Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2788/11.4TJLSB.L1-7
Relator: CRISTINA SILVA MAXIMIANO
Descritores: INVENTÁRIO
CONSTITUIÇÃO DE ADVOGADO
FALTA DE ADVOGADO
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
DESERÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: No inventário, não existindo questões de direito suscitadas e pendentes de decisão, não é obrigatória a constituição de advogado (excepto para a interposição de recurso). Logo, nesse circunstancialismo concreto, a falta de constituição de advogado pela Requerente do processo de inventário não determina a extinção da instância por deserção, nos termos dos artigos 277º, alínea c) e 281º, nº 1 do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


Josefina….., em representação da sua filha, A [ Inês…..], intentou, em 30/10/2001, o presente processo de inventário por óbito de Rui ….., falecido a 5 de Julho de 2000, em que são herdeiras as filhas do de cujus, A (agora, maior de idade) e B, exercendo esta última as funções de cabeça de casal.

Foi apresentada relação de bens, a qual foi alvo de diversas reclamações da interessada A, e de sucessivas decisões a apreciar as mesmas. 

Em 20 de Junho de 2018, a interessada A atingiu a maioridade (despacho de 06/06/2018, Referência Citius nº 377154863), tendo sido notificada para constituir mandatário (despachos de 09/07/2018 e de 01/10/2018, Referências Citius nºs 378167040 e 379632776, respectivamente).

Por requerimento de 04/10/2018 (Referência Citius nº 20429356), foi junta aos autos procuração forense, pela qual a Requerente A constituiu Ilustre Mandatário (Dr. Romeu…..) para a representar neste processo.

Desde aquela data, a interessada A apresentou diversos requerimentos, onde foram suscitadas questões de direito, que foram sendo apreciadas judicialmente.

Em 24/02/2020 (Referência Citius nº 394640155), foi proferido despacho que designou data para conferência de interessados, com o seguinte teor (na parte para aqui relevante):
“Cremos, salvo o devido respeito que os presentes autos de inventário laboram num erro de fundo.
O processo de inventário é um processo simples e visa obter a partilha e não discutir responsabilidades pela conservação dos bens pois para tal a ação própria é a de prestação de contas.
Donde, o que existe no processo de inventário é a apresentação da relação de bens, a sua discussão em caso de reclamação, e aprovação do passivo, e por fim a partilha, onde as partes em conferência de interessados devem decidir o modo de partilha, seja ele por meio de venda, quinhões, licitação ou sorteio, cfr. art. 1353º do CPC (regime aplicável à data).
Ora, a relação de bens está definida, o passivo inexiste, e os bens avaliados. Resta unicamente determinar o modo de partilha compondo os quinhões.
Em rigor apenas deveria haver uma única conferencia de interessados mas dado que a composição dos quinhões não foi feita determina-se nova realização, unicamente para composição dos quinhões para o dia 11 de Março de 2020, pelas 9h.”.

Notificada deste despacho, a interessada A apresentou, em 06/03/2020, requerimento subscrito pelo seu Ilustre Mandatário, Sr. Dr. Romeu….., com o seguinte teor (Referência Citius nº 25759387):
1. Por parte de V. Ex.ª foi proferido despacho recentemente, que designa conferência de interessados para o próximo dia 11/03/20.
2. Porém, no processo sucessório em curso há questões prévias que importam serem resolvidas como actos preparatórios essenciais da própria conferência de interessados.
3. Por fundamento legal à luz dos artigos ora invocados neste requerimento, a designação da Conferencia de Interessados marcada para o dia 11/03/20, será inútil tendo a considerar os assuntos a submeter à Conferencia de Interessados, devem constar expressamente da respectiva convocatório artigo 1352º do Código de Processo Civil de 1961.
4. É que as consequências da falta de comparência são graves e é necessário levar ao conhecimento dos interessados o objecto da conferência, não só para decidir muitas vezes da sua comparência, como, ainda para lhes permitirem documentarem-se sobre os problemas que vão ser discutidos.
5.Vejamos, cautelosamente, os vários problemas que a requerente não obteve despacho;
6. As verbas de expressão monetária, 1 a 24, na qual emergiram na herança após morte do de cujus, na qual algumas utilizadas pela cabeça de casal, constituíram-na em devedora à herança, com sua própria responsabilidade.
7.Há que separarmos a verba nº 6 e explicarmos a problemática que daí decorre, verba que foi integrada na verba 22.
8. A verba 22 que referia o valor de 6.046,99€, a verba 6 ao ser transitada para a verba 22, apresenta o valor de 9.975,96€, depois corrigida para o valor de 55.375,47€.
9. Dos cálculos avaliados, conclui-se que na verba 22, há um diferencial no valor de 38.027,13€ (44.074,12€ - 6.046,99€).
Acresce que,
Na verba 6, há um diferencial no valor de 45.399,51€ (55.375,47€ - 9.975,96€).
11. Uma manifesta sonegação, que implica a perda dos valores sonegados e os respectivos juros comerciais, a favor da co-herdeira, ora requerente, que importa considerar e resolver essa sonegação.
12. Situações estas que se inserem no contexto jurídico da mora.
13. Quanto ao usufruto da ilha do Farol/Culatra, verba nº 185, formalmente inserido na herança, mas ainda não tratado materialmente de acordo com os requisitos legais aplicáveis, designadamente a inserção do nome da requerente no alvará.
14. A questão de saber se os direitos de uma universalidade jurídica emergente do contrato-promessa celebrado com a sociedade Afer, SA., pertencem à herança e, em que termos é outra problemática que importa previamente resolver.
15. Que importa resolver, relacionando-a claramente numa verba própria.
16. Ainda constitui uma questão prévia a indicação exata do passivo no contrato-promessa anteriormente referido.
17. Nesse âmbito importa verificar e resolver a problemática de mais uma sonegação que aí também se verifica.
18. Importa também, permitir que a requerente possa examinar os bens móveis que integram o recheio da casa do Restelo, verbas nº 37 à 183V.
19.Devem ser resolvidas não só as questões de facto, mas também aquelas que merecem uma investigação específica com vista ao apuramento da responsabilidade dos autores.
20. As questões que não podem ser resolvidas sumariamente, deverão ser resolvidas em sua sede própria, tendo a esse propósito o mandatário da requerente indicado três fases para a partilha, proposta que não mereceu a devida atenção por parte do Tribunal.
21.Para a análise da existência dessas questões prévias importa ter presente o disposto nos artigos 1353º, 1354º, 1355º, 1356º e 1357º, todos do Código de Processo Civil de 1961 (doravante apenas designado CPC).
22.Assim, a avaliação da casa de Salvaterra de Magos, efectuada no dia 03/03/20 e, ainda não teve a sua conclusão, notificada à requerente.
23. No âmbito da casa referida no nº anterior importa que, os interessados conheçam também a situação das obras e a sua responsabilidade.
24. Como se sabe, o processo das licitações das verbas, implica o conhecimento prévio de vários elementos integradores das mesmas, aplicações que sendo prévias não estão sendo efectuadas.
25.Aliás, a requerente apresentou à V. Ex.ª, vários requerimentos, entre os quais o de 24/10/19 ref. ª 33817972.
26. Não mereceu uma resposta subsequente e da parte da outra co-herdeira obteve apenas um comentário não jurídico “de que tem mais que fazer”.
27. Qualquer situação quanto a qualquer uma das verbas temos que ter em consideração a inoficiosidade, sendo um drástico esvaziamento da quota disponível, ultrapassando os limites que dai decorre, sendo de considerar que este esvaziamento terá que responder os bens da cabeça de casal, tendo em conta é claro o seu património, após a sanção por sonegação dos bens da herança.
28. A situação real actual já não corresponde a que existia a quando das Conferencias de Interessados que tiveram lugar em janeiro e março de 2019 e, no caso da co-herdeira a ora requerente, verifica-se mesmo uma agravação e alteração substancial, quanto a efectivação dos seus próprios direitos na partilha.
29.A interpretação dos preceitos legais anteriormente invocados são classificadas de forma muito evidente pela jurisprudência no Tribunal da Relação do Porto (Acórdão 09/12/08, processo JTRP00042002, relator Guerra Banha, aliás votado por unanimidade pelos Venerandos Desembargadores.
30. Igualmente a considerar a doutrina de autoria de Lopes Cardoso, na sua obra “Partilhas Judiciais”, Volume I e II.
Deste modo,
Requer à V. Ex.ª, se digne decidir por despacho as questões prévias enumeradas e/ou outras necessárias a correcta operação de licitação e outras que permitam o exacto conhecimento das verbas, em questão, dando sem efeito a Conferência de Interessados designada para o dia 11/03/20.”

Em 09/03/2020, foi proferido o seguinte despacho (Referência Citius nº 395092172):
“Vem a interessada IM..... pedir o adiamento da conferência de interessados com base em alguns fundamentos.
Vejamos.
Alega que algumas questões não se encontram resolvidas como sendo as responsabilidades da cabeça de casal pelas verbas nº 1 a 24. Mas a questão é simples e já foi aqui referida.
As verbas da relação de bens estão definidas e retificadas pela acta de fls. 1169 de 3/7/2017 e é pelo valor que das mesmas consta que se fará a partilha pois foi o valor que resultou provado ser o da relação de bens.
Se esse valor foi alterado, se bens foram sonegados, como pugna a interessada, é, repete-se, algo que se decidirá em sede própria. Não no inventário mas em ação própria, nomeadamente e como já se referiu, em sede de prestação de contas. O processo de inventário visa unicamente a partilha dos bens que foram apurados serem os da relação de bens e esses estão já definidos.
A verba nº 22, salvo o devido respeito, será dividida pelo valor que consta da relação de bens aprovada e constante da acta, e está longe de ser o que a interessada indica. Alterações a este valor por responsabilidade de alguma parte devem ser discutidas em ação de responsabilidade própria. No inventário partilha-se o valor aprovado definido após as reclamações à relação de bens. E as verbas a partilhar estão definidas.
Quanto ao usufruto da verba nº 185 é de notar que o que consta da relação de bens, a fls. 1189 não é qualquer usufruto, nem qualquer possibilidade de atribuição de alvará, pelo que apenas se partilha aquilo que existe em termos registais e que está expresso na relação de bens. O momento para esse ser indicado numa verba própria há muito decorreu pois o momento processual seria após a indicação da relação de bens, na reclamação feita, e posterior decisão sobre a mesma. Essa relação de bens está fixada pelo que tal situação é agora processualmente inadmissível.
O contrato-promessa a que alude a interessada não consta da relação de bens, pelo que nada cumpre determinar quanto ao mesmo, excepto para a parte a quem for adjudicado a verba.
O momento para examinar o recheio de verbas também há muito que decorreu pois, repete-se, a relação de bens está fixada.
A avaliação do imóvel serve apenas de indicação para a partilha.
Em suma. E para que duvidas não restem. Os autos de inventário são um processo simples que visa a partilha. Indicada a relação de bens existe prazo para reclamação e posterior decisão e nesse momento fica fixada a relação de bens. O que sucede.
O que torna o processo de inventário complexo são as situações de eventual sonegação ou responsabilidade pelos bens. Mas para essas existem mecanismos próprios, pelo que há que lançar mão deles e posteriormente apurar responsabilidades, seja a titulo de prestação de contas da cabeça de casal, seja por ação própria para o que se indica. Mas não no processo de inventário que deve ser escorreito e este, claramente, não o tem sido.
Indefiro pois o adiamento da conferencia de interessados.”.

Em 31/03/2020, a interessada A apresentou recurso de apelação subscrito pelo seu Ilustre Mandatário, Sr. Dr. Romeu ……, “da decisão que mantém a Conferencia de Interessados e designado dia 15/04/20 (Referência Citius nº 25759387).

Tal recurso foi admitido por despacho de 05/05/2020 (Referência Citius nº 395954865), como apelação, “com subida imediata, em sepadado, e efeito meramente devolutivo (645º, 647º do CPC)”, tendo sido ordenada a respectiva subida ao Tribunal da Relação.

A subida de tal recurso ao Tribunal da Relação não foi concretizada.
A mencionada conferência de interessados foi sendo sucessivamente dada sem efeito [cfr. infra: por motivos de “justo impedimento do Il. Mandatário” (cfr. despachos de 10/03/2020, Referência Citius nº 395183828; e de 01/06/2020, Referência Citius nº 396511296); devido à legislação Covid (cfr. despachos de 18/03/2020, Referência Citius nº 395333061; e de 07/05/2020, Referência Citius nº 396037631); e por revogação do mandato por parte da Requerente do inventário (despacho de 07/09/2020, Referência Citius nº 398532510)] – e não se chegou a realizar.

Por requerimento de 17/08/2020 (Referência Citius nº 26919723), a interessada A revogou a procuração forense pela qual tinha constituído o Ilustre Sr. Dr. Romeu …… como seu mandatário.

Em 07/09/2020, foi proferido o seguinte despacho (Referência Citius nº 398532510):
“Em face da revogação do mandato por parte da requerente do inventário A, e considerando que nos autos estão pendentes questões de direito (vd. Ref.ª 35087220 de 06.03.2020), entende-se ser obrigatória a constituição de advogado, por força do disposto no artigo 32º, n.º 3 do Código de Processo Civil, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12.
Assim, aguarde-se pelo prazo de 20 dias para que a requerente venha constituir novo mandatário, nos termos do artigo 39º, do Código de Processo Civil na referida versão.
Em face do exposto, dou sem efeito a conferência de interessados designada para o dia 10.09.2020.”

Em 12/11/2020, foi proferido o seguinte despacho (Referência Citius nº 400309094):
“Cessado, por revogação, o mandato do ilustre advogado que representava a interessada requerente A e decorrido o prazo de vinte dias sem que esta tenha vindo constituir novo mandatário, declara-se suspensa a presente instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 32º, n.º 1, alínea a) e 3, 39º, n.º 3, 1.ª parte e 276º, n.º 1, alínea d) do pretérito Código de Processo Civil (neste sentido, Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/02/2012, processo n.º 3289/09.6T2AGD.C1, in www.dgsi.pt).”.

Em 07/01/2021, foi proferido o seguinte despacho (Referência Citius nº 401752194):
II.- Atendendo ao teor do despacho datado de 12 de novembro de 2020 e constante da referência 400309094, aguardem os autos o impulso processual da interessada requerente, sem prejuízo do disposto no artigo 281º do Código de Processo Civil.”.

Por requerimento de 25/08/2021 (Referência Citius nº 30101499), foi junta aos autos procuração forense, pela qual a Requerente A constituiu Ilustres Mandatários (Drs. António …., Carlos ….e Tiago ….) para a representarem neste processo.

Por requerimentos de 01/10/2021 (Referências Citius nºs 30423592, 30423594 e 30423598, respectivamente), os Ilustres Mandatários, Drs. António …., Carlos ….e Tiago …., renunciaram ao mandato.

Em 12/01/2022, foi proferido o seguinte despacho (Referência Citius nº 411633905):
Notifique a renúncia à mandante, por carta registada, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 39º, n.º 2 e 253º, n.º 1 e 2 do pretérito Código de Processo Civil (neste sentido, Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/06/2007, processo n.º 3477/2007-1 e Acordão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/06/2016, processo n.º 1349/14.0T8VNF-A.G1, ambos in www.dgsi.pt).”.

Nesta sequência, a Requerente A foi pessoalmente notificada das mencionadas renúncias, nos seguintes termos:
“Fica deste modo V. Ex.ª notificada, na qualidade de Requerente, relativamente ao processo supra identificado, do conteúdo do despacho de que se junta cópia.
Mais fica notificada, na qualidade de Requerente, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:
Da renúncia ao mandato apresentado pelo seu ilustre mandatário, de que se envia duplicado – art.º 47.º , nº 1 do Código do Processo Civil, e que produz efeitos a contar da presente notificação.
Sendo obrigatória a constituição de mandatário, deverá, no prazo de VINTE DIAS, constituir novo mandatário, - art.º 47.º, nº 3 do Código de Processo Civil, sob pena de:
Ser ordenada a suspensão da instância, se a falta for do autor ou do exequente;
O processo prosseguir seus termos aproveitando-se os atos anteriormente praticados pelo advogado, se a falta for do réu, executado ou requerido;
Extinção do procedimento ou do incidente inserido na tramitação da ação, se a falta for do requerente, opoente ou embargante.”.

Em 02/05/2022, foi proferido o seguinte despacho (Referência Citius nº 415241459):
“Cessado, por renúncia, o mandato do ilustre advogado que representava a interessada requerente A e decorrido o prazo de vinte dias sem que esta tenha vindo constituir novo mandatário, declara-se suspensa a presente instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 32º, n.º 1, alínea a) e 3, 39º, n.º 3, 1.ª parte e 276º, n.º 1, alínea d) do pretérito Código de Processo Civil (neste sentido, Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/02/2012, processo n.º 3289/09.6T2AGD.C1, in www.dgsi.pt).”.

A Requerente foi notificada deste despacho por carta expedida em 04/05/2022 (Referência Citius nº 415495045).
Em 31/01/2023, o tribunal a quo proferiu o despacho ora recorrido, com o seguinte teor (Referência Citius nº 422613070):
“Considerando que, por negligência da interessada requerente A, o processo se encontra a aguardar impulso processual há mais de seis meses, julga-se extinta, por deserção, a presente instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 277º, alínea c) e 281º, n.º 1 do Código de Processo Civil e e 297º, n.º 1 do Código Civil.
Custas a cargo da interessada requerente, sem prejuízo da concessão do benefício de apoio judiciário.”.

Inconformada, a Requerente recorre deste despacho, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes Conclusões (que se iniciam no ponto 12º e vão até ao ponto 14º):
“12º
Veio o tribunal "a quo" decidir que o facto da requerente, ora apelante, não constituir mandatário no prazo de 6 meses ser motivo para declarar extinta a instância por deserção ao abrigo dos artºs 277º, al. c) e 281, nº 1 do CPC e 297º nº 1 do C.C
13°
È nosso entendimento, não estarem reunidos os pressupostos no caso concreto, de falta de mandatário, para o tribunal "a quo"
decidir pela extinção da instância por deserção.

14º
Pelo que, da motivação de facto alegada e conclusões jurídicas, deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências, fazendo-se assim, JUSTIÇA!”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*

IIQUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objecto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. As conclusões, nas palavras de António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 115, “delimitam a esfera de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial ou à das exceções, na contestação”.
Daqui resulta a possibilidade de o objecto do recurso ser restringido nas conclusões face ao requerimento de interposição de recurso e/ou face ao corpo das alegações. Essa restrição pode ser expressa ou tácita, acontecendo a restrição tácita “quando se verifique a falta de correspondência entre a motivação e as alegações, isto é, quando, apesar da maior amplitude decorrente do requerimento de interposição de recurso, e até da sua motivação, o recorrente restrinja o seu objecto através das questões identificadas nas respectivas conclusões. Inversamente devem ser desatendidas as conclusões que não encontrem correspondência na motivação” - António Santos Abrantes Geraldes, in ob. e loc. cit..

No caso dos autos, constata-se que, no ponto 2º das motivações do recurso, a apelante refere que a Sentença recorrida apenas sucintamente fundamenta a decisão tomada violando o artº 615º, nº 1 al. b) e d) do Código Processo Civil”; acrescentando, no ponto 3º das mesmas motivações: “a) Não fundamenta o tribunal “a quo” qual o impulso processual que faltou para se prosseguir com o processo. b) Quais as disposições legais que classificam o impulso processual em causa como negligente.”.

Porém, as conclusões de recurso são absolutamente omissas relativamente a esta questão, não referindo nunca a existência de qualquer nulidade do despacho recorrido e/ou violação do art. 615º do Cód. Proc. Civil (que consagra tal nulidade). Mais, ainda na parte das motivações, sob o título Questões a decidir no recurso, a apelante apenas enuncia, sob o art. 11º, o seguinte: “O facto da apelante não constituir mandatário no prazo de 6 meses é pressuposto de negligência e falta de impulso processual para se considerar extinta por deserção da instância?”, aí também não fazendo qualquer menção à nulidade do despacho/violação do art. 615º do Cód. Proc. Civil.

Consequentemente, a questão da nulidade do despacho tem de se considerar implicitamente arredada do objecto do recurso, nada havendo a decidir quanto a esse assunto.

Assim, impõe-se concluir que a questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, é saber estavam preenchidos os requisitos previstos no art. 281º do Cód. Proc. Civil no momento do despacho recorrido.

IIIFUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados com interesse para a decisão do recurso são os que constam da parte I-Relatório desta decisão, que se dão aqui por integralmente reproduzidos.

IVFUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
É objecto deste recurso o julgamento sobre a existência – ou não –  de fundamento factual para a deserção da instância nos termos do disposto no art. 281º do Cód. Proc. Civil.
De acordo com o art. 281º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, considera-se “deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar o impulso processual há mais de seis meses”.
A deserção da instância é uma das formas de extinção da instância (cfr. art. 277º, al. c) do Cód. Proc. Civil), sendo que, como resulta da leitura do citado art. 281º, nº 1 do Cód. Proc. Civil e tem sido entendido pela Jurisprudência, está sujeita a um duplo requisito: a negligência das partes em promover o andamento do processo e o decurso do prazo de seis meses.

Na Doutrina, escreve, a este propósito, Paulo Ramos de Faria, in “O julgamento da deserção da instância declarativa/Breve roteiro jurisprudencial”, Julgar, Abril 2015, acessível em file:///c:/users/mj01762.justica/downloads/o-julgamento-da-deser%c3%87%c3%83o-da-inst%c3%82ncia-declarativa-julgar%20(2).pdf, p. 4, que: Como resposta legal para o impasse processual, a extinção da instância só se justifica, no entanto, quando tal impasse não possa (não deva) ser superado oficiosamente pelo tribunal. Assim, determina a lei que a paragem do processo que empresta relevo ao decurso do tempo deve ser o efeito, isto é, o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um ato que só ao demandante cabe praticar; a negligência deste.”.

Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil anotado”, Vol. I, Almedina, 2019, p. 328-329, salientam que a conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um ato ou actividade unicamente dependente da sua iniciativa (…).”.

Da conjugação da decisão recorrida com o despacho que a antecede, proferido em 02/05/2022 (Referência Citius nº 415241459), apreende-se que o tribunal a quo julgou deserta a instância por considerar que o processo se encontrava a aguardar impulso processual há mais de seis meses por negligência da Requerente A, consistindo essa negligência na falta de constituição de mandatário após a renúncia dos anteriores mandatários.

De acordo com o disposto no art. 47º, nº 3, al. a) do Cód. Proc. Civil, nos casos em que seja obrigatória a constituição de mandatário, se a Requerente/Autora, depois de notificada a renúncia, não constituir novo mandatário no prazo de vinte dias, a instância fica suspensa. Nesta situação, a instância apenas se reinicia com a constituição de novo advogado pela Requerente/Autora; não sendo constituído novo advogado no prazo de seis meses ocorre a deserção da instância nos termos do art. 281º, nº 1 daquele diploma.

Assim, cumpre verificar, desde logo, se, nos autos, considerando a concreta acção em causa e a dinâmica processual em curso no momento da prolação da decisão recorrida, era obrigatório a constituição de advogado por parte da Requerente. O que se passa a fazer.

No caso dos autos, estamos na presença de um processo de inventário instaurado em 30/10/2001.

Aos inventários pendentes nos tribunais em 01/09/2013 – como é o caso dos autos – é aplicável a regulamentação específica do processo de inventário estatuída no Código de Processo Civil de 1961, com a redacção anterior à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013 (aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06): v.d. art. 7º, a contrario, da Lei nº 23/2013, de 5 de Março. Cfr., neste sentido, Acórdão do TRP de 20/01/2014, relator Manuel Domingos Fernandes; Acórdão do TRL de 17/03/2016, relatora Maria Manuela Gomes; Acórdão do TRC de 19/12/2018, relator Fonte Ramos; e Acórdão do TRG de 25/03/2021, relatora Margarida Sousa, todos, acessíveis em www.dgsi.pt.

Nos termos do art. 32º, nº 3 do Código de Processo Civil de 1961, com a redacção anterior à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013, nos inventários, seja qual for a sua natureza ou valor, só é obrigatória a intervenção de advogados para se suscitarem ou discutirem questões de direito (para além dessa obrigatoriedade existir nos recursos – cfr. nº 1, al. c) daquele preceito).

A este propósito, já Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, p. 93, afirmava (perante legislação similar à aplicável ao caso dos autos): “Aqui não há que atender à natureza do inventário (…), nem tão pouco ao valor (…); o que interessa é a natureza da questão sobre que versa o requerimento. Se a questão é de direito, tem de intervir advogado (…); se a questão é de facto, ou se nenhuma questão se suscita, não há necessidade de fazer intervir advogado. / Note-se que a lei exige a intervenção de advogado “para se suscitarem ou discutirem questões de direito”; quere dizer, para a parte levantar uma questão de direito, ou para discutir uma questão de direito já levantada, há-de fazer-se assistir de advogado.”.

Considerando o mencionado normativo e as considerações exaradas, no caso dos autos, para ser obrigatória a constituição de advogado pela Requerente, era necessário que estivesse suscitada e pendente uma questão de direito. E, tal não se verifica – aliás, nem na decisão recorrida, nem no despacho que a antecedeu (com a Referência Citius nº 415241459), o tribunal a quo menciona a existência de qualquer questão de direito suscitada e pendente de decisão.

Pelo contrário, de acordo com o despacho proferido em 24/02/2020 (Referência Citius nº 394640155), a relação de bens está definida, o passivo inexiste, e os bens avaliados. Resta unicamente determinar o modo de partilha compondo os quinhões” - para o que foi, no mesmo despacho, designada data para conferência de interessados.

Mais, apreciando o requerimento da Requerente A de 06/03/2020 (Referência Citius nº 25759387) - onde a mesma refere existirem várias questões a resolver previamente à realização da conferência de interessados, requerendo o adiamento da mesma -, o tribunal a quo proferiu despacho em 09/03/2020 (Referência Citius nº 395092172), indeferindo tal pretensão e onde, Em suma”, afirma: “E para que duvidas não restem. Os autos de inventário são um processo simples que visa a partilha. Indicada a relação de bens existe prazo para reclamação e posterior decisão e nesse momento fica fixada a relação de bens. O que sucede.
O que torna o processo de inventário complexo são as situações de eventual sonegação ou responsabilidade pelos bens. Mas para essas existem mecanismos próprios, pelo que há que lançar mão deles e posteriormente apurar responsabilidades, seja a titulo de prestação de contas da cabeça de casal, seja por ação própria para o que se indica. Mas não no processo de inventário que deve ser escorreito e este, claramente, não o tem sido.”.

Por sua vez, ao recurso interposto deste último despacho foi fixado efeito devolutivo – cfr. despacho de 05/05/2020 (Referência Citius nº 395954865).

Perante esta dinâmica processual, vemos que o inventário se encontra na fase de designação de data para realização de conferência de interessados para composição dos quinhões, não se encontrando questões de direito suscitadas e pendentes de decisão – cfr. arts. 1352º e 1353º, nº 1 do Código de Processo Civil de 1961, com a redacção anterior à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013, aplicável aos autos.

Assim sendo, afigura-se-nos que, no momento processual em que foi proferida a decisão recorrida, não existia obrigatoriedade de constituição de mandatário quanto ao inventário por não se encontrarem questões de direito suscitadas e pendentes de decisão, nos termos do supra citado art. 32º, nº 3 do Código de Processo Civil de 1961, com a redacção anterior à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013.

Donde, perante a não obrigatoriedade de constituição de mandatário por parte da Requerente, não podia o tribunal a quo considerar a instância do processo de inventário deserta e, por isso, extinta, pois que a não constituição de mandatário pela Requerente não era determinante da paragem do processo, não revelando tal omissão qualquer negligência para efeitos de deserção.

Antes de julgar deserta a instância, o juiz do processo tem de fazer uma valoração do comportamento das partes com vista a concluir se a falta de impulso resulta, efectivamente, de negligência de alguma delas, ou de ambas, em promover o seu andamento, ou seja, tem de verificar que, na realidade, estão verificados os necessários elementos exigidos pela estatuição da norma para extinguir a instância por deserção. Como referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in ob. cit., p. 330: “Mais cuidado há que ter na situações em que a identificação, a incidência ou a exigência do impulso processual não sejam evidentes ou quando sejam equívocas as consequências decorrentes da inércia, a justificar um sinal mais solene da existência do ónus e/ou dos efeitos que serão extraídos do seu incumprimento”.

Cumpre, ainda, notar que a falta de constituição  de advogado para o recurso (esta sim, obrigatória, como se viu) que foi interposto e admitido por despacho proferido em 05/05/2020 (que determinou também a respectiva subida ao Tribunal da Relação) não é causa determinativa da extinção da instância do inventário nos termos do art. 281º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, uma vez que, ocorrendo, tem os seus efeitos apenas reportados ao próprio recurso, com a respectiva deserção cfr. nº 2 daquele preceito.

Por todo o exposto e em suma, não podia o tribunal a quoter julgado verificada a deserção e determinado a consequente extinção da instância, por não estarem reunidos os respectivos pressupostos.

Procede, assim, o presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus normais trâmites.
*

Quanto às custas deste recurso, incumbe afirmar o seguinte:
A pretensão da apelante é procedente. Considerando que a apelada não influenciou a decisão recorrida nem a decisão deste recurso, não pode ser considerada vencida para os efeitos previstos no art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.

Quem do recurso tirou proveito e, por isso, seria responsável pelo pagamento das respectivas custas (cfr. citado preceito), seria a apelante. Porém, considerando: que se encontra paga a taxa de justiça devida pela interposição do recurso (porque a apelante procedeu ao seu pagamento); não existem contra-alegações; e o recurso não envolveu a realização de despesas (encargos), não há lugar ao pagamento de custas em qualquer das suas vertentes (cfr. art. 529º, nº 4 do Cód. Proc. Civil).
*

V–DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir a sua normal tramitação.
Sem custas.
*

Lisboa, 26 de Setembro de 2023


Cristina Silva Maximiano
Cristina Coelho
Edgar Taborda Lopes