Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
118/22.9T8VLS.L1-5
Relator: LUIS GODINHO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
FUNDAMENTAÇÃO
ALTERAÇÃO DE FACTOS
REQUERIMENTO DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: IA decisão administrativa que aplica uma coima em processo de contraordenação, ainda que apresente “alguma homologia” com a sentença penal condenatória, não consubstancia uma verdadeira e própria sentença, nem é qualificada como tal pela lei, razão pela qual não tem que obedecer ao mesmo grau de formalismo exigido para aquela última.

IISendo que o correspondente dever de fundamentação terá também que ser perspetivado em função da natureza do respetivo tipo de ilícito, a fase em que a referida decisão se insere, e as caraterísticas de celeridade e simplicidade que caracterizam o correspondente processo.

III–Não se exige, pois, da entidade administrativa, uma concretização factual modelar e profundamente detalhada, sendo bastante, a esse nível, uma alegação de factos minimamente escorreita, passível de compreensão e alcance ao homem médio, quanto às condutas adotadas ou omitidas, circunstanciadas e contextualizadas no tempo, lugar e espaço, e o respetivo tipo de imputação subjetiva.

IV–Se a decisão em causa menciona o dia, hora e rua em que a infração foi praticada, identificando-a pelo nome e localizando-a no concelho a que pertence, se explicita a existência de um sinal muito específico que, segundo a entidade administrava, não foi respeitado (“o que reservava o estacionamento a veículos que transportassem pessoas com deficiência condicionada na sua mobilidade”), ainda que aquela referência pudesse comportar um maior nível de concretização, não se mostra nula, por violar o direito ao contraditório e à defesa efetiva do Arguido, se não indicar à frente de que número de polícia (que tudo indica nem sequer existia) tal sinal se situava e por não o ter especificado concretamente em termos regulamentares (v. g., se vertical ou se no solo), ou a data da autorização camarária da sua instalação no local.

V–“O juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto da decisão”, embora esteja impedido de operar uma sua alteração substancial.

VI–Segundo Paulo de Albuquerque (Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica Portuguesa, pág.ª 274), em processo contraordenacional, “o regime da alteração dos factos na audiência de julgamento rege-se por critérios distintos dos previstos nos artigos 358.º e 359.º do CPP, uma vez que o Tribunal procede a uma renovação da instância com base na remessa dos autos e não a uma mera reforma da decisão administrativa recorrida, devendo por isso ter em conta toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como todos os factos que dela resultem, mesmo que não tenham sido incluídos na decisão administrativa recorrida ou não tenham sido invocados pela defesa diante da autoridade administrativa”.

VII–Não é a sentença, mas a audiência de julgamento, a sede própria para tratar de incidência relativa à não pronúncia sobre uma qualquer diligência de prova requerida no recurso de impugnação.

VIII– Sendo que ainda que mesma pudesse ser considerada “como prova necessária, previsivelmente necessária, absolutamente necessária, útil, de interesse, relevante …”, sempre tal omissão traduziria uma irregularidade, a atuar dentro dos limites do art. 123.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência na (5.ª) Secção Criminal da Relação de Lisboa:


IRelatório:


I1.)Inconformado com a sentença proferida nestes autos pelo Juízo de Competência Genérica de Velas,  Comarca dos Açores, na qual a respetiva Mm.ª Magistrada Judicial julgou improcedente o recurso de impugnação judicial dirigida pelo Arguido A, melhor identificado, da decisão da Secretaria Regional das Obras Públicas e Comunicações da referida Região Autónoma, que pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos art.ºs 50.º, n.º 2, 145.º, n.º 1, al. q), 147.º, n.ºs 2 e 3 do Código da Estrada (estacionamento em local reservado a veículos que transportem pessoas com deficiência condicionada na sua modalidade), para além de coima no valor de € 60,00 (sessenta euros), que pagou voluntariamente, o condenou na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, recorreu o Arguido acima mencionado para esta Relação, apresentando na síntese das razões da sua discordância as seguintes conclusões:

I.Foi levantado ao arguido no dia 25/07/2019, pelas 13 horas e 30 minutos, o auto de contra ordenação n.º 549798 pelo facto de ter o arguido estacionado o veículo na Rua Cons. Dr. ... ... em V____ em lugar devidamente sinalizado, reservado ao estacionamento de veículos que transportem pessoas com deficiência condicionada na sua mobilidade, tipo de ilício p. e p. no art.º 50 n.º 1 alínea f) do CE.

II.A decisão administrativa violou o direito ao contraditório e da defesa efetiva previstas no art.º 32.º da CRP e no art.º 50 do RGCO ao omitir o local concreto da rua na qual o ilícito alegadamente ocorreu.

III.A sua identificação era possível pois em sede de inquirição das testemunhas, foi pelas mesmas referido que o local de estacionamento reservado a pessoas com deficiência era junto do posto da GNR pelo que, seria por referência a esse posto que deveria ter sido concretizado o local exato.

IV.–E era também necessária pois, sabendo o local concreto, o arguido poderia ter versado a sua defesa em vários aspetos que não o pode fazer por desconhecimento, como seria o tipo de sinalética, a sua localização (no chão ou na vertical) e a respetiva autorização camarária.

V.–E não se diga que o arguido conseguiu perceber com acuidade os factos pois em parte alguma da impugnação judicial se extrai que o arguido sabia o local concreto, pois a referida defesa versou sobre meras hipóteses.

De qualquer modo e sem conceder

VI.–Ainda que se pudesse entender que a decisão administrativa não está obrigada a um rigor factual e como tal não estaria ferida de nulidade por omitir o concreto local, certo é que, tendo sido invocada a referida omissão da factualidade na impugnação judicial e tendo sido apurado e mencionado, pela primeira vez, no decurso da audiência, através do depoimento das testemunhas, que o local exato era junto do posto da GNR, nessa altura deveria ter sido dada a oportunidade do arguido se pronunciar em relação a esses factos, aplicando-se por via do art 41.º do RGCO, os art.ºs 358.º e 359.º do CPP, que foram violados.

VII.–Tanto mais que, em sede de impugnação judicial o arguido requereu prova para que fosse concretizado o local rigoroso da via, requerimento esse em relação ao qual o Tribunal não se pronunciou, o que determinou igualmente a nulidade da sentença por omissão de pronúncia ao abrigo do art.ºs 379.º alínea c) do CPP.

VIII.–Assim sendo, a decisão administrativa é nula por ter violado o direito ao contraditório e à defesa efetiva, violando os art.ºs 32.º da CRP e 50.º do RGCO,

IX.–Caso assim não se entenda, sempre seria nula a decisão administrativa que, ao conhecer-se, pela primeira vez, em sede de julgamento, os factos em nenhuma parte constantes (local exato da infração) e reclamados na impugnação judicial, deveria ter dado a oportunidade ao arguido para que deles se pronunciasse, violando os art.ºs 358.º e 359.º do CPP e consequentemente, uma vez mais, o direito ao contraditório e à defesa efetiva plasmados no art.ºs 32.º da CRP e 50.º do RGCO.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá o revogada a sentença que considerou improcedente a impugnação judicial, fazendo-se, assim, JUSTIÇA.

I-2.)–Respondendo ao recurso interposto, a Digna magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo, conclui por seu turno:

1.–O recorrente foi condenado pela prática de contraordenação prevista e punida pelos artigos 50.º, n.º 2, 145.º, n.º1, al. q), 147.º, n.ºs 2 e 3, do Código da Estrada ,na coima no valor de €60.00 (sessenta euros) e ainda com a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, prevista no artigo 147.º, do Código Penal.

2.–Inconformada a Recorrente com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo recorreu da mesma, invocando, em síntese:
a)-quanto à decisão administrativa, nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que a entidade administrativa deve respeitar os termos de uma decisão proferida no âmbito do processo penal, nos termos do artigo 58.º, do Regime Geral das Contraordenações, porquanto, a decisão proferida omitiu o local concreto da rua na qual o ilícito ocorreu, violando desta forma o direito ao contraditório e da defesa, previstos no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 50.º, do Regime Geral das Contraordenações; b) quanto à sentença proferida pelo Tribunal a quo, nulidade de sentença por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, alínea c), do Código de Processo Penal.

3.–Pelas razões infra expendidas, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida nos exatos termos em que foi proferida.

4.–Foi acertada a subsunção jurídico-penal dos factos considerados como provados;

5.–A Douta Sentença proferida não violou quaisquer normas legais.

Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida, nos seus precisos termos, a Douta Decisão recorrida.

II–Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer onde após aderir à ausência de razão recursória manifestada na antecedente resposta, conveio em que foram desde o início facultados ao Arguido os elementos necessários à sua ampla defesa, que de que resto logo exerceu, e que não será curial a alusão feita aos art.ºs 358.º e 359.º do Cód. Proc. Penal, porquanto os factos constantes da acusação não foram alterados.

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No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi acrescentado.

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Seguiram-se os vistos legais.

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Teve lugar a conferência.

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Cumpre apreciar e decidir:

III-1.)–De harmonia com as conclusões apresentadas, que entre nós, de forma consensual definem e delimitam o respectivo objecto, com o recurso interposto, tem em vista o Arguido Asubmeter à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:

- Saber se a decisão administrativa é nula por ter violado o seu direito ao contraditório e à defesa efetiva, violando os art.ºs 32.º da CRP e 50.º do RGCO;

Se tendo-se apurado em julgamento o local exato da infração, deveria ter-se aplicado os art.ºs 358.º e 359.º, al. c), do CPP, por via do art. 41.º do RGCO;
- Se a sentença proferida padece igualmente do vício de nulidade, por omissão de pronúncia, por o Arguido, na sua impugnação, haver requerido prova para que fosse concretizado o local rigoroso da via, requerimento sobre a qual o Tribunal não se pronunciou.

III-2.)–Como temos por habitual, vamos conferir primeiro a matéria de facto que se mostra definida:

Factos provados:

1.No dia 25 de Julho de 2022, pelas 13h30, na Rua ... Dr. ... ... – V____, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros particular, de matrícula ..., o Arguido estacionou o veículo em lugar devidamente sinalizado, reservado ao estacionamento de veículos que transportem pessoas com deficiência condicionada na sua mobilidade.
2.O Arguido sabia que, ante o sinal descrito em 1., não poderia estacionar o veículo naquele local, mas não providenciou por tal desiderato, não agindo com o cuidado e diligência a que estava obrigado e de que era capaz.
3.O Arguido tem averbada a prática de uma contra-ordenação grave, em 15/06/2018, no âmbito do processo n.º 60520746.

Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão e, concretamente, não se provou que:

I.-O Arguido tenha parado ao lado do local de estacionamento reservado ao estacionamento de veículos que transportem pessoas com deficiência condicionada na sua mobilidade

A restante matéria constante da decisão administrativa e do recurso considerou-se desprovida de relevância para a decisão da causa, ou tratar-se de matéria probatória e não factual, ou de jaez conclusivo ou de Direito.

Importa conhecer também, a fundamentação probatória que justifica o antecedente veredicto de facto:

A convicção do Tribunal, no que concerne aos factos dados como provados e não provados, baseou-se fundamentalmente na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em Audiência de Julgamento, de acordo com as regras da experiência e a livre apreciação do julgador, nos termos do previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal (ex vi artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10).
Nessa medida, e no que concerne aos factos elencados em 1. e 2. o Tribunal atendeu, desde logo, ao teor do Auto de Contraordenação junto ao processo, documento que tem força probatória plena, ao abrigo do preceituado pelos artigos 363.º, n.º 2, do Código Civil, 99.º e 169.º do CPP, ex vi artigo 4.º do CPP e 41.º do RGCO.
Com efeito, logrou-se percepcionar, através do teor do aludido documento, que naquele dia e hora em concreto, o Agente autuante – e a testemunha nessa sede identificada – percepcionou que o Arguido/Recorrente estacionou em lugar reservado a pessoa portadora de deficiência, na rua ali enunciada, estando essa reserva devida e visivelmente sinalizada.
No mais, tal desiderato foi ainda confirmado pelas testemunhas B e C, militares da GNR, os quais, de modo incisivo, assertivo, claro e seguro, depuseram em juízo quanto às características da via em questão, além da localização do sinal de trânsito em causa.
Mais referenciaram o modo como aquilataram estar o veículo do Arguido estacionado – em cerca de metade do lugar de estacionamento cuja utilização lhe estava interdita, por não ser pessoa portadora de deficiência nem ter dístico colocado para o efeito – impedindo que um veículo conduzido por pessoa com essas características pudesse estacionar.
Foram ainda muito expressivos e credíveis, no que diz respeito à visibilidade do sinal indicativo de estacionamento para pessoa com mobilidade reduzida ou deficiência – que declaram estar mesmo de frente para o carro, na vertical (e também no solo), sendo impossível ao respectivo condutor não o ter visionado.
Acresce que ambos se mostraram consentâneos e muito coerentes no seu depoimento na forma como encontraram o carro – parado, fechado, sem nenhum condutor no interior ou nas imediações – razão pela qual aferiram que o mesmo se encontrava estacionado e não somente parado.

Descreveram ainda a forma como o veículo estava imobilizado no lugar – na perpendicular/em espinha (devendo ser feito em paralelo). Desconhecem se aquele local tem número de porta, sendo que nunca o referenciou, tanto mais que o local se situa em frente à esquadra, e nas suas comunicações, não é mencionado.
De resto, foram também as duas testemunhas coincidentes, tanto no teor, como na forma assaz pormenorizada e circunstanciada como relataram ter identificado o Arguido como sendo o condutor da viatura em causa, assim como na forma como descreveram a rua e as imediações onde os factos ocorreram, mais defluindo do respectivo depoimento que naquele local em específico, apenas existia um único ponto/lugar para estacionamento para pessoas com mobilidade reduzida (não deixando margem para dúvidas quanto a esse conspecto).

O elemento subjectivo do ilícito em causa, aferido em 2., resulta do cotejo da matéria objectiva dada como provada, que permitiu a este Tribunal, em conjugação com as regras de experiência comum, concluir pela sua verificação,

Quanto à situação jurídico-processual do Arguido (facto enunciado em 3.), mormente a existência de condenações anteriores averbadas quanto a ele, de natureza contra-ordenacional, o Tribunal assentou a sua convicção na informação da entidade administrativa constantes do processo.

No que diz respeito à factualidade dada como não demonstrada, a mesma resulta da ausência de prova cabal que a ancorasse.

Com efeito, as testemunhas ouvidas em sede de Audiência de Julgamento foram extremamente seguras, assertivas e claras quanto ao que visionaram e verificaram presencialmente, isto é, que a viatura do Arguido/Recorrente se encontrava efectivamente estacionada em cima de um lugar de estacionamento reservado a pessoas com mobilidade reduzida, a mais de meio do lugar, onde estava sinalização necessária e visível, comportamento que impedia o estacionamento de outro veículo, e sem que dentro do automóvel estivesse alguém (ou sequer próximo), estando o carro fechado e completamente imobilizado.
Ora, neste conspecto reitera-se tudo quanto supra já se aferiu na motivação dos factos tidos por demonstrados, na medida em que o depoimento das testemunhas ouvidas, em concatenação com o Auto de contraordenação elaborado, demonstram com toda a clareza que tal facto não ocorreu.

III-3.1.)–Cumprindo agora passar a apreciar as questões que acima se deixaram enunciadas, no que concerne à crítica formulada pelo Arguido no sentido de que a decisão administrativa seria nula por ter violado os seus direitos ao contraditório e a uma defesa efetiva, desse modo infringindo o preceituado nos art.ºs 32.º da CRP e 50.º do RGCO, haverá que começar por recordar, que tendo-se interposto no processamento dos autos a sentença proferida em sede de impugnação pelo Tribunal de Velas, esta é que passa a ser agora a decisão recorrida, pelo que o inconformismo a ser endereçado nessa matéria deveria dirigir-se, sobretudo, a essa decisão.

E na realidade, aquele não foi problema de que a mesma se tenha alheado, referindo a seu propósito, o seguinte:

O Arguido/Recorrente invocou, no seu requerimento recursório, que a decisão ora posta em crise não contém todos elementos necessários a tal conspecto decisório, uma vez que, em sua perspectiva, não menciona em que local concreto é que se encontrava o estacionamento posto em crise, devendo e podendo fazê-lo, sendo ademais e concomitantemente omissa sobre a existência de sinalética na qual conste a proibição de estacionamento.
Tal desiderato, no entendimento do Arguido/Recorrente, consubstancia elemento objectivo necessário ao preenchimento do tipo de ilícito de que é imputado.
Ora, no que a esta questão diz respeito, e sem prejuízo do que supra se assinalará, diremos desde já que perfilhamos o entendimento do Acórdão da Relação do Porto de 24/01/2018 (consultável em www.dgsi.pt), segundo o qual, quando julga em primeira instância a decisão de autoridade administrativa, o Tribunal não está vinculado aos factos que constam do texto da decisão administrativa mas antes, nos termos do artigo 72.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, deve proceder à produção de prova e decidir do mérito, “porquanto odever de indagação do Tribunal suprirá as insuficiências e eventuais
vícios da decisão administrativa, tendo sempre presente a
presunção de inocência do arguido” (cfr. o aresto acima citado).
Ainda assim, e porque foi suscitada pelo Recorrente, debrucemo-nos sobre tal questão.

Ora atentando na decisão administrativa aqui em crise, aferimos que a mesma é, efectivamente sucinta na factualidade que aduz. Contudo, tal não significa que seja insuficiente.

Na verdade, a entidade administrativa refere que “no dia 25/07/2019, pelas 13h30, no local Rua Conselheiro Dr. ... ...
V____, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros particular
de matrícula ..., (o arguido] praticou a seguinte infracção: na
data, hora e local acima mencionados, o Arguido estacionou o
veículo em lugar devidamente sinalizado, reservado ao estacionamento de veículos que transportam pessoas com deficiência condicionada na sua mobilidade(...) o arguido actuou com negligência

E, volvendo a nossa atenção à decisão administrativa, perspectivamos que a mesma não deixa de enunciar os factos objectivos e subjectivos dados como demonstrados, as normas violadas, indica concomitantemente as provas obtidas, a coima aplicada, a sanção acessória e as razões da ponderação realizada na respectiva determinação, ainda que tudo de forma muito sumária.
Ora, pese embora se perspective tratar-se aquela de uma decisão bastante concisa e escorreita, certo é que a mesma não consubstancia uma verdadeira e própria sentença, nem é qualificada nesses moldes pela lei, pelo que não tem que obedecer ao formalismo de que esta última se reveste.
Com efeito, entendemos – a par da muita da jurisprudência nacional – que a fase administrativa dos Autos de contra-ordenação se caracteriza, pela própria natureza do processo em causa, pela celeridade e simplicidade processual, e nessa medida o correspondente dever de fundamentação deverá ser observado a essa luz e âmbito, e necessariamente com uma exigência muito menor face ao que se espera de uma sentença penal.
Assim, não se demanda da entidade administrativa uma concretização factual modelar, com detalhe profundo, bastando-se com uma alegação de factos minimamente escorreita, passível de compreensão e alcance ao homem médio quanto às condutas adoptadas ou omitidas, circunstanciadas e contextualizadas em tempo, lugar e espaço.
De qualquer forma, a decisão administrativa referencia com bastante acuidade e concretização o local onde perspectivou o ilícito contra-ordenacional. Menciona a rua, identificando-a pelo nome, localizando-a no concelho a que pertence, e explicando a existência de um sinal muito específico que, segundo a entidade administrava, não foi respeitado.
Por outro lado, através da impugnação judicial deduzida, mormente o seu teor, o Tribunal logra percepcionar que o Recorrente alcançou com a acuidade necessária os factos que lhe foram imputados na decisão administrativa, tanto mais que se defendeu com densidade argumentativa, contrapondo factos relativamente ao que lhe era imputado, ficando demonstrado que a fundamentação da decisão foi suficiente para permitir o exercício do direito de contraditório e de defesa pois que percebeu o que se decidiu e por que razão assim se decidiu.

De resto, preceitua o artigo 58.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27/10, doravante RGCO, que:

1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a)- A identificação dos arguidos;
b)- A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c)- A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d)- A coima e as sanções acessórias.

Desde logo, e no que se reporta ao elemento objectivo, temos que o mesmo foi plasmado de modo perceptível, o que o Recorrente compreendeu e rebateu com a interposição do recurso.
Ademais, atendendo ao já sufragado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/01/2018, consultável em www.dgsi.pt, não se encontra este Tribunal limitado ou condicionado pelos factos constantes da decisão administrativa (no mesmo sentido, veja-se o Ac. do STAde 04/02/1965, in www.dgsi.pt).
Nessa medida, face à prova que tiver sido produzida em audiência, os factos serão consignados e fundamentada também será a sua qualificação nesses moldes, não se encontrando o Tribunal coarctado na cognição e respectiva subsunção da realidade factual que vier a apreender e apurar de tal diligência adjectiva, contraditória por natureza.
Tudo, tendo sempre como limite inultrapassável o princípio da proibição da reformatio in pejus, uma vez que foi o Arguido quem recorreu de tal decisão.
Por outro lado, verifica-se ainda que o elemento subjectivo também se mostra elencado e discriminado.

No mais, e face a tudo quanto supra foi expendido aquilatamos que a decisão administrativa observou as exigências ínsitas ao estatuído no artigo 58.º, n.º 1 do RGCO, razão pela qual improcedem as omissões arguidas.

III–3.2.)- Nos seus aspetos mais essenciais não deixamos de nos rever na fundamentação agora acabada de transcrever.

É inequívoco que existe Jurisprudência (para além da decisão citada no despacho recorrido) e mesmo defesa Doutrinal da afirmação de que “o juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto da decisão” (entre outros, acórdão da Rel. de Lisboa de 15/02/1995, CJ, 1995, T.2, pág.ª 134) e Paulo de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica Portuguesa, pág.ª 274/5.

Variarão depois, sobre o âmbito dessa alteração, ainda que convenham maioritariamente, que não poderá assumir uma natureza substancial.

É também incontroverso que existe larga produção decisória dos nossos Tribunais em como a fundamentação da decisão administrativa não obedece aos mesmos cânones de exigência de uma sentença penal.

Por todos, confira-se o acórdão da Rel. de Guimarães de 11/01/2016, no processo n.º 1812/12.8EAPRT.G2 (acessível em BDJUR):

“No âmbito do processo contra-ordenacional, a jurisprudência tem sido unânime ao inscrever no campo restrito das referências essenciais a descrição dos factos imputados, das provas obtidas e das normas aplicadas na fundamentação da decisão, notando que o nível de “exigência” e de compreensão da decisão administrativa será inferior ao da sentença judicial, dados os diferentes níveis de incidência na liberdade e no património das pessoas.
(…)
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Dezembro de 2006,“a indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas constitui um tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art.º 32.°, n.º 10). (…) Nesse aspecto, a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão. Na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo MP como acusação (art.º 62.°, n.º 1, do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art.º 283.°, n.º 3, al. b), do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contra-ordenações (art.º 41.º, n.º 1, do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (in www.dgsi.pt, processo 06P3201, Rodrigues da Costa).
(…)
Tem sido este o entendimento da jurisprudência, de que são exemplos os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Junho de 2003, (Santos Cabral Colectânea, Tomo III, pp. 40) e da Relação de Lisboa de 19 de Maio de 2004, www.dgsi.pt processo 2448/2004-4, Duro Mateus Cardoso) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Março de 2011, processo 583/09.0T2OBR.C1, Paulo Guerra. Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 4 de Abril de 2004, (www.dgsi.pt processo 483/04-1 Ribeiro Cardoso), que subscrevemos na íntegra, na decisão administrativa em processo por contra-ordenação, “não se impõe (aqui) uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem no art.º 374º n.º 2 do CPP, por várias razões: por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contra-ordenacional não se confunde com o ilícito penal (são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa), por outro, porque aquela decisão, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.º 62º n.º 1 do DL 433/82, de 27.10). Não faz, assim, qualquer sentido que a decisão administrativa – que em caso de impugnação se converte em acusação – tenha de obedecer aos requisitos da sentença penal, como se tal acusação tivesse que obedecer a um rigor de fundamentação igual ao da sentença penal; por outro lado, seria incongruente e destituído de qualquer sentido que a fundamentação estabelecida no art.º 58º n.º 1, al. c) do DL 433/82 tivesse a amplitude prevista no art.º 374º n.º 2 do CPP no que à fundamentação da sentença respeita, quando naquele se estabelecem outros elementos que deve conter a decisão administrativa – essa exigência não faria sentido se ao dever de fundamentar que aí se prevê se atribuísse o alcance que resulta do art.º 374º n.º 2 do CPP, retirando sentido à exigência contida nas alíneas b) e c) (primeira parte) daquele art.º 58º” .
Ainda no mesmo sentido, também Oliveira Mendes e Santos Cabral salientam que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal (Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 3.ª ed. Almedina, p. 191 a 194).”

Os aspetos que o Recorrente afirma terem impossibilitado o exercício o seu direito ao contraditório e a sua efetiva defesa, como já houve a oportunidade de conferir, concentram-se na especificação do tipo de sinalética existente no local que reservava aquele estacionamento a veículos transportando pessoas com determinadas características, e bem assim, a sua concreta localização na artéria mencionada no auto de notícia, para nesta última parte, julgamo-lo, identificar rigorosamente o local da infração.

No que concerne ao primeiro ponto, ainda que a expressão “em lugar devidamente sinalizado” não deixe de pecar por alguma generalidade, é indiscutível, até pela fundamentação da convicção do Tribunal, que aquela identificação existia (seja na forma de sinal vertical, como por marcação no solo).
Mais, era perfeitamente visível, e como tal, em ocasião alguma poderia ser desconsiderada.

Isso é que é o essencial.

No que respeita à indicação da sua exata localização naquela rua, julgamos que embora essa menção pudesse comportar um maior nível de concretização à infração, a sua omissão também não inabilita, em termos essenciais, a possibilidade de sobre a mesma o Arguido exercer o respetivo direito ao contraditório.

O que em acréscimo se poderia dizer, é que se situava junto do posto da GNR.

Mas em qualquer caso, ainda que na mesma até pudessem existir hipoteticamente outros locais reservados àquela categoria de cidadãos (o que a fundamentação da sentença parece afastar), seguramente que pelas 13:30 nela não esteve estacionado em mais do que um.
E nessas condições, não poderá deixar de saber em qual foi.

O que dessa forma forma baliza objetivamente o domínio circunstancial físico e temporal da infração.

Donde, parafraseando o acórdão do Tribunal de Guimarães acima indicado, sem prejuízo da maior concretização e pormenorização, ainda possível, tal omissão “não afectou as garantias de defesa, nem dificultou o exercício do direito de impugnação judicial: sem qualquer inversão do ónus da prova ou violação do direito ao contraditório”, e não impediu o Arguido de apresentar “os argumentos que entendesse úteis e invocado todos os elementos de facto e de direito susceptíveis de permitirem ao tribunal a apreciação” da situação.

Ou seja, “a decisão administrativa, longe de ser modelar nesse âmbito, contém (…) os elementos imprescindíveis para a caracterização daquelas circunstâncias e para permitir o exercício do direito de recurso do arguido”.

Nesta conformidade, nada teremos a opor à improcedência da arguição de nulidade da decisão administrativa concluída pelo Tribunal a quo.
 
III–3.3.)– No que concerne à atuação propugnada dos art.ºs 358.º e 359.º, al. c), do Cód. Proc. Penal (por aplicação subsidiária do art. 41.º do RGCO), em face do apuramento realizado pelo Tribunal das circunstâncias atrás mencionadas, haverá que dizer, que segundo o Autor e Obra a que acima também já se fez referência, que “o regime da alteração dos factos na audiência de julgamento rege-se por critérios distintos dos previstos nos artigos 358.º e 359.º do CPP, uma vez que o Tribunal procede a uma renovação da instância com base na remessa dos autos e não a uma mera reforma da decisão administrativa recorrida, devendo por isso ter em conta toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como todos os factos que dela resultem, mesmo que não tenham sido incluídos na decisão administrativa recorrida ou não tenham sido invocados pela defesa diante da autoridade administrativa” (cfr. pág.ª 274).

Não será uma enunciação pacífica.

Mas no caso, seguramente por ter entendido, de forma congruente, que a factualidade considerada pela decisão administrativa, posto que perfectível, preenchia, com suficiência, os requisitos objetivos e subjetivos da infração imputada, e permitia o exercício dos correspondentes direito ao contraditório e a uma defesa efetiva, não produziu qualquer alteração nesse campo.

É exatamente a mesma.

No fundo, o que a tal propósito o Tribunal de Velas refere na fundamentação da sua convicção, não tem esse escopo, mas antes, o de demonstrar o bem fundado da existência naquela artéria de sinalética visível com o conteúdo prescritivo indicado, que o Arguido não estava parado, mas estacionado, e que o não fazia “ao lado” do tal local.

Aliás, nunca tais circunstâncias traduziriam alteração substancial ou não substancial dos factos, pois que meramente especificadoras, sendo que em parte, até correspondem a um sentido de indagação preconizado pelo Arguido.

III–3.4.)–Dizer que a sentença é nula por não ter dirigido pronúncia sobre requerimento de prova para que fosse concretizado o local rigoroso da via (conclusão VII), também não se nos afigura traduzir um reparo procedente.

Não é a sentença, mas a audiência de julgamento, a sede própria para tratar de tal incidência.
O Arguido não esteve presente (mas também não pretendia prestar declarações), e aquela encerra-se sem que nada fosse requerido.

Ora mesmo que tal prova viesse a ser considerada “como prova necessária, previsivelmente necessária, absolutamente necessária, útil, de interesse, relevante …”, sempre estaríamos perante uma irregularidade atuável dentro dos limites do art. 123.º, do Cód. Proc. Penal (Paulo de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 3.º Ed., pág.ª 856).

Sendo que, numa outra perspetiva, que não merecerá o aplauso do Recorrente, sempre o Tribunal acabou por identificar tal lugar.

*
Decorre do processo, seja desde logo das conclusões do recurso seja através da consulta do respetivo auto de notícia, que a infração aqui discutida teve lugar em 25/07/2019 e não em 25 de Julho de 2022, como se consigna no facto provado sob o n.º 1.

Pelo que importa, nos termos do art. 380.º, n.ºs 1, al b), e 2, do Cód. Proc. Penal, que oportunamente se retifique aquela indicação, em ordem a que figure o ano correto - 2019.

Nesta conformidade:

IV–Decisão:

Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pelo Arguido A, assim se mantendo a decisão recorrida.

Pelo seu decaimento pagará aquele 3 (três) UCs de taxa de justiça (art.ºs 92.º, 93.º, n.ºs 3 e 4 e 94.º do DL n.º 433/82, e respetivo Regulamento das Custas Processuais.

Oportunamente, retifique-se o ano da infração contante do facto provado sob o n.º 1, para que fique a consignar-se a data de 25/07/2019.

  
Elaborado em computador. Revisto pelo relator, o 1.º signatário.



Lisboa, 7 de fevereiro de 2023
                                       
                                               

Luís Almeida Gominho                                                 
Jorge Baptista Gonçalves
Maria José Machado