Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6618/2003-1
Relator: FERREIRA PASCOAL
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA PARCIALMENTE.
Sumário: I - A certidão da deliberação da assembleia de credores que aprove uma ou mais providências de reestruturação financeira e da respectiva homologação judicial constitui título executivo, quanto às obrigações dela decorrentes - art.º 94.º, n.º 2, do CPEREF.
II - Assim, dispõe de título executivo o credor cujo crédito tenha sido aprovado pela assembleia de credores, quanto às obrigações decorrentes da homologação judicial da deliberação tomada no processo de recuperação.
III - Consideram-se devidamente reclamados no processo de falência os créditos reclamados no processo de recuperação que tenha antecedido o processo de falência, sem prejuízo da possibilidade de os credores apresentarem nova reclamação, em substituição da anterior, se nisso tiverem interesse - n.º 4 do art.º 188.º do citado Código.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

O B..., sociedade anónima resultante da alteração de denominação do Banco de Fomento e Exterior, S.A, o qual incorporou por fusão o Banco Fonsecas e Burnay, S.A, propôs esta acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra M... pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de Esc. 2.140.269$00, referente ao valor do saldo a descoberto e Esc. 92.301$00 relativamente a juros vencidos e imposto de selo e juros vincendos à taxa legal, até integral e efectivo pagamento.
Alegou, em síntese, o seguinte:
A pedido da ré foi aberta uma conta de depósitos à ordem no Banco autor. Em consequência das relações existentes entre as partes consentiu o autor que a referida conta apresentasse um saldo a descoberto;
O saldo ascende a Esc.2.140.269$00;
Apesar de muitas insistências, a ré não regularizou tal saldo.
Na contestação a ré alegou, em síntese:
Recorreu às medidas especiais de recuperação de empresa e no processo que corre termos pelo 2.º Juízo Cível de Lisboa, 3.ª Secção, já foi proferido despacho de prosseguimento dos autos, nos termos do art.º 29.º, n.º 1, do CPEREF, tendo sido declaradas suspensas todas as execuções contra a ora ré e suspensa a contagem de juros de qualquer natureza relativamente aos seus débitos, pelo que, desde 9.5.97, o Banco autor não tem direito a quaisquer juros de mora vencidos ou vincendos.
O valor nestes autos reclamado também o foi naquele processo, pelo que há litispendência.
A ré não sabe se o valor da aludida conta bancária apresenta o saldo negativo alegado ou outro inferior. Contudo, revestindo o referido descoberto natureza de empréstimo, caso não tenha sido definido o seu prazo, existirá enquanto subsistir a vontade contratual das partes nesse sentido.
O autor não rescindiu o contrato pelo que não pode exigir juros de mora desde 31/12/96.
Só depois da citação se poderá considerar a denúncia por parte do banco relativamente ao contrato existente.
Até 13 de Maio de 1997 não tem direito a quaisquer juros vencidos.
Em face dos factos aduzidos pelo A. a causa de pedir não poderá ser a de um contrato de empréstimo, mas de desconto bancário, razão por que existe manifesta contradição entre o pedido e a causa de pedir, o que importa a absolvição da instância.

Na resposta à contestação o Banco autor alegou que a utilização da conta para além do seu efectivo saldo foi uma decisão unilateral do autor, pelo que logo que tal se verificou poderia a ré vir a proceder ao pagamento da dívida, razão pela qual o autor denunciou o contrato unilateral e exigiu o pagamento quando o entendeu.
O descoberto tem a natureza de empréstimo sendo este o fundamento do pedido e não o desconto razão pela qual pede a improcedência da invocada excepção.
O art.º 29.º do CPERREF ordena a suspensão das execuções não existindo igual regime para as acções declarativas nada se dizendo, igualmente, quanto á cessação do direito aos juros sendo que o que está determinado é a suspensão da contagem mantendo-se o direito.
Concluiu, igualmente, pela improcedência da alegada excepção de litispendência, pois, conforme dispõe o art.º 6.º do CPEREF, a empresa que faltar ao cumprimento das suas obrigações deverá requerer a falência ou a providência de recuperação adequada. Na invocada acção foi requerida pela R. a aplicação da medida de reestruturação financeira e/ou concordata enquanto que nesta acção se pede que a ré seja condenada a pagar ao autor o capital mutuado acrescido de juros vencidos e vincendos, pelo que nem o pedido nem a causa de pedir são idênticas.
Aos autos foi junta certidão provinda do 2.º Juízo Cível, da qual consta que foi aprovada, e judicialmente homologada, relativamente à aqui ré uma medida de reestruturação financeira, por despacho de 6/7/98, transitado em julgado.
Nessa sequência veio o A. dizer que tal medida não foi por si aprovada e não foi relativamente a si minimamente cumprida pelo que deverão os presentes autos prosseguir os seus termos.
No saneador foram as excepções, bem como a acção, julgadas improcedentes.
Inconformado com a decisão, traz o autor este recurso de apelação, pedindo que se revogue a sentença recorrida e que se condene a ré no pedido.
Apresentou para esse efeito as seguintes conclusões:
1.Nos autos estão demonstrados factos mais que suficientes que deveriam ter conduzido à condenação da Ré no pedido.
2.A conta DO, de que a Ré é única titular, apresenta desde 31.12.1996 um saldo devedor de Esc.: 2.140.269$00, que não foi pago na data da interpelação, nem posteriormente.
3.Não há qualquer dispositivo legal que imponha a suspensão de uma acção declarativa de condenação ou que restrinja os seus objectivos próprios, quando em simultâneo esteja em curso acção especial de recuperação de empresa.
4.Ambas deverão prosseguir os ulteriores termos e a final ser decididas como for de direito.
5.O M.mo Juiz recorrido nunca poderia ter-se apoiado para fundamentar a decisão ora posta em crise, na medida aprovada pela assembleia de credores na acção especial de recuperação de empresa, face ao objecto e fim próprio de cada processo.
6.Também o autor, se a decisão destes tivesse sido favorável e proferida em tempo razoável, ou seja, antes da aprovação de qualquer medida na acção de recuperação, poderia invocar tal facto naquele, pois também aí teria que se submeter ao que a assembleia de credores decidisse quanto à percentagem de pagamentos.
7.Por outro lado a Lei não obriga o credor a suspender uma acção já em curso ou a propor (com excepção da executiva ou diligências desta), quando justifique créditos numa acção especial de recuperação/falência, pois nestas o reconhecimento de um crédito visa essencialmente a participação/intervenção na assembleia definitiva de credores.
8.Tanto assim é que na hipótese de vir a ser decretada a falência, o credor terá que reclamar os seus créditos e se não tiver título com força bastante, terá que fazer a respectiva prova, a fim de o mesmo poder ser reconhecido, verificado e graduado no lugar que lhe competir.
9.Embora sem interesse para a decisão dos presentes, ao contrário do que o M.mo Juiz concluí no saneador/sentença recorrido, o crédito a liquidar por força da medida aprovada na acção especial encontra-se vencido, uma vez que a recuperanda não pagou qualquer das prestações acordadas e a primeira venceu-se em Novembro de 1999.
10. O douto saneador/sentença é nulo no entender do apelante, por haver contradição entre os fundamentos e decisão;
11. Tendo-se decidido e bem que na presente situação não se verificava a excepção de litispendência invocada pela R, entre a presente acção e a acção especial, por os sujeitos não serem os mesmos, assim como o pedido ou causa de pedir também não são idênticos, nunca o MMo a quo se poderia ter apoiado na medida de recuperação aprovada na respectiva acção especial para fundamentar a decisão dos presentes.
12. Ainda que um crédito não seja exigível em determinado momento, nada impede o Tribunal de conhecer da sua existência já, mesmo que a sua exigibilidade só o seja em momento posterior à própria sentença.
13. Se o crédito do autor está perfeitamente definido, não pode a decisão recorrida socorrer-se de factos externos ao próprio processo para o negar ou tornar "indefinido", já que se decidiu que entre estes autos e os de recuperàção de empresa não se verificava a invocada excepção de litispendência.
14. Foram violadas as disposições legais contidas nos art. 29°, 44° do CPREF art. 2.º, 301.º, 662.º, 663.º/3, 668.º/1, c) e d) e 671.º, do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre decidir.
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1.A pedido da R. foi aberta no Centro de Empresas de Mem Martins do Banco A. uma conta de depósitos à ordem a que coube o n.º 0858039-000--001;
2.Em consequência das relações existentes e da confiança que a R. lhe merecia, ao elevado montante de operações comerciais efectuadas por seu intermédio, consentiu a A. que a conta apresentasse um saldo devedor, ou seja, a descoberto;
3.A referida conta de que a R. é única titular apresenta desde 31.12.96 um saldo devedor de Esc.2.140.269$00;
4.Apesar das múltiplas insistências da autora, a ré não procedeu à regularização do descoberto;
5.A ré requereu processo especial de recuperação de empresa, o qual correu os seus termos na 3.ª Secção do 2.º Juízo (actual 2.ª Vara) do Tribunal Judicial de Lisboa, tendo em 9 de Maio de 1997 sido proferido despacho de prosseguimento da acção ao abrigo do disposto no art.º 25.º do CPEREF, conforme doc. de fls.17 e ss. e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
6.No processo referido em 5) foi relacionado o crédito da autora, pelo valor de Esc. 20.757.274$00 tendo sido reconhecido pelo Sr. Gestor pelo valor de 20.757.274$00 mais juros no montante total de Esc. 29.036.540$20 e aprovado pela assembleia de credores;
7.A assembleia definitiva de credores da ré, reunida no âmbito do processo referido em 5), aprovou a medida de reestruturação financeira, votada por maioria qualificada dos credores relacionados e reconhecidos, a qual consistiu, nomeadamente e relativamente aos credores bancários no seguinte:
«a) Capital - Pagamento de 35% do capital em dívida;
Forma - 20 amortizações semestrais, a começar em Novembro de 1999 e a terminar em Maio de 2009;
Juros - perdão de todos os juros vencidos e vincendos;
Carência - 18 meses;
Garantias - os valores de todas as garantias existentes serão reduzidos de acordo com a percentagem acordada para a redução do capital.
8.A providência referida em 7) foi homologada por decisão proferida em 6 de Julho de 1998 a qual, transitou em julgado;
9.O ora A. votou contra a medida aprovada;
10.A petição inicial dos presentes autos deu entrada na secretaria deste Tribunal em 1 de Abril de 1997, nos termos que constam do carimbo aposto a fls. 2 dos autos.
Apreciemos agora, perante estes factos, o mérito do recurso.
Há uma única questão a decidir: após ter sido homologada uma providência de reestruturação financeira num processo de recuperação de empresa, pode essa empresa ser condenada numa acção declarativa no pedido de pagamento de um crédito já aprovado pela assembleia de credores?
A sentença recorrida respondeu negativamente a esta questão, tendo absolvido do pedido a ré que beneficiou daquela medida. Considerou que “o crédito da autora se encontra definido”, mas que no processo de recuperação, o crédito do Banco autor aqui peticionado foi ali englobado no crédito relacionado, reconhecido pelo respectivo gestor judicial e aprovado pela assembleia de credores, que, porém, não aprovou o pagamento integral de todos os créditos e estabeleceu uma moratória no pagamento dos créditos.
Por seu turno, o Banco apelante alega que nada impede a condenação da ré e que tal condenação continua a ter interesse para o apelante, visto que, se vier a ser decretada a falência da ré, o mesmo terá de reclamar o seu crédito no processo de falência, e tudo será mais fácil se vier a dispor da sentença de condenação da ré como título executivo.
O art.º 29.º do CPEREF, que se refere à suspensão imediata de acções, apenas abrange as execuções instauradas contra o devedor e todas as diligências de acções executivas que atinjam o seu património, não as acções declarativas. A reclamação de créditos efectuada no processo de recuperação destina-se a permitir a intervenção do credor reclamante na assembleia de credores (vide art.º 44.º do mesmo Código). Mas não pode deixar de se ter em consideração o disposto no n.º 1 do art.º 94.º desse Código: “A deliberação da assembleia de credores que aprove uma ou mais providências de reestruturação financeira, depois de homologada, vale não só nas relações entre os credores e a empresa, mas também relativamente a terceiros”. E o n.º 2 desse artigo prescreve que “A certidão da deliberação tomada e da respectiva homologação judicial constitui título executivo quanto às obrigações dela decorrentes, e serve de título bastante para a inscrição dos actos sujeitos a registo”. Assim, e no que ao caso dos autos se refere, o Banco autor já pode dispor de título executivo, quanto às obrigações decorrentes da homologação judicial da deliberação tomada no aludido processo de recuperação, visto o crédito a que esta acção se refere ter sido aprovado pela assembleia de credores (vide n.º 6 dos factos provados) e a providência ter sido homologada por decisão judicial (n.º 8 daqueles factos). De resto, e ao contrário do que alega o Banco apelante, consideram-se devidamente reclamados no processo de falência os créditos reclamados no processo de recuperação que tenha antecedido o processo de falência, sem prejuízo da possibilidade de os credores apresentarem nova reclamação, em substituição da anterior, se nisso tiverem interesse (n.º 4 do art.º 188.º do citado Código).
Assim, podendo o ora apelante dispor do referido título executivo, o prosseguimento desta acção tornou-se inútil, após o trânsito em julgado da decisão judicial que homologou a providência de reestruturação financeira da ora apelada. Por isso, em vez de absolver a ré do pedido, a decisão recorrida devia ter-se limitado a julgar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, com custas pela ré, visto tal inutilidade resultar de facto a esta imputável (parte final do art.º 447.º do CPC).
A apelação procede, pois, mas apenas nos aludidos termos, impondo-se a revogação da sentença que absolveu a ré do pedido.
Nestes termos, julgando-se parcialmente procedente a apelação, revoga-se a sentença recorrida e julga-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide resultante do facto de ter sido reconhecido e aprovado no processo de recuperação da ora apelada o crédito em causa nesta acção, cujo pagamento parcial integra a providência ali homologada por decisão judicial transitada em julgado.
Custas na 1.ª instância totalmente pela ré, ficando as do recurso, em partes iguais, a cargo do apelante e da apelada.
Lisboa, 9 de Dezembro de 2003.
Ferreira Pascoal
Pereira da Silva
Pais do Amaral