resolutivo da competência do administrador da insolvência, que o pode levar a cabo extrajudicialmente - através de mera declaração unilateral recetícia (artigos 224.º, n.º 1, e 436.º, n.º 1, do CC), podendo tal resolução ser judicialmente impugnada pelas pessoas por ele afetadas - ou judicialmente, como nos presentes autos, com recurso à ação declarativa que visa obter aquela declaração de resolução.
Em qualquer dos casos, a resolução procura a reconstituição do património do devedor, destruindo-se os atos que lhe são prejudiciais, ainda que limitados ao período de dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência, permitindo-se, desta forma, a recuperação dos bens que dele saíram.
É, pois, indiscutível que o direito de resolução é um direito potestativo de natureza extintiva, que implica que as partes regressem à situação em que se encontrariam se não tivessem celebrado o negócio, assim se operando a extinção do vínculo contratual, sendo que, quanto aos seus efeitos, em termos gerais, o artigo 433.º do CC equipara a resolução à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com eficácia retroativa, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 434.º n.º 1 e 289.º n.º 1 do mesmo código.
Ora, no enquadramento insolvencial, o artigo 120.º, nºs. 1 a 5 do CIRE, determina que «1- Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. 2- Consideram-se prejudiciais à massa os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência. 3- Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os atos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados. 4- Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data. 5- Entende-se por má fé o conhecimento, à data do ato, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) Do carácter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; c) Do início do processo de insolvência. (…)» dispondo a alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE, que: «São resolúveis em benefício da massa insolvente os atos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos: b) Atos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com exceção dos donativos conformes aos usos sociais (…)».
Da leitura dos convocados preceitos ressalta desde logo que o n.º 3 do artigo 120.º tem a particularidade de considerar sempre prejudiciais os atos previstos pelo artigo 121.º, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados, estabelecendo assim presunção inilidível da prejudicialidade de tais atos.
Por outro lado, e como decorre do próprio texto do artigo 121.º, o mesmo elenca de forma taxativa um conjunto de atos e negócios jurídicos que afirma serem resolúveis em benefício da massa insolvente sem dependência de quaisquer outros requisitos, donde, também daqui resulta que não é necessária a má fé do terceiro.
Assim sendo, e em resumo, nos casos de resolução incondicional, previstos no citado artigo 121.º do CIRE, a prejudicialidade à massa insolvente é presumida juris et de jure (artigo 120º, nº. 3), não carecendo a resolução da demonstração da má fé do terceiro interveniente no ato objeto de resolução (artigo 120º, nº. 4).
Sobre esta matéria, a propósito concretamente da alínea b-) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., 2015, Quid Juris, pág. 506), dizem que «A resolubilidade dos atos gratuitos prevista nesta alínea funda-se na sua prejudicialidade, inerente à sua categoria de liberalidade: diminuem o património de quem os pratica e, como tal, diminuem a satisfação dos credores».
Também no acórdão do STJ de 16/01/2024, no âmbito do proc. 1932/19.8T8PDL-N.L1.S1, relatado por Ricardo Costa, e disponível na dgsi, se consignou, em sede de fundamentação, que «A resolução incondicional do art.º 121.º do CIRE assenta num benefício ampliado para os interesses dos credores nessa reconstituição patrimonial: a má fé do terceiro não é requisito, nem é necessária a demonstração da prejudicialidade para a massa da celebração de tais negócios (v. o n.º 3 do art.º 120.º do CIRE)».
Por ser assim, e revertendo aos autos, dúvidas não há que o ato de repúdio da herança aberta por óbito da mãe do insolvente, é subsumível ao consagrado na al. b-) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE, tornando lícita a pretendida resolução.
Dispensado o requisito de má fé e estabelecida a presunção inilidível de prejudicialidade, iniciando-se processo de insolvência em 01/02/2019, tendo o repúdio ocorrido no ano anterior, em 23/02/2018 (e não em 23/02/2019, como, certamente por lapso, se refere na decisão recorrida), preenchidos se encontram os requisitos para a resolução peticionada nos presentes autos.
E a argumentação deduzida em recurso pelo apelante em nada belisca o enquadramento feito, em face da factualidade dada por provada, que, de resto, não foi objeto de qualquer impugnação.
O facto de alegar que apenas repudiou a herança com vista a colocar termo nos conflitos familiares com o seu irmão e que à data daquela renúncia não cogitava sequer como possível vir a ser forçado a apresentar-se à insolvência (o que, de qualquer forma, sempre se dirá, não resulta da factualidade apurada, que, como vimos, o mesmo não impugnou à luz do consagrado no ar.º 640.º do CPC), não retira a resolubilidade do ato, pois que, como vimos, a lei determina que é resolúvel em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos, o ato de repúdio da herança ocorrido dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. É quanto basta, não se exigindo nem estando aqui em causa o dolo ou a intenção por parte do insolvente de prejudicar os seus credores.
Donde, impõe-se a confirmação do acerto da decisão recorrida.
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V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente sem prejuízo do requerido benefício de apoio judiciário.
Registe e notifique.

Lisboa, 11/03/2025
Paula Cardoso
Isabel Fonseca
Ana Rute Pereira