Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
400/20.1IDLSB.L1-5
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
LEIS COVID
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO O DESPACHO RECORRIDO
Sumário: - O preceito contido no artigo 14.º do Decreto n.º 10.º-A/2020, de 13 de março, na redação vigente à data (conferida pelo artigo 4.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio; a disposição foi, entretanto, revogada pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 78-A/2021, de 29 de setembro), introduziu no regime do justo impedimento uma disciplina especial, inscrita no quadro da resposta normativa aos impedimentos e contingências sentidas pelos cidadãos no acesso aos serviços públicos em função do quadro pandémico gerado pela COVID-19. 
- Porém, da mesma não resulta um qualquer desvio à natureza geral do instituto do justo impedimento, o qual não comporta a suspensão da contagem do prazo, como pretendido, pelo tempo em falta após a cessação do impedimento.
- A sua especialidade cinge-se, no plano substantivo, ao estabelecimento de uma causa objetiva de justo impedimento, fixada ope legis, logo, com dispensa da mediação do juiz no preenchimento do conceito indeterminado, ao invés do que decorre dos artigos 107.º, n.º 2, do CPP e 140.º, n.º 1, do CPC, que exigem uma apreciação casuística da ocorrência de evento não imputável à parte ou aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato, a que se junta, no plano probatório, a estatuição da declaração de autoridade de saúde que ateste a imposição de isolamento profilático como prova idónea a demostrar o facto-base da presunção inilidível ínsita na medida legislativa.
- Essa normação não afasta, assim, a aplicação do disposto dos n.ºs 2 e 3 do artigo 107.º do CPP, nos termos dos quais é estipulado o prazo preclusivo de três dias, subsequentes ao termo do prazo ou da cessação do impedimento, para a invocação da verificação de justo impedimento, nem a exigência de que o impulso incidental seja acompanhado da prática do ato que se praticou tardiamente em resultado de tal obstáculo.
- A ocorrência de justo impedimento, incluindo aquele previsto no artigo 14.º do Decreto n.º 10.º-A/2020, apenas tem a virtualidade de suspender e diferir o seu termo para o dia imediato à cessação do facto obstativo.
- Porém, afastado o justo impedimento, dúvidas não há que, apresentado no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo, o requerimento beneficia do prazo de complacência estabelecido nos artigos 139.º, n.º 5, alínea a) do CPC e 107.º-A, proémio, do CPP, estando a admissibilidade do ato condicionada ao pagamento de uma multa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Por despacho do Ministério Público proferido em 24 de março de 2021 (retificado em 8 de abril de 2021), foi deduzida acusação contra AA e Transportes Limite Record, Lda, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, e 105.º, nºs 1 e 4, alíneas a) e b) (e também, relativamente à sociedade, dos artigos 7.º, n.º 1, 12.º, n.º 2 e 15º, n.º 1), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho.
2. Em 28 de maio de 2021, a arguida AA requereu a abertura de instrução, pretensão rejeitada por despacho do JIC de ....., proferido em 17 de junho de 2021, por extemporaneidade do requerimento.
3. Inconformada, a arguida interpôs recurso desse despacho, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
«a) Vem o presente recurso interposto da decisão proferida no dia 17/06/2021 que declarou carecer de base legal o pedido de suspensão do prazo para a abertura de instrução e da decisão proferida na mesma data que determinou a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por extemporâneo.
b) O Requerimento de abertura de instrução foi apresentado dentro do prazo legal.
c) Admitindo-se como correta a data de 26 de abril como data do depósito da carta de notificação, esta considera-se efectuada no 5º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor postal.
d) O 5º dia posterior ao dia 26 de abril foi o dia 1 de maio, que além de ser feriado foi um sábado.
e) A notificação considera-se efectuada na 2ª feira dia 3 de maio de 2021.
f) Sendo o prazo para abertura de instrução de 20 dias o mesmo terminou no dia 23 de maio.
g) Sendo o dia 23 de maio um domingo, a data final seria transferida para o dia 24 de maio, segunda-feira.
h) De acordo com a contagem do prazo legal, o acto foi praticado no primeiro dia útil posterior ao seu termo.
i) O art° 139° do Cód. Processo Civil determina que independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento de uma multa, cujos n°s 5 a 7 deste preceito é aplicável por via do disposto no artigo 107-A do Cód. Processo Penal.
j) Tendo sido praticado o ato no primeiro dia útil a recorrente estava obrigada ao pagamento de uma multa equivalente a 0,5 UC, art° 107-A alínea a) C.P.P.
k) Não tendo a multa sido paga de imediato deveria a secretaria proceder á notificação da recorrente para pagar aquele montante acrescido de uma penalização de 25% do valor da multa (art° 139°, n° 6 do C.P.C).
l) A recorrente não foi notificada para pagar a multa nem qualquer valor acrescido, pelo que foram violados os preceitos supra alegados.
SEM CONCEDER
m) Tal como consta do primeiro parágrafo correspondente aos despachos proferidos, no dia 6 de maio de 2021 o mandatário da recorrente requereu a suspensão do prazo para abertura da fase de instrução em virtude se encontrar em situação de confinamento por ter sido infetado com o Corona Vírus [SARS-COV-2 e SARBECOVIRUS–SARS–COV], tudo conforme o disposto no art° 14° do Dec. Lei n° 10-A/2020 de 13 de março.
n) Alega a Mma. Juiz “a quo” que nem sequer foi dado conhecimento ao JIC de tal requerimento.
o) O mesmo foi remetido para o Ministério Público, tal como o requerimento de Abertura de Instrução, tudo conforme legalmente estabelecido.
p) Quando a Mma. Juiz “a quo” se pronunciou relativamente à rejeição do requerimento de abertura de instrução por extemporâneo, o requerimento com o pedido de suspensão do prazo já se encontrava junto aos autos.
q) Nos processos judiciais não devem ser praticados atos inúteis e devem ser aproveitados todos aqueles que são suscetíveis [de] o ser.
r) A Mma. Juiz “a quo” deveria ter-se pronunciado relativamente ao requerimento apresentado pela recorrente no dia 6 de maio, declarando a admissão ou não da suspensão do prazo para abertura de instrução e após análise desta questão decidir sobre o aproveitamento ou não do requerimento de abertura de instrução já apresentado, ainda que após prévia notificação da recorrente para se pronunciar.
s) Os despachos recorridos violam o disposto no artigo 14° do Dec. Lei n° 10-A/2020 de 3 de março e os art°s 139° nos 5 a 7 do C.P. Civil, art° 107°-A, alínea a) e 283°, n° 3 do C.P. Penal.
Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., os despachos proferidos devem ser revogados e substituídos por acórdão que declare que a recorrente tinha direito de usufruir do prazo de suspensão ou, mesmo que assim não se entenda, que o requerimento de abertura de instrução foi apresentado tempestivamente, sem prejuízo de o mesmo ter sido apresentado ainda antes do inicio do decurso do prazo decorrente da suspensão ou depois do prazo, caso a mesma tivesse sido indeferida, ainda que sujeita ao pagamento de multa, tudo com as consequências legais, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»

4. Em resposta, o magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido pronunciou-se pela procedência parcial do recurso, devendo o despacho recorrido «ser revogado e substituído por outro que ordene a devolução dos autos ao Ministério Publico a fim de se proceder à notificação da arguida para proceder ao pagamento da multa nos termos do n° 6 do artigo 139° do C.P.C. e artigos 107° n° 5 e 107°-A do C.P.P.», deixando, em suporte desse entendimento, a seguinte síntese conclusiva:
«Por despacho proferido em 24 de Março de 2021, rectificado em 8/04/2021 (fls. 271 a 281 e 283), foi proferida acusação contra a arguida, ora recorrente AA; o qual,
Foi notificado à arguida por via postal simples depositado em 26/04/2021;
Em 6 de Maio o Ilustre Mandatário da arguida veio requerer a declaração da suspensão do prazo para a abertura de instrução "a partir da data da notificação da acusação até ao dia 9 de Maio de 2021"; e,
Para tanto, alegou que se encontrava em "situação de isolamento profilático, pelo período de 2021-04-20 até 2021-05-04 e que em 29 do mês de Abril e em cumprimento das instruções determinadas pela DGS o Requerente foi submetido a novo teste, tendo sido detetado Corona Vírus ISARS-COV-2 e SARBECOVIRUS - SARS-COVID, o que determina que o requerente não pode ausentar-se do seu domicílio durante o prazo de dez dias...."; sendo que,
Nessa altura juntou documentos dos quais resulta que até 9 de Maio de 2021 o requerente esteve em situação de isolamento profilático não estando autorizado a retomar a sua actividade normal; e,
Tal requerimento nunca foi apreciado, seja pelo Ministério Publico, seja pela Exma Senhora Juiz de Instrução; pelo que,
Em 25 de Maio de 2021 o Exm° Mandatário da arguida juntou aos autos a fis, 298 a 301 o requerimento de abertura de instrução; e,
Na dita peça processual não foi alegado qualquer facto que permitisse concluir pela existência de justo impedimento; e
Em 17 de Junho de 2021a Exma Senhora Juiz de Instrução rejeitou o requerimento anteriormente referido, considerando que o mesmo era extemporâneo e ".... que o prazo se iniciou em 2 de maio, o termo final ocorreu em 21 de maio de 2021."; no entanto,
Entende o Ministério Publico que, tendo sido a arguida notificada do despacho de acusação por via postal simples (artigo 113.° n.1 al c) e 3) depositado no dia 26 de abril de 2021, haverá que considerar que a notificação foi efectuada no 5° dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor postal, ou seja, 1 de maio de 2021 ( artigo 113° n.°3 do CPP); e,
Considerando-se a notificação efectuada no dia 1 de Maio de 2021 e iniciando-se o prazo de 20 dias no dia 2, o seu termo ocorreu em 22 de Maio de 2021; no entanto,
O dia 22 de Maio foi um sábado e dia 23 domingo, pelo que de acordo com o já citado artigo 113° haverá que considerar que o prazo para requerer a abertura de instrução concedido à arguida terminou em 24 de Maio de 2021; Ora,
O requerimento foi enviado por email no dia 25 do mesmo mês e não foi feita prova de ter sido paga qualquer multa a qual era devida de acordo com a conjugação do disposto nos artigos 107° n° 5,107° A do C.P.P. e 139° n° 5 do C.P.C.; Já que,
Destas disposições legais resulta que o acto pode ser praticado dentro dos primeiros três dias subsequentes ao termo do prazo e independentemente do justo impedimento, "... ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos: a) Se o ato for praticado no 1.° dia, a multa é fixada em 10 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 1/2 UC; b) Se o ato for praticado no 2.° dia, a multa é fixada em 25 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 3 UC; c) Se o ato for praticado no 3.° dia, a multa é fixada em 40 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 7 UC.";
Por seu turno dispõe o referido artigo 139° do C.P.C., no seu n° 6 que " Praticado o ato em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notifica o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25 % do valor da multa, desde que se trate de ato praticado por mandatário."; e,
Não se mostrando paga a multa devida pela entrega do requerimento de abertura de instrução no primeiro dia útil após o termo do prazo para requerer a abertura de instrução, deveria a secretaria do Ministério Publico ter notificado o Exm° Mandatário da arguida para proceder ao respectivo pagamento nos termos do já citado n° 6 do artigo 139° do C.P.C.;
Assim, face a tal vicissitude, deveria a Exma Senhora Juiz de Instrução ter devolvido os autos ao Ministério Publico para se procederem às diligências necessárias à suprarreferida notificação, o que não foi feito; pelo que,
Se considera terem sido violados os artigos 107° n° 5, 107° A do C.P.P. e 139° n° 5 do C.P.C.; Agora,
No que concerne à questão da suspensão do prazo de para requerer a abertura de instrução e ao alegado justo impedimento entende-se que a recorrente não tem razão; pois,
Com efeito, com a entrada em vigor da Lei 13-A/2021 de 5 de Abril, a partir de 6 de Abril de 2021 cessou o regime de suspensão dos prazos processuais adoptado no âmbito da pandemia de doença Covid-19; pelo que,
Resta-nos a questão do justo impedimento o qual não pode ter como efeito protelar o início do curso de prazo que neste caso é peremptório, nem o de interromper tal prazo, mas tão somente o de suspender o seu termo, retardando-o para o dia imediato àquele que tenha sido o último de duração do impedimento; e,
Por conseguinte, a invocação do justo impedimento, para evitar o efeito extintivo do decurso do prazo, tem de ser feita logo que cesse a causa impeditiva, com todos os elementos que a comprovem e, em simultâneo, com a prática do acto em falta; No entanto,
No caso dos autos o requerimento a solicitar a suspensão do prazo já referida foi junto em 6 de Maio de 2021; Mas,
Aquando da apresentação do requerimento de abertura de instrução a recorrente nada disse;
É certo que foram juntos aos autos documentos comprovando que o Ilustre Mandatário da arguida se encontrava em "situação de isolamento profilático, pelo período de 2021-04-20 até 2021-05-04 e que em 29 do mês de Abril e em cumprimento das instruções determinadas pela DGS o Requerente foi submetido a novo teste, tendo sido detetado Corona Vírus [SARS-COV-2 e SARBECOVIRUS — SARS-COV], ", o que, de facto, implicava que o mesmo não podia ausentar-se do seu domicilio até ao dia 9 de Maio de 2021; Mas,
Tais factos, por si só, não permitem o reconhecimento do justo impedimento no caso dos autos já que no dia 24 de Maio de 2021, data em que ocorreu o termo do prazo, já o Ilustre Mandatário não se encontrava em situação que justificasse justo impedimento; Pelo que.
Decidiu bem a Exma Senhora Juiz ao não se pronunciar sobre questão, já que de facto, dos elementos juntos aos autos nada permite concluir pela verificação de justo impedimento do Ilustre Mandatário da arguida.
5. Subido o recurso a esta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto acompanhou o entendimento sufragado na resposta.
6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, a recorrente nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A. Objeto do recurso e questões a decidir
5. Mostra-se sedimentado na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a delimitação do objeto do recurso decorre do enunciado das conclusões formuladas na motivação do recurso, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 24/03/99, in CJ (STJ), ano VII, T1, pág. 247).
Em função do enunciado das conclusões do recurso, e também da resposta, a questão a apreciar radica na verificação de erro de julgamento na rejeição, por extemporâneo, do requerimento de abertura da instrução (doravante RAI) apresentado pela arguida AA, a qual convoca duas sub-questões, a saber: i) Verificação de justo impedimento à apresentação tardia do RAI, nos termos do disposto no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020; e ii. Validade da apresentação extemporânea do RAI, condicionada ao pagamento de multa.
B. Enquadramento e dados relevantes
6. O teor da decisão recorrida é a seguinte:
«O requerimento de 6 de maio requerendo a suspensão do prazo para abertura da fase de instrução, de que não foi dado, sequer, conhecimento ao JIC, carece de base legal e sem que lhe fosse dada resposta não legitimava o requerente a apresentar o requerimento de abertura de instrução fora do prazo legal.
*
AA mostra-se acusado da prática de um crime de um crime de abuso de confiança fiscal.
Inconformado com a acusação veio, por requerimento de 25 de maio de 2021, requerer a abertura de instrução.
Evidenciam os autos que as arguidas foram notificadas do despacho de acusação por via postal simples (artigo 113.° n.1 al c) e 3) depositado no dia 26 de abril de 2021, considerando-se a notificação efetuada no 5° dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor postal, ou seja, 1 de maio de 2021 ( artigo 113° n.°3 do CPP).
O prazo para abertura de instrução é de 20 dias a contar da notificação da acusação (artigo 287° n.°1 al a) do CPP). Considerando que o prazo se iniciou em 2 de maio, o termo final ocorreu em 21 de maio de 2021.
Do mero confronto de datas resulta patente a extemporaneidade do requerimento.
Em face do exposto, por extemporâneo, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução — artigo 287° n.°3 do CPP.
Notifique.»
Deve ainda esclarecer-se que o requerimento referido no despacho que se vem de transcrever é subscrito pelo atual mandatário da arguida e tem o seguinte teor:
«1.O Signatário, mandatário da arguida encontrou-se em situação de isolamento profilático, pelo período de 2021-04-2021 até O Signatário, mandatário da arguida encontrou-se na situação de isolamento profilático, pelo período de2021-04-20 até 2021-05-04, tudo conforme Declaração emitido pelo Delegado de Saúde Regional de ..... que se junta. (Doc.1)
 2. No passado dia 29 do mês de Abril e em cumprimento das instruções determinadas pela DGS o Requerente foi submetido a novo teste, tendo sido detetado Corona Vírus [SARS-COV-2 e SARBECOVIRUS –SARS-COV], o que determina que o requerente não pode ausentar-se do seu domicílio durante o prazo de dez dias, tudo conforme consta da Declaração Médica que se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (Doc. 1)
3. Assim sendo, e tendo em consideração o exposto, requer-se a V. Exa. que se digne ordenar que o prazo para a abertura de instrução seja declarado suspenso a partir da data da notificação da acusação até ao próximo dia 9 de maio, inclusive, iniciando-se a sua contagem apenas a partir do dia 10 de maio próximo inclusive.
Termos em que se requer a V.Exa. que se digne ordenar que seja declarada a suspensão do prazo para a abertura de instrução nos termos supra citados, considerando-se que existe justo impedimento nos termos do disposto no Dec. Lei nº 10-A/2020 de 13 de março.»
Com o requerimento foi junto substabelecimento sem reserva a favor do mesmo causídico, com data de 5 de maio de 2021, «Declaração para efeitos de isolamento profilático – Determinação de Isolamento», pelo período de 20 de abril de 2021 e até 4 de maio de 2021, também a ele respeitante, com data de 19 de abril de 2021,  e «Declaração de Alta Clínica por COVID19», onde se lê que «esteve de isolamento profilático desde o dia 19 de abril de 2021 com positividade para Covid 19 a partir do dia 29 de abril de 2021. Até ao dia 9 de maio de 2021 não está autorizad(a) a retomar a sua atividade normal de acordo com a Norma DGS n.º 004/2020 de 14/10/2020».
Verifica-se, por seu turno, que a acusação foi notificada por via eletrónica ao (então) mandatário da arguida, emissor do substabelecimento sem reserva, considerando-se efetuada, de acordo com o disposto no artigo 113.º, n.º 12 do CPP, em 26 de abril de 2021 (referência 130344116), e, por seu turno, à arguida recorrente, por via postal simples (artigo 113.º, n.º 1, alínea c) e 3 do CPP), depositado em 26 de abril de 2021, considerando-se efetuada em 3 de maio de 2021 (segunda-feira), uma vez que os dias 1 e 2 de maio não foram dias úteis (artigo 113.º, n.º 3 do CPP).
C. Apreciação
9. Em face de tais dados processuais, não sofre dúvida que o RAI foi apresentado para além do prazo legal de 20 dias, estabelecido no n.º 1 do artigo 287.º do CPP, uma vez que o seu termo final ocorreu em 24 de maio de 2021 (segunda-feira), tendo a peça dado entrada em juízo apenas no dia seguinte - 25 de maio de 2021. Não tem, pois, razão, o recorrente, quando sustenta que o seu impulso respeitou aquele prazo perentório.
10. Não basta, porém, para concluir sobre o problema em exame, tal constatação, uma vez que o ordenamento processo penal admite, à semelhança de outros ordenamentos adjetivos, exceções ao efeito extintivo do direito de praticar o ato próprio dos prazos perentórios (artigo 139.º, n.º 3, do CPC), validando sob certas condições os atos extemporaneamente praticados pelos sujeitos processuais.
Assim decorre dos artigos 107.º do CPP, disposição que acolhe no âmbito penal o justo impedimento, estatuindo a norma do n.º 3 do preceito que os atos processuais «podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, despacho da autoridade referida no número anterior [a autoridade judiciária que dirigir a fase do processo a que o ato respeitar], a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento».
E, para além da verificação de justo impedimento, a prática do ato fora de prazo é ainda tido como válido, nos termos do regime contido nos n.ºs 5 a 7 do artigo 139.º do CPC, por força da remissão do proémio do artigo 107.º-A do CPP, desde que o ato seja praticado nos três primeiros dias úteis subsequentes ao termos do prazo (período de complacência), ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, a liquidar de acordo com o preceito processual civil, e cujos valores decorrem das alíneas a) a b) do preceito processual penal.
11. No caso vertente, o recorrente pretende que lhe seja reconhecida a suspensão do curso do prazo por efeito do artigo 14.º do Decreto n.º 10.º-A/2020, de 13 de março, para o que apresentou requerimento, denegado no despacho recorrido por carecer de «base legal».
11.1. O referido preceito, na redação vigente à data (conferida pelo artigo 4.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio; a disposição foi, entretanto, revogada pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 78-A/2021, de 29 de setembro), introduziu no regime do justo impedimento uma disciplina especial, inscrita no quadro da resposta normativa aos impedimentos e contingências sentidas pelos cidadãos no acesso aos serviços públicos em função do quadro pandémico gerado pela COVID-19. 
Porém, da mesma não resulta um qualquer desvio à natureza geral do instituto do justo impedimento, o qual não comporta a suspensão da contagem do prazo, como pretendido, pelo tempo em falta após a cessação do impedimento. A sua especialidade cinge-se, no plano substantivo, ao estabelecimento de uma causa objetiva de justo impedimento, fixada ope legis, logo, com dispensa da mediação do juiz no preenchimento do conceito indeterminado, ao invés do que decorre dos artigos 107.º, n.º 2, do CPP e 140.º, n.º 1, do CPC, que exigem uma apreciação casuística da ocorrência de evento não imputável à parte ou aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato. A que se junta, no plano probatório, a estatuição da declaração de autoridade de saúde que ateste a imposição de isolamento profilático como prova idónea a demostrar o facto-base da presunção inilidível ínsita na medida legislativa.
Essa normação não afasta, assim, a aplicação do disposto dos n.ºs 2 e 3 do artigo 107.º do CPP, nos termos dos quais é estipulado o prazo preclusivo de três dias, subsequentes ao termo do prazo ou da cessação do impedimento, para a invocação da verificação de justo impedimento, nem a exigência de que o impulso incidental seja acompanhado da prática do ato que se praticou tardiamente em resultado de tal obstáculo.
Temos, então, que a ocorrência de justo impedimento, incluindo aquele previsto no artigo 14.º do Decreto n.º 10.º-A/2020, apenas tem a virtualidade de suspender e diferir o seu termo para o dia imediato à cessação do facto obstativo.
11.2. Revertendo a esta luz ao caso em apreço, verifica-se que o impedimento invocado pela recorrente, gerado pelo isolamento profilático atestado por autoridade de saúde, entre apenas se produziu entre os dias 20 de abril e 4 de maio de 2021, período em que a representação da arguida esteve a cargo de outro causídico, ao qual foi notificado o despacho acusatório e substabeleceu os seus poderes apenas em 5 de maio de 2021, pelo que nenhum obstáculo se encontra ao normal exercício dos deveres do advogado. Mesmo que se pudesse considerar o atestado médico junto, o que se tem como duvidoso, já este não atesta a decorrência de período de isolamento profilático, como exige o artigo 14.º do Decreto n.º 10.º-A/2020, antes uma proibição de retoma da sua atividade normal, que se prolongou até 9 de maio (sendo certo que foi justamente nesse período que foi apresentado substabelecimento sem reserva e apresentado em juízo requerimento, não sendo curial que tivesse sido aceite a representação forense sem condições de exercício), certo é que, nessa data, ainda estava em curso o prazo de apresentação do RAI, pois, como se viu, o seu termo final foi apenas foi atingido 15 dias depois, em 24 de maio do corrente ano.
E, por outro lado, o requerimento apresentado não comporta a dedução conjunta do incidente de justo impedimento, formalização que a dedução antecipada de um pedido de suspensão do prazo, como se viu sem cabimento legal, não dispensa, nem supre.
11.3. Assim sendo, quer nos termos do regime especial do artigo 14.º do Decreto n.º 10.º-A/2020, quer nos termos do regime geral, não existe fundamento para julgar verificado justo impedimento, obstando à apresentação tempestiva do requerimento de abertura de instrução.
12. Afastado o justo impedimento, dúvidas não há que, apresentado no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo, o RAI beneficia do prazo de complacência estabelecido nos artigos 139.º, n.º 5, alínea a) do CPC e 107.º-A, proémio, do CPP, estando a admissibilidade do ato condicionada ao pagamento de uma multa equivalente a 0,5 UC.
E, não tendo sido paga a multa por autoliquidação, deveria a secretaria do Ministério Público ter procedido, independentemente de determinação, à notificação do interessa para pagar a multa com acréscimo, como determina o n.º 6 do artigo 106.º do CPC.
O que não sucedeu.
Verifica-se, assim, a presença de vício gerador de irregularidade, cognoscível oficiosamente por afetar o valor do despacho recorrido (artigo 123.º do CPP, n.ºs 1 e 2, do CPP), na medida em que, só depois da sua sanação poderá ser determinada a extemporaneidade ou a admissibilidade da prática tardia do requerimento de abertura de instrução deduzido.

III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação em anular o despacho recorrido e determinar que os autos retornem ao Ministério Público para a que a respetiva secretaria dê cumprimento ao disposto no n.º 6 do artigo 139.º do CPP e que, feito esse pagamento, seja proferido despacho a admitir o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida AA.
Sem custas.
Notifique.

Texto elaborado em computador e revisto (art.º 94.º, n.º 2 do CPP). 
Lisboa, 23 de novembro de 2021
Fernando Ventura
Maria José Machado