Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA RUTE COSTA PEREIRA | ||
Descritores: | RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS INSOLVÊNCIA HOMOLOGAÇÃO CRÉDITO LABORAL PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/28/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Se o objeto do apenso de reclamação de créditos corresponde à identificação exaustiva dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, seu valor e garantias, para verificação e graduação e estes elementos constam da lista fornecida pelo Administrador de Insolvência, homologar mais não significa do que validar, ipsis verbis, o que consta daquela mesma lista, não se exigindo do juiz senão que verifique se existe erro manifesto que impeça tal validação global, inexistindo, consequentemente, qualquer ónus de identificação autónoma de factos para além daqueles que diretamente resultam da listagem apresentada pelo Administrador de Insolvência, que, porque não impugnados, constituem a base da homologação, da qual são pressuposto lógico. 2. O local específico onde cada trabalhador presta funções constitui, como tem sido reconhecido, "mero elemento acidental da relação laboral", que não poderá ser considerado como fator de diferenciação dos direitos dos trabalhadores; não podendo, por isso, funcionar como critério de atribuição de garantias dos créditos que emergem daquela relação. 3. Ao não ter a apelante (ou qualquer outro credor) impugnado a lista de créditos reconhecidos, não sobressaindo dos autos qualquer facto unívoco e concreto que pudesse gerar dúvidas ao juiz quanto à afetação do imóvel à atividade da insolvente, não se antevê obstáculo à prolação de decisão homologatória da lista de créditos reconhecidos, sendo contrário ao sentido da previsão legal contida no art.º 130º, n.º3 do CIRE considerar que ao juiz se impunha investigar ou produzir qualquer prova com vista a concluir se aquele imóvel era efetivamente destinado ao desenvolvimento daquela atividade. 4. Se o titular do crédito reconhecido como laboral foi, ao longo de um determinado período temporal, administrador da sociedade insolvente, nesse mesmo período não poderia celebrar contrato de trabalho com a sociedade ou, caso esse contrato fosse anterior à sua designação como administrador, não poderia manter os seus efeitos ao longo do período em que o até então trabalhador se mantivesse no cargo, pelo que, caso os valores reclamados se reportem a esse período de exercício de funções, o crédito não pode ser reconhecido como laboral e, consequentemente, não corresponderá a um crédito garantido ou privilegiado, antes constituindo um crédito subordinado, que deverá ser graduado depois dos restantes créditos sobre a insolvência, por aplicação das disposições dos artigos 48º, al. a) e 49º, n.º 2, al. c) do CIRE. 5. Perante a evidência de que o credor privilegiado titular do crédito laboral assumiu funções como administrador da insolvente, impõe-se ao juiz, em fase prévia à homologação da lista de créditos reconhecidos, obter esclarecimentos junto do Administrador de Insolvência, para suprimento da insuficiência de informação necessária à prolação de decisão de verificação e graduação de créditos, designadamente a junção da reclamação de créditos, para deteção do período a que os mesmos se reportam (aferição da coincidência entre a data de constituição dos créditos e o período de exercício de funções pelo credor como administrador da insolvente). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa I. 1. Em 26.03.2024, AA., S.A., com o NIPC …, com sede na …, requereu a declaração judicial da sua situação de insolvência. Anexou ao requerimento inicial, entre outros documentos, a lista de credores, a lista de acionistas e o mapa de pessoal. Da lista de acionistas, correspondente ao anexo II, constam identificados BB, CC e AA, S.A.. Do mapa de pessoal, correspondente ao Anexo III, constam identificados 9 trabalhadores, entre os quais DD, com a categoria profissional de Eng.º Agrónomo e uma remuneração base de 3.300,00 EUR. Da certidão permanente da requerente, anexa ao requerimento inicial como documento n.º4, consta identificado o objeto da sociedade como sendo Importação, exportação, comércio e transformação de auxiliares biológicos, controle integrado, polinizadores, produtos químicos, adubos diversos para a agricultura e indústria em geral, produtos veterinários, rações para animais, mangas e filmes em plástico, regas, fertilizantes químicos e orgânicos, turfas e substractos, sementes, bolbos e plantas, máquinas agricolas e alfaias, prestação de serviços e assistência técnica, desinfecção e desinfestação, formulação e embalamento de nutrientes químicos e biológicos e orgânicos de produtos para a agricultura e serviços afins. Ciências nutricionais e biológicas. Na sequência de despacho datado de 08.04.2024, em 09.04.2024 a requerente juntou aos autos o anexo V, correspondente à relação de bens em regime de arrendamento, aluguer ou locação financeira ou venda com reserva de propriedade, e de todos os demais bens e direitos de que seja titular, no qual identifica, entre outros bens: - o imóvel inscrito na matriz rústica sob o artigo …, secção ... e na matriz urbana sob o artigo …; descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, terreno para construção, sito em …, …, aquisição com hipoteca; - o armazém industrial, em regime de arrendamento, sito na zona industrial de …, lote …. 2. Por sentença datada de 11.04.2024, transitada em julgado em 02.05.2024, foi declarada a insolvência da requerente Foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos. 3. Em 06.06.2024 foi junta aos autos de insolvência a certidão permanente da insolvente com confirmação do registo da situação de insolvência (refª Citius n.º 39588458) A certidão permanente da insolvente – Insc. 1 - identifica a sua sede como sita na …, ..., no Concelho do …, Distrito de …. Identifica, como membros do Conselho de Administração, BB e DD, sendo o primeiro designado como administrador único desde a data da constituição da sociedade insolvente – 09.10.2000 – até ao biénio 2017/2018 (Insc. 3 – Ap. 1 e 2/20180213), ocasião em que foram levadas a registo as alterações ao contrato de sociedade e designação de membros de órgãos sociais, passando a estrutura da administração a ser definida nos seguintes termos: “A sociedade será administrada e representada por um administrador único ou por um conselho de administração eleito em assembleia geral, composto por dois ou mais membros, os quais entre si, escolherão um que exercerá as funções de presidente, todos eleitos bienalmente e sempre reelegíveis”; BB assumiu o cargo de presidente do Conselho de Administração e DD o de Vogal do Conselho de Administração (data da deliberação de 17.01.2017). Das Inscrições 6 (AP. 1/20190925), 7 (AP. 1/20210819), 9 (AP. 1/20230125) consta a apresentação a registo da designação/recondução dos membros de órgãos sociais, respetivamente, nos biénios 2019/2020, 2021/2022 e 2023/2024, com manutenção dos membros do Conselho de Administração designados (BB e DD). Em 08.04.2024 foi averbada a registo a “AP. 1/20240408 15:39:04 UTC – CESSAÇÃO DE FUNÇÕES DE MEMBROS DO(S) ORGÃO(S) SOCIAL(AIS)”, com inscrição da renúncia de DD ao cargo de vogal do Conselho de Administração, com data referência de 25.03.2024. 4. Em 12.06.2024 o Sr. Administrador de Insolvência juntou aos autos de insolvência o relatório a que alude o art.º 155º do CIRE – ref.ª Citius n.º 39628651. No relatório é identificada a data de constituição da insolvente: 09.10.2000; a composição do conselho de administração: BB, Presidente, DD, Vogal (cessou funções em 08.04.2024) No que respeita à situação patrimonial da insolvente, identifica um único bem imóvel, correspondente ao prédio rústico sito em …, freguesia de …, com a área de 5.480 m2, composto por horta e eira registado na CRP de …, freguesia de … sob o artigo n” … e inscrito na matriz respetiva sob o n” …, com o valor patrimonial atual de 43,67€., a que corresponde o valor contabilístico de 316.947,25€. Anexa ao relatório: certidão predial do imóvel, com registo de aquisição a favor da insolvente datado de 2002.02.14; certidão matricial, que identifica 3 parcelas no prédio, sendo 0,368000ha de horta, 0,020000ha de eira e 0,160000ha urbano No mais, entre outros bens, identifica bens móveis sujeitos a registo, designadamente 4 tratores e 10 atrelados, que não constam da contabilidade da insolvente. 5. Os autos de insolvência prosseguiram para liquidação do ativo (despacho de 08.07.2024, ref.ª Citius n.º 437004710), com declaração de encerramento da atividade do estabelecimento da insolvente. 6. Em 24.04.2024 foi iniciado o apenso de liquidação do ativo (apenso A), com requerimento do Administrador de Insolvência informando que iria promover a venda antecipada dos bens que se situam no armazém sito em Lote …, Z.I. de …, referindo que os bens em apreço são constituídos por produtos ligados à agricultura, na sua maioria relacionados com a presente campanha que termina em Junho do corrente, tais produtos, alguns de elevada componente química, têm prazos de validade pelo que urge a sua venda urgente, sob pena de constituírem um encargo decorrente da sua remoção e aterro. Entre os bens apreendidos e incluídos no apenso de liquidação, constam, como lote …, uma alfaia agrícola – semeador (requerimento de 23.09.2024, apenso A). 7. Na sequência da apresentação do relatório a que alude o art.º 155º do CIRE, junto aos autos de insolvência em 12.06.2024, em 25.06.2024, o Sr. Administrador de Insolvência requereu a abertura do incidente de qualificação de insolvência – apenso B -, referindo que as funções de Administrador da sociedade insolvente eram exercidas por BB, no qual conclui que «a insolvência da sociedade “AA, S.A.” se ficou a dever a atuação culposa do Administrador BB, pelo que deverá ser qualificada como culposa, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 185” e segts do CIRE, devendo o referido Administrador ser afetado por tal qualificação». 8. Em cumprimento do disposto no art.º 129.º, do CIRE, em 28.06.2024 o Sr. Administrador de Insolvência juntou lista de credores reconhecidos e não reconhecidos e documentos comprovativos do cumprimento do disposto no n.º 4 do citado preceito legal, dando início ao presente apenso C – reclamação de créditos, Na lista de créditos reconhecidos, constam identificados, entre outros: - no n.º de ordem 9, EE, CRL., com créditos no valor total (capital e juros) de 87.947,10 € e 100 873,32 €, ambos com fundamento em contratos de crédito, classificados como créditos garantidos por hipoteca; - no n.º de ordem 14, o credor DD, com um crédito no valor de 42 203,34 € (capital) – créditos laborais - classificado como crédito privilegiado, com privilégio mobiliário e imobiliário. 9. Em 23.09.2024 foi proferida sentença no apenso de reclamação de créditos, com o seguinte teor: «I. Por sentença já transitada em julgado, proferida nos autos principais em 11/04/2024, foi decretada a insolvência de AA, S.A.. Foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos. Findo o prazo da reclamação, o sr. administrador da insolvência, em cumprimento do preceituado no art.º 129.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, juntou aos autos lista de credores reconhecidos e não reconhecidos e documentos comprovativos do cumprimento do disposto no n.º 4 do citado preceito legal. * Para a massa insolvente foram apreendidos um imóvel, veículos automóveis e bens móveis não sujeitos a registo. * II. O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. Não existem nulidades que invalidem todo o processado. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. Não há outras excepções ou questões prévias que cumpra conhecer e que impeçam o conhecimento do mérito. * III. Nos termos do disposto no art.º 130.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, “se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que consta dessa lista.” No caso concreto, por inexistência de impugnações, há que homologar as listas de credores reconhecidos apresentadas pelo sr. administrador da insolvência. Haverá, ainda, que atender ao exposto pelo credor sob condição em requerimento de 22/08/2022. * IV. Face ao exposto, nos termos do art.º 130.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, homologo a lista de credores reconhecidos apresentada pelo sr. administrador da insolvência, e, consequentemente, julgo verificados os créditos ali descritos, com a alteração decorrente do exposto no requerimento de 22/08/2024. * V. Verificados os créditos por homologação, há agora que proceder à sua graduação, tendo em atenção o que consta da lista homologada, as disposições legais aplicáveis e a composição da massa insolvente. A regra geral é de que todos os credores estão em situação de igualdade perante o património do devedor. Existem, porém, causas de preferência no pagamento, legalmente consagradas e que podem incidir sobre alguns bens ou todos os bens do insolvente, as quais constituem excepções ao princípio da igualdade dos credores perante o património do devedor. O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas veio consagrar a repartição dos credores por classes – art.º 47.º do citado diploma e, em especial, o n.º 4 – sendo garantidos os créditos que beneficiem de garantias reais, incluindo os privilégios especiais, privilegiados os créditos que beneficiem de privilégios creditórios gerais, subordinados os créditos enumerados no art.º 48.º, excepto quando beneficiem de privilégios ou garantias que se não extingam por efeito da declaração de insolvência (cfr. art.º 97.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e comuns os demais créditos. Como créditos sob condição, o Código define aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico (art.º 50.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). No caso concreto, e de acordo com a lista homologada, temos créditos garantidos, privilegiados, comuns, subordinados e sob condição. Assim, considerando a natureza dos bens apreendidos: - o crédito reclamado pela Fazenda Nacional referente a imposto municipal sobre imóveis, que incide sobre o imóvel apreendido, na parte em que goza de privilégio imobiliário especial (art.º 744.º do Código Civil, art.º 122.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e art.º 97.º, n.º 1, al. b), a contrario, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), deve ser graduado em primeiro lugar sobre o produto da venda do imóvel (art.º 751.º do Código Civil); - os créditos laborais devem ser graduados em segundo lugar sobre o imóvel apreendido, na medida em que beneficiam de privilégio imobiliário especial, (art.º 333.º, n.º 1, al. b), do Código do Trabalho e art.º 751.º do Código Civil) e em primeiro lugar sobre os veículos automóveis e demais bens móveis apreendidos, por beneficiarem de privilégio mobiliário geral (art.º 333.º, n.º 1, al. a), do CT2009); - o crédito garantido por hipoteca, nos termos do art.º 686.º, n.º 1, do Código Civil, será graduado após os créditos dos trabalhadores, sobre o imóvel apreendido; - o crédito reclamado pela Fazenda Nacional referente a I.V.A. deve ser graduado após os créditos laborais sobre os bens móveis, na medida em que goza de privilégio mobiliário geral sobre o produto da venda destes (arts. 735.º, 736.º e 747.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, e 97.º, n.º 1, al. a), a contrario, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas); - os créditos comuns serão pagos na proporção respectiva, se a massa insolvente for insuficiente para a sua satisfação integral (arts. 47.º, n.º 4, al. c), e 176.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas); - os créditos subordinados deverão ser graduados depois dos créditos comuns e serão pagos apenas após pagamento integral destes (arts. 48.º e 177.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas); - os créditos sob condição serão pagos em observância do disposto nos arts. 94.º e 181.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; * VI. Pelo exposto, graduo os créditos sobre a insolvente AA., S.A., para serem pagos da seguinte forma: A) Sobre o produto da venda do imóvel apreendido: - em primeiro lugar, o crédito da Fazenda Nacional por IMI; - em segundo lugar, os créditos laborais; - em terceiro lugar, o crédito de EE, CRL, até ao montante garantido pelas hipotecas; - após, pelo valor remanescente, se existir, rateadamente, os créditos comuns; - por último, os créditos subordinados, após pagamento integral dos créditos comuns; - os créditos sob condição serão pagos em observância do disposto nos arts. 94.º e 181.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; B) Sobre o produto da venda dos veículos automóveis e demais bens móveis apreendidos/a apreender: - em primeiro lugar, os créditos laborais; - em segundo lugar, o crédito reclamado pela Fazenda Nacional por I.V.A.; - de seguida, rateadamente, os créditos comuns, se o produto da venda for insuficiente para a respectiva satisfação integral; - por último, os créditos subordinados, após pagamento integral dos créditos comuns; - os créditos sob condição serão pagos em observância do disposto nos arts. 94.º e 181.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. * As dívidas da massa insolvente (art.º 51.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), saem precípuas na devida proporção do produto da venda de cada bem nos termos do art.º 172.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. * Nos termos do disposto no art.º 303.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a actividade processual relativa à verificação e graduação de créditos, quando as custas devam ficar a cargo da massa, não é objecto de tributação autónoma. Assim, não há lugar a custas. * Registe e Notifique.» 10. Notificada da sentença aludida em I.9, veio a credora EE, C.R.L. interpor o presente recurso, pedindo que seja a sentença revogada na parte em que qualificou créditos não laborais como gozando do privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido e, consequentemente, passando a fixar-se que pelo produto da venda daquele bem serão pagos os créditos reconhecidos, pela seguinte ordem: i. Em primeiro lugar o crédito do Estado, por IMI; ii. Em segundo lugar, o crédito garantido por hipoteca da EE. 11. A pretensão revogatória deduzida pela apelante é suportada em fundamentos que aquela sintetiza nas seguintes conclusões: a) A sentença proferida para verificação e graduação de créditos graduou os créditos nos seguintes termos: a. Sobre o produto da venda do imóvel apreendido: i.- em primeiro lugar, o crédito da Fazenda Nacional por IMI; ii.- em segundo lugar, os créditos laborais; iii.- em terceiro lugar, o crédito de EE, CRL, até ao montante garantido pelas hipotecas; b) Esta decisão não está suportada em factos, o que constitui uma violação do disposto na al. b) do n.1 do art.º 615º do CPC, tornando-a nula; c) Mesmo que assim não se entendesse sempre se concluiria que a decisão recorrida voltava a violar a Lei, desta feita por considerar verificado um privilégio creditório imobiliário especial sobre o imóvel apreendido, sendo manifesto que naquele imóvel a insolvente não desenvolvia qualquer actividade, nem mesmo a que constituía o seu objecto social, decisão esta proferida sem a invocação de factos concretos e sindicáveis, designadamente susceptíveis de fundamentar a existência de uma ligação funcional entre o ou os trabalhadores cujos créditos foram graduados e o prédio apreendido, descurando, assim, necessidade de o julgador aplicar correctamente o disposto no art.º 333º do CT a uma factualidade concreta e demonstrável, mediante necessária caracterização das circunstâncias de modo, lugar e tempo segundo os quais fundou o juízo de existência de uma válida ligação funcional entre o trabalho em que se funda o crédito e a actividade desenvolvida no prédio do empregador que se pretende afectado pelo privilégio creditório. d) Esta ausência de fundamentação de facto que, por um lado contrarie tudo quanto nos autos prova a inexistência de qualquer actividade no prédio apreendido e, por outro justifique a existência do decidido privilégio creditório imobiliário especial, constitui, também, vício da sentença gerador da sua nulidade, à luz do n. 1 al. b) do art.º 615º do CPC. e) Numa terceira linha, a sentença recorrida volta a violar normas legais, daí resultando, também, a consequente nulidade. Tal ocorre quando o tribunal a quo decidiu considerar como créditos laborais os créditos de elemento do conselho de administração da insolvente, mais exactamente o seu vogal, créditos estes de natureza inconciliável com os emergentes de contrato de trabalho e, consequentemente, insuscetíveis de gozarem do privilégio do art.º 333 do Código do Trabalho, norma para a qual a sentença remete. f) Não fora as manifestas violações da Lei e apenas se poderia falar de um único privilégio creditório imobiliário especial, aquele de que beneficiaria o crédito da Autoridade Tributária, resultante de IMI, e que permitirá ao Estado ser pago pelo produto da venda do prédio apreendido, em primeiro lugar. g) Porque assim é, após revogação da sentença recorrida deverá ser proferida uma outra em sua substituição que, graduando os créditos, fixará que após o crédito do Estado seguir-se-á o hipotecário da recorrente, nos termos do argo 686.º, do Código Civil, pois que a prioridade do registo, junto do Registo Predial, confere-lhe prioridade. h) Ao decidir nos termos em que o fez o tribunal a quo proferiu uma decisão violadora dos direitos e interesses da recorrente. i) Numa palavra, a ausência de imprescindível fundamentação de facto (n. 1 al. b do art.º 615º do CPC) que, por um lado, contrarie tudo quanto nos autos prova a inexistência de qualquer actividade no prédio apreendido e, por outro, justifique e suporte a existência do privilégio creditório imobiliário especial, a que acresce a errada aplicação da Lei consubstanciada na atribuição daquele privilégio a créditos não laborais (com violação do disposto no art.º 333 do CT), constitui um duplo vício da sentença gerador da sua nulidade. Não foram apresentadas contra-alegações. 12. O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos de apenso de reclamação de créditos e efeito meramente devolutivo. No despacho que admitiu o recurso, a Mm.ª Juiz a quo pronunciou-se sobre a nulidade arguida pela apelante, nos seguintes termos “(…) consigna-se que se entende não padecer a sentença da nulidade apontada e que a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo sr. administrador da insolvência, na qual consta como credor DD e a identificação da natureza do crédito como privilegiado, emergente de créditos laborais, não foi, oportunamente, objecto de impugnação” Foram colhidos os vistos legais. Cumpre apreciar. II. Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), constituem questões a decidir apreciar se: A. a sentença recorrida se encontra ferida de nulidade por omissão de fundamentação de facto; B. a decisão recorrida, ao ter considerado verificado o crédito laboral e o ter graduado como garantido por privilégio imobiliário especial, desconsiderou factos que lhe eram acessíveis por mera consulta aos autos e suportavam conclusão jurídica contrária, concluindo indevidamente: i.que o crédito o imóvel apreendido estava afeto à atividade da insolvente; ii.que constitui crédito laboral garantido o crédito de um administrador da devedora insolvente. III. Os factos relevantes para a decisão a proferir correspondem aos sintetizados no ponto I (relatório), que aqui se têm por reproduzidos. IV. A. Conforme resulta do elenco de questões sob apreciação, o primeiro argumento aduzido pela apelante em suporte da nulidade da decisão recorrida assenta na omissão de indicação pelo tribunal a quo de factos passíveis de virem a alicerçar a conclusão jurídica em que se veio a traduzir a verificação de um crédito como laboral, com a natureza de crédito garantido por privilégio imobiliário especial, designadamente a identificação do seu titular, o montante do crédito e o nexo causal entre esse crédito e o imóvel apreendido. Dada a sua relevância para apreciação da totalidade das questões enunciadas, importa atentar nos preceitos legais que regulam a tramitação do incidente de reclamação de créditos no contexto do processo de insolvência. Assim, conforme preceituam os n.ºs 1 e 2 do art.º 129º do CIRE: - nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação, como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento, bem como uma proposta de graduação dos credores reconhecidos, que tenha por referência a previsível composição da massa insolvente e respeite o disposto no n.º 2 do artigo 140.º e na alínea d) do n.º 1 do artigo 241.º (n.º1); - da lista dos credores reconhecidos consta a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, as eventuais condições suspensivas ou resolutivas e o valor dos bens integrantes da massa insolvente sobre os quais incidem garantias reais de créditos pelos quais o devedor não responda pessoalmente (n.º2). Por seu turno, estatui o art.º 130º, no seu n.º 1 que “[N]os 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos”. Acrescenta o n.º3 que “[S]e não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta”. Como se depreende pelo confronto entre os preceitos legais citados e o que dispõem os artigos 131º a 140º do CIRE, o legislador claramente diferenciou a tramitação do apenso de reclamação de créditos quando, por um lado, exista impugnação de algum dos créditos reconhecidos (quanto à sua inclusão/exclusão, montante ou qualificação), caso em que, exclusivamente quanto aos créditos impugnados, é seguido um processado próximo da ação declarativa comum, que culmina com a prolação de sentença, conforme dispõe o art.º 140º do CIRE, da tramitação a seguir quando, por outro lado e como sucedeu no caso concreto, nenhuma impugnação é dirigida à lista de créditos reconhecidos, caso em que a lista de credores (que inclui a sua identificação, o valor dos créditos, a sua natureza, garantias e privilégios) é meramente homologada pelo juiz, salvo quando exista erro manifesto. Esta decisão homologatória, pela sua própria natureza, não reclama a enunciação de factos, tendo em conta a matéria que é objeto de decisão no processo. Se o objeto do apenso de reclamação de créditos corresponde à identificação exaustiva dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, seu valor e garantias, para verificação e graduação e estes elementos constam da lista fornecida pelo Administrador de Insolvência, homologar mais não significa do que validar, ipsis verbis, o que consta daquela mesma lista, não se exigindo do juiz senão que verifique se existe erro manifesto que impeça tal validação global. Os factos a que devem atender as partes para eventualmente questionarem a correção da decisão homologatória proferida são os elencados na lista de créditos apresentada pelo Administrador de Insolvência – onde se encontra identificado o crédito laboral, com discriminação do seu valor, a sua classificação como privilegiado e a identificação do mesmo como garantido por privilégio mobiliário e imobiliário (a existência de apenas um imóvel no património da insolvente não é de molde a gerar dúvidas quanto ao bem que se encontra afeto a esta última garantia), que não carecem de ser reproduzidos por, contrariamente ao que sucede no caso da sentença proferida nos termos do art.º 140º do CIRE, estarmos perante uma operação de genérica fiscalização da existência de erro evidente na lista apresentada que, nos casos em que o juiz decida pela homologação, se considera reproduzida. Nesta medida, apenas na eventualidade de a lista ser omissa em relação ao crédito laboral que aqui se questiona ou à sua classificação como crédito garantido/privilegiado, assumindo a decisão final factos que não constavam da mesma, é que se poderia aceitar a invocação de vício de omissão de fundamentação de facto, enquanto causa de nulidade da sentença passível de preencher a previsão do art.º 615º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil. O teor da decisão recorrida, onde se refere “homologo a lista de credores reconhecidos apresentada pelo sr. administrador da insolvência, e, consequentemente, julgo verificados os créditos ali descritos”, remete para a apontada “descrição”, sendo esses os factos que, porque não impugnados, se consideram validados, não sendo exigível que aquela lista descreva os elementos de pormenor que sustentam a conclusão nela plasmada, designadamente as razões particulares que conduziram à sua identificação como crédito privilegiado, antes constituindo ónus dos credores que dela discordem o de impugnarem a mesma, adiantando as suas razões de facto. Não se pode, assim, considerar verificada a genérica omissão de fundamentação de facto, enquanto causa autónoma de nulidade da sentença, não sendo aplicáveis à sentença homologatória as exigências formais previstas no art.º 607º do Código de Processo Civil, inexistindo, consequentemente, qualquer ónus de identificação autónoma de factos para além daqueles que diretamente resultam da listagem apresentada pelo Administrador de Insolvência, que, porque não impugnados, constituem a base da homologação, da qual são pressuposto lógico. Deste modo, caso inexista o “erro manifesto” em que assenta o cerne da função fiscalizadora do juiz, tal como a define o legislador, se a listagem identifica os créditos como laborais e expressamente menciona os privilégios creditórios que os acompanham, o juiz, ao verificar que aqueles factos não mereceram impugnação, apenas terá que, em sede de graduação dos créditos, verificar se a lei dá respaldo à garantia ali assinalada, como sucedeu no caso concreto. Conclui-se que não assiste, nesta parte, razão à apelante. * Questão distinta será a de apreciarmos se, ao proferir sentença homologatória que considerou verificados os créditos identificados na lista de credores elaborada pelo Administrador de Insolvência, descurou o juiz a quo a sua função fiscalizadora, isto é, se foi desconsiderada a existência de erro manifesto, vício que vê contemplada a sua apreciação no âmbito dos erros de julgamento que a apelante imputa ao tribunal recorrido. B. Por envolverem a análise de idênticos argumentos de direito, optamos por efetuar uma apreciação introdutória conjunta das duas sub-questões indicadas em II.B, centradas no erro de julgamento imputado pela apelante ao tribunal recorrido – errada aplicação do direito a factos que, não obstante não constarem da lista de créditos reconhecidos, lhe eram acessíveis e dos quais deveria ter conhecimento. A previsão do art.º 130º, n.º 3 do CIRE, que contempla o efeito cominatório associado à ausência de impugnação dirigida à lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência, quando interpretada no seu sentido mais abrangente, relegando o juiz para uma função quase administrativa numa matéria tão delicada como a da verificação e graduação de créditos, tem sido analisada criticamente na doutrina e jurisprudência. Nesta apreciação crítica tem-se sempre presente que a satisfação do interesse dos credores constitui a finalidade essencial do processo de execução universal em que se traduz o processo especial de insolvência – art.º 1º, n.º 1 do CIRE. Em anotação ao citado art.º 130º, n.º 3 do CIRE, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda [CIRE Anotado, 3ª edição, Quid Juris, p. 528/529] referem que, segundo a letra da lei, verificada a hipótese de ausência de impugnações, a sentença proferida se limita a homologar a lista de créditos reconhecidos elaborada pelo Administrador de Insolvência, atribuindo-se efeito cominatório à falta de impugnações, o que apenas não acontece se houver erro manifesto, interpretação literal em relação à qual referem “(…) Suscita-nos as maiores dúvidas este regime, quanto à sua adequação numa matéria de tanto relevo e complexidade técnico-jurídica. Desde logo por limitar tão significativamente a função do juiz que quase a reduz a uma mera formalidade, com escasso sentido substantivo. (…) Por outro lado, impressiona, no que respeita às garantias, que a sua constituição esteja anormalmente dependente do preenchimento de requisitos formais ad substantiam, cuja falta seja, afinal de contas, puramente ignorada ou desconsiderada por mero efeito da falta de impugnação. Por isso, defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite”, sendo que o erro pode respeitar à indevida inclusão do crédito na lista, ao seu montante ou às suas qualidades. Neste sentido, também Catarina Serra [Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, Almedina, p. 285/286], à questão se a falta de impugnação produz um efeito cominatório pleno, refere que “a resposta deve ser, sem hesitações, negativa. Em caso algum poderia entender-se que o juiz está dispensado de desenvolver uma actividade jurisdicional mínima, cabendo-lhe sempre proceder à apreciação global dos créditos antes de declarar quais são os créditos reconhecidos”. Na jurisprudência, o STJ tem-se pronunciado no sentido afirmado pelo Acórdão de 10.12.2015 (proc.º n.º 836/12.0TBSTS-A.P1.S1, rel. Fonseca Ramos, disponível nesta ligação), que cita anterior jurisprudência no mesmo sentido, onde se refere que «a ausência de impugnação de créditos constantes da lista apresentada pelo AI, nos termos do art.º 129º do CIRE, não impede o Juiz de exercer um controle sobre a respectiva legalidade, não apenas formal mas substantiva: os requisitos da elaboração da lista contêm normas procedimentais e juízos de qualificação jurídica (por exemplo, quanto se considera que o crédito X ou Y dispõe de garantia real ou é um crédito privilegiado). Se pensarmos que muitas vezes o AI não é jurista, a possibilidade desculpável de erro existe. Por isso, a ausência de impugnação da lista apresentada não a torna inatacável (…) Para detectar a existência de erro manifesto, tem o julgador de analisar a lista apresentada pelo AI e aí examinar se os requisitos decisivos para cumprir as normas convocáveis para proferir a sentença de verificação e graduação, assistindo-lhe o poder-dever de convocar o A.I. para dele obter os esclarecimentos que supram ou completem a lista elaborada (…) Esse controle, para evitar que “erros manifestos” inquinem a homologação, permite ao Juiz latos poderes de controle dos requerimentos dos credores reclamantes, de modo a verificar se foram alegados os requisitos a que se aludiu, pois só ante eles o julgador, atenta a natureza do crédito, as suas garantias e demais elementos que a lei impõe que sejam mencionados, poderá proceder a uma correcta graduação» (no mesmo sentido, Acórdão de 17-04-2018, proc.º4247/11.6TBBRG-B.G1-A.S3, rel. Henrique Araújo, disponível nesta ligação). Neste Tribunal da Relação de Lisboa, cita-se o Acórdão de 24-11-2020 (proc.º n.º 27885/16.6T8LSB-A.L1-1, rel. Amélia Sofia Rebelo, disponível nesta ligação), no qual se refere que “(…) [P]or referência ao papel, constitucionalmente inderrogável, do exercício da atividade jurisdicional enquanto garante da legalidade das matérias acobertadas pelas decisões e da composição dos conflitos de interesses em conformidade com o direito aplicável (cfr. arts. 20º, nº 1 e 202º, nº 2 da CRP), a sindicância do erro manifesto previsto pelo art.º 130º, nº 3 do CIRE deve interpretar-se em termos amplos, encarando-a como o exercício de um poder-dever do Juiz para, no confronto com o que consta da própria lista ou do que resulta dos elementos disponíveis nos autos de insolvência (lato senso), verificar a conformidade substancial e formal dos créditos inscritos na lista que vai homologar, se necessário for, solicitando ao Administrador da Insolvência todos os esclarecimentos e elementos que para o efeito se revelem necessários, e, em qualquer caso, sem prejuízo do cumprimento do pertinente contraditório se da referida oficiosidade resultar alteração ao teor da lista de créditos tal qual como a mesma foi apresentada pelo Administrador da Insolvência” – sobre o que se entende por erro manifesto e a inexistência de imposição ao juiz de desenvolvimento de uma atividade investigatória, que não se confunde com a apreciação cuidada de elementos que flagrantemente constem do processo, v. Acórdão desta Relação de 10.12.2024, no âmbito do processo n.º 1588/23.3T8BRR-F.L1, rel. Elisabete Assunção, em que a ora relatora intervém como 1ª adjunta. A esta luz, tendo presentes os elementos constantes do processo de insolvência, já sintetizados em I. (relatório), acessíveis ao juiz no momento em que procedeu à prolação de sentença homologatória de verificação de créditos e à subsequente graduação dos mesmos, impõe-se verificar se era patente a existência de erro, grosseiro ou manifesto, passível de reclamar a sua intervenção fiscalizadora ou de alicerçar o exercício do seu poder-dever de solicitar esclarecimentos que permitissem a tomada da decisão. i. O primeiro erro na aplicação do direito imputado pela apelante ao tribunal recorrido assenta na invocada circunstância de a insolvente não desenvolver qualquer atividade no imóvel apreendido, nem mesmo a que a constituía o seu objeto social, não mencionando a sentença factos concretos passíveis de afirmar uma ligação funcional entre o trabalhador cujo crédito foi graduado e o prédio em questão, com consequente ausência de suporte justificativo do reconhecimento de um privilégio imobiliário especial. No que respeita à nulidade da decisão por omissão de indicação de factos que sustentem a ligação funcional do imóvel à atividade do trabalhador, nada mais se acrescenta ao já referido em A., onde se conclui pela inexistência do apontado vício. Importa apenas apreciar se, face à ausência de impugnação dirigida à lista de créditos reconhecidos, onde se incluía um crédito laboral garantido por privilégio creditório imobiliário, os elementos constantes do processo (entendido em sentido amplo) permitiam extrair a conclusão de que o imóvel apreendido não se encontrava afeto à atividade da insolvente. Dispõe o art.º 333º do Código de Trabalho, sob a epígrafe privilégios creditórios que: n.º 1, “os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: (…) b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade”, estabelecendo o n.º2 a ordem da sua graduação. A definição do que deve ser considerado como imóvel correspondente ao local de prestação de atividade do trabalhador/credor tem vindo a ser efetuada pela jurisprudência em sentido amplo, isto é, abarcando todos os imóveis da entidade patronal que estejam afetos à sua atividade empresarial e à qual os trabalhadores estejam funcionalmente ligados, independentemente da localização do seu posto de trabalho ou da concreta função exercida pelo trabalhador na estrutura empresarial. Neste sentido, veja-se o Acórdão desta Relação de 22.02.2022 (processo n.º 912/14.4TYLSB-A.L1-1, rel. Manuela Espadaneira Lopes, acessível aqui), no contexto do qual é citada a jurisprudência quase unânime que acolhe a definição funcional do local de prestação de atividade do trabalhador. Na fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, proferido a 23.02.2016, na 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, no processo nº 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A – acessível nesta ligação -, é exposta a posição da diversa doutrina, referindo-se, numa argumentação que nos parece de particular relevância, seguindo o entendimento de Maria do Rosário Ramalho, ali citada, que a intenção da norma será a de excluir do privilégio os imóveis destinados ao uso pessoal do empregador e firmar um imperativo de igualdade entre trabalhadores, interpretação que ali se considera ser “mais consentânea com a razão de ser da atribuição do privilégio creditório aos créditos laborais, que é, como se referiu, a especial protecção que devem merecer esses créditos, em atenção à sua relevância económica e social, que não se concilia com um injustificado tratamento diferenciado dos trabalhadores de uma mesma empresa, em função da actividade profissional de cada um e do local onde a exercem. Como parece evidente, todos esses trabalhadores carecem da mesma protecção, como forma de assegurar o direito fundamental à retribuição, para salvaguarda de uma existência condigna. Será, pois, essa interpretação mais ampla a que se harmoniza com a Constituição”. O local específico onde cada trabalhador presta funções constitui, como tem sido reconhecido, "mero elemento acidental da relação laboral", que não poderá ser considerado como fator de diferenciação dos direitos dos trabalhadores; não podendo, por isso, funcionar como critério de atribuição de garantias dos créditos que emergem daquela relação. Entende a apelante que o facto de a insolvente ter sede num local que não corresponde ao imóvel apreendido, aliado à consideração de que se trata de um prédio rústico composto por “Horta e Eira”, sito na freguesia e concelho de …, que dista mais de 76 quilómetros do armazém/loja onde a insolvente tinha o seu único estabelecimento, bem como à circunstância de o relatório do administrador de insolvência referir que a insolvente iniciou a sua atividade no …, onde permaneceu até 2014, ano em que se deslocou para o armazém, em regime de aluguer, sito no Lote … em …, estando, à data da declaração de insolvência e desde abril de 2024, sem atividade, sem clientes, sem trabalhadores e sem giro comercial, seriam elementos bastantes para que o tribunal concluísse que o imóvel apreendido não se encontrava afeto à atividade da insolvente, logo, não poderia ser objeto de garantia do “crédito laboral”, que, por efeito do privilégio imobiliário especial que lhe foi reconhecido, veio a ser graduado com preferência sobre o crédito da apelante. Contudo, consta também do processo que o trabalhador identificado como credor reclamante tem a categoria profissional de engenheiro agrónomo (mapa de pessoal anexo ao requerimento inicial e referido em I.1), que o objeto da insolvente inclui transformação de auxiliares biológicos, controle integrado, polinizadores, produtos químicos, adubos diversos para a agricultura e indústria em geral (…) fertilizantes químicos e orgânicos, turfas e substractos, sementes, bolbos e plantas (…) , formulação e embalamento de nutrientes químicos e biológicos e orgânicos de produtos para a agricultura, bem como que o relatório do Administrador de Insolvência identifica 4 tratores e 10 atrelados entre os móveis sujeitos a registo (que não constam da contabilidade da insolvente) – I.4 – e, por último, que, no contexto da liquidação do ativo, se declarou ser necessária a venda antecipada de bens, referindo o Administrador de Insolvência que tais bens são constituídos por produtos ligados à agricultura, na sua maioria relacionados com a presente campanha que termina em Junho do corrente, tais produtos, alguns de elevada componente química, têm prazos de validade pelo que urge a sua venda urgente, sugerindo a origem orgânica ou a existência de produção/transformação com elementos biológicos/orgânicos na atividade da insolvente. A existência de um local de armazenamento e venda de produtos não permite que se conclua que a atividade da insolvente não tem uma qualquer vertente de produção/transformação que reclame a utilização do prédio originalmente rústico, com registo de aquisição a favor da devedora ocorrido em 2002.02.14, ou seja, em data próxima do início da sua atividade, inexistindo indícios que suportem a conclusão adiantada pela apelante de que estamos perante um prédio “improdutivo”, sendo improvável que a categoria profissional de engenheiro agrónomo, como aquela que é identificada em relação ao titular do crédito “laboral”, seja necessária na atividade puramente comercial desenvolvida no espaço de armazém e loja. Queremos com isto significar que não existiam no processo (entendido em sentido amplo) à data da prolação da decisão homologatória, elementos de facto unívocos e claros que permitissem, sem prévia alegação e subsequente produção de prova, firmar uma qualquer conclusão de que o imóvel propriedade da insolvente não se encontrava afeto à sua atividade para, por efeito dessa conclusão, autorizar a negação do privilégio imobiliário especial identificado na referida lista como garantia do crédito laboral. Nenhum elemento sobressai nos autos que leve a concluir que ao tribunal recorrido se impunha ter por seguro, ou sequer suspeitar, que o imóvel apreendido se destinava a uma qualquer finalidade externa à atividade da empresa, nos termos amplos e funcionais em que, conforme referimos, deve ser entendida esta afetação. Como se referiu no Acórdão de 10.12.2024, proferido no processo n.º1588/23.3T8BRR-F.L1, já mencionado supra, “[I]mporta ter em consideração o princípio da autorresponsabilidade das partes, não podendo a apelante pretender ver apreciadas, quer pelo tribunal a quo, quer em sede de recurso, questões que apenas poderiam ser conhecidas em sede de impugnação de créditos, que, no caso, não ocorreu”. Não se olvide que, ainda que ao juiz, como se referiu, seja admitido fundar a sua decisão de não homologação, total ou parcial, da lista de créditos em factos não alegados pelas partes que se revelem de forma evidente do processo de insolvência ou dos seus apensos, o princípio do inquisitório previsto no art.º 11º do CIRE não inclui o incidente de reclamação e verificação de créditos entre os apensos que autorizam a mais ampla aplicação do princípio do inquisitório. Ao não ter a apelante (ou qualquer outro credor) impugnado a lista de créditos reconhecidos, designadamente a natureza garantida/privilegiada do crédito que ora se questiona, não sobressaindo dos autos qualquer facto concreto que pudesse gerar dúvidas ao juiz quanto à afetação do imóvel à atividade da insolvente, não se antevê, nesta vertente, razão que pudesse obstar à prolação de decisão homologatória da lista de créditos reconhecidos, sendo contrário ao sentido da previsão legal contida no art.º 130º, n.º3 do CIRE considerar que ao juiz se impunha investigar ou produzir qualquer prova com vista a concluir se aquele imóvel era efetivamente destinado ao desenvolvimento daquela atividade. Conclui-se, nesta parte, que não assiste razão à apelante. ii. O segundo erro de julgamento imputado pela apelante ao tribunal recorrido assenta na indevida qualificação como crédito laboral de um crédito titulado por DD, que “não era trabalhador da insolvente, mas sim seu administrador e cujas funções cessaram em 08.04.2024”, concluindo a apelante que o crédito emerge de uma relação contratual distinta da relação laboral, que não se subsume à previsão do art.º 333º do Código de Trabalho, com consequente verificação nos autos de factos suficientes para que se conclua pela inexistência de um crédito laboral garantido por privilégio imobiliário especial. Resulta da matéria de facto elencada como provada em I.3, extraída da certidão permanente da insolvente, junta aos autos de insolvência, que esta sociedade anónima foi constituída em 09.10.2000, tendo como administrador único, desde a sua constituição até ao biénio 2017/2018, BB. O contrato de sociedade foi objeto de alteração na sequência de deliberação datada de 17.01.2017, ocasião em que a estrutura da administração passou a incluir um conselho de administração, tendo como membros BB e DD, assumindo o primeiro o cargo de presidente do Conselho de Administração e o segundo o de Vogal do Conselho de Administração. Mais evidencia aquela certidão que, nos biénios 2019/2020, 2021/2022 e 2023/2024, foram mantidos os membros do Conselho de Administração designados (BB e DD). Em 08.04.2024 foi averbada a registo a “AP. 1/20240408 15:39:04 UTC - CESSAÇÃO DE FUNÇÕES DE MEMBROS DO(S) ORGÃO(S) SOCIAL(AIS)”, com inscrição da renúncia de DD ao cargo de vogal do Conselho de Administração, com data referência de 25.03.2024. Como se sintetiza em I.4, do relatório do Administrador de Insolvência constava igualmente mencionada a qualidade de administrador de DD. O referido DD, identificado no mapa de pessoal anexo pela insolvente ao seu requerimento inicial, corresponde ao titular do crédito reconhecido na lista apresentada pelo Administrador de Insolvência como crédito laboral, de natureza privilegiada, garantido por privilégio mobiliário e imobiliário (I.8 do relatório). Em síntese, em informação diretamente acessível ao tribunal recorrido por mera consulta, quer do relatório do Administrador de Insolvência, quer da certidão permanente da insolvente, ressalta que o titular do crédito laboral que, por efeito do reconhecido privilégio imobiliário especial, viu o seu crédito ser graduado com preferência sobre o crédito da apelante, foi vogal do conselho de administração desde 2017, mantendo tal qualidade até à declaração de insolvência da sociedade. Dispõe o art.º 398º do Código das Sociedades Comerciais – preceito legal incluído no Título IV (Sociedades Anónimas) -, com a epígrafe “Exercício de outras atividades”, que: 1 - Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador. 2 - Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano. Por Ac. do Tribunal Constitucional n.º 774/2019, de 27-01 (passível de consulta nesta ligação) foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora, por violação do disposto na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º da Constituição, na redação vigente a data em que a norma foi editada (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro), sendo limitados os efeitos da inconstitucionalidade de modo a que se produzam apenas a partir da publicação do Acórdão. Do disposto no citado art.º 398º, n.º 1 e n.º 2 do CSC, com a limitação decorrente da já mencionada declaração de inconstitucionalidade, resulta, por um lado, que um administrador de uma sociedade anónima não pode celebrar contrato de trabalho com a empresa que administra e, por outro lado, se for designado administrador quando mantém um contrato de trabalho com a sociedade, o contrato em questão, não podendo ser considerado extinto qualquer que seja a data da sua celebração, verá a sua eficácia ser suspensa ao longo de todo o período em que se mantiver em exercício de funções como administrador. Não obstante o referido preceito legal não ser mencionado pela apelante em suporte jurídico das suas alegações de recurso, é incontornável a sua relevância para o caso concreto. Se o titular do crédito reconhecido como laboral foi, ao longo do período temporal que mediou entre 17.01.2017 e 25.03.2024, administrador da sociedade insolvente, nesse mesmo período não poderia celebrar contrato de trabalho com a sociedade ou, caso esse contrato fosse anterior à sua designação como administrador, não poderia manter os seus efeitos ao longo do período em que o até então trabalhador se mantivesse no cargo, pelo que, caso os valores reclamados se reportem a esse período de exercício de funções, o crédito não pode ser reconhecido como laboral e, consequentemente, não corresponderá a um crédito garantido/privilegiado, antes constituindo um crédito subordinado, que deverá ser graduado depois dos restantes créditos sobre a insolvência, por aplicação das disposições dos artigos 48º, al. a) e 49º, n.º 2, al. c) do CIRE. Em suma, a data em que se venceram os créditos constitui elemento essencial à sua classificação. Em anotação ao citado art.º 398º do CSC, Alexandre Soveral Martins [Código das Sociedade Comerciais em Comentário, Volume VI, p. 336 e ss.] refere que a proibição do n.º1 “resulta da necessidade de garantir que o sujeito designado administrador exerce esse cargo sem as limitações que a posição no contrato de trabalho subordinado ou autónomo traria consigo”, bem como “evitar aproveitamentos indevidos da posição de administrador para assegurar uma certa situação após a cessação daquelas funções”, reportando-se o n.º1 do indicado preceito legal ao período para o qual os administradores foram designados, abrangendo não apenas casos em que o exercício de funções tem lugar durante esse período, como também outros em que tal exercício ocorrerá após o período em causa e situações em que tal exercício já se verificava antes do período para que o administrador foi designado. Mais refere que “a lei não proíbe a designação como administrador de alguém que já seja trabalhador da sociedade. O que proíbe, isso sim, é que continue a exercer funções como trabalhador durante o período da designação como administrador”. Em suma, na parte relevante para o caso concreto, durante o período em que exerceu funções como administrador, o credor reclamante DD não poderia ser considerado trabalhador da devedora insolvente, logo, não poderia ser titular de um crédito laboral, que necessariamente reclama aquela qualidade. Contudo, desconhecendo-se a que período temporal se reportam, quer o contrato de trabalho do credor reclamante, quer os créditos por si reclamados, não é possível concluir, sem mais, pela existência de um erro de julgamento. Regressando à parte introdutória – IV.B – e aos acórdãos do STJ de 10.12.2015 e desta Relação de 24-11-2020, ali parcialmente transcritos, se a mera leitura do nome do credor reclamante e o subsequente confronto desse dado factual com os múltiplos elementos dos autos que assinalavam a sua qualidade de administrador da insolvente eram suficientes para gerarem dúvidas ao tribunal recorrido, impedindo a imediata homologação da lista de créditos reconhecidos – por ausência de factos que permitissem a segurança na prolação da decisão de direito -, o simples reconhecimento de que o credor correspondia a um membro designado do Conselho de Administração não era suficiente para negar a verificação do crédito, porquanto o credor não assumiu funções como administrador da sociedade desde a data da sua constituição, mas apenas num limitado período temporal que precedeu a declaração de insolvência. Impunha-se, por isso, a prévia obtenção de esclarecimentos junto do Administrador de Insolvência, para suprimento da insuficiência de informação necessária à prolação de decisão, designadamente a junção da reclamação de créditos, para deteção do período a que os mesmos se reportavam (aferição da coincidência entre a data de constituição dos créditos e o período de exercício de funções pelo credor como administrador da insolvente). Se é certo que este tribunal poderia solicitar os referidos elementos documentais à 1ª instância, não podemos deixar de ter em conta, por um lado, que a norma do CSC aplicável e a delimitação temporal mencionadas como relevantes para prolação da decisão, não participam das alegações de recurso, sendo que qualquer decisão que se possa traduzir na reclassificação de um crédito privilegiado em crédito subordinado terá necessariamente que ser precedida de contraditório do credor reclamante, correspondendo a decisão substitutiva a proferir por este tribunal a uma decisão surpresa, que coartaria uma instância de recurso ao credor reclamante por ela afetado. Se podemos concluir que estamos perante a indiciada existência de um erro manifesto, que se reconduz a um erro desculpável pela circunstância de ao Administrador de Insolvência não ser exigível que conheça os impedimentos legalmente impostos à eficácia de contratos de trabalho de que sejam sujeitos os administradores de uma sociedade anónima, teremos igualmente que concluir que será nesta matéria que o poder-dever de fiscalização do juiz mais fortemente se impõe, tendo em conta que o reconhecimento de um privilégio creditório assegura ao credor privilegiado uma graduação com preferência sobre os demais credores e que, caso se trate de um crédito garantido por privilégio imobiliário especial, aquela verá o seu crédito ser graduado com preferência sobre o credor hipotecário (que não poderia contar com um crédito privilegiado à data da constituição da sua garantia). Contudo, ainda que reconhecendo que assiste parcial razão à apelante, não poderemos concluir por declarar a procedência da alteração peticionada, quer por inexistirem elementos documentais bastantes que suportem a prolação da decisão, quer porque tal alteração reclamaria atentar em factos que não constavam do processo, traduzindo-se numa inaceitável violação do princípio do contraditório e de proibição de prolação de decisões surpresa (artigo 3º, n.º3 do Código de Processo Civil), que impedem que seja aplicada a regra da substituição do tribunal recorrido (art.º 665º, n.º1 do Código de Processo Civil), antes impondo a anulação da decisão (art.º 662º, n.º2, al. c) do Código de Processo Civil). Conclui-se, assim, pela parcial procedência do recurso, com anulação da sentença de verificação de créditos na parte em que homologou a classificação como crédito laboral do crédito do credor reclamante que exerceu funções como administrador (anulação que afeta a subsequente graduação do mesmo), impondo-se ao tribunal recorrido que, após obtenção do requerimento de reclamação de créditos junto do Administrador de Insolvência, identifique o período a que se reportam os créditos reclamados pelo trabalhador/administrador, verificando a subsunção ou não da situação do mesmo à previsão do art.º 398º, n.º 1 e n.º 2 do CSC, concluindo, em consequência, pela viabilidade ou inviabilidade de reconhecimento do crédito como laboral e garantido/privilegiado (ou pela eventual qualificação do mesmo como crédito subordinado), devendo, assegurado que seja o contraditório que se revele necessário, proferir decisão em conformidade. Sumário (art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil). 6. Se o objeto do apenso de reclamação de créditos corresponde à identificação exaustiva dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, seu valor e garantias, para verificação e graduação e estes elementos constam da lista fornecida pelo Administrador de Insolvência, homologar mais não significa do que validar, ipsis verbis, o que consta daquela mesma lista, não se exigindo do juiz senão que verifique se existe erro manifesto que impeça tal validação global, inexistindo, consequentemente, qualquer ónus de identificação autónoma de factos para além daqueles que diretamente resultam da listagem apresentada pelo Administrador de Insolvência, que, porque não impugnados, constituem a base da homologação, da qual são pressuposto lógico. 7. O local específico onde cada trabalhador presta funções constitui, como tem sido reconhecido, "mero elemento acidental da relação laboral", que não poderá ser considerado como fator de diferenciação dos direitos dos trabalhadores; não podendo, por isso, funcionar como critério de atribuição de garantias dos créditos que emergem daquela relação. 8. Ao não ter a apelante (ou qualquer outro credor) impugnado a lista de créditos reconhecidos, não sobressaindo dos autos qualquer facto unívoco e concreto que pudesse gerar dúvidas ao juiz quanto à afetação do imóvel à atividade da insolvente, não se antevê obstáculo à prolação de decisão homologatória da lista de créditos reconhecidos, sendo contrário ao sentido da previsão legal contida no art.º 130º, n.º3 do CIRE considerar que ao juiz se impunha investigar ou produzir qualquer prova com vista a concluir se aquele imóvel era efetivamente destinado ao desenvolvimento daquela atividade. 9. Se o titular do crédito reconhecido como laboral foi, ao longo de um determinado período temporal, administrador da sociedade insolvente, nesse mesmo período não poderia celebrar contrato de trabalho com a sociedade ou, caso esse contrato fosse anterior à sua designação como administrador, não poderia manter os seus efeitos ao longo do período em que o até então trabalhador se mantivesse no cargo, pelo que, caso os valores reclamados se reportem a esse período de exercício de funções, o crédito não pode ser reconhecido como laboral e, consequentemente, não corresponderá a um crédito garantido ou privilegiado, antes constituindo um crédito subordinado, que deverá ser graduado depois dos restantes créditos sobre a insolvência, por aplicação das disposições dos artigos 48º, al. a) e 49º, n.º2, al. c) do CIRE. 10. Perante a evidência de que o credor privilegiado titular do crédito laboral assumiu funções como administrador da insolvente, impõe-se ao juiz, em fase prévia à homologação da lista de créditos reconhecidos, obter esclarecimentos junto do Administrador de Insolvência, para suprimento da insuficiência de informação necessária à prolação de decisão de verificação e graduação de créditos, designadamente a junção da reclamação de créditos, para deteção do período a que os mesmos se reportam (aferição da coincidência entre a data de constituição dos créditos e o período de exercício de funções pelo credor como administrador da insolvente). V. Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em considerar parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência, em anular a sentença proferida em 23.09.2024 na parte em que julgou verificado o crédito reclamado por DD como crédito laboral, devendo o tribunal proceder ao apuramento dos elementos de facto referidos e outros que venham a ser tidos por necessários à qualificação do aludido crédito. Sem custas. Lisboa, 28-01-2025 Ana Rute Costa Pereira Amélia Sofia Rebelo Elisabete Assunção |