Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2991/2006-1
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: USO ANORMAL DO PROCESSO
DIVISÃO DE COISA COMUM
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE
Sumário: 1. Não constitui uso anormal do processo, nos termos do artº 665º do CPC, a pretensão, de, gorada que foi a tentativa de divisão, por via administrativa de prédio misto em regime de compropriedade, se pretender tal divisão, por via judicial, mediante a invocação da usucapião.
2. A usucapião pode fundamentar a divisão de prédio em regime de compropriedade, maxime se os comproprietários dividiram verbalmente o prédio e passaram a exercer a posse exclusiva sobre a parcela ou quinhão que acordaram ficar a pertencer-lhe.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

A. intentou contra B. e marido, Bb. e mulher, Bbb., Bbbb e mulher, Bbbbb e marido, Bbbbbb. e Bbbbbbb, acção declarativa com processo sumário.

Pede que se declare que é proprietário de parcela de terreno com a área de 2200m2 com confrontações que indica, integrada em prédio rústico sito no lugar de …, Mafra, que melhor identifica e, bem assim, que os réus sejam condenados a reconhecer-lhe tal direito.

Para tanto invoca que usucapiu tal parcela, pois que da mesma tem a posse titulada, de boa fé, contínua, pacífica e pública pelo menos desde 1984.

Citados apenas o réu Bbbbbbb. contestou, opondo-se à pretensão do autor.

Invocando que foram intentadas mais sete acções com os mesmo fundamentos, nas quais é deduzido pedido de reconhecimento do direito de propriedade relativo a outra parcelas do mesmo prédio mãe, diferenciando-se apenas pela qualidade das partes, sendo nelas os aqui demandados sucessivamente autores e réus, à excepção do Bbbbbbb que em todas figura como réu, foi ordenada a sua apensação aos presentes autos.

No prosseguimento do processo foi proferida decisão que julgando verificado o uso anormal do processo, declarou nulo todo o processo e absolveu os réus da instância.

Para tanto entendeu o tribunal a quo que : «não podem os autores/réus, por via das respectivas acções intentadas e de actuação concertada, pretender contornar a lei e alcançar, deste modo, fim proibido, nos moldes enunciados, simulando um litígio, um conflito de interesses inexistente.

Resulta, assim, claro, que a…causa não tem como suporte um conflito de interesses, pretendendo as partes atingir com ela uma finalidade diversa da função processual, sendo esta, conforme exposto, a composição de conflitos de interesses privados, mediante a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos».

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões, em síntese:

Presentemente cada um dos agravantes vive na casa de habitação por si construída e os lotes em que se não edificou são possuídos e cultivados por eles.

Assim desfez-se de facto, por si mesma, a compropriedade primitiva e os vários agravantes possuem cada um as suas parcelas, com exclusão de toda e qualquer outra pessoa.

Essa posse é uma posse boa para usucapir o correspondente direito de propriedade, por ser titulada, de boa fé, contínua, pacífica e pública e durar há mais de quinze anos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Sendo que o teor das conclusões define, por via de regra, o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

Uso anormal do processo por parte dos recorrentes.

A usucapião como forma de aquisição, ou não, da propriedade plena, no caso de prédio em regime de compropriedade.

4.

Os factos a considerar são os resultantes do relatório que antecede.

5.

Primeira questão.

Estatui o artº 665º do CPC que: «Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar uma acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pela partes»

A decisão ora colocada sub sursis entendeu que a conduta dos autores se enquadra no âmbito deste preceito porque eles simularam um litígio, inexistindo conflito de interesses e pretenderam contornar a lei e alcançar, deste modo, um fim proibido.

Mas, com o devido respeito, não se pode sufragar este entendimento.

Que existe um conflito de interesses e verdadeiro litígio resulta do facto de haver pelo menos um interessado, o Bbbbbbb, que se opôs à divisão por via administrativa quando se pediu o loteamento dos terrenos e, agora, se opõe à pretensão dos autores nas acções presentes e nas quais ele sempre figura como réu.

Nem se podendo dizer, bem vistas as coisas, que os autores pretendem praticar acto simulado, contornar a lei e obter um fim por ela proibido.

Não há acto simulado porque o efeito pretendido e o pedido que formulam ao tribunal (declaração de que são proprietários, por usucapião, das parcelas que possuem, integradas no prédio «mãe») corresponde ao seu verdadeiro e autêntico fito. Não se vislumbrando que com esta pretensão pretendam, subreptíciamente, conseguir outro objectivo que não identificam.

Não pretendem contornar a lei e alcançar um fim proibido por esta, na medida em que invocam um instituto jurídico (usucapião), que, em seu entender, é bastante para fundamentar o seu pedido, sendo que este (declaração da sua propriedade plena sobre as parcelas que possuem, com a consequente divisão de coisa comum), não se mostra contrário ao nosso sistema legal e aos princípios ético-jurídicos que o enformam, antes pelo contrário, a própria lei prevê, expressamente, a possibilidade de exercitar e efectivar o direito à aquisição plena e à consequente integração na respectiva esfera jurídica patrimonial de coisas e bens, o que poderá passar pela divisão de coisa comum.

Nem tal se podendo concluir que, pelo facto de eles não terem conseguido obter a divisão pela via administrativa, tal lhes está vedado pela via judicial, porque o recurso a esta representa uma fuga ou um contorno a qualquer norma jurídica. È que são vias diversas e autónomas não se condicionando ou prejudicando e que, em tese, independentemente das possíveis interpretações jurídicas que possam perspectivar-se, podem , de per si, ter a virtualidade de consecutir a sua pretensão.

Questão diversa é saber, como infra se analisará, se o fundamento invocado pelos autores é idóneo a sufragar a sua pretensão. Mas tal remete-nos, apenas, para o campo das possíveis interpretações e soluções a dar ao caso, não se podendo, mesmo que se opte pela sem razão dos impetrantes (o que, numa certa perspectiva, poderá levar ao entendimento do seu pedido, como relativamente ilegal), taxar a sua posição como visando obter uma finalidade, desde logo e à partida, imperativamente proibida por lei, ou seja, absolutamente ilegal.

6.

Segunda questão.

Como é sabido a usucapião é uma forma de constituição de direitos reais – artº 1287º e sgs do CC.

A aquisição por usucapião funda-se directamente na posse que se adquire pelo facto (corpus) e pela intenção (animus).

Assim, a extensão e o conteúdo da posse definem a extensão e o conteúdo do direito adquirido.

Por outro lado a aquisição por usucapião é uma forma de aquisição originária.

Vale isto por dizer que a extensão e o conteúdo da posse e do respectivo direito adquirido se definem e efectivam com absoluta independência em relação aos direitos que antes de essa aquisição tenham incidido sobre a coisa. Por isso se a coisa foi possuída como livre de quaisquer direitos ou encargos que sobre ela incidiam, adquirir-se-á nessas precisas condições, isto é, livre de direitos ou encargos, não interessando que estes hajam sido objecto de registo – Cfr. Ac. do STJ de 08.06.1993, dgsi.pt. p.083466.

Não obstante ser unitária a posse de toda a coisa possuída, podem adquirir-se direitos reais sobre partes ou quotas de coisas. E mesmo que alguma dessas partes não possa ser adquirida por usucapião, não impede que, por esse meio, se adquiram outras – RLJ, 105º, 208.

No caso da compropriedade «como o comproprietário, por força do seu próprio título, é possuidor em nome alheio quanto aos direitos dos restantes condóminos, não poderá adquirir o respectivo direito por usucapião sem a verificação de um comportamento idóneo à inversão do título da posse».

Porém, «ocorre essa inversão quando dois comproprietários dividem o prédio comum em duas partes iguais, como se passassem a existir dois prédios distintos, e a partir daí cada um passa a comportar-se em relação a cada uma delas como se fosse o seu exclusivo proprietário» - Ac. do STJ de 15.12.2005 dgsi.pt .05B3944.

«Se houver divisão de coisa comum sem observância da forma legal, cada consorte pode adquirir a posse da parte que lhe couber, e a divisão só se consumará após o decurso do prazo de usucapião» - Ac. do STJ de 05.07.2001, dgsi.pt, p.01A1239.

Afirmada a indivisibilidade do prédio, a mesma pode ser afastada pela demonstração da verificação dos requisitos da usucapião.

«O estado de facto criado pela divisão feita pelos comproprietários sem escritura ou auto público pode converter-se em estado de direito pelo princípio da usucapião, se cada um dos comproprietários tiver exercido posse exclusiva sobre o quinhão que ficou a pertencer-lhe na divisão e tal posse se revestir dos requisitos legais» - Ac. do STJ de 18.03.2004, dgsi.pt, p.03B3812.

Aliás, não obsta à aquisição por usucapião de parte do prédio, dividido verbalmente pelos comproprietários, o facto de a superfície ser inferior a meio há, ou seja, inferior à unidade de cultura – cfr. Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, 1979, 2º, 235.

Assim sendo verifica-se, que, in casu, nada obsta, para já, à aquisição, por usucapião, das parcelas possuídas pelos autores, desde que reunidos estejam os requisitos de tal figura.

Pois que, como emerge dos autos, tais parcelas foram individualizadas e, até, perfeitamente identificadas e autonomizadas, sendo que nalgumas das quais, inclusive, já foram edificadas vistosas moradias. E integrando-se as mesmas em zona urbana ou urbanizável, naturalmente que o seu normal destino será a transformação em prédios mistos.

Tendo, até, sido emitido alvará de loteamento do prédio onde se integram, para a sua divisão em várias parcelas, o que só não se concretizou, ao que parece, por desinteligências entre os comproprietários.

Ora nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão – artº 1412º do CC.

Sendo que, como se viu, a usucapião pode fundamentar a divisão, a tal não obstando o disposto no artº 1376, atendo o supra referido e considerando, ainda, o preceituado na al. c) do artº 1377, ambos do CC.

Contrariamente ao peticionado pelos recorrentes, os autos não fornecem, ainda, elementos bastantes para se concluir, conscientemente, pela presença dos requisitos ou elementos da usucapião, quais sejam, a posse na suas vertentes material e subjectiva e o decurso do prazo pertinente para usucapir.

O que terá de ser dilucidado na 1ª instância.

7.

Termos em que se concede provimento ao recurso e, consequentemente se revoga a decisão, devendo a mesma ser substituída por outra que ordene a legal tramitação dos autos com vista à apreciação e decisão sobre a verificação da invocada usucapião, com as legais consequências, atento o supra decidido, no caso afirmativo.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 2006.07.04