Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1276/19.5T9LSB.L3-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: DIFAMAÇÃO
INJÚRIA
DIREITO À CRÍTICA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO
LIMITE À CRÍTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: 1–A imputação da prática de pressupostos crimes quando o agente conhece a inverdade dos factos imputados, constitui a prática de um crime de injúria ou difamação, consoante se dirija ao imputado ou a terceiros.

2–Tal conduta não pode ser entendida como simples crítica à actuação dos imputados, no exercício das suas actividades profissionais.

3–Está em causa a prática de um crime de injúria ou difamação.

4–O direito de expressão ou liberdade de expressão não é um direito absoluto.

5–Os artigos 180º e 181º do Código Penal traduzem uma medida restritiva da liberdade de expressão, conferindo tutela penal ao direito do cidadão à sua integridade moral e aos seus bom nome e reputação, de acordo, aliás, com o disposto nos artigos 10º/2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 17º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

6–A crítica objectiva à actividade profissional não tem cabimento como retaliação contra um determinado procedimento judicial, relativamente à imputação de actuação que se sabe falsa, sete anos depois de os factos em que ela se fundamente terem ocorrido, sem que entre um e outro processo houvesse qualquer conexão.

(Sumário elaborado pela relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:

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I–Relatório:

Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, LH foi absolvida da prática, de crimes de difamação, injúria e calúnia, previstos e punidos nos artigos 180º, 181º, 183º do Código Penal (CP) e bem assim da prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva e calúnia, previsto e punido nos artigos 183º e 187º/CP.

RC & ASSOCIADOS – SOCIEDADE DE ADVOGADOS, R.L., assistentes nos autos, demandantes civis, foi deduzido pedido de indemnização civil contra a arguida, peticionando a sua condenação no pagamento, a cada um dos quatro primeiros, de €2.000,00 e à sociedade de €2.500,00.

Os pedidos de indemnização civil foram julgados improcedentes e a demandada absolvida dos mesmos.

Recorrem agora os assistentes da sentença proferida.

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II–Fundamentação de facto:

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:

NUIPC 1276/19.5T9LSB

1.º–O relacionamento dos denunciantes com a denunciada deve-se à circunstância de esta última ser proprietária da fração autónoma designada pela letra "D", correspondente ao rés-do-chão esquerdo, loja, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua (…).

2.º–Por sua vez o ora assistente CS foi administrador do Condomínio do supra identificado prévio no período compreendido entre 2004 e 2007.

3.º–O ora assistente DR integra a atual administração de condomínio do prédio referenciado, que exerce funções desde o ano de 2017.

4.º–A ora assistente MR intervém e relaciona-se com a denunciada, por virtude do exercício das suas funções profissionais, visto a administração do condomínio do prédio acima referenciado, face o incumprimento de pagamento das quotas devidas pela Denunciada, a ter mandatado para intentar a competente ação executiva.

5.º–Por forma a se assegurar o cumprimento das obrigações responsabilidade da condómina, foi movida a ação judicial competente, em 30 de janeiro de 2008, com vista à cobrança coerciva dos valores em dívida, a qual correu termos junto na 1.ª Secção, do 1.º Juízo, do Juízo de Execução de Lisboa, sob o n.º 2364/08.9YYLSB.

6.º–É no âmbito da supra referenciada acção que o denunciado RC se relaciona com a denunciada, porquanto o mesmo foi indicado como agente de execução nos autos supra discriminados.

7.º–O processo judicial acima elencado cessou por transação entre as partes, em 15 de setembro de 2011, a qual operou em sede de audiência de discussão e julgamento.

8.º–A Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua (…), na pessoa do seu administrador atual, acima identificado, moveu nova ação contra a denunciada, na qualidade de condómina.

9.º–Encontra-se a correr termos, junto do Juiz 4, no Juízo de Execução de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, processo executivo, com as partes e intervenientes acima referenciados, sob o n.º 7155/18.6T8LSB.

10.º–A arguida, em 12 de Outubro de 2017, intentou nos Julgados de Paz de Lisboa ação contra a Administração da Rua (…), designadamente contra o aqui acusante DR, que correu os seus termos sob o n.º 1134/2017, o qual cessou por acordo entre as partes.

11.º–Em Maio de 2008, no âmbito da acção executiva n.º 2364/08.9YYLSB, a arrendatária da ora arguida foi notificada para penhora de crédito, designadamente para proceder ao depósito das rendas a favor da execução em curso.

12.º–A aludida notificação foi emitida pelo ora assistente RC, no âmbito das suas obrigações profissionais, in casu, no âmbito do processo executivo em referência, no qual foi nomeado, enquanto agente de execução, para prover pela prática dos atos inerentes à execução em curso.

13.º–Entre Junho de 2008 e Junho de 2009, em cumprimento da referida notificação, foram depositados na conta bancária indicada, os montantes das rendas, no valor mensal de €85,64.

14.º–O montante total da quantia penhorada nos autos em reporte foi de €1.113,32, sendo esses os únicos valores recebidos por banda da ordem de penhora acima referenciados, do que a arguida tinha conhecimento.

15º.–A arguida, em 12 de Julho de 2018, dirigiu e-mail dirigido à denunciante MR, no qual expressamente referiu “(…) que o valor penhorado entregue pelo Solicitador de Execução foi de €1.113,32, no entanto, o valor depositado à guarda do mesmo e conforme comprovam os extratos de conta entre 06-05-2008 e 31-12-2009, totalizam um montante de €1.627,16, ficando um diferencial elevado e que, até ao momento foi para paradeiro incerto, sendo da inteira responsabilidade do Senhor Solicitador RC e administradores, representados por Vossa Ex.a, Dr.ª GR.”, mais referindo que “(…) é da inteira responsabilidade de sucessivas administrações o encobrimento ou outro desta verba (…)”.

16º.–A aludida menção, acima transcrita, tinha como antecedente a seguinte referência: “Considerando que Vossa Ex.a, entre os anos de 2008 e 2011, representava o condomínio e que, o Senhor Doutor RC estava na qualidade de Solicitador de Execução, Proc. n.º 2364/08.9YYLSB, prestando ambos explicações a um ex condómino e referente ao processo mencionado, solicito que confirme as declarações prestadas à altura, que confirmavam um valor de €513.84 que reverteriam a favor de Vossa Ex.a, que reclamava divida antiga contraída, por prestação de diversos serviços, pelo seu cliente, o condomínio.”

17º.–A sobredita comunicação, foi remetida para o Julgado de Paz de Lisboa, por e-mail datado de 18 de Julho de 2018.

18º.–Em 6 de Dezembro de 2018 dirigiu comunicação eletrónica à administração do condomínio, dirigido à pessoa do denunciante DR, no qual consta que: “(…) sucessivas administrações, inclusive a actual, agiram, sempre, claramente de má-fé, imputando me divida que não contraí ou duplicar valores, retiveram verbas que não declararam e não procederam a quitação de valores entregues à actual administração, utilizando os mesmos representantes, Dr.ª GR, familiar de um condómino e ex administrador, Senhor S, solicitador e agente de execução, RC.”

19º.–Em 28 de Dezembro de 2018, a ora arguida logrou juntar ao processo executivo n.º 7155/18.6T8LSD, acima melhor identificado, requerimento do qual consta: “Igualmente, não pode nem deve agora a exequente, em representação do condomínio e seus respectivos mandatários, exigirem novamente duplicação de valores, pagamento de honorários, custas de tribunal, se até ao dia de hoje nunca deram conta do valor retido pelo senhor agente de execução, Solicitador RC, cujo paradeiro do valor desconheço, sucessivos envios de contas e dividas de cariz fraudulento, que sempre levantaram dúvida da seriedade de quem tem a responsabilidade de gerir o condomínio (…)” E “Mais solicito a Vossa Exa., que nos termos do art. 707 do CPC e face às denuncias apresentadas, que comprometem seriamente o senhor Solicitador RC e no desempenho das suas competências como agente de execuções, o Douto Tribunal “Abra Vista” ao Ministério Público (…).

20.º–A arguida enviou, para o Conselho Superior de Magistratura, em 30 de Outubro de 2018, comunicação da qual consta: “ (…) [C]ujo agente de execução é o solicitador RC, que já mereceu queixa, arquivada, junto da Ordem dos Solicitadores e por, indevidamente, ter omitido em 2009, junto de um tribunal, verba entregue e cujo paradeiro foi, propositadamente, ocultado (…)” “ (…) [C]uja mandatária é a Senhora Advogada GR, também a mesma envolta em actos suspeitos e conforme provas que tenho em meu poder e um Agente de Execução que levanta séria dúvidas (…)”

21.º–E reencaminhou o supra transcrito e-mail ao cuidado da Ordem dos Solicitadores e ainda do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

22.º–Em 02 de Novembro de 2018, a arguida remeteu comunicação de semelhante teor, desta feita ao cuidado da Ordem dos Solicitadores, o qual dirigiu posteriormente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no qual se lê o seguinte: “(…) [Q]ue interpus acção civil contra a exequente no J.P.I, com audiência de julgamento já marcada e pela mesma inviabilizar a consulta das pastas do condomínio e como é meu direito como condómina, utilizando mais uma vez a mesma advogada, Senhora Doutora GR, como intermediaria, estando a mesma envolvida e em representação do condomínio, na duplicação de valores a pagar entre outros e segundo provas apresentadas, algumas delas e em desespero de causa, sujeitas à tentativa de desentranhamento por parte da Senhora Advogada e como mandataria da exequente e outros. Mais uma vez se comprova que vossa ex.a compactua com actos duvidosos, como aqueles que se desenvolveram no ano de 2009, em que não foi declarada parte de verba depositada, presumo, na conta fornecida por parte de vossa ex.a, omitindo ao juiz o seu recebimento e prolongando a divida até os dias de hoje e conforme provas que tenho em meu poder, assim como, parte da divida que me era imputada não correspondia ao que foi declarado, levantando serias duvidas de sucessivas administrações, sito em R (…) e da acção da então e actual advogada GR. Relembro a vossa ex.a, que informou na altura um familiar, que existia uma verba a meu favor e mais tarde que a mesma serviria para liquidar divida antiga de TODO o condomínio à Senhora Advogada GR, compactuando com um esquema duvidoso que perdura até os dias de hoje e a que ao seu tempo deverá ser devidamente esclarecido.”

23.º–A 16 de Janeiro de 2019, a arguida remeteu comunicação ao Juízo de Execução do Tribunal de Lisboa no qual referenciou que: “(…) o senhor solicitador RC age com o poder que lhe foi atribuído e se sente imbuído violando o código deontológico e alguns pressupostos da lei. (…)” Imputando àquele “(…) actos praticados pelo senhor agente de execução solicitador RC e por consubstanciarem práticas irregulares que levantam sérias dúvidas suscetível de investigação e ou infração disciplinar assim como retenção indevida da verba que lhe foi confiada (…)”

24.º–A ora acusada, em 22 de Janeiro de 2019 remeteu comunicação ao Gabinete do Bastonário da Ordem dos Advogados, no qual consta: “a RC & Associados os seus constituintes e o Solicitador RC que levantam serias suspeitas de algumas das suas ações no desempenho das sua competências que me obrigaram a interpor a 1ª ação civil de outras junto dos J.P.L. No entanto e neste momento a queixa dirige se ao acto praticado e explicito por parte de Vossa colega a Sr.ª Dr.ª GR e em representação do Condomínio do prédio da R. (…) em Alcântara.” “Na verdade, o que a senhora advogada pretende em representação da sua cliente, o condomínio, assim como o Solicitado, RC é tão só chegar à Reunião de Assembleia de Condóminos no dia de hoje continuando a omitir dados e a mentir aos condóminos, também eles responsáveis por toda esta e outras situações. Por omissão de todos os envolvidos continuo, ao dia de hoje, a desconhecer n.º conta bancária em que é depositado o valor de renda fruto de PENHORA ILEGAL E DUVIDOSA. Mais informo que 1ª queixa entregue foi enviada a Vossa Ex.a ,a 2ª será remetida ao C.D.O.A. e depois irei expor situação ao TJCL antes de interpor outra acção contra os envolvidos.”

25.º–Em 25 de Janeiro de 2019, em comunicação dirigida ao Bastonário da Ordem dos Solicitadores, a acusada imputou o seguinte aos aqui acusantes: “A juntar à queixa e provas que enviei a Vossa Ex.a, remeto outro e mail enviado pela senhora mandataria, Dr.ª GR, que prova as duvidosas ações por parte de advogada e agente de execução, que em tom ameaçador referem intenção de mover queixa crime, esquecendo se, todos, das provas que tenho em meu poder desde o ano de 2004 e de outras, cuja consulta das pastas não é permitida em espaço apropriado.”

26.º–A comunicação referenciada no ponto antecedente, a qual foi difundida junto da administração do condomínio e do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, resultou do e-mail que a assistente MR remeteu à denunciada, em 20 de Janeiro de 2019, no qual se lê: “(…) não obstante toda a tolerância que tem a administração do condomínio, na pessoa dos seus administradores, assim como o Sr. agente de execução Dr. RC e eu própria, porque V. Exa. continua a difamar o bom nome de todos nós, irá ser apresentada a competente queixa crime, no âmbito da qual V. Exa. terá oportunidade de provar as imputações que tem vindo reiteradamente a fazer, que não passam de uma despudora forma de se negar ao cumprimento das suas obrigações como condómina.”

27.º–A arguida remeteu comunicação à Procuradoria-Geral da República, afirmado o seguinte: “Ao cuidado da Senhora PGR realçando que o senhor Solicitador RC reteve verba indevida que lhe foi confiada como fiel depositário e segundo se prova pelos extractos de conta entre 2008/2009 restando saber se com o conhecimento de Dr.ª GR da RC & Associado e sua cliente senhores administradores de condomínio. Irei proceder a queixa e reencaminhar este e mail para a sociedades de advogados e senhores administradores de condomínio”.

28.º–Em Janeiro de 2006, no âmbito da administração do CS, em sede de assembleia de condomínios, foi apresentado o balanço relativo ao ano de 2005, onde consta a liquidação pela anterior administradora do montante de € 1.214,04 confirmando-se a regularização de situação ocorrida, facto que a acusada tem conhecimento, visto na qualidade de condómina ter sido notificada da ata redigida em sede de assembleia geral.

29º.–A arguida, em 5 de Novembro dirigiu à administração de condomínio, na pessoa do assistente DR, em e-mail em que refere: “Ex.mos Senhores AH e DR Relembro a vossas ex.as e novamente, que existe valor entregue a ambos e na presença de terceiros, que carece de recibo, entre outras situações que deverão ser, devidamente, esclarecidas em sede de audiência de julgamento e ou outro/as e que comprometem, seriamente, sucessivas administrações e a actual.”

30.º–E no requerimento referido, a arguida fez constar que: “Em Outubro de 2016 entreguei, em mão, conforme testemunha poderá comprovar aos senhores administradores, respectivamente AH, DR, um montante em valor de €450.00 e de forma a encerrar de vez a situação, apesar de saber que durante anos fui lesada. No entanto, ambos negaram mais tarde o envio de recibo e como sempre foi habitual por parte de várias administrações de condomínio e conforme comprovam as provas, tentando as mesmas em alguns momentos, duplicação de verbas com envio de suposta dívida contraída por falta de pagamento”

31.º–No dia 6 de Março de 2019, a arguida dirigiu ainda comunicação ao assistente RC no qual refere: “ (…) vossa ex,a e a Dr.ª GR agem violando a lei e o código de deontologia representando ambos um péssimo exemplo para a classe que representam (…) (sic)” “Ora pelo exposto pelo vosso passado mas também considerando o silencio da OSAE que parece estar comprometida com a queixa e provas apresentadas solicito a vossa ex.a que me indique se ainda continua na qualidade de fiel depositário de verba extorquida indevidamente ou se pelo contrário será a Dr.ª GR a beneficiaria.”

32.º–A 12 de Março de 2020 dirigiu a RC uma comunicação com o seguinte teor: “(…) com todo este processo que o envolveu como agente de execução assim como a mandatária Dr. GR e a exequente que revelaram durante todo o proc. desprezo completo por sentença proferida em sede de TJCL desrespeitando Magistrado Judicial e mais uma vez como é vosso habito retenção indevida de verba. (…) Considero lamentável que a posição tomada por vossa ex.a representando a OSAE e senhoras mandatárias GR da RC & Associados inscrita na Ordem dos Advogados seja mais uma vez para além de desrespeitar sentença de Magistrado e Tribunal mentir e segundo os email que tenho em meu poder relembrando a posição dos mesmos intervenientes entre os anos de 2008/2011 na altura retendo verba que nunca devolveram nem sequer declararam em sede de Audiência e Discussão e Julgamento – Magistrada Judicial Sr.ª Dr.ª MVN – em mais uma execução indevida movida sempre pelos mesmos de forma a tapar buracos de gestão duvidosa. (…) considero uma vergonha para qualquer Ordem profissionais que no desempenho das suas funções apresentam se aderindo a esquemas (…)”

NUIPC 1565/19.9T9LSB

33.º–A assistente RC Associados - Sociedade de Advogados, R.L., é uma sociedade de advogados

34.º–A arguida dirigiu aos serviços da Ordem dos Advogados, directamente ao Gabinete do Ilustre Bastonário, um e-mail, em 22 de Janeiro 2019, no qual consta designadamente que “(…) outras situações passadas que envolvem a RC e Associados (…) que levantam sérias suspeitas de algumas das suas acções no desempenho das suas competências que obrigaram a interpor a 1ª acção civil de outras junto dos J.P.L. (…).

35º.–A arguida dirigiu em e-mail ao Director da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa do qual conta designadamente que : “Ex.mo Senhor Director desconhecia que a faculdade de Direito dava crédito a sociedade de advogados Estágio (Advogado/a Estagiário/a – RC Associados que não reconhecem sentenças irreversíveis. É uma vergonha que a FDL instituição de grande prestígio se tenha tornado numa passadeira de gente incapaz de respeitar a Lei e de quem a administra. O ou os critério(s) de escolha quaisquer que sejam jamais poderão assentar em escolhas pessoais de grupos ou outros o experimentalismo nunca deu bom resultado porque nunca se sabe quem abre a porta Deixo a V Ex.a informação que deverá ficar no âmbito privado fazendo os mais sinceros votos que a FDL não tenha qualquer influência nesta situação. Atentamente LH”.

36º.–A assistente incorpora no seu quadro orgânico vários colaboradores que se formaram na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

37º.–A arguida reencaminhou os e-mails referidos para a assistente.

Mais se provou que:

38º–A arguida já foi condenada no âmbito do proc.39/19.2T9SRT pela prática em 12-02-2019 de um crime de injuria agravada e de um crime de difamação agravada na pena única de 300 dias de multa à taxa diária de €5,00, por sentença transitada em julgado em 27-05-2021.

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Factos não provados:

Não se provou que:

NUIPC 1276/19.5T9LSB:

1.–A arguida actuou com o intuito de causar danos à honra dos assistentes, visando ferir os mesmos na sua dignidade e de afetar aqueles quer no seu âmbito pessoal, quer na esfera profissional.

2.–A intenção da arguida foi a de ofender a honra dos acusantes, imputando-lhes, diretamente, factos atentatórios da sua honra e visando ferir a consideração pela qual os mesmos são reconhecidos.

3.–A arguida actuou de forma a causar dano à credibilidade daqueles, sendo esse o desejo subjacente às suas condutas.

4.–A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a consumação da sua conduta é proibida por lei.

NUIPC 1565/19.9T9LSB:

5.–A arguida sabia que que o teor dos emails era passível de prejudicar a reputação da assistente, visando desvalorizar a imagem e o reconhecimento da assistente junto da sua associação profissional, procurando obter a condenação da assistente em sanção disciplinar.

6.–Com a sua actuação a arguida ofendeu a credibilidade, o prestigio e a confiança que a instituição de ensino superior depositava na sociedade assistente.

7.–Actuou de forma livre e consciente, bem sabendo que a consumação da sua conduta é proibida por lei.

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III–Fundamentação da aquisição probatória:

O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:

« (…)

A arguida não compareceu em nenhuma das sessões da audiência de julgamento em que foi produzida prova, pelo que não prestou declarações.

Prestaram declarações os assistentes GR, RC (estes também na qualidade de sócios da RC e Associados – Sociedade de Advogados, R.L.), CS e D Rob. que relataram a actuação da arguida para com cada um daqueles, por via dos escritos que àqueles dirigiu directamente ou a outras entidades e que aos mesmos fazia referência e que constam dos autos, e os sentimentos por estes vivenciados por via da actuação daquela.

As declarações dos assistentes foram conjugadas com o teor da prova documental apresentada, não se transcrevendo o seu teor na medida em que como se decidiu, designadamente, no Ac. n.º 27/2007 (Proc. n.º 784/05), in D.ºR.ª n.º 39, 2.ª Série, de 23 de Fevereiro de 2007: “(…) a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética. Nem, por outro lado, a fundamentação tem de obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do tribunal. Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Constituição não impõe, na verdade, um modelo único de fundamentação, com descrição ou, ainda mais, transcrição, de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do conteúdo de cada um deles (sublinhado nosso).

E no caso sub judicie, como já referido, os factos provados decorrem da prova documental junta aos autos e que foi analisada pelo Tribunal conjuntamente com o teor das declarações dos assistentes.

No que à prova documental respeita, atendeu-se, designadamente, ao teor da caderneta predial de fls. 18 e 19, no que respeita à propriedade de fracção por parte da ora arguida. Teor da acta nº18 e 44, respectivamente fls. 21 e 22 e 24 e 25 da qual decorre a identificação dos administradores nos períodos em causa. Fls. 27 a 29 dos autos que constitui cópia da acta da audiência de julgamento relativa aos autos de oposição à execução comum do proc.2364/08.9YYLSB-A, da qual consta, designadamente, que a ora arguida como estando presente e na qual as partes, ali identificados como sendo a ora arguida e o condomínio do prédio sito na Rua .....- nº..., declararam acordar quanto ao objecto do litígio, fixando o valor total em divida até final de 2011, incluindo todas as quantias reclamadas na presente execução e as vincendas até final de 2011, no total de €1.763,32 (sublinhado nosso), declarando ainda que nesse valor já se encontra englobado os honorários do solicitador e taxa de justiça e demais encargos do processo executivo e honorários da Ilustre Advogada da exequente (sublinhado nosso). Mais declaram que o valor em divida será pago nos seguintes termos e condições: entrega pelo Senhor Agente de Execução à exequente do valor penhorado nos autos, no montante de €1.113,32 (sublinhado nosso); o remanescente no valor de €650 (sublinhado nosso) será pago em 8 prestações mensais sucessivas, com os valores ali descritos (através de transferência bancária). Bem como que a executada (a ora arguida), com o cumprimento do presente acordo, nada mais deve à exequente até final de 2011, seja a que título for.

Com base neste documento, analisado à luz das regras da experiência comum, formou o Tribunal a sua convicção de que o montante total da quantia penhorada nos autos (sublinhado nosso) – e não do valor da execução-, em reporte foi de €1.113,32 (mil cento e treze euros e trinta e dois cêntimos), sendo esses os únicos valores recebidos por banda da ordem de penhora acima referenciados, do que a arguida tinha conhecimento, na medida em que esteve presente e assim o declarou (sublinhado nosso).

Teve-se ainda em conta, designadamente, o teor de fls. 86 a 87, 91 e 102 a 104, dirigidos à Ordem dos Solicitadores, fls. 95 dirigido ao CSM, fls.99 a 100 dirigido à Ordem dos Advogados e 110 dirigido à Procuradoria Geral da Republica, bem como o teor de fls. 122 a 123 (do apenso A) no que respeita ao registo da Sociedade de Advogados, ora assistente e os escritos de fls. 66 a 67, dirigida à Faculdade de Direito de Lisboa.

A prova produzida no que respeita às declarações proferidas pela arguida nos escritos em causa nos autos, tem de ser analisada atendendo ao que em concreto foi escrito e a interpretação que às mesmas pode ser dado, no contexto em que foram proferidas. E analisando as mesmas nesse contexto, na pendência de acções judiciais, em que os ora assistentes intervieram nas suas qualidades profissionais, se concluiu no sentido de se considerar como não provados os factos ali enunciados, nos termos e pelos fundamentos que melhor se analisarão de seguida.

De facto, importa ter em conta que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) vigora na ordem jurídica portuguesa por força do artigo 8º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e assume no nosso ordenamento jurídico uma posição infra constitucional, ou seja num plano inferior ao da Constituição, mas superior ao da legislação interna. Os juízes nacionais devem considerar as referências metodológicas e interpretativas da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), enquanto instância própria de regulação convencional. Em sucessivos acórdãos incidindo sobre aplicação do artigo 10º da Convenção, o TEDH consolidou jurisprudência segundo a qual “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais das sociedades democráticas, e uma das condições primordiais do seu progresso e desenvolvimento”, devendo realçar-se o pluralismo, a tolerância e a abertura de espírito sem os quais não existe “sociedade democrática” pelo que, em consequência, a possibilidade de admitir excepções à liberdade de expressão deve ser entendida sob interpretação restritiva e deve corresponder a uma imperiosa necessidade social (AC do TRL de 14-11-2018 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt).

Assim, e face ao primado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por um lado e, por outro, à jurisprudência consolidada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a aplicação do art. 10º da Convenção, não pode o Tribunal considerar provados os factos relativos ao elementos subjetivo na medida em que o teor dos escritos em causa nos autos, subscritos pela arguida integram uma crítica à actuação dos assistentes no exercício das suas actividades profissionais e não um juízo de valor quanto à dignidade pessoal dos mesmos.

Em todos os escritos em causa nos autos, da autoria da arguida, aquela faz sempre referência à actuação profissional dos assistentes e à actuação daqueles no âmbito das questões relativas aos valores em dívida pela arguida ao condomínio de que dois dos assistentes foram administradores e à actuação do assistente, que exerce funções como solicitador de execução, no âmbito das suas funções nessa qualidade, nos processos de execução com aqueles valores relacionados e da assistente, que exerce funções como Advogada, nessa qualidade e, igualmente no âmbito daqueles processos judiciais. O mesmo se passa em relação à assistente Sociedade de Advogados no âmbito dos referidos processos judiciais.

No que respeita aos antecedentes criminais, teve-se em conta o teor do certificado do registo criminal junto aos autos. »

***

***

IV–Recurso:

Os assistentes recorreram, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:

«A.–Os assistentes não se conformam com a sentença proferida pelo Tribunal a quo (a terceira no âmbito dos presentes autos), motivo pelo qual vem interpor o presente recurso de apelação, em virtude de considerar que a sentença absolutória sofre de vício de erro notório na apreciação de prova e errada qualificação jurídica dos factos.

B.–A sentença recorrida continua a desatender, de forma flagrante, o comum e vulgar entendimento dos factos e, portanto, as regras de experiência comum, ignorando o Tribunal a quo a própria factualidade que lavrou como matéria de facto provada.

C.–Ignora o Tribunal a quo a própria factualidade que lavrou como matéria de facto provada, da qual resulta que à data da ocorrência dos factos e do propalar da decisão em causa, apenas subsiste, paralelamente aos presentes autos, em curso um processo judicial, o qual de natureza executiva – vide ponto 9.º dos factos provados -, visto os demais processos judiciais em que os intervenientes são parte ou associados (mandatária e/ou agente de execução) – todos eles elencados nos pontos 5.ª, 7.º e 10.º -, se encontrarem findos.

D.–Olvidou o Tribunal a quo que o cerne das acusações e remessas consecutivas e insistentes de comunicações quer aos recorrentes, quer a entidades terceiras, se funda no montante total da quantia penhorada no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 2364/08.9YYLSB, já findo, pelo que não se entende o enquadramento dos factos ao arrimo do direito a crítica objetiva.

E.–Consta do ponto 14.º dos factos provados que «[o] montante total da quantia penhorada nos autos em reporte foi de € 1.113,32 (mil cento e treze euros e trinta e dois cêntimos), sendo esses os únicos valores recebidos por banda da ordem de penhora acima referenciados, do que a arguida tinha conhecimento.», referindo o Tribunal a quo que formou a sua convicção pela análise da ata do acordo que deu título à execução (vide Proc. n.º 2364/08.9YYLSB).

F.–Da análise do referido documento, verifica-se que se fixou a quantia exequenda em € 1.763,32 (mil setecentos e sessenta e três euros e trinta e dois cêntimos), e que se declarou entregue à exequente a quantia de € 1.113,32 (mil cento e treze euros e trinta e dois cêntimos), sendo que ficou acordado que o remanescente de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros) seria pago em prestações até 31/5/2012.

G.–Tão somente com base neste documento autêntico não se pode anuir que o valor da execução seria os tais € 1.113,32 (mil cento e treze euros e trinta e dois cêntimos), sendo que esse, verifica-se depois, foi o valor declarado como obtido pela execução, o que não corresponde, de todo, ao afirmado na matéria dada por provada pelo Tribunal a quo.

H.–É manifesto, por um lado, que pela prova trazida aos autos que esse não era o valor da quantia exequenda e que, por outro, não percebe de onde veio a prova do referido conhecimento pela arguida de que esse foi o único valor recebido por via de penhora efetuada nos autos.

I.–É incontornável que o valor acima referido e o conhecimento da arguida são fundamentais para a solução de direito do caso vertente (isto é, a verificação dos elementos subjetivos dos crimes de injúrias, difamação e calúnia), advindo daí o promanar de acusações infundadas da parte da arguida.

J.–O facto de a arguida ter estado presente no acordo que colocou fim ao referido processo não é prova bastante para o Tribunal a quo formar a convicção conducente à absolvição da arguida, uma vez que a quantia exequenda não era essa e não estava toda paga (tanto que forma acordados novos pagamentos).

K.–Permanece, assim - pois não consta dos autos em recurso que a tenha sido desfeita - a dúvida como retira o Tribunal a quo a conclusão de que a arguida sabia que só tinha sido paga a quantia de € 1113,32 (mil cento e treze euros e trinta e dois cêntimos) à ordem da penhora, quando ela perde tempo infindo a reclamar um pressuposto pagamento em excesso.

L.–Confrontado a factualidade espelhada nos factos vertidos nos pontos 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 20.º 21.º, 22.º, 23.º, 27.º da matéria de facto provado, conclui-se pela incoerência entre o raciocínio acolhido e inserto pelo Tribunal a quo na sentença em recurso com os próprios factos naquela emanados.

M.–A Arguida tem pleno conhecimento da falsidade das acusações que dirige e perpetua contra os Recorrentes, como decorre da prova produzida, pelo que não se poderá qualificar seus atos ou condutas como uma “mera crítica” sem consequências de maior, desde logo porque, à luz das regras de experiência comum, o enquadramento e contextualização em que tais práticas operam, por força da razão, merecem uma ávida censura.

N.–O exponenciar das inverdades asseveradas em sede de queixa e acusação particular, operam à margem de qualquer intuito defensivo, cingindo-se as comunicações em causa ao arremesso de inverdades a particulares instituições, cuidadosamente escolhidas pela recorrida, circunstância a que o Tribunal a quo igualmente descurou.

O.–É igualmente censurável o destrinçar acrítico das entidades visadas pelas diversas comunicações na qual a Recorrida suscitou a suspeita de apropriação indevida de verba monetária pelos recorrentes ou colocou em causa a conduta dos mesmos, uma vez que a recorrida enviou comunicações, com teor que sabia ser falso, ao cuidado da Ordem dos Solicitadores, ordem profissional de um dos assistentes, contra o qual assombra a suspeição de apropriação, ou mesmo para a Ordem dos Advogados, ordem profissional da mandatária assistente, quanto à qual a Recorrente também insurge a suspeição acima aduzida.

P.–O difundir criterioso de expressões como «encobrimento» e referências como as de «retiveram verbas que não declararam e não procederam a quitação de valores» e «dividas de cariz fraudulento», «esquema duvidoso», denotam uma particularidade no discurso da Recorrida que não se coaduna com a mera crítica de atuação, mas se traduz na pretensão inequívoca de manchar a imagem e bom-nome daqueles sob quem recai a suspeita, que sufraga e propaga em direção dos recorrentes.

Q.–O conceber e equacionar a entrega de valores monetários aos administradores do condomínio e, conseguintemente, o declarar pela própria, ilegitimamente, que tais montantes não foram declarados, imputando a apropriação ilegítima contra os recorrentes e assombrado a sua conceção de si próprios e dos outros quanto aos mesmos, impõe, por mero senso de justiça, qualificação diversa da contida na sentença em recurso.

R.–O critério aposto e legalmente consagrado no artigo 127.º do CPP, inerente à máxima de regras de experiência comum, permitia ao Tribunal a quo apreciar o comportamento da recorrida no seu todo, o qual, contrariamente ao visado e determinado pelo Tribunal a quo, não se reveste dum cariz desculpabilizante ou justificante, mas denota a conduta de malfeitoria e comportamento doloso por parte daquele.

S.–Por referência às declarações de parte do assistente RC, é imperioso distinguir e diferenciar uma reação em face da penhora, em que se tem por habitual e comum uma reação defensiva do executado, outra coisa distinta e amplamente inatural é o sucedido no caso concreto, em que a recorrida age e incorre em práticas de acusações “como se fosse um criminoso por todo o lado”, invocando factos delirantes.

T.–Em face da máxima id quod plerumque accidit, é patente observar-se na sentença absolutória em recurso um erro notório na apreciação da prova, pois a prova trazida aos presentes autos é suficiente para se decidir em sentido contrária a sentença proferida.

***

U.–O Tribunal a quo minora o escopo do fim criminal imanente aos crimes em causa, apondo como bandeira limitativa daquele o direito à liberdade de expressão, constitucionalmente consagrado no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa e a nível convencional no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, mesmo tendo considerado a atuação da arguida como sendo INTENSA E REPETITIVA.

V.–O Tribunal a quo descura que o direito ao bom-nome merece igual consagração no artigo 26.º da Constituição, concedendo primazia sem para á rogada “liberdade de expressão”, sob a cortina do “direito de crítica objetiva”.

W.–Descurou o Tribunal a quo que a liberdade de expressão poderá ser restringida em situações em que o direito de personalidade seja verdadeiramente posto em causa e de forma significativa, conforme resulta do n.º 2 do artigo 10.º da CEDH.

X.–Negligenciou o Tribunal a quo que o direito a crítica tem necessariamente limites apertados para não colidir com a proteção da honra ou dos direitos de outrem, daí que não se devam considerar atípicos os juízos que, com reflexo na crítica objetiva, acabando por atingir a honra do visado e o agente incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor que têm subjacente o exclusivo propósito de rebaixar e humilhar.

Y.–O erro na apreciação da presente lide ultrapassa o ignorar das regras da experiência comum, residindo na inegável e incontestável errada qualificação jurídica dos factos, que o Tribunal a quo, por banda da tese perfilhada, procura recalcar na teoria da crítica objetiva, sem que os factos assentes tenham qualquer semelhança ao amago de tal doutrina.

Z.–Compulsados todos os escritos carreados aos autos, da autoria da recorrida, facilmente se conclui, dir-se-ia que de forma incontestável que as diversas e reiteradas comunicações dirigidas aos recorrentes e terceiros ocorrem numa dimensão paralela e ficcional, em que nada se relaciona com a sua conduta e/ou com o debate dos processo e sedes em que as mesmas são emanadas.

AA.–Não se está, no caso concreto, perante uma situação de mero desvio à crítica, advindo somente dos dizeres promanados e difundidos pela Recorrida a suspeição dos valores éticos pelos quais os recorrentes se regem e a consideração estes quanto a si próprios e perante terceiros.

BB.–A conduta da arguida seria atípica se a mesma não ultrapassasse o âmbito da crítica objetiva, não se dirigindo diretamente a pessoa dos assistentes (vide pontos 15.º, 16.º, 18.º a 30 dos factos provados).

CC.–O Tribunal a quo descura que o direito à honra e consideração só pode ser sacrificado, se ofendido que seja pelo exercício da liberdade de expressão, o ato ofensivo tiver sido justificado

DD.–O direito penal não pode tolerar que, por detrás do escudo do “direito de opinião e de crítica” e protegendo-se com a arma de construção frásica, se esconde ataques gratuitos e de memorização da reputação pessoal dos assistentes.

EE.–Não é juridicamente aceitável que, em nome da liberdade de expressão, de opinião e de crítica, se ofenda, injustificada e imerecidamente, a honra e a consideração de outra pessoa, sob o pretexto de que o direito de expressão constitui um dos pilares essenciais de uma sociedade democrática.

FF.–No caso em concreto, com suporte na matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, entende-se que o perpetuado pela arguida extravasa aquilo que se entende por exercício da crítica objetiva, caraterizando o próprio Tribunal a atitude difamatória da arguida como intensa e repetitiva.

GG.–A intensidade e repetição demonstram claramente o intuito difamatória e injurioso das acusações perpetuadas pela arguida, proferidas com o único propósito de rebaixar, humilhar e prejudicar os assistentes.

HH.–Para que o direito à honra e consideração seja restringido, importa que a ofensa à honra se revele como meio adequado e razoável de cumprimento da finalidade pretendida, não sendo o meio utilizado excessivo, e ferindo o minimamente possível a honra do visado.

II.–A arguida ultrapassou, em muito, a abertura da liberdade de expressão, não querendo meramente emitir uma crítica objetiva, mas tão-só emitir juízos sobre o caráter dos assistentes, com o intuito de causar danos à honra dos assistentes, visando ferir a sua dignidade e de afetar aqueles quer no seu âmbito pessoal, quer na esfera profissional.

JJ.–Numa sociedade democrática, pese embora pautada pela liberdade de expressão, quando as pessoas sentem que os seus direitos são coartados, têm um conjunto de mecanismos e instituições ao seu dispor, não podendo valer a máxima “fazer justiça com as próprias mãos”.

KK.–Se a recorrida pretendesse fazer valer um mero direito defensório teria, por força da razão, promovido o mesmo por advogado constituído e nos meios próprios e não, como fez, ao mero propagar de suspeitas sobre os recorrentes e juízos de valor sob os mesmos.

LL.–O comportamento doloso e premeditado da arguida, endereçando comunicações a um conjunto de instituições, cuja intenção foi a de ofender e descredibilizar os assistentes, quando tinha ao seu dispor um conjunto de mecanismos de que poderia lançar mão para fazer valer os seus direitos, denota que a arguida, de forma livre e consciente, bem sabendo que a consumação da sua conduta era proibida por lei, atuou com intenção de causar dano à credibilidade dos assistentes.

MM.–Com isto, a arguida ultrapassou juízos da realidade profissional dos visados para emitir juízos sobre o caráter dos assistentes.

NN.–As expressões humilhantes constantes das várias comunicações, quer endereçadas aos assistentes, quer endereçadas à várias instituições, vão muito além do direito de opinião e do legítimo exercício da liberdade de expressão, atingindo o núcleo essencial do direito à honra dos assistentes.

OO.–Com o perpetuado pela arguida é evidente que aquela não pretendeu emitir um juízo crítico sobre a atuação dos assistentes, mas sim use limitou a emitir uma opinião negativa, difamatória e desprimorosa dos assistentes.

PP.–Tratam-se, assim, de afirmações excessivas, com alcance criminal, objetivamente ofensivas da honra dos visados, feitas unicamente com o propósito de difamar e descredibilizar os assistentes.

QQ.–Os crimes de difamação, injúria e calúnia, bem como de ofensa à pessoa coletiva, supõem a imputação de factos ou formulação de juízos sobre uma pessoa, e não a formulação de juízos sobre factos, atuações ou prestações.

RR.–A imputação de suspeita aos recorrentes não por recurso a uma critica de factualidade ocorrida, nem à atuação dos mesmos, mas opera no mundo do imaginário, com utilização de formulações vãs, aptos a agredir a esfera da dignidade dos recorrentes perante terceiros.

SS.–O Tribunal a quo pecou na fundamentação quanto ao motivo por que se entende, face às concretas imputações, que elas se contêm no âmbito da pura crítica de atuação profissional, pois a imputação de apropriamento ilícito acarreta, numa perspetiva do homem comum, o descrédito pessoal, cabendo, desta forma, ao Tribunal a justificação pontual daquilo que contraria a experiência do comum dos cidadãos (o que não se verifica no caso vertente).

TT.–No caso em apreço, ainda que se pondere um hipotético direito á recorrida de exprimir a sua opinião (a)crítica, tendo em consideração os moldes em que operou, por inerência a meras suspeições, quando as bem sabia falsas – como assente na sentença em recurso -, tal prática excede o seu exercício legitimo, sendo mesmo abusivo, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.

UU.–A atuação da recorrida atingiu o núcleo essencial de qualidades morais dos recorrentes, que, como bem exponenciaram em sede de audiência de julgamento, se viram constrangidos face a terceiros e na necessidade de se justificar perante aqueles, o que lhes aportou um sentimento de vexame e de diminuição da consideração que os mesmos tinham sob si mesmo.

VV.–Por referência às funções que os recorrentes exercem, as imputações que lhe foram movidas colidem com qualidades morais dos mesmos, inerentes à sua dignidade enquanto pessoa humana, porquanto é posto a descoberto uma suspeita de apropriação de valores, que roça e vilipendia os direitos de personalidade dos mesmos, colocando o seu bom-nome, honra, honestidade e reputação sob mácula.

WW.–O Tribunal a quo descurou de forma flagrante a correta aplicação da lei ao enquadramento fáctico que lhe foi subjugado a juízo, incorrendo numa crassa e incontestável violação do exarado nos artigos 180.º, 181.º, 183.º e 187.º do CP e artigos 26.º e 37.º da Constituição da República Portuguesa, bem como do positivado no n.º 2, do artigo 10.º da CEDH.

XX.–A remessa da informação a instituição superior de renome com o qual a sociedade visada intervém e colabora, é, por força da razão e socorro ás regras da experiência comum, insofismavelmente apta a revelar-se suscetível de ofender o seu bom nome em praça pública, a qual se traduz num desprestigio e desconfiança do público-alvo e da aludida instituição quanto à credibilidade da sociedade em causa.

YY.–No respeitante à verificação dos pressupostos da prática dos crimes de difamação e injúria e do crime de ofensa a pessoa coletiva nos termos dos artigos 180.º, 181.º, 183.º e 187.º do CP, no presente caso dúvidas não poderão restar que estes se encontram preenchidos com a imputação dos factos (matéria de facto provada), a par do dolo que também se verifica.

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ZZ.–Os poderes de cognição conferidos pelo artigo 428.º do CPP, decretam que o Tribunal da Relação, se entender que um determinado recurso merece provimento, deve, em geral, para além de revogar a decisão recorrida, proferir uma nova decisão que substitua a revogada.

AAA.–A factualidade trazida aos autos e patenteada no presente recurso permite ao douto Tribunal ad quem apreciar o comportamento da arguida/recorrida.

BBB.–O douto Tribunal ad quem tem a sua disposição elementos suficientes para, ao abrigo do preceituado no artigo 428.º do CPP, dar provimento ao presente recurso, decretando, face a prova produzida nos autos, a condenação da arguida pela prática dos crimes pelos quais vem acusada, colocando, assim, fim ao arrastar de um processo que já conta com três sentenças proferidas em primeira instância.

Nestes termos e nos mais de direito que os venerandos desembargadores doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta decisão e, consequentemente, substituída por outra que determina a condenação da arguida nos termos sobreditos. ».

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Contra-alegou a arguida, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso.

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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:

«1ª- O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida nestes autos que absolveu a arguida LH da prática de crimes de difamação e injúria p. e p. pelos artigos 180º, 181º e 183º do Cód. Penal e do crime de ofensa a pessoa coletiva nos termos do artigo 183º e 187º do Cód. Penal por que veio a particularmente acusada.

2ª- Desde logo, não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova, já que, do texto da douta sentença sub judice, não resulta que se tenha apreciado de forma descabida a prova, nem que se constata uma irrealidade patente aos olhos de qualquer observador comum, oposta à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum.

3ª- De facto, o que resulta da motivação do recorrente é efetivamente a discordância quanto ao modo como o Tribunal avaliou e apreciou em concreto a prova produzida, o que, não se confunde com o vício invocado.

4ª- No que respeita à apreciação da prova pela Mmª Juiz a quo, não há qualquer violação do artigo 127º do Cód. de Processo Penal, dado que a livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/02/2019, processo n.º 147/17.4ZFLSB.L1-3, disponível em dgsi.pt).

5ª- Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

6ª- Como qualquer outro testemunho, um interrogatório não é necessariamente infalível. Está sujeito à crítica do julgador, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá de igual modo aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras.

7ª- Ora, constata-se que, a Mmª Juiz explica de forma clara e lógica as razões pelas quais deu como não provados factos.

8ª- Acresce que, não se pode olvidar que, em processo penal rege a proibição, em sede penal, do non liquet probatório consubstanciada no princípio in dubio pro reo. Tal princípio decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, constituindo uma manifestação do próprio princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da C.R.P.) e fundamenta-se no facto de a Justiça, perante a impossibilidade de uma certeza, aceitar o risco da absolvição de um culpado e nunca a condenação de um inocente (CAVALEIRO DE FERREIRA, “Curso de Processo Penal”, volume I, Editora Danúbio, p. 216).

9ª- Com efeito, resulta da apreciação da prova levada a cabo pela douta sentença que tais elementos são descritos e explicados na fundamentação da mesma, pelo que, a douta sentença apreciou a prova produzida em audiência tomando em consideração os parâmetros acima referidos, não merecendo censura.

10ª- No que respeita aos crimes de injúria e difamação imputados à arguida, salienta-se que o bem jurídico protegido naquelas incriminações é a honra, entendida como o conjunto de valores éticos de cada pessoa, tais como o carácter e a retidão, ou seja, a dignidade de cada um.

11ª- Difamar ou injuriar implica imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a retidão, ou seja a dignidade subjetiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objetiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão (Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.2.96, in CJ I, 156 e Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 25.10.2004, P. 1467/04 in dgsi.pt e Comentário Conimbrincense do Cód. Penal, p. 608 §16, Coimbra Editora, 1999).

12ª- Contudo, não é todo o facto que envergonha e perturba ou humilha que cabe na previsão de qualquer daqueles crimes contra a honra. De facto, a tutela da honra das pessoas, positivada naquelas incriminações, é um desiderato criminal que, tal como os restantes, só é desencadeado como ‘ultima ratio’, isto é, quando se verifique que foram violados bens jurídicos com inegável refração axiológica constitucional.

13ª- Com efeito, a dignidade da pessoa humana é a pedra de toque da Constituição da República Portuguesa (art.º 1.º), onde se elenca, entre as garantias individuais, o direito ao bom-nome e reputação, entendidos estes como sendo “o direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social” (G. Canotilho e V. Moreira, CRP Anotada, 3ª Ed., pág. 180).

14ª- No que se refere à incriminação do artigo 187.º do Cód. Penal, os bens jurídicos protegidos por esta norma são a confiança, o prestígio e a credibilidade das pessoas coletivas, instituições, corporações, organismos, ou serviços que exerçam autoridade pública, valores que não são, em verdade, protegidos pela incriminação das normas que prescrevem os crimes de difamação e injúria – neste sentido Figueiredo Dias, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 279.

15ª- A pessoa coletiva, independentemente da conceção de honra que se adote, têm uma imagem que é difundida para o exterior. Imagem essa da forma como se organiza, como funciona e como presta os seus serviços, sendo esse um dos elementos fundamentais que a demarca da concorrência na atualidade. O facto de lhe ser imputado um facto que atente contra a imagem que detém repercute-se, naturalmente, na confiança, credibilidade e prestígio da mesma.

16ª- No caso dos autos, a Mmª Juiz considerou não se mostrarem verificados os elementos típicos daquelas incriminações, por entender que a arguida exercia a sua liberdade de expressão.

17ª- Decorre dos princípios ínsitos nos artigos artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) – aplicável ex vi artigo 8º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 37 º da CRP que a restrição de direitos, liberdades e garantias terá de respeitar os critérios constitucionais da legalidade, necessidade (ou exigibilidade) e adequação (proporcionalidade em sentido restrito). Como vem sendo entendido, a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido.

18ª- Decorre assim do disposto no artigo 18º, n.º 2 da CRP o princípio da necessidade da tutela penal do qual resulta que, não basta a violação de bem jurídico-penal, uma tal violação terá de ser absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Decorre ainda desta norma basilar do nosso ordenamento jurídico o princípio da proibição do excesso, que impõe que o Direito Penal só possa intervir nos casos em que todos os outros meios de política social se revelem inadequados ou insuficientes.

19ª- Deste modo, ao ponderar todos estes elementos em face da prova produzida, a Mmª Juiz atuou no respeito de todos os critérios legais explanados, pelo que a douta sentença não merece censura.

Nestes termos, Vossas Excelências, melhor decidindo, farão a costumada Justiça.».

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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à contra-motivação.

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V–Questões a decidir:

Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.

As questões colocadas pelos recorrentes, assistentes, são:

- Erro notório na apreciação da prova;

- Subsunção jurídica dos factos aos crimes de difamação, injúria e calúnia, previstos e punidos nos artigos 180º, 181º, 183º, 184º e 187º do CP.

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VI–Fundamentos de direito:

1–Do erro notório na apreciação da prova:

Entendem os recorrentes que a sentença recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova relativamente aos factos considerados provados sob o ponto 14 e aos considerados não provados porque:

i-A matéria contida no ponto 14 do provado não se retira da acta da transacção lavrada em audiência de julgamento, que pôs fim à oposição à execução que correu termos por apenso ao processo executivo movido pelo condomínio contra a ora arguida, com o n.º 2364/08.9YYLSB, e não tem fundamento que se lhe adeqúe, sendo que relevante para a decisão da causa é apenas o conhecimento, pela arguida, do valor em que foi fixada a quantia exequenda, de €1.763,32;

ii- Sabendo a arguida que o valor da quantia exequenda acordada na referida transacção era de €1.763,32, (que englobava, para além da quantia inicialmente penhorada, os valores devidos por taxa de justiça e honorários a solicitador de execução) porque esteve presente na audiência e se reconheceu devedora de tais valores acordando pôr fim ao litígio mediante o seu pagamento, sabia necessariamente que o valor total devido era o transaccionado e não os €1.113,32, o que determina o seu conhecimento da falsidade das acusações que fez contra os recorrentes de apropriação da diferença, no montante de €650,00.

As questões colocadas em recurso prendem-se, pois, unicamente com uma assinalada apreciação da prova em contrário às regras de experiência comum, relativamente às duas situações acima descritas: a existência de fundamentação contrária aos factos descritos em 14 do provado e a imputação de desaparecimento do dinheiro pago através dessa execução, na parte em que excedeu os €1.113,32, ou seja, a «suspeita de que os Queixosos se apropriar(a)m, em prejuízo da Denunciada, de um montante que teria sido penhorado e nunca contabilizado», conforme consta do recurso.

Os termos em que as questões são colocadas constitui, efectivamente, fundamento para o vício de erro notório na apreciação da prova.

O erro notório na apreciação da prova é o vício que tem a ver com a aptidão da fundamentação da aquisição probatória à consideração sobre se determinados factos se encontram, ou não, provados.

Existe o referido vício quando, considerado o texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal. Este é claramente um limite ao princípio da livre apreciação da prova, na medida em que se exige uma fundamentação adequada à consideração de que determinados factos se encontra provados ou não provados.

O vício abrange as situações em se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica normal, revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados entre si, ou entre os provados e os não provados, ou traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorrecta ( ).

Este vício prende-se com os limites a que está sujeito o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º/CP na medida em que se exige uma fundamentação adequada à consideração de que determinados factos se encontra provados ou não provados.

Por força do referido princípio, salvo quando a lei dispuser de forma diferente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e livre convicção do julgador.

Regras de experiência são regras que se colhem, ao longo dos tempos, da sucessiva repetição de circunstâncias, factos e acontecimentos que se sedimentam no espírito do homem comum como juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.

Livre convicção é um meio de descoberta da verdade, através da livre apreciação, subordinada à razão e à lógica, mas isenta de prescrições formais exteriores. Não se confunde com uma afirmação infundamentada da verdade, puramente impressionista ou emocional.

O princípio da livre apreciação da prova possui uma vertente negativa - de não aprisionar o julgador a critérios formais, preestabelecidos pela lei, para formar a sua convicção - e uma vertente positiva - por força da qual a discricionariedade tem que traduzir uma valoração racional e crítica da prova, de acordo com as regras da experiência comum e dos conhecimentos científicos, por força da qual o julgador consiga «objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão» ( ) cumprindo o dever de perseguir a verdade material.

Por sua vez, o princípio da presunção de inocência conforma a regra segundo a qual, na dúvida sobre a verificação de um facto desfavorável ao agente se beneficia o imputado, considerando o facto não provado.

O preceituado no artigo 127º/CPP deve ter-se por cumprido, portanto, apenas quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando, no entanto, que o objecto da prova tanto inclui os factos probandos (prova directa) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indirecta ou indiciária).

No que concerne à definição e aos limites da aplicação das regras de experiência comum, o sumário do acórdão do STJ, de 06-10-2010, tirado no processo 936/08.JAPRT, parametriza a questão de forma resumida e facilmente apreensível. Aí se refere que:

«II–A verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais.

III–A observação e verificação do homem médio constituem o modelo referencial.

IV–Na dimensão valorativa das “regras da experiência comum” situam-se as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidade ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência de vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.

V–Os vícios da matéria de facto que integram as categorias das als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, não obstante a diversidade de elementos, revertem todas as inconsistências no domínio da prova, ou mais precisamente, no processo lógico e racional de formação da convicção sobre a prova.

VI–O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação do homem médio.

VII–A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.

VIII–O vício tem de resultar, como se salientou, do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a declarações ou a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo ou até da audiência.

IX–Para avaliar da não arbitrariedade (ou impressionismo) e da racionalidade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.

X–Relevantes neste ponto, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.

XI–A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do art. 349.º do CC. Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência: o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

XII–Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar».

XIII–A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.

XIV–A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre a base e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção.

XV–Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

XVI–A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outros.

XVII–A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.

XVIII–O julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além de toda a dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada.

XIX–Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.

XX–A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da existência dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na al. c). (…)».

***

Parametrizada a noção, forma de funcionamento e consequências do vício atenhamo-nos à situação dos autos:

A–Quanto ao erro notório no ponto 14 do provado:

Têm razão os recorrentes quanto à ausência de justificação adequada quanto ao ponto 14 do provado, ou melhor, quanto à existência de fundamentação em contrário ao conteúdo do referido ponto.

Na verdade, não há documento nem outra prova produzida e relatada nos autos do qual se possa retirar algo que comprove que o montante total da quantia penhorada tenha sido apenas de €1.113,32, ou de que esse tenha sido o único valor recebido por parte da penhora e, muito menos, que tudo isto fosse do conhecimento de quem quer que fosse e, muito menos, da arguida.

Antes, pelo contrário, o que resulta da fundamentação da aquisição probatória, com reporte para a acta da audiência acima referida, é que a quantia exequenda foi fixada em €1.763,32, por transacção judicial (expressamente aceite pela ora arguida, porque estava presente e com ela concordou) que desse montante total €1.113,32 estavam pagos e iam ser entregues ao condomínio e que o restante, ainda em falta, seria pago em prestações. Isto mesmo está dito na fundamentação da aquisição probatória: «as partes, ali identificados como sendo a ora arguida e o condomínio do prédio sito na Rua (…), declararam acordar quanto ao objecto do litígio, fixando o valor total em divida até final de 2011, incluindo todas as quantias reclamadas na presente execução e as vincendas até final de 2011, no total de €1.763,32 (…), declarando ainda que nesse valor já se encontra englobado os honorários do solicitador e taxa de justiça e demais encargos do processo executivo e honorários da Ilustre Advogada da exequente (…). Mais declaram que o valor em divida será pago nos seguintes termos e condições: entrega pelo Senhor Agente de Execução à exequente do valor penhorado nos autos, no montante de €1.113,32 (…); o remanescente no valor de €650 (…) será pago em 8 prestações mensais sucessivas, com os valores ali descritos (através de transferência bancária). Bem como que a executada (a ora arguida), com o cumprimento do presente acordo, nada mais deve à exequente até final de 2011, seja a que título for».

Esta é a fundamentação da aquisição probatória, relativa a documento que existe nos autos nos precisos termos em que é descrito, que inquina o conteúdo do ponto 14. Por ela se percebe que esse ponto do provado não corresponde à prova produzida em julgamento.

Há que considerar que a redacção do ponto é dúbia mas não pode ser confirmada em qualquer das interpretações possíveis.

Diz o ponto 14 que o «montante total da quantia penhorada nos autos em reporte foi de €1.113,32, sendo esses os únicos valores recebidos por banda da ordem de penhora acima referenciados, do que a arguida tinha conhecimento».

Ainda que o facto se quisesse reportar à quantia penhorada exclusivamente para pagamento do crédito do condomínio, o que não se diz, retirando portanto do valor acordado tudo o que foi pago para além dos €1.113,32, nada nos autos documenta o valor da quantia exequenda, excluída de honorários do solicitador, taxa de justiça, encargos do processo executivo e honorários da advogada da exequente, nem consta que tal valor tenha sido referido em audiência, por qualquer testemunha.

Ainda que se quisesse dizer, que não se diz, que tenha sido esse o único valor recebido por parte do condomínio por via dessa penhora, também nada nos autos documenta tal facto e, por fim, é claramente falso que no âmbito dessa penhora tenha sido recebido unicamente esse valor, pois que as “queixas” da arguida que deram origem a este processo se reportam precisamente ao valor que foi acordado e presuntivamente pago para além da referida quantia de €1.113,32, pagamento que ninguém contesta. O que está em causa é a imputação do desvio desse dinheiro pelo solicitador de execução, em conluio com a advogada e o condomínio.

Mais: o facto contido no ponto 28, de que em Janeiro de 2006 foi apresentado um balanço relativo ao ano de 2005 de onde consta a liquidação pela ora arguida de €1.214,04, (liquidação necessariamente da transacção de 15/9/2011 e até da propositura da acção executiva no âmbito da qual ela ocorreu, que foi em 2008) nada fornece de útil para a prova do facto contido em 14, sendo que até os valores em causa são diferentes.

Apreciando os termos da fundamentação da aquisição probatória - por manifesta contradição entre o conteúdo da acta e o facto considerado provado e não havendo mais prova produzida quanto ao mesmo – impõe-se a eliminação desse ponto do provado, passando para o não provado.

***

B–Quanto ao erro notório relativamente aos factos considerados não provados:

Está em causa nos autos uma situação em que, no âmbito de uma acção executiva, que correu termos sob o nº 2364/08.9YYLSB, destinada a obter o pagamento coercivo de dívidas ao condomínio da responsabilidade da ora arguida, foi deduzida oposição à execução.

Em 15 de setembro de 2011, em sede de audiência de discussão e julgamento da oposição, na presença da arguida, foi lavrada transação entre as partes da qual consta, repete-se, que «as partes, ali identificados (a ora arguida e o condomínio do prédio sito na Rua (…) declararam acordar (…) fixando o valor total em divida até final de 2011, incluindo todas as quantias reclamadas na presente execução e as vincendas até final de 2011, no total de €1.763,32 (…), declarando ainda que nesse valor já se encontra englobado os honorários do solicitador e taxa de justiça e demais encargos do processo executivo e honorários da Ilustre Advogada da exequente (…). Mais declaram que o valor em divida será pago nos seguintes termos e condições: entrega pelo Senhor Agente de Execução à exequente do valor penhorado nos autos, no montante de €1.113,32 (…); o remanescente no valor de €650 (…) será pago em 8 prestações mensais sucessivas, com os valores ali descritos (através de transferência bancária). Bem como que a executada (a ora arguida), com o cumprimento do presente acordo, nada mais deve à exequente até final de 2011, seja a que título for».

Não obstante, a arguida, dando-se por desconhecedora do motivo pelo qual pagou os remanescentes € 650,00, a partir de Julho de 2018, ou seja, no ano em que deu entrada novo processo executivo contra si (vide ponto 9 do provado) passou a enviar escritos a diversas pessoas e entidades, acusando parte dos ora assistentes de apropriação ilícita de valores pagos no âmbito dessa execução.

Considerados os termos do recurso verifica-se que ele se dirige apenas à questão do acusação do desvio do dinheiro pago por força dessa execução, o que determina que todas as outras imputações feitas nos escritos mencionados no provado (que existem) estejam excluídas do âmbito do conhecimento deste Tribunal. Da mesma forma, não cabe conhecer do pedido de indemnização civil formulado, porque o recurso não o abrange.

Esta limitação da questão em recurso resulta quer do teor do corpo da motivação quer das suas conclusões, afirmando os recorrente que «o cerne das acusações e remessas consecutivas e insistentes de comunicações quer aos recorrentes, quer a entidades terceiras, se funda no montante total da quantia penhorada no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 2364/08.9YYLSB» e que « É incontornável que o valor acima referido e o conhecimento da arguida são fundamentais para a solução de direito do caso vertente (isto é, a verificação dos elementos subjetivos dos crimes de injúrias, difamação e calúnia), advindo daí o promanar de acusações infundadas da parte da arguida».

Vale, no direito português, a teoria da impressão do destinatário segundo a qual a declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante (artigo 236º/1, do Código Civil).

Significa isto que apenas as imputações directamente relacionadas com o “desvio” do dinheiro ou que o destinatário possa perceber, com clareza, que se relacionam com essa imputação relevam para a apreciação do mérito do recurso.

***

No que respeita às missivas que os recorrente entendem que imputam a apropriação do valor pago na referida execução, temos a considerar que nem todas elas se reportam a tal matéria ou abrangem, na imputação que fazem, todos os assistentes.

Assim:

i-No que concerne à carta de 6 de Dezembro de 2018, enviada à administração do condomínio, na pessoa do assistente DR, administrador do prédio em funções desde 2017 em que a arguida escreveu que: “(…) sucessivas administrações, inclusive a actual, agiram, sempre, claramente de má-fé, (…) retiveram verbas que não declararam e não procederam a quitação de valores entregues à actual administração, utilizando os mesmos representantes, (…) solicitador e agente de execução, RC.” (ponto18 do provado) não se descortina que a arguida se estivesse a referir precisamente ao valor penhorado na execução em causa, porque (i) este administrador entrou em funções em momento muito posterior à extinção do processo executivo, (ii) entretanto foi intentada nova execução, contra ela, em 2018, conforme consta do ponto 9º do provado e (iii) corria uma contenda relativamente à invocada entrega de dinheiro em mão, ao referido assistente, conforme consta dos pontos 29 e 30 do provado;

ii-No que respeita à missiva enviada a 02 de Novembro de 2018, (ponto 22 do provado) que remeteu ao cuidado da Ordem dos Solicitadores e dirigiu, posteriormente, ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a arguida escreveu: “(…) [Q]ue interpus acção civil contra a exequente no J.P.I, com audiência de julgamento já marcada e pela mesma inviabilizar a consulta das pastas do condomínio e como é meu direito como condómina, utilizando mais uma vez a mesma advogada, Senhora Doutora GR, como intermediaria, estando a mesma envolvida e em representação do condomínio, na duplicação de valores a pagar entre outros e segundo provas apresentadas, algumas delas e em desespero de causa, sujeitas à tentativa de desentranhamento por parte da Senhora Advogada e como mandataria da exequente e outros. Mais uma vez se comprova que vossa ex.a compactua com actos duvidosos, como aqueles que se desenvolveram no ano de 2009, em que não foi declarada parte de verba depositada, presumo, na conta fornecida por parte de vossa ex.a, omitindo ao juiz o seu recebimento e prolongando a divida até os dias de hoje e conforme provas que tenho em meu poder, assim como, parte da divida que me era imputada não correspondia ao que foi declarado, levantando sérias dúvidas de sucessivas administrações, sito em R. (…)e da acção da então e actual advogada GR. Relembro a vossa ex.a, que informou na altura um familiar, que existia uma verba a meu favor e mais tarde que a mesma serviria para liquidar divida antiga de TODO o condomínio à Senhora Advogada GR, compactuando com um esquema duvidoso que perdura até os dias de hoje e a que ao seu tempo deverá ser devidamente esclarecido.”

A missiva referida é estranha, porque não obstante dirigida à Ordem dos Solicitadores tanto lhe imputa (aparentemente à referida Ordem) ter compactuado com actos duvidosos como parece que a certa altura se dirige a outra “vossa ex.a” relativamente a quem presume que o dinheiro em falta tenha sido depositado «na conta fornecida por parte de vossa ex.a» e «que informou na altura um familiar…».

Aparentemente a imputação de não ter sido declarada parte da verba depositada é dirigida à Ordem e, no que concerne à administração do condomínio, a frase escrita não pode ser considerada dirigida à questão do valor penhorado na execução em causa.

É certo que a carta imputa à assistente Drª. GR a omissão de recebimento de uma verba, manifestamente reportada à acção executiva em causa, o que vai ser analisado oportunamente, mas também lhe imputa outras acções, não havendo sinais de que «as sérias dúvidas» imputadas à administração abranjam a imputada apropriação. Desta carta apenas se retira, como matéria em discussão neste recurso a imputação à assistente Advogada do recebimento de uma verba, reportada à acção executiva em causa;

iii-Quanto à carta de 25 de Janeiro de 2019, de novo enviada à Ordem dos Solicitadores na pessoa do seu Bastonário, e difundida junto da administração do condomínio e do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que disse que: “A juntar à queixa e provas que enviei a Vossa Ex.a, remeto outro e mail enviado pela senhora mandataria, Dr.ª GR, que prova as duvidosas ações por parte de advogada e agente de execução, (…) esquecendo se, todos, das provas que tenho em meu poder desde o ano de 2004 e de outras.” (ponto 25 do provado), manifestamente também nada de concreto imputa aos assistentes Drª. Glória e Solicitador RC e, muito menos, o envolvimento na pressuposta apropriação dos valores pagos por conta da penhora feita no processo executivo intentado em 2008;

iv-Quanto à carta de 22 de Janeiro de 2019, remetida pela arguida ao Gabinete do Bastonário da Ordem dos Advogados, na qual escreveu que: “a RC & Associados os seus constituintes e o Solicitador RC que levantam serias suspeitas de algumas das suas ações no desempenho das sua competências que me obrigaram a interpor a 1ª ação civil de outras junto dos J.P.L. No entanto e neste momento a queixa dirige se ao acto praticado e explicito por parte de Vossa colega a Sr.ª Dr.ª GR e em representação do Condomínio do prédio da R. (…) em Alcântara.” “Na verdade, o que a senhora advogada pretende em representação da sua cliente, o condomínio, assim como o Solicitado, RC é tão só chegar à Reunião de Assembleia de Condóminos no dia de hoje continuando a omitir dados e a mentir aos condóminos, também eles responsáveis por toda esta e outras situações. Por omissão de todos os envolvidos continuo, ao dia de hoje, a desconhecer n.º conta bancária em que é depositado o valor de renda fruto de PENHORA ILEGAL E DUVIDOSA. Mais informo que 1ª queixa entregue foi enviada a Vossa Ex.a ,a 2ª será remetida ao C.D.O.A. e depois irei expor situação ao TJCL antes de interpor outra acção contra os envolvidos.”, não se encontra referência à questão do pressuposto recebimento indevido de valores por força da penhora feita no processo executivo em causa, o que leva a desconsiderar a mesma para efeitos da imputação dos crimes, atenta a delimitação da matéria resultante do recurso interposto.

A arguida reporta-se, neste caso, à acção referida em 10 do provado, na qual questionava a legalidade de um pressuposto não acesso à documentação do condomínio e ao desconhecimento da conta em que seria depositado uma penhora “ilegal e duvidosa” sendo que nessa altura já corria a acção executiva referida em 9 do provado, aliás a única pendente à data das cartas em apreço;

v-O que em iv se referiu aplica-se também quanto ao e-mail que a arguida dirigiu aos serviços da Ordem dos Advogados, directamente ao Gabinete do Ilustre Bastonário, em 22 de Janeiro 2019, no qual escreveu que “(…) outras situações passadas que envolvem a RC, GR e Associados (…) que levantam sérias suspeitas de algumas das suas acções no desempenho das suas competências que obrigaram a interpor a 1ª acção civil de outras junto dos J.P.L. (…).

vi-E aplica-se igualmente ao e-mail a que se reportam os pontos 35 a 37 do provado, no âmbito dos quais a arguida dirigindo-se primeiro ao Director da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e depois a uma assistente que o provado não identifica (ponto 37) fez constar: “Ex.mo Senhor Director desconhecia que a faculdade de Direito dava crédito a sociedade de advogados Estágio (Advogado/a Estagiário/a – RC Associados que não reconhecem sentenças irreversíveis. É uma vergonha que a FDL instituição de grande prestígio se tenha tornado numa passadeira de gente incapaz de respeitar a Lei e de quem a administra. O ou os critério(s) de escolha quaisquer que sejam jamais poderão assentar em escolhas pessoais de grupos ou outros o experimentalismo nunca deu bom resultado porque nunca se sabe quem abre a porta Deixo a V Ex.a informação que deverá ficar no âmbito privado fazendo os mais sinceros votos que a FDL não tenha qualquer influência nesta situação. Atentamente LH”.

A imputação à sociedade é genérica e absolutamente desprovida de conteúdo fáctico.

A verdadeiramente insultada é a FDL, relativamente a quem a arguida refere que se tornou numa passadeira de gente incapaz de respeitar a Lei e de quem a administra, imputação claramente ultrajante.

Desconhece-se, porque a arguida nem o refere, que relação estabelece ela entre a FDL e a sociedade de advogados ou a assistente Drª GR, sendo que a “esperança” manifestada no final da missiva é completamente desprovida de sentido.

vii-Pela carta de dia 6 de Março de 2019, dirigida ao assistente RC, na qual a arguida refere: “ (…) vossa ex, a e a dr.ª GR agem violando a lei e o código de deontologia representando ambos um péssimo exemplo para a classe que representam (…) (sic)” “Ora pelo exposto pelo vosso passado mas também considerando o silencio da OSAE que parece estar comprometida com a queixa e provas apresentadas solicito a vossa ex.a que me indique se ainda continua na qualidade de fiel depositário de verba extorquida indevidamente ou se pelo contrário será a dr.ª GR a beneficiaria.”, verifica-se que nada de concreto se imputa quanto à assistente Drª Glória, tal como referido em iv, restando a análise do conteúdo da missiva quanto ao assistentes RC;

viii-O conteúdo da carta de 21 de janeiro de 2019 (data retirada do documento junto aos autos), enviada à Procuradoria-Geral da República, em que a arguida afirmou o seguinte: “Ao cuidado da Senhora PGR realçando que o senhor Solicitador RC reteve verba indevida que lhe foi confiada como fiel depositário e segundo se prova pelos extractos de conta entre 2008/2009 restando saber se com o conhecimento de Dr.ª GR da RC & Associado e sua cliente senhores administradores de condomínio. Irei proceder a queixa e reencaminhar este e mail para a sociedades de advogados e senhores administradores de condomínio”» não imputa qualquer acção de apropriação aos assistentes Drª. GR e sociedade de advogados, restando a sua análise quanto a RC.

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No entanto, outras carta houve em que, claramente, a arguida imputou a apropriação indevida do valor em causa aos assistentes.

Tal sucedeu quando aos ora assistentes:

a)-RC nas seguintes missivas:

i-De 12 de Julho de 2018, enviada à assistente MG e remetida ao Julgado de Paz de Lisboa, por e-mail datado de 18 de Julho de 2018, em que a arguida escreveu que “(…) que o valor penhorado entregue pelo Solicitador de Execução foi de €1.113,32, no entanto, o valor depositado à guarda do mesmo e conforme comprovam os extratos de conta entre 06-05-2008 e 31-12-2009, totalizam um montante de €1.627,16, ficando um diferencial elevado e que, até ao momento foi para paradeiro incerto, sendo da inteira responsabilidade do Senhor Solicitador RC e administradores, representados por Vossa Ex.a, Dr.ª GR.”, mais referindo que “(…) é da inteira responsabilidade de sucessivas administrações o encobrimento ou outro desta verba (…)” (pontos 15 e 17 do provado);

ii-De 28 de Dezembro de 2018, enviada ao processo executivo n.º 7155/18.6T8LSD, em que a arguida escreveu que: “Igualmente, não pode nem deve agora a exequente, em representação do condomínio e seus respectivos mandatários, exigirem novamente duplicação de valores, pagamento de honorários, custas de tribunal, se até ao dia de hoje nunca deram conta do valor retido pelo senhor agente de execução, Solicitador RC, cujo paradeiro do valor desconheço, sucessivos envios de contas e dividas de cariz fraudulento, que sempre levantaram dúvida da seriedade de quem tem a responsabilidade de gerir o condomínio (…)” E “Mais solicito a Vossa Exa., que nos termos do art. 707 do CPC e face às denuncias apresentadas, que comprometem seriamente o senhor Solicitador RC e no desempenho das suas competências como agente de execuções, o Douto Tribunal “Abra Vista” ao Ministério Público (…) (ponto 19 do provado);

iii-De 30 de Outubro de 2018, enviada para o Conselho Superior de Magistratura, reencaminhada para a Ordem dos Solicitadores e o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, a arguida afirmou que: “ (…) [C]ujo agente de execução é o solicitador RC, (…) por, indevidamente, ter omitido em 2009, junto de um tribunal, verba entregue e cujo paradeiro foi, propositadamente, ocultado (…)” “(…) um Agente de Execução que levanta séria dúvidas (…)” (ponto 20 do provado);

iv-De 16 de Janeiro de 2019, enviada ao Juízo de Execução do Tribunal de Lisboa, em que a arguida escreveu que: “(…) o senhor solicitador RC age com o poder que lhe foi atribuído e se sente imbuído violando o código deontológico e alguns pressupostos da lei. (…)” Imputando àquele “(…) actos praticados pelo senhor agente de execução solicitador RC e por consubstanciarem práticas irregulares que levantam sérias dúvidas suscetível de investigação e ou infração disciplinar assim como retenção indevida da verba que lhe foi confiada (…)” (ponto 23 do provado);

v-De 21 de janeiro de 2019 (facto retirado do documento junto aos autos), enviada à Procuradoria-Geral da República, a arguida afirmou o seguinte: “Ao cuidado da Senhora PGR realçando que o senhor Solicitador RC reteve verba indevida que lhe foi confiada como fiel depositário e segundo se prova pelos extractos de conta entre 2008/2009 restando saber se com o conhecimento de Dr.ª GR da RC & Associado e sua cliente senhores administradores de condomínio. Irei proceder a queixa e reencaminhar este e mail para a sociedades de advogados e senhores administradores de condomínio” (ponto 27 do provado);

vi-De 25 de Janeiro de 2019, enviada à Ordem dos Solicitadores na pessoa do seu Bastonário, e difundida junto da administração do condomínio e do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que disse que: “A juntar à queixa e provas que enviei a Vossa Ex.a, remeto outro e mail enviado pela senhora mandataria, Dr.ª GR, que prova as duvidosas ações por parte de advogada e agente de execução, (…) esquecendo se, todos, das provas que tenho em meu poder desde o ano de 2004 e de outras.” (ponto 25 do provado);

vii-De dia 6 de Março de 2019, dirigida ao assistente RC, na qual a arguida refere: “ (…) vossa ex,a e a Dr.ª GR agem violando a lei e o código de deontologia representando ambos um péssimo exemplo para a classe que representam (…) (sic)” “Ora pelo exposto pelo vosso passado mas também considerando o silencio da OSAE que parece estar comprometida com a queixa e provas apresentadas solicito a vossa ex.a que me indique se ainda continua na qualidade de fiel depositário de verba extorquida indevidamente ou se pelo contrário será a Dr.ª GR a beneficiaria.” (ponto 31 do provado);

viii-De 12 de Março de 2020, dirigida ao assistente RC, na qual refere: “(…) com todo este processo que o envolveu como agente de execução assim como a mandatária Drª. GR e a exequente que revelaram durante todo o proc. desprezo completo por sentença proferida em sede de TJCL desrespeitando Magistrado Judicial e mais uma vez como é vosso habito retenção indevida de verba. (…) Considero lamentável que a posição tomada por vossa ex.a representando a OSAE e senhoras mandatárias GR da RC, GR & Associados inscrita na Ordem dos Advogados (…) relembrando a posição dos mesmos intervenientes entre os anos de 2008/2011 na altura retendo verba que nunca devolveram (…)” (ponto 32 do provado).

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b)-GR, a quem a arguida imputou também a apropriação ilícita de valores pagos no âmbito da supra referida execução, por cartas:

i-De 02 de Novembro de 2018, remetida ao solicitador RB, e enviada ao cuidado da Ordem dos Solicitadores, a qual dirigiu posteriormente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, na qual, referindo-se e dirigindo-se à assistente GR, refere que: “(…) Mais uma vez se comprova que vossa ex.a compactua com actos duvidosos, como aqueles que se desenvolveram no ano de 2009, em que não foi declarada parte de verba depositada, presumo, na conta fornecida por parte de vossa ex.a, omitindo ao juiz o seu recebimento e prolongando a divida até os dias de hoje (…) levantando serias duvidas de sucessivas administrações, sito em Rua ....., nº... e da acção da então e actual advogada GR (…).” (ponto 22 do provado);

ii- De 25 de Janeiro de 2019, enviada à Ordem dos Solicitadores na pessoa do seu Bastonário, e difundida junto da administração do condomínio e do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que disse que: “A juntar à queixa e provas que enviei a Vossa Ex.a, remeto outro e mail enviado pela senhora mandataria, Dr.ª GR, que prova as duvidosas ações por parte de advogada e agente de execução, (…) esquecendo se, todos, das provas que tenho em meu poder desde o ano de 2004 e de outras.” (ponto 25 do provado);

iii-De 12 de Março de 2020, dirigida ao assistente RC, na qual refere: “(…) com todo este processo que o envolveu como agente de execução assim como a mandatária Drª. GR e a exequente que revelaram durante todo o proc. desprezo completo por sentença proferida em sede de TJCL desrespeitando Magistrado Judicial e mais uma vez como é vosso habito retenção indevida de verba. (…) Considero lamentável que a posição tomada por vossa ex.a representando a OSAE e senhoras mandatárias GR da RC & Associados inscrita na Ordem dos Advogados (…) relembrando a posição dos mesmos intervenientes entre os anos de 2008/2011 na altura retendo verba que nunca devolveram (…)” . (ponto 32 do provado).

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c)-DR a quem imputou a apropriação ilícita de valores pagos no âmbito da supra referida execução por carta:

i-De 28 de Dezembro de 2018, enviada ao processo executivo n.º 7155/18.6T8LSD, da qual consta: “Igualmente, não pode nem deve agora a exequente, em representação do condomínio e seus respectivos mandatários, exigirem novamente duplicação de valores, pagamento de honorários, custas de tribunal, se até ao dia de hoje nunca deram conta do valor retido pelo senhor agente de execução, Solicitador RC, cujo paradeiro do valor desconheço, sucessivos envios de contas e dividas de cariz fraudulento, que sempre levantaram dúvida da seriedade de quem tem a responsabilidade de gerir o condomínio (…)”. (ponto 19 do provado).

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d)-À administração do condomínio, de que fazia parte o assistente DR a quem imputou a apropriação ilícita de valores pagos no âmbito da supra referida execução por carta:

i-De 12 de Julho de 2018, enviada à assistente MG e remetida ao Julgado de Paz de Lisboa, por e-mail datado de 18 de Julho de 2018, referiu que “(…) que o valor penhorado entregue pelo Solicitador de Execução foi de €1.113,32, no entanto, o valor depositado à guarda do mesmo e conforme comprovam os extratos de conta entre 06-05-2008 e 31-12-2009, totalizam um montante de €1.627,16, ficando um diferencial elevado e que, até ao momento foi para paradeiro incerto, sendo da inteira responsabilidade do Senhor Solicitador RC e administradores, representados por Vossa Ex.a, Dr.ª GR.”, mais referindo que “(…) é da inteira responsabilidade de sucessivas administrações o encobrimento ou outro desta verba (…)” (pontos 15 e 17 do provado);

ii-De 28 de Dezembro de 2018, enviada ao processo executivo n.º 7155/18.6T8LSD, em que a arguida escreveu que: “Igualmente, não pode nem deve agora a exequente, em representação do condomínio e seus respectivos mandatários, exigirem novamente duplicação de valores, pagamento de honorários, custas de tribunal, se até ao dia de hoje nunca deram conta do valor retido pelo senhor agente de execução, Solicitador RC, cujo paradeiro do valor desconheço, sucessivos envios de contas e dividas de cariz fraudulento, que sempre levantaram dúvida da seriedade de quem tem a responsabilidade de gerir o condomínio (…)” E “Mais solicito a Vossa Exa., que nos termos do art. 707 do CPC e face às denuncias apresentadas, que comprometem seriamente o senhor Solicitador RC e no desempenho das suas competências como agente de execuções, o Douto Tribunal “Abra Vista” ao Ministério Público (…)» (pontos 19 do provado);

iii-De 02 de Novembro de 2018, remetida ao solicitador RB, e enviada ao cuidado da Ordem dos Solicitadores, a qual dirigiu posteriormente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, na qual, referindo-se e dirigindo-se à assistente GR, refere que: “(…) Mais uma vez se comprova que vossa ex.a compactua com actos duvidosos, como aqueles que se desenvolveram no ano de 2009, em que não foi declarada parte de verba depositada, presumo, na conta fornecida por parte de vossa ex.a, omitindo ao juiz o seu recebimento e prolongando a divida até os dias de hoje (…) levantando serias duvidas de sucessivas administrações, sito em Rua ....., nº... e da acção da então e actual advogada GR (…).” (ponto 22 do provado).

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Quanto à sociedade de advogados RC & Associados – Sociedade de Advogados, R.L., a arguida referiu-se-lhe apenas nos termos supra analisados, não se encontrando qualquer referência desprestigiosa relacionada com a penhora e pressuposta apropriação dos valores em causa no recurso.

Não se encontrado nenhum escrito que impute à sociedade qualquer acto relativo à pressuposta apropriação de valores pagos por força da penhora em causa é improcedente o recurso quanto à alteração do não provado no que respeita à sociedade.

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Quanto a CS, verifica-se que tais acusações, ainda que quando dirigidas ao condomínio, não abarcam o período em que esse assistente foi administrador do mesmo, período esse compreendido entre 2004 e 2007. Aliás, o nome deste senhor apenas é referido no provado no ponto 5, por ter sido administrador do condomínio no período compreendido entre 2004 e 2007, e no ponto 28, por o balanço a que se faz referência (que não tem nada que ver com o período em que decorreu a execução em causa) ter sido feito no âmbito da sua administração.

O desvio do dinheiro que a arguida difundiu e que está em causa no recurso ocorreu necessariamente em momento posterior pelo que se não se vê como, objectivamente, possam as acusações feitas tê-lo abrangido.

Temos assim por improcedente o recurso quanto à matéria de facto apresentado por este assistente.

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Encontrados os termos dos escritos relevantes para a impugnação feita ao não provado há que apreciar da influência dos mesmos para a alteração do não provado.

Em crítica está o entendimento de que não se considerou provado que:

1.–A arguida actuou com o intuito de causar danos à honra dos assistentes, visando ferir os mesmos na sua dignidade e de afetar aqueles quer no seu âmbito pessoal, quer na esfera profissional.

2.–A intenção da arguida foi a de ofender a honra dos acusantes, imputando-lhes, diretamente, factos atentatórios da sua honra e visando ferir a consideração pela qual os mesmos são reconhecidos.

3.–A arguida actuou de forma a causar dano à credibilidade daqueles, sendo esse o desejo subjacente às suas condutas.

4.–A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a consumação da sua conduta é proibida por lei.

5.–A arguida sabia que que o teor dos emails era passível de prejudicar a reputação da assistente (sociedade), visando desvalorizar a imagem e o reconhecimento da assistente junto da sua associação profissional, procurando obter a condenação da assistente em sanção disciplinar.

6.–Com a sua actuação a arguida ofendeu a credibilidade, o prestigio e a confiança que a instituição de ensino superior depositava na sociedade assistente.

7.–Actuou de forma livre e consciente, bem sabendo que a consumação da sua conduta é proibida por lei.

Neste capítulo há ainda que considerar que a fundamentação da aquisição probatória exarada para a consideração dos mesmos como não provados foi de que:

«Assim, e face ao primado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por um lado e, por outro, à jurisprudência consolidada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a aplicação do art. 10º da Convenção, não pode o Tribunal considerar provados os factos relativos ao elementos subjetivo na medida em que o teor dos escritos em causa nos autos, subscritos pela arguida integram uma crítica à actuação dos assistentes no exercício das suas actividades profissionais e não um juízo de valor quanto à dignidade pessoal dos mesmos.

Em todos os escritos em causa nos autos, da autoria da arguida, aquela faz sempre referência à actuação profissional dos assistentes e à actuação daqueles no âmbito das questões relativas aos valores em dívida pela arguida ao condomínio de que dois dos assistentes foram administradores e à actuação do assistente, que exerce funções como solicitador de execução, no âmbito das suas funções nessa qualidade, nos processos de execução com aqueles valores relacionados e da assistente, que exerce funções como Advogada, nessa qualidade e, igualmente no âmbito daqueles processos judiciais. O mesmo se passa em relação à assistente Sociedade de Advogados no âmbito dos referidos processos judiciais».

Significa isto que o Tribunal recorrido entendeu que todos os escritos significavam uma crítica à actuação dos assistentes no exercício das suas actividades profissionais e não um juízo de valor quanto à dignidade pessoal e/ou profissional dos mesmos.

Disso discordam os recorrentes e este Tribunal.

Em causa está a imputação de apropriação de dinheiro, pago no âmbito de uma execução.

É incontornável a consideração de que a arguida tinha conhecimento de que o valor que disse apropriado indevidamente por parte dos assistentes foi pago em execução de uma transacção judicial, valor esse justificado em acta pelo pagamento de quantia exequenda e despesas, como acima referido.

O facto de a arguida ter estado presente no acordo que colocou fim ao referido processo é prova bastante para se formar firme convicção de que a arguida tinha pleno conhecimento da falsidade das acusações que dirigiu contra os assistente, à luz das regras de experiência comum.

Este é o ponto fundamental para a apreciação da intenção subjacente a toda a supra referida actuação, pois que dele resulta que a arguida sabia da falsidade das acusações feitas nos escritos em apreço.

Esta imputação está, portanto, longe de ser uma crítica à actuação profissional de quem quer que seja, porque teve por exclusivo e manifesto fim propalar a prática de pressupostos crimes de abuso de confiança e/ou furto, quando a arguida sabia perfeitamente que o valor que pagou era o valor devido por força daquela execução, execução essa que tinha terminado sete anos antes.

Repare-se que os escritos em que imputa a alguns assistentes a apropriação em causa surge precisamente na altura da nova execução que lhe foi movida, conforme consta do ponto 9 do provado.

Além disso verifica-se que que nenhuma das entidades a quem as missivas foram dirigidas tinham competência para reparar a pressuposta actuação dos assistentes, pelo que se conclui que nunca esteve em causa fazer valer um suposto direito a que a mesma se arrogasse.

Significa isto que a falsa imputação de apropriação, apontada aos assistentes supra identificados, foi produzida também à margem de qualquer intuito defensivo.

Pelo contrário, o que se prova é que a arguida, sabendo a execução terminada, quando se viu a braços com nova execução passou a denegrir o bom nome dos exequentes (condomínio e seu administrador), da advogada que os patrocinava e do solicitador de execução, dirigindo as comunicações em causa a particulares e instituições criteriosamente escolhidas, com as quais os visados, na sua perspectiva de leiga, se relacionavam ou poderiam vir a relacionar no exercício da sua profissão.

A única intenção viável para esta actuação era atingir a respectiva credibilidade profissional dos visados, sobretudo do solicitador de execução e da advogada, mas também, e sobretudo, a sua dignidade pessoal. Repare-se que as missivas foram dirigidas à Ordem dos Solicitadores e à Ordem dos Advogados e ao Gabinete do respectivo Bastonário, à Procuradoria Geral da República e ao Conselho Superior da Magistratura, aos Tribunais Judiciais de Coimbra e Lisboa, ao Juízo de execução de Lisboa e ao processo executivo que tinha em curso, sem qualquer relação com a dívida executada no processo de 2008.

Manifestamente, por recurso às regras de experiência comum, se apreende que a recorrida visou unicamente causar prejuízo na imagem dos visados.

Veja-se, a propósito, o que diz o Supremo Tribunal de Justiça ( ): as «regras da experiência e da vida são elementos de que o Tribunal pode lançar mão para fundar a livre convicção, nos termos do art. 127.º do CPP, enquanto fornecem critérios de probabilidade forte de acontecimento, de orientação racional, índices corrigíveis, critérios que definem conexões de referência, orientam os caminhos de investigação e oferecem probabilidades conclusivas: elas fundam factos, consequências típicas de outro, enquanto provas de primeira aparência, tendendo a firmar, directa e particularmente, o facto que se quer provar»; o «nosso sistema processual penal (…) não exclui o recurso a presunções naturais ou hominis - art. 349.º do CC -, através de factos conhecidos consente ilacionar desconhecidos, desde que haja uma relação segura entre o facto-base ou pressuposto ou próxima entre o indício e o facto atingido (…)».

Mais ( ): na «análise e interpretação (…) dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais. (…) A observação e verificação do homem médio constituem o modelo referencial»; na «dimensão valorativa das “regras da experiência comum” situam-se as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da direta e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidade ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência de vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta».

Em face do exposto, é manifesta a distorção da ordem lógica entre os factos provados e não provados, no que concerne à intenção subjacente à actuação da arguida, que urge reparar.

Assim, considera-se provado, com reporte para os factos que acima se consideraram como cabidos no âmbito do recurso interposto, excluindo pois do leque dos visados os assistentes sociedade de advogados RC & Associados e CS, que:

39.–A arguida actuou com o intuito de causar danos à honra dos assistentes MR, RC e DR, visando ferir os mesmos na sua dignidade e de afetar aqueles quer no seu âmbito pessoal, quer na esfera profissional.

40.–A intenção da arguida foi a de ofender a honra dos referidos assistentes, imputando-lhes, diretamente, factos atentatórios da sua honra e visando ferir a consideração pela qual os mesmos são reconhecidos.

41.–A arguida actuou de forma a causar dano à credibilidade daqueles, sendo esse o desejo subjacente às suas condutas.

42.–A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a consumação da sua conduta é proibida por lei.

Do rol do provado é excluído o ponto 14.

Do não provado passará a constar:

1-A arguida sabia que que o teor dos emails era passível de prejudicar a reputação dos assistente sociedade de advogados e CS, visando desvalorizar a imagem e o reconhecimento da assistente junto da sua associação profissional, procurando obter a condenação da assistente em sanção disciplinar.

2-Com a sua actuação a arguida ofendeu a credibilidade, o prestigio e a confiança que a instituição de ensino superior depositava na sociedade de advogados assistente.

3-Actuou, relativamente aos factos praticados relativos aos assistente sociedade de advogados e CS, de forma livre e consciente, bem sabendo que a consumação da sua conduta é proibida por lei.

4-O montante total da quantia penhorada nos autos em reporte foi de €1.113,32, sendo esses os únicos valores recebidos por banda da ordem de penhora acima referenciados, do que a arguida tinha conhecimento.

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2-Da subsunção jurídica dos factos aos crimes de difamação, injúria e calúnia, previstos e punidos nos artigos 180º, 181º, 183º e 184º do CP:

Fixada a factualidade pertinente apreciemos da subsunção jurídica da mesma aos crimes imputados e das suas consequências.

No que respeita à sociedade de advogados e ao assistente CS verifica-se que não há factos que constituam qualquer crime, pelo que se manterá a absolvição da arguida, o que implica a desnecessidade de considerações acerca do crime previsto e punido pelo artigo 187º/CP.

Quanto aos factos referidos de a) a d) os recorrentes subsumem-nos aos crimes previstos nos artigos 180º, 181º, 183º e 184º do CP.

Os artigos 180º e 181º definem, respectivamente, os elementos típicos dos crimes de difamação e injúria.

Pratica um crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo (artigo 180º/CP) sendo equiparada à difamação verbal a feita por escrito, conforme o artigo 182° do mesmo diploma.

Pratica um crime de injúria quem dirigindo-se a uma pessoa, lhe imputar, mesmo sob a forma suspeita, um facto, ou lhe dirigir palavras ofensivas da sua honra ou consideração, (artigo 181º/CP) sendo equiparada à injúria verbal a feita por escrito, conforme o mesmo artigo 182° do CP..

Ora, apreciados os factos relatados em B - a) a d) encontram-se factos que integram o crime de injúria, contra a pessoa de RC, nos seguintes termos:

«vi-de dia 6 de Março de 2019, dirigida ao assistente RC, na qual a arguida refere: “ (…) vossa ex,a e a Dr.ª GR agem violando a lei e o código de deontologia representando ambos um péssimo exemplo para a classe que representam (…) (sic)” “Ora pelo exposto pelo vosso passado mas também considerando o silencio da OSAE que parece estar comprometida com a queixa e provas apresentadas solicito a vossa ex.a que me indique se ainda continua na qualidade de fiel depositário de verba extorquida indevidamente ou se pelo contrário será a dr.ª GR a beneficiaria.” (ponto 31 do provado);

vii-de 12 de Março de 2020, dirigida ao assistente RC, na qual refere: “(…) com todo este processo que o envolveu como agente de execução assim como a mandatária Drª. GR e a exequente que revelaram durante todo o proc. desprezo completo por sentença proferida em sede de TJCL desrespeitando Magistrado Judicial e mais uma vez como é vosso habito retenção indevida de verba. (…) Considero lamentável que a posição tomada por vossa ex.a representando a OSAE e senhoras mandatárias GR da RC, GR & Associados inscrita na Ordem dos Advogados (…) relembrando a posição dos mesmos intervenientes entre os anos de 2008/2011 na altura retendo verba que nunca devolveram (…)” (ponto 32 do provado)».

Todos os demais escritos mencionados em B - a) a d) foram dirigidos a pessoas que não os visados pela imputação, pelo que se subsumem apenas ao crime de difamação.

Foi entendimento da sentença recorrida que:

«Assim, e face ao primado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por um lado e, por outro, à jurisprudência consolidada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a aplicação do art. 10º da Convenção, não pode o Tribunal considerar provados os factos relativos ao elementos subjetivo na medida em que o teor dos escritos em causa nos autos, subscritos pela arguida integram uma crítica à actuação dos assistentes no exercício das suas actividades profissionais e não um juízo de valor quanto à dignidade pessoal dos mesmos. (…).

O art. 26° nº1 da Constituição da República Portuguesa consagra o direito ao bom nome e reputação entre os vários direitos de personalidade, que representa um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação), cujo conteúdo é constituído basicamente pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, ou seja, a pretensão de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade, independentemente do reconhecimento real ou merecido de que uma pessoa goza ou deve gozar (vd Augusto Silva Dias, ob. e loc. cít.) - citado por Ac do TRE de 2301-2018 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador António João Latas in www.dgsLpt).

O artigo 37º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe "Liberdade de expressão e informação", dispõe nos seguintes ternos:

1.–Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

2.–O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

3.–As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.

4.–A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos".

A liberdade de expressão e opinião está igualmente consagrada no artigo 190 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (publicada no DR. I série, de 9 de Março de 1978), no artigo 190 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, assinado em Nova York em 7 de Outubro de 1977 (aprovado, para ratificação, pela Lei na 29178, de 12 de Junho) e no artigo 10º 0 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada para ratificação pela Lei n° 65/78, de 13 de Outubro (em vigor na ordem jurídica portuguesa desde 09 de Novembro de 1978, data do depósito do instrumento de ratificação junto do Secretário-Geral do Conselho da Europa).

Mas o direito de expressão não pode ser encarado como um direito absoluto, que prevalece em qualquer circunstância, podendo por vezes sofrer restrições que se justificam pela necessidade de se conjugar ou compatibilizar com outros direitos ou bens com expressão no texto constitucional. Segundo os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 81/84 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 26, de 31 de Janeiro de 1985, p. 1025) e n.º 384/03 (inwww.tribunalconstitucional.pt). "a liberdade de expressão [ ... ] não é um direito absoluto nem ilimitado" e, não obstante o artigo 37°, n. ° 2, da Constituição proibir toda a forma de censura, "é licito reprimir os abusos da liberdade de expressão".

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem pressupõe a tutela do direito à honra no n.º 2 do seu artigo 10.º, ao estabelecer os limites da liberdade de expressão e informação. Estabelece esta norma que: "O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e da prevenção do crime. A protecção da saúde e da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e imparcialidade do Poder Judicial".

O artigo 180º n.º 1 do Código Penal traduz uma medida restritiva da liberdade de expressão, conferindo tutela penal ao direito do cidadão à sua integridade moral e aos seus bom nome e reputação, ao estabelecer que comete o crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo".

Difamar e injuriar mais não é basicamente que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o individuo tem no meio social, isto é, bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião publica (Ac. do TRL de 6-2-96, CJ, I, 156, citado in Ac. do TRG de 25-10-2004 relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Nazaré Saraiva, consultado in www.dgsipt).

A honra é entendida no ordenamento jurídico-penal português, como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. Como refere Faria Costa, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo I, para aferir se as palavras proferidas são ou não ofensivas da honra e consideração de uma pessoa, há que atender ao contexto situacional, pese embora, existam palavras cujo sentido primeiro e último seja tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração e que exprimem e carregam consigo um indesmentível desvalor, objectivamente ofensivo.

O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se reporta prevalentemente ao juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa.

Quanto ao elemento subjectivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei.

Quanto ao elemento objectivo, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o comportamento do agente pode traduzir-se na imputação de um facto ou na formulação de um juízo.

Se é certo que o nosso Código Penal adopta uma concepção normativo-pessoal de honra em que esta é vista como bem jurídico complexo que abrange quer o valor interior ou subjectivo de cada indivíduo, quer a sua reputação ou consideração exterior, não se discute igualmente o carácter fragmentário ou de última ratio do direito penal, sendo ainda verdade para o nosso ordenamento jurídico-penal que nos arts 180º e 181º do C. Penal tutela a dignidade e o bom nome do visado e não a sua especial susceptibilidade e melindre (Ac. do TRE de 23-01-2018 relato pelo Exmo. Sr Desembargador António João Latas, in www.dgsi.pt cuja fundamentação se seguirá muito de perto por se aderir aos seus fundamentos).

Assim, impõe-se levar devidamente em conta logo ao nível do preenchimento do tipo de ilícito que o direito penal tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito, e que nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético, ou que envergonha e perturba ou humilha, cabe na previsão das normas dos arts 180º e 181º - sublinhado nosso (Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37).

Também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão do art. 180.º do Código Penal. A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais.

Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos. É o que decorre do art. 37.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa, quando preceitua que «todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações.». (AC do TRP de 26-3-2014, relatado pela Exma. Sra Eduarda Lobo, consultado in www.dgsi.pt).

Como se decidiu no Ac. do TRC de 02-03-2005, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt "devem-se considerar atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou desportista, etc., nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.

E no Ac do STJ de 07-03-2007 relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Oliveira Mendes, in www.dsgi.pt decidiu-se que no conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito. Neste contexto, temos vindo a defender, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração critica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura criticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.

Costa Andrade in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora - 1996, considera que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da "verdade" das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de critica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.

E Costa Andrade defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da critica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração critica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a criticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.

Parte da jurisprudência dos nossos Tribunais superiores vem sufragando tal orientação, sendo que, de acordo com a mesma, entendemos que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em ofensa à honra, se pode e deve ter por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar.

Como tal, o preenchimento dos tipos legais de difamação e injúria apenas se verifica quando as palavras, devam considerar-se lesivas da honra ou consideração do visado, nas circunstâncias concretas em que foram proferidas, ou seja, as palavras referidas ou dirigidas a outra pessoa só serão típicas se, sendo depreciativas, puder concluir-se que nas circunstâncias concretas em que foram dirigidas ao visado as mesmas violaram o direito de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, ou seja a pretensão de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade (AC TRE de 23-01-2018 supra citado).

Ainda neste aresto se conclui que o art. 180º do C. Penal deve ser interpretado de modo a que o direito à liberdade expressão consagrado genericamente no art. 37º da CRP não seja subvalorizado e sacrificado mesmo quando a conduta potencialmente lesiva apenas pode violar a honra do visado em pequena medida ou de modo insignificante, nomeadamente quando do contexto respectivo sobressai o exercício do direito de critica objectiva apontado ao desempenho funcional, profissional, (…) como se verifica no caso presente, tal como não pode ser lido como permitindo o sacrifício do direito à honra em nome da liberdade de expressão, por mais desproporcional e lesiva que se apresente a violação daquela» (sublinhados nossos).

Concordamos inteiramente com os considerandos feitos quer acerca dos tipos de crime quer da compatibilização que se impõe fazer, em cada caso, entre o exercício da liberdade de expressão e o direito à honra e consideração pessoais e sociais, tutelado pelos tipos em análise, conferindo realce àqueles que foram sublinhados.

Discordamos, no entanto, veementemente, de que se possa considerar que os factos em causa, no contexto em que foram praticados, se limitaram à crítica objectiva da actuação profissional dos ofendidos, pela fundamentação acima referida.

A honra consiste naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que pela generalidade das pessoas, são consideradas essenciais para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si próprio, pelo que é e pelo que vale.

Por sua vez, a consideração traduz-se no juízo que formam terceiros no sentido de considerar alguém um bom elemento social, isto é, o conceito que os outros têm sobre a personalidade moral de alguém, a estima ou respeito que lhe tributam ( ).

Para o preenchimento da tipicidade não releva a gravidade da ofensa – no sentido de que não é mister que o facto imputado seja ilícito ou criminoso - mas apenas que exista uma efectiva e objectiva ofensa, isto é, que não se trate de uma conduta inócua ou de uma mera impertinência.

Logo, a primeira apreciação a fazer é se o facto imputado tem aptidão para lançar o descrédito e a suspeita sobre a dignidade pessoal da vítima, num critério de normalidade, ou seja, se o facto é socialmente considerada como estando em contradição com as valorações da ordem jurídica vigente naquela determinada sociedade.

Consequentemente, há que apelar ao significado social da afirmação proferida, tendo em conta todo o conjunto de circunstâncias internas e externas à situação (v.g. grau de cultura dos intervenientes, a sua posição social, as valorações do meio, etc.).

Os crimes em causa podem definir-se, assim, como a atribuição a alguém de factos ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si mesmo uma reprovação ético- social diga de protecção penal, isto é, que sejam ofensivos da reputação do visado numa intensidade tal que viole o princípio da dignidade humana, com consagração constitucional - vide artigos 26° e 37° da CRP.

De acordo com Leal-Henriques e Simas Santos ( ) «os processos executivos do crime de difamação podem ser vários: imputação de um facto ofensivo, ainda que meramente suspeito; formulação de um juízo de desvalor; reprodução de uma imputação ou de um juízo».

Pelos motivos acima explicados reiteramos que aquilo que, mediante critérios de experiência comum, se revela da actuação da arguida, é a intenção única de denegrir a auto-imagem e a imagem social dos ofendidos, e nada mais, sendo que a imputação feita consiste precisamente na prática do crimes (de abuso de confiança e/ou furto) o que configura a forma mais intensa de ofensa à honra e consideração alheias.

A crítica objectiva à actividade profissional não tem cabimento como retaliação contra um determinado procedimento judicial, relativamente à imputação de actuação que se sabe falsa, sete anos depois de os factos em que ela se fundamente terem ocorrido, sem que entre um e outro processo houvesse qualquer conexão.

Ainda que se queira buscar qualquer relação entre o processo em curso e a anterior execução a que se reportam os escritos, pelo simples facto de os exequentes, advogada e solicitador de execução, serem os mesmos, o âmbito da crítica objectiva só teria, quanto muito, cabimento, como forma de defesa no âmbito do dito processo ou enquanto dirigida directamente aos visados, relacionando de forma clara a questão em causa com o novo processo em curso. Jamais se podem considerar abrangidas por tal crítica as imputações feitas pela arguida às diversas entidades a quem as dirigiu, para além do próprio visado RC, precisamente por serem absolutamente inaptas para a produção de quaisquer efeitos quanto ao processo em curso.

A necessidade de compatibilização entre um e outro dos direitos em confronto (livre expressão e direito à honra) resulta bem patente, aliás, quer do artigo 10º/2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, quer dos artigos 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do 17º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, acima mencionados.

É que a redacção do artigo do 10º/2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos não se restringe à parte transcrita na sentença recorrida. Aí se refere, na íntegra, que «2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial. (sublinhado nosso) ».

Por sua vez o artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem declara que «Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.» E o artigo 17º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos determina que «1- Ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de atentados ilegais à sua honra e à sua reputação.

2- Toda e qualquer pessoa tem direito à protecção da lei contra tais intervenções ou tais atentados».

Como referem os recorrentes, o «erro na apreciação da presente lide reside, por banda da tese perfilhada pelo Tribunal a quo, procurando recalcar a teoria da crítica objetiva, no facto de que perante a matéria dada como provada, o perpetuado pela arguida não ter qualquer semelhança ao âmago de tal doutrina»; «Se (à) teoria da crítica objetiva está sempre subjacente um resquício de nexo de causalidade é patente que, no caso concreto, nos termos e modos como foram propalados os dizeres ofensivos, o mesmo inexiste»; a conduta «promove e orienta o sentido do emanar para ofensa direta e concreta do foro pessoal dos recorrentes, imputando-lhes um ato de apropriação indevida de valores, apto a fender e fragmentar a conceção que os próprios, enquanto cidadão de bom-nome e com uma projeção valorativa da sua pessoa, detém sobre si e a por em crise o factor incólume inerente à reputação dos mesmos».

Nos termos do artigo 30º/1 do CP a determinação do número de crimes efectivamente cometidos afere-se a partir de um critério teleológico referido ao bem jurídico baseado, portanto, na consideração dos tipos legais violados. Estando em causa a prática de crimes contra a honra pessoal, o número de crimes afere-se pela sua natureza e pela quantidade de pessoas que viram a sua honra e consideração diminuídas, designadamente, no caso, relativamente a actos integradores do crime de difamação.

Verifica-se, portanto, que com a sua actuação a arguida praticou um crime de injúrias, na pessoa do ofendido RC com o envio das missivas contidas nos pontos 31 e 32 do provado, pelas quais o acusa de extorsão da verba em causa no recurso, ao referir, respectivamente « solicito a vossa ex.a que me indique se ainda continua na qualidade de fiel depositário de verba extorquida indevidamente» e «mais uma vez como é vosso habito retenção indevida de verba».

Mais praticou um crime de difamação contra:

- RC, nos pontos 15 e 17, 19, 20, 23 e 27 do provado;

- GR, nos pontos 22, 25 e 32 do provado;

- DR, no ponto 19 do provado;

- Administração do condomínio, nos pontos 15 e 17, 19 e 22 do provado.

Pelo facto de os juízos de desvalor em que consistem os crimes de que foram vítimas os assistentes Maria da GR e RC, cujas categorias profissionais são, respetivamente, de advogada, agente de execução e solicitador, respeitarem a imputado acto relativo ao exercício das suas funções há lugar à agravação das penas, consagrada no artigo 184.º do CP.

Significa isto que a arguida incorreu na prática de dois crimes de injúria, previstos pelos artigos 181º e 184º, do CP, puníveis com a pena de quatro meses e meio de prisão ou multa até 180 dias; de três crimes de difamação, previstos pelo artigo 180º do CP, punível, um deles na forma simples, com prisão até seis meses ou multa até 240 dias e os outros dois, de difamação agravada, puníveis ainda pelo artigo 184º/CP, com pena até nove meses ou multa até 360 dias.

***

Nos termos do artigo 40º/CP, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (nº 1), sendo que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (nº 2).

A partir da revisão do CP de 1995 a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena. É este, aliás, o critério da lei fundamental – artigo 18º/2, da CRP ( ).

A função essencial da pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

Nos termos do artigo 70º/CP o julgador deve dar preferência à aplicação da pena não privativa de liberdade sempre que ela se mostre adequada à realização dos fins de prevenção acima aludidos.

No caso em apreço verifica-se que a arguida tem uma condenação pela prática de um crime de injúria agravada e outro de difamação agravada por sentença posterior aos factos, se bem que os factos em causa nesse processo tenham ocorrido em 2019. Significa isto que era primária à data da sua prática.

Não obstante a intensidade persecutória ofensiva da honra e dignidade dos visados e verificar-se que a arguida neste momento já apresenta uma condenação por factos semelhantes, afigura-se-nos que os ditos fins de prevenção se bastarão com a aplicação de pena de multa.

Definamos, então, a medida da pena, que se subordina aos critérios contidos no artigo 71º/CP, relativos à execução do facto (alíneas a), b), c) e e), parte final), à personalidade do agente (alíneas a) e f) e à conduta anterior e posterior ao facto (alínea e).

Na consideração da forma de determinação da pena concreta, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º/CP «têm a função de fornecer ao Juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» ( ).

A função essencial da pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos, incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos. Mas num sistema constitucional em que a dignidade da pessoa humana é pré-condição da legitimação da República, como forma de domínio político, e o direito à liberdade integra o núcleo dos direitos fundamentais, ( ), o seu limite máximo fixar-se-á, necessariamente, com respeito da salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que, social e normativamente, se imponham.

A sensação de justiça, essencial para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só a pena correspondente à sua a culpabilidade.

Ao definir a pena, o julgador deve procurar entender a personalidade do arguido, para, adequadamente, determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, ou seja, a medida correspondente à culpa manifestada.

Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é “merecido” não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral ( ).

Limitando-se, a pena, pela medida da culpabilidade, mas visando fins de prevenção especial e geral, ela fixar-se-á abaixo do limite máximo se assim for exigido pelas necessidades especiais e, a essa diminuição, não se opuserem as exigências mínimas preventivas gerais ( ). O seu limite mínimo é, portanto, dado pelo quantum da pena que, em concreto, ainda realize eficazmente a protecção dos bens jurídicos visados. Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para dar resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Ou seja, a culpa estabelece o máximo inultrapassável de pena concreta que é possível aplicar.

A moldura de prevenção, por sua vez, é definida entre o limiar mínimo - abaixo do qual não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a sua função tutelar de bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias - e a medida máxima e óptima de tutela dos bens jurídicos e das mencionadas expectativas.

Dentro desses limites, relevam as exigências de prevenção especial de socialização, visando atingir a desmotivação adequada para evitar a recidiva por parte do agente, bem como a sua ressocialização ( ).

Dito de outro modo: a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo ( ).

Na sub-moldura da prevenção geral pesa a importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença colectiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva. Prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada ( ).

Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.

Resumindo: porque na fixação da pena concreta se cuida da protecção de bens jurídicos, ela deva ser determinada - dentro de uma moldura de culpa, limitada por necessidades de prevenção geral positiva - em função das exigências de prevenção especial ou de socialização do agente.

Figueiredo Dias esquematiza assim a teoria penal defendida:

«1)-Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2)-A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3)- Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4)-Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa» ( ).

No caso não ocorrem circunstâncias modificativas da pena abstracta, quais sejam a reincidência, atenuação especial ou a dispensa de pena.

A gradação das medidas da penas, far-se-á, portanto, com reporte unicamente para as necessidades de prevenção, agravantes e atenuantes gerais e dentro da factualidade apurada na instância recorrida.

A nível de necessidades de prevenção geral, há que considerar que as exigências quanto aos crimes contra a honra são grandes, na medida em que configuram episódios de nefastas consequências, psicologicamente traumáticas, quer quanto à autoestima pessoal, quer quanto à estima social, dependendo a gravidade dessas consequências quer das características do crime quer, ainda, da sensibilidade da vítima e circunstâncias da sua inserção pessoal e social, condicionantes que o agressor não domina, aceitando, consequentemente, a provocação de qualquer grau de danosidade.

Os crimes foram cometidos com dolo directo, imputando às vitimas factos de índole criminal, portanto particularmente melindrosos e ofensivos dos bens jurídicos tutelados, de forma reiterada e abrangendo os crimes de difamação uma multiplicidade de destinatários, escolhidos precisamente segundo um critério de exponenciação do dano provocado.

Esta escolha dos destinatários denota premeditação mediante critérios de especial perversidade quanto às lesões na honra dos ofendidos.

O julgamento desenrolou-se em oito sessões. A arguida apenas compareceu a uma sessão em que não houve produção de prova e, à conta de incompatibilização com a defensora, a mesma renunciou ao patrocínio tendo sido marcada nova data para a continuação da audiência.

Esta atitude de ausência reiterada demonstra distanciação dos danos causados, ausência de vontade de reparação do mal do crime e indiferença pelo resultado do mesmo.

Contemporaneamente a estes factos a arguida cometeu outros dois crimes, da mesma natureza, pelos quais já foi condenada.

Ponderada toda a factualidade relativa ao grau de ilicitude dos factos, modo de execução, a gravidade das suas consequências, o grau de violação de deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os motivos que os determinaram, a conduta anterior ao facto e posterior aos factos e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada nos factos, entende-se adequada a aplicação das seguintes penas:

- uma pena de 160 dias de multa relativa ao crime de injúria agravada praticado na pessoa de RC;

- uma pena de 60 dias de multa relativa ao crime de injúria agravada praticado na pessoa de DR;

- uma pena de 300 dias de multa relativa ao crime de difamação agravada praticado na pessoa de RC;

- uma pena de 300 dias de multa relativa ao crime de difamação agravada praticado na pessoa de RC;

- uma pena de 120 dias de multa relativa ao crime de difamação simples praticado na pessoa de DR.

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Sendo a arguida condenada por diversos crimes impõe-se a fixação de uma pena única, considerando a globalidade dos factos e da personalidade manifestada (artigo 77º/CP).

Todos os factos se relacionam com o mal dizer relativamente aos ofendidos, tendo natureza semelhante. A personalidade manifestada é de pessoa provida de espirito de vingança desmedida, na medida em que prolongou a actividade durante mais de um ano.

As penas fixadas somam 940 dias de multa, o que implica que a pena se situe entre a mínima aplicada, de 60 dias e a soma de todas elas. Sendo a pena mais elevada superior ao limite máximo legal, impõe-se a sua redução a esse limite de 360 dias (artigo 47º/CP).

As multas serão fixadas à taxa de 10 euros por dia, considerando o dado disponível relativamente à situação económica da arguida, de senhoria da fracção em causa nos autos, sita em Lisboa, conforme constante da queixa deduzida.

Por força do disposto no artigo 49º/CP a esta multa unitária, caso não seja cumprida, corresponde a pena de duzentos e quarenta dias de prisão.

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VII–Decisão:

Acorda-se, pois, concedendo parcial provimento ao recurso, em:

1-Alterar o rol provado e o rol do não provado nos termos acima contidos;

2-Manter a absolvição da arguida LH quanto aos crimes imputados relativos às pessoas dos assistentes CS e RC & Associados – Sociedade de Advogados, R.L.;

3-Condenar a arguida LH nos seguintes termos:

a)- numa pena de cento e sessenta dias de multa relativa ao crime de injúria agravada praticado na pessoa de RC;

b)- numa pena de sessenta dias de multa, relativa ao crime de injúria agravada, praticado na pessoa de DR;

c)- numa pena de trezentos dias de multa, relativa ao crime de difamação agravada, praticado na pessoa de RC;

d)- numa pena de trezentos dias de multa, relativa ao crime de difamação agravada, praticado na pessoa de RC;

f)- numa pena de cento e vinte dias de multa, relativa ao crime de difamação simples, praticado na pessoa de DR.

4-Em cúmulo jurídico vai a arguida condenada na pena única de trezentos e sessenta dia de multa à taxa diária de dez euros, a que cabe, em alternativa, a pena de duzentos e quarenta dias de prisão.

5-Mais se condena a arguida no pagamento de custas quanto aos recursos interpostos pelos assistentes MR, RC e DR, fixando a taxa de justiça em quatro unidades de conta por cada recurso.

6-Condenam-se os assistentes CS e RC & Associados – Sociedade de Advogados, R.L., em custas quanto aos recursos por si apresentado, fixando a taxa de justiça em três unidades de conta por cada um deles.

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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.


Lisboa, 08/11/2023

Maria da Graça dos Santos Silva
Rui Miguel Teixeira

Alfredo Costa