Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11241/2005-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: MÚTUO
NULIDADE
JUROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - Anulado um contrato ou declarada a sua nulidade as partes devem restituir em espécie ou em valor, se aquela não for possível, o que lhes tiver sido prestado, constituindo doutrina e jurisprudência maioritárias as de que, no caso de contrato de mútuo nulo por falta de forma, a restituição das quantias mutuadas deve ser feita com base, directamente, no estabelecido no artigo 289º e não com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, o qual tem, aliás, carácter subsidiário (artigos 479º e 480º do Código Civil).
II - A nulidade do contrato por vício de forma abrange todo o seu conteúdo, por força do seu efeito retroactivo, incluindo as cláusulas relativas à convenção de juros de mora. Tudo se passa como se o contrato não tivesse sido realizado, pelo que o autor não pode fundar nele a obrigação de juros, que só vincularia os contraentes caso o contrato fosse válido.
III - Para além da restituição do valor mutuado, tem o mutuante direito a receber juros de mora desde a data da citação para a acção de condenação, que vale como interpelação judicial, ou desde a interpelação extra-judicial (admonitória) para cumprir, se esta tiver ocorrido. Tal ocorre por força da remissão operada pelo nº 3 do artigo 289º para os artigos 1269º e seguintes, todos do Código Civil.
(F.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da relação de Lisboa:

1. Relatório:
H instaurou, em 2 de Maio de 2003, no Tribunal Judicial de Torres Vedras acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra R, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 5.825.81 euros, acrescida juros à taxa legal desde a citação sobre a mesma importância, com fundamento em que emprestou à ré 3.300.000$00 e que esta não lhe pagou a quantia de 1.167.971$00 (€ 5825.81) titulada por um cheque que foi devolvido com a menção “extraviado”, sendo que, instaurada a contra a ré acção executiva, esta foi declarada extinta por terem procedido os embargos de executado deduzidos.
Na contestação a ré defendeu-se por excepção, invocando a nulidade do contrato de mútuo e o pagamento, e deduziu reconvenção, pedindo que o autor fosse condenado a devolver-lhe a totalidade dos juros recebidos a título de retribuição no montante de 1465.154$00 (€ 7308.16) e julgado procedente o pedido reconvencional, condenando-se o autor a pagar à ré a quantia de 967.01 euros que pagou também para além do que devia.
O autor respondeu à contestação alegando, em síntese, que a invocação da nulidade do contrato é feita em abuso de direito, já que a ré nunca antes tinha invocado tal nulidade. Mais alegou que a excepção peremptória de pagamento não se verifica na exacta medida em que a ré ainda lhe deve dinheiro pois a taxa de juro convencionada foi de 17% ao ano e, portanto, ainda está em dívida o montante do cheque que lhe foi passado e que consubstancia o pedido feito neste acção. Por fim, a caducidade quanto ao pedido reconvencional.

No despacho saneador julgou-se procedente a excepção peremptória de nulidade do contrato de mútuo, e improcedente a excepção, também peremptória, de abuso de direito, tendo-se relegado para final o conhecimento das excepções, igualmente peremptórias, de pagamento e de caducidade do pedido reconvencional.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que decidiu:
a)julgar procedente a excepção do pagamento e em consequência julgar a acção improcedente, por não provada, absolvendo a ré do pedido contra si formulado;
b)condenar o autor, por força da declaração de nulidade do contrato de mútuo, já declarada, a restituir à ré a quantia de 7058.76 euros, abstendo-nos de conhecer o pedido reconvencional já que o mesmo fica prejudicado;
c)julgar improcedente a excepção de caducidade do pedido reconvencional

Inconformado, apelou o autor.
Alegou e formulou as seguintes conclusões:
1ª “A declaração de nulidade do contrato de mútuo não exclui a obrigação do pagamento de juros ao mutuante, se o mutuário estiver de má fé , por aplicação analógica do disposto no art° 1271°, por força do art° 289° n°3, ambos do CC." (Sumário - Ac. RL de 22-4-99, in CJ Ano IV-1999 -Tomo II, pag. 121).
2ª "Tendo sido recebido o capital sem título válido , atenta a nulidade do mútuo, presume-se a má fé do mutuário, nos termos do artg. 1260° nº 2 do mesmo diploma, pelo que seriam devido juros desde a data da entrega desse capital"(Do mesto Sumário).
3ª No caso à taxa legal aplicável supletivamente dado que a taxa de 14% "acordada" “… queda irrelevante por virtude do vício de nulidade que a atingiu." (Do Acórdão citado a págs. 123).
4ª A ré ,ora apelada, recebeu o capital sem título válido, atenta a nulidade decretada;
5ª Presumindo -se a má fé;
6ª Presunção que não foi elidida pela ré;
7ª Aliás, da factualidade dada como assente ou provada resulta que a ré (apelada) assumiu, livre e conscientemente, a obrigação do pagamento de juros e procedeu ao seu pagamento voluntário;
8ª No caso "sub judice " existe, portanto, obrigação do pagamento de juros à taxa legal de aplicável, no caso de 15%.
9ª O ora apelante não tem, assim, de restituir à Ré a importância de 7.058,76 euros.
10ª Por tal importância ter sido recebida a título de juros devidos no caso e àquela taxa.
11ª A menos que se entenda dever ser feita liquidação em execução de sentença face ao montante entregue pelo autor à ré, ao prazo de pagamento e à taxa legal então aplicável.
12ª A douta decisão em apreço violou, assim, por errada interpretação e aplicação da lei, designadamente dos art°s 1271 °, 289° n° 3 ,1260° n°2 e 212°, todos do CC.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso.

Na contra alegação a ré defendeu a manutenção do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos:
2.1. De facto:
Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos:
a) Em Outubro de 1990, a ré, nessa altura secretária de direcção da empresa C, CRL, em Torres Vedras, decidiu adquirir casa própria.
b) Em Novembro de 1990, para esse fim, o A emprestou à ré esc. 3.300.000$00.
c) Com a entrega da referida quantia a ré procedeu no dia 04.12.90 ao preenchimento e assinatura do cheque n.º, sacado sobre a conta n.º do BPSM, no montante de 3.250.000$00, para titular a dívida e como garantia do empréstimo, bem como à emissão do cheque n.º, sacado sobre a mesma conta, no montante de 50.000$00, a título de pagamento parcial.
d) Foi nessa data acordado verbalmente que essa quantia seria paga pela ré em prestações mensais, de montante mínimo de 50.000$00 e com início em 30.12.90.
e) Não foi fixada data para o termo do pagamento.
f) Em fins de Abril de 1994, a ré manifestou intenção de liquidar o remanescente pela totalidade do empréstimo.
g) A ré emitiu e entregou ao Autora e à ordem deste, dois cheques, sacados sobre a CCAM de Torres Vedras: - n.º, no montante de 1.265.154$00, com data de 01.06.94; - n.º, no montante de 1.167.971$00, com data de 01.06.94.
h) Em 31.05.94, a ré procedeu ao cancelamento do cheque no montante de 1.167.971$00.
i) O cheque foi devolvido com a menção extravio.
j) Em 25.07.99 e porque a ré não pagara ao A. a importância titulada pelo cheque em causa intentou acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra a ora ré, invocando ser dono e legítimo portador de tal título.
l) A então executada e agora ré embargou excepcionando a validade do título executivo e impugnando.
m) Os embargos que correram por apenso à execução sob o n.º 248/99 do 3º juízo mereceram provimento final com base na invocada prescrição do cheque determinando a extinção da execução.
n) A ré pagou ao Autor a quantia de esc. 4.715.154$00.
o) Foi acordado entre ambos que as quantias emprestadas venceriam juros à taxa bancária praticada para as operações passivas, que à data era de 14%.
p) A ré foi liquidando o montante em dívida em prestações mensais e sucessivas desde 04.12.90 até Maio de 1994.
q) Em Maio de 1994, a ré foi ao banco e lá pediu que lhe fizessem as contas do montante que ainda devia ao autor, tendo sido informada pela instituição bancária que teria que pagar a quantia de esc. 1.265.154$00.
r) Até Maio de 1994 a ré já tinha pago a quantia de esc. 2.800.000$00.
s) Com a entrega do cheque referido em g) no montante de esc. 1.265.154$00 as quantias entregues pela ré ao autor para pagamento da quantia em dívida e juros já totalizava a quantia de esc. 4.065.154$00.
t) No momento em que procedia à entrega do cheque para liquidação do remanescente da dívida, ao Dr. C, adjunto da direcção da C foi confrontada com a necessidade de proceder ao pagamento da quantia de esc. 1.167.971$00 a título de juros.
u) Foi neste circunstancialismo que a ré emitiu o referido cheque n.º, sacado sobre a CCAM de Torres Vedras da conta n.º no valor referido no artigo anterior e que solicitou o seu cancelamento em 31.05.94.
v) Em Outubro de 1994 o sr. C contactou telefonicamente a ré para a empresa R comunicando-lhe que o autor não se considerava ressarcido e que ainda considerava ser credor de esc. 650.000$00.
x) Então a ré preencheu, assinou e entregou ao A e em nome deste cheque no valor de esc. 650.000$00.

2.2. De direito:
2.2. Perante a factualidade descrita, não suscita qualquer reparo a qualificação jurídica do contrato celebrado entre o autor e a ré como mútuo feita na sentença recorrida.
Efectivamente, estabelece o artigo 1142º do Código Civil ser mútuo o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir à primeira outro tanto do mesmo género e qualidade. Trata-se de um contrato que exige para a sua perfeição a entrega pelo mutuante do respectivo objecto ao mutuário, a qual implica a transferência do respectivo direito de propriedade para o último (artigo 1144º do Código Civil).
Também não merece reparo a declaração de nulidade daquele contrato de mútuo derivada da inobservância da forma legalmente prescrita, posto que o artigo 1143º do Código Civil, na redacção dada pelo DL nº 190/85, de 24 de Junho, em vigor à data em que o contrato foi celebrado (Novembro de 1990), estabelecia que o contrato de mútuo de valor superior a 200.000$00 só seria válido se celebrado por escritura pública. E, no caso vertente, foi mutuada a quantia de 3.300.000$00 por acordo verbal, pelo que a inobservância da forma escrita exigida por lei impunha a sua nulidade, vício que é, aliás, de conhecimento oficioso pelo tribunal, que o deverá declarar a todo o tempo (artigos 220º, 285 e 286º do Código Civil).
Declarada a nulidade do contrato de mútuo, considerou-se na sentença recorrida que o caminho a seguir era o da restituição de tudo o que foi prestado pelas partes, incluindo a quantia entregue pela ré ao autor a título de juros moratórios convencionados, e assim foi decidido.
Insurgiu-se o autor contra a sua condenação no pagamento à ré da quantia de € 7.058,76 que tinha recebido desta relativa a juros de mora, alegando que estes são devidos, tendo a ré assumido, livre e conscientemente, tal obrigação e procedido ao seu pagamento parcial.
Daí que a questão que neste recurso se coloca seja, exclusivamente, a de saber quais as consequências da nulidade do contrato, ou seja, qual a medida da obrigação de restituir consagrada no artigo 289º do Código Civil.
À luz deste normativo não sofre dúvidas que anulado um contrato ou declarada a sua nulidade as partes devem restituir em espécie ou em valor, se aquela não for possível, o que lhes tiver sido prestado, constituindo doutrina e jurisprudência maioritárias as de que, no caso de contrato de mútuo nulo por falta de forma, a restituição das quantias mutuadas deve ser feita com base, directamente, no estabelecido no artigo 289º e não com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, o qual tem, aliás, carácter subsidiário (artigos 479º e 480º do Código Civil).
E, como se escreveu no Acórdão do STJ de 13.05.2004 (2) compreende-se que assim seja, pois que “no enriquecimento sem causa, o enriquecido restitui apenas aquilo que corresponde ao empobrecimento do lesado (ou seja, só restitui aquilo que o enriqueceu mas que também empobreceu a contra-parte, já que bem pode suceder que a medida do enriquecimento seja superior à medida do empobrecimento), enquanto no regime do art. 289º não há que fazer extrapolações comparativas entre benefícios e perdas mas restituir tão-só o que se recebeu por causa que foi anulada
Assim, uma vez declarado nulo o negócio por vício de forma, fica o mutuário obrigado a restituir ao mutuante “tudo o que tiver sido prestado”. Estando em causa uma obrigação pecuniária a restituição não envolve qualquer actualização porque rege, quanto a ela, o princípio nominalista.
A nulidade do contrato por vício de forma abrange todo o seu conteúdo, por força do seu efeito retroactivo, incluindo as cláusulas relativas à convenção de juros de mora. Tudo se passa como se o contrato não tivesse sido realizado, pelo que o autor não pode fundar nele a obrigação de juros, que só vincularia os contraentes caso o contrato fosse válido.
Contudo, para além da restituição do valor mutuado, tem o mutuante direito a receber juros de mora desde a data da citação para a acção de condenação, que vale como interpelação judicial, ou desde a interpelação extra-judicial (admonitória) para cumprir, se esta tiver ocorrido.
Tal ocorre por força da remissão operada pelo nº 3 do artigo 289º para os artigos 1269º e seguintes, todos do Código Civil. Na verdade, sempre que se verifique a obrigação de restituir fundada na nulidade do negócio por vício de forma, há que aplicar, directa ou analogicamente, as normas que regem sobre os efeitos da posse, de boa ou má fé.
Assim, a partir do momento em que ocorre a citação o mutuário fica ciente da falta de relação jurídica justificativa da manutenção da quantia mutuada em seu poder, cessando então a sua boa fé e ficando, por isso, obrigado a restituir também os frutos civis que o capital mutuado produzir, ou seja, os juros legais (artigos 212ºe 1271º do Código Civil). Logo, se o mutuário estiver de má fé responde pelo valor dos juros que o mutuante poderia ter obtido com a quantia mutuada.
No caso vertente, a factualidade provada mostra que a ré já havia pago ao autor a quantia mutuada em meados de 1994, muito antes de a presente acção ter sido proposta, e o autor não alegou nem provou que tivesse interpelado anteriormente a ré para lhe restituir o valor mutuado. Com efeito, essa restituição operou por iniciativa da ré.
Neste contexto pode afirmar-se que a factualidade apurada nos autos não configura uma conduta da ré integradora do conceito de má fé a que aludem os artigos 1269º e seguintes, que são, como se referiu, os aplicáveis, directamente ou por analogia, em caso de declaração de nulidade do negócio jurídico.
Não tem, pois, fundamento a pretensão do autor no sentido de lhe ser reconhecido o direito a frutos civis - juros legais - por não se ter verificado a má fé da ré, pressuposto necessário à procedência desse pedido. Diferente seria no caso de a boa fé da ré ter cessado (1)
Termos em que, sem necessidade de outros considerandos, improcedem, na totalidade, as conclusões da alegação do autor, aqui apelante.

3. Decisão:
Nesta conformidade, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
14 de Dezembro de 2006.
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo dos Santos Geraldes)
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1 In www.dgsi.pt/jstj.
2 Cfr. neste sentido Acs. do STJ de 05.06.2001, processo nº 01A809, de 18.09.2003, processo nº 03B2325, e de 13.05.2004, processo nº 04B661, in www.dgsi.pt/jstj.