Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa RELATÓRIO Em 6.6.2023, O Condomínio do edifício sito na Calçada …, nºs 68, 70 e 72, em Lisboa, A e Friendlyseason, Lda., intentaram procedimento cautelar comum contra B, pedindo que, deferindo-se a presente providência cautelar comum, seja: – intimada a requerida a facultar ao Condomínio (e/ou ao 2º ou à 3ª Requerentes) – e, assim, à empresa de reparação de canalização/esgotos, seus técnicos e operários – o acesso à sua fração, ou seja, ao 2º andar esquerdo, do edifício sito na Calçada …, nºs 68, 70 e 72, em Lisboa, para os efeitos da reparação dos esgotos do prédio, que provocam a queda de águas de esgoto no 1º andar esquerdo, pelo prazo de 1 (uma) semana, podendo, para o efeito, serem transportadas as necessárias ferramentas e materiais, devendo para o efeito, o Condomínio avisar da data de início da intervenção com, pelo menos, oito dias de antecedência; - que esta intimação seja feita com a cominação expressa constante do artigo 375º do Código de Processo Civil (“garantia penal”), ou seja, de que a Requerida incorrerá na pena de crime de desobediência qualificada se infringir a providência decretada; - que à Requerida seja imposta sanção pecuniária compulsória de montante não inferior a €300,00 (trezentos euros) por cada dia de atraso, na prática do ato, a cuja prática a mesma Requerida for intimada (facultar o acesso à fração para as finalidades atrás indicadas), e a contar da data do início das obras, e para a qual for atempadamente interpelada, por tal se mostrar adequado a assegurar a efetividade da providência decretada. Fundamentam a sua pretensão na seguinte alegação, em síntese: O edifício sito na Calçada …, com os nºs de polícia 68, 70 e 72, em Lisboa é composto por 9 frações autónomas, sendo a Requerida proprietária da fração designada pela letra “D” correspondente ao 2º andar esquerdo. O 1º Requerente é o Condomínio do prédio, o 2º Requerente é proprietário da fração designada pela letra “B”, correspondente ao 1º andar esquerdo, que emprestou gratuitamente, desde 2013, à 3ª Requerente (de que ele e a sua companheira são os únicos sócios e gerentes), para que esta sociedade prossiga a atividade que constitui o seu objeto social, ou seja, a atividade de “alojamento temporário turístico”. A antiguidade do edifício, com mais de 200 anos, e a falta de registo (nos serviços municipalizados ou noutro local) da localização exata dos elementos construtivos, dificultam, por vezes, as reparações que forem necessárias, como sucede com a canalização, designadamente dos esgotos. No decurso do inverno de 2022/2023, a fração autónoma designada pela letra “B” passou a receber “infiltrações de águas negras”, provenientes da canalização de esgoto do edifício, que caiam e caem do 2º andar esquerdo, em quantidade suficiente para afetar aquele 1º andar esquerdo, antes saudavelmente habitável, que passou a ter um ambiente terrivelmente nauseabundo e húmido. O 2º Requerente desloca-se à fração “B” pelo menos três vezes por semana, para mudar as extensas mantas que aí colocou e mantém e as centrifugar na máquina de lavar, para que as águas não se estendam a toda a fração, e para proteger o arrendatário do rés-do-chão, onde se encontra instalado um atelier de cerâmica com fornos elétricos sobre os quais não pode cair nenhuma água, estando a fração “B”, desde aí, impossibilitada de servir para a finalidade para a qual se encontra licenciada, ou seja, para Alojamento Local. O Condomínio, por se tratar de um ato urgente, diligenciou, junto de uma empresa de reparação de esgotos (NUNCOBTUSO, LDA.), a deteção, através das necessárias sondagens, e a reparação da fuga, contudo, a Requerida, tendo-lhe sido solicitado, por mais de uma vez, o acesso à sua fração para a realização dos trabalhos de reparação, não permitiu o acesso à sua fração, onde se encontram os elementos a reparar e/ou a substituir, conforme concluíram os técnicos após terem feito as sondagens a partir do 1º andar esquerdo, bem como os peritos de regulação de sinistros, um dos quais se deslocou, também, ao 2º andar esquerdo. Em virtude da oposição da Requerida, o 1º Requerente tentou, através dos canalizadores a reparação através de uma intervenção levada a efeito a partir da sua fração, mas não teve qualquer sucesso, designadamente por ser necessário aceder a uma “caixa” de esgoto a que só é possível aceder pelo 2º andar esquerdo, como, aliás, agora com mais certeza, os técnicos reiteram. Comunicado à Requerida o resultado das sondagens e a conclusão dos técnicos da empresa de canalização, manteve aquela a posição de não permitir o acesso dos operários e/ou técnicos da empresa empreiteira ao seu andar, e à caixa de visita de esgotos para efetuarem a reparação. Em 27.3.2023 reuniu, precedida da necessária e regular convocatória, uma assembleia de Condóminos, na qual foi aprovada a resolução do conflito em tribunal, a realização urgente das obras e a necessidade de todos colaborarem, e o orçamento para a reparação da caixa de esgotos e canalização adjacente (do qual consta que os trabalhos só podem ser realizados através do 2º andar, sendo o prazo de execução dos trabalhos no mesmo de 1 semana), com 7 votos a favor e o voto contra da Requerida. Na sequência foi solicitado, de novo, à Requerida que permitisse o acesso ao seu andar, unicamente para efeitos de aceder à caixa de visita do esgoto e de se proceder às substituições e/ou reparações necessárias, inclusivamente com a reparação escrupulosa dos elementos que fossem, para o efeito, necessário danificar, restituindo a fração ao estado anterior à obra (e, designadamente, com o compromisso de substituição da sanita), mantendo aquela a posição de não permitir o acesso à sua fração para a realização das obras. Pretende-se a cessação imediata da produção dos prejuízos graves que o proprietário do 1º andar esquerdo está a sofrer, bem como a 3ª Requerente, forçada à inatividade, e por cujo o ressarcimento o Condomínio (e a Requerida) será responsável. Para além de o 2º Requerente ter de deslocar-se umas três vezes da semana para conter a degradação da fração, com a troca de mantas que absorvem as descargas vindas do 2º andar esquerdo e centrifugação das mesmas, e a abertura de janelas, para arejamento, no estado em que se encontra a fração, sem a intervenção ou a obra necessária, cuja execução a Requerida impede, está completamente inabitável e impossibilitada de ser utilizável para o fim a que se destina, impedindo a 3ª Requerente de retirar, de rendimento líquido, uma média mensal de €1.300,00, pelo menos, estando os prejuízos a avolumar-se, aumentando em cada dia que passa, agravando-se aceleradamente. Verifica-se o fundado receio de que a Requerida, com a sua reiterada oposição ao acesso à sua fração, cause (continue a causar, agravando-se) lesão grave e dificilmente reparável quer na canalização, quer na fração do 1º esquerdo, quer dos proventos que dele o seu proprietário retira da respetiva exploração, como sócio gerente da comodatária, 3ª Requerente. Ordenada a citação da Requerida, esta apresentou oposição, que termina pugnando pela improcedência do requerido, por não se mostrarem reunidos os requisitos essenciais para decretar a providência cautelar. O tribunal recorrido entendeu que o processo reunia elementos suficientes para decidir de mérito, e, em 12.7.2023, proferiu sentença que julgou o procedimento cautelar totalmente improcedente, e absolveu a Requerida do presente procedimento cautelar comum. Não se conformando com o teor da decisão, apelaram os Requerentes, formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem: 1. Na sentença recorrida, após verificada a aparência do direito (do direito dos Requerentes de realizar obras que afetam não só as frações como as partes comuns do prédio, consubstanciadas nas suas paredes e esgotos – cfr., aliás, 1. a 6. da matéria de facto provada), considerou-se que da factualidade alegada no requerimento inicial não decorre qualquer periculum in mora, e entendeu-se a que a solicitada providência, antecipatória, não é adequada e, por isso, não é admissível. 2. Contrariamente ao decidido na primeira instância, há, manifestamente, uma lesão atual, não inteiramente consumada, uma continuação do dano, que, agravando-se, se pretende evitar, como tipicamente ocorre “quando se pretende prevenir a continuação de infiltrações provenientes das condutas de água”, em especial de águas de esgoto, sendo certo que, como consolidado na Jurisprudência, “as lesões já ocorridas não são inócuas” e “ servem para dar maior seriedade à pretensão ou para fortalecer a convicção de uma providência destinada a evitar a repetição ou a persistência da situação, admitindo-se se e quando uma situação de perigo de ocorrência de novos ou de agravamento dos danos entretanto ocorridos” (Cons. Abrantes Geraldes, temas, III, 4ª ed., pág. 105). 3. A natureza continuada e persistente da lesão, que se vem agravando, retira-se, sem dificuldade, designadamente dos artigos 11º, 12º, 13º, 34º e 37º do requerimento inicial, que foram objeto de impugnação da Requerida e Apelada. 4. O periculum in mora não pode ser negado, como o fez o julgador a quo, com a afirmação de inércia que, efetivamente não existiu, como decorre, aliás, não só do alegado no requerimento inicial (artigos 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 23º e 24º), como também, da oposição (72º a 75ª). 5. Os prejuízos, que se pretendem evitar, que são de vária natureza, são graves e dificilmente reparáveis, quer subjetiva, quer objetivamente, não sendo alguns deles suscetíveis de integral reparação por equivalente pecuniário, tendo em conta as regulares e muito frequentes deslocações do 2º Requerente à sua fração, para evitar maiores estragos, a perda de valor do estabelecimento de alojamento local, dificilmente mensurável, os efeitos nocivos, de índole sanitária, que a queda das águas do esgoto provocam no edifício, muito antigo, com estruturas débeis, caraterizado no artigo 8º do requerimento inicial, bem como a afetação do direito a um ambiente saudável. 6. Como o vem afirmando a Doutrina e a Jurisprudência, “Admitir que aquele que é titular de um direito, que se encontra na iminência de sofrer na pendência da ação principal, tenha de “aguardar sentado” pela verificação dessa lesão, contentando-se depois com a indemnização no valor dos danos, é conceder um benefício injustificado ao requerido. Não existe razão para que a lei conceda cobertura a tal injustiça (…)”. 7. A providência pedida é, em parte, antecipatória, mas da natureza da solicitada medida, não resulta a desnecessidade da ação “definitiva”, na qual, aliás, se pedirá não só a condenação da aqui Requerida a permitir (ou a não impedir) o acesso à sua fração para a reparação de elementos do sistema de esgoto, como, também, pedidos indemnizatórios, dos 2ª e/ou 3ª Requerentes pelo prejuízos decorrentes de obras e de lucros cessantes, e motivados pelas deslocações frequentes à fração para conter o alastramento dos danos, atividade deprimente suscetível de compensação (por danos morais). 8. É profundamente censurável a afirmação, constante da sentença recorrida, segundo a qual os Requerentes, “com a sua pretensão de intimação da Requerida a facultar o acesso à fração para realização das obras e consequente pedido de sanção pecuniária compulsória pretendem, por meio de uma providência cautelar, resolver definitivamente a sua problemática “(p.9.), e que “não é compatível com a natureza instrumental e provisória das medidas cautelares (…) por serem pretensões típicas da ação principal (…)”. 9. Na verdade a intimação do requerido à prática (ou à abstenção) de um comportamento (ativo ou omisso) é típico, não das “ações principais”, mas, precisamente, das ações cautelares inominadas, como se pode ver, aliás, na redação inicial do artigo 399º do Código de Processo Civil de 1961 (onde se fixava o “fundamento genérico” das “providências cautelares não especificadas”), e do seu confronto com o artigo 407º do Código de 1939. E, sendo típico de uma providência cautelar – a intimação deixou de ser expressamente prevista, mas passou a ser genericamente compreendida, não excluída -, não dispensa obviamente, a propositura da ação de que este procedimento é dependência, salvo se, entretanto, ocorrer a inversão do contencioso, sob pena de caducidade. 10. A ação “definitiva” – comum, de condenação (e não a especial, de suprimento) – permitirá (para além do conhecimento das questões relacionadas com os outros pedidos) um conhecimento mais profundo dos factos e do direito, nela se pretendendo (para além do mais), uma ratificação material da decisão cautelar, sob pena de responsabilidade do(s) Requerente(s), sendo certo que “a providência cautelar pode ter caráter antecipatório da tutela definitiva, sem com isso retirar objeto à ação principal de que é dependente” (Profs. Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, op. e loc. cits). 11. A Senhora Juíza a quo, na sentença apelada, violou os artigos 362º, nº 1, 364º, 367º e 368º, 373º, 374º e 375º do Código de Processo Civil. 12. Impõe-se, assim, a revogação da decisão recorrida, por acórdão, que, dando provimento à apelação, ordene a baixa dos autos à primeira instância para prova da matéria de facto controvertida, seguindo-se os demais termos até final, como é de JUSTIÇA! A apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e manutenção da decisão recorrida. QUESTÕES A DECIDIR Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes (art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), a questão a decidir é se no requerimento inicial se mostram alegados factos que, a provarem-se, permitem concluir pela verificação dos requisitos para que seja decretada a providência cautelar requerida. Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO O tribunal julgou indiciariamente provados os seguintes factos: 1. Encontra-se inscrita, na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, freguesia da Graça, sob o n.º 132/20090220 e por AP. 3 de 1980/06/30, a constituição da propriedade horizontal, referente ao prédio urbano, referente a edifício composto por Rés-do-chão e 4 andares com lado direito e esquerdo, sito na Calçada …, n.ºs 68, 70 e 72, em Lisboa; inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º 44 da freguesia de São Vicente e com as seguintes frações: a. fração A – rés-do-chão; b. fração B – 1.º andar esquerdo; c. fração C – 1.º andar direito; d. fração D – 2.º andar esquerdo; e. fração E – 2.º andar direito; f. fração F – 3.º andar esquerdo; g. fração G – 3.º andar direito; h. fração H – 4.º andar esquerdo; e i. fração I – 4.º andar direito. 2. O prédio referido em 1. é um edifício com área total de 130 metros quadrados, área coberta de 103 metros quadrados e com a área descoberta de 27 metros quadrados. 3. Encontra-se inscrita, na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, freguesia da Graça, sob o n.º 132/20090220 e por AP. 16 de 1982/03/18, a aquisição por parte de B da fração “D” correspondente ao 2.º andar esquerdo, do prédio urbano identificado em 1. 4. O 1.º Requerente é o Condomínio do prédio referido em 1. 5. Encontra-se inscrita, na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, freguesia Graça, sob o n.º 132/20090220 e por AP. 35 de 2001/05/15, a aquisição por parte de A da fração “B” correspondente ao 1.º andar esquerdo, do prédio urbano identificado em 1. 6. Os Requerentes, por diversas vezes, solicitaram à Requerida o acesso à sua fração (fração D), com vista à execução de uma obra em parte comum do prédio, ao que esta se opôs. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO O tribunal recorrido julgou improcedente o presente procedimento cautelar comum, por entender que “os factos indiciados não permitem concluir pela verificação dos pressupostos para que seja decretada uma providência cautelar não especificada, mormente o relativo ao periculum in mora e a adequação da providência à situação”. Fundamentou tal conclusão nos seguintes termos: “Quanto ao periculum in mora e inerente perigo no retardamento da tutela jurisdicional, partindo da configuração da relação material controvertida delineada pelos requerentes, parece indiscutível estarmos perante uma lesão de direito já inteiramente consumada, sem que os Requerentes densifiquem ou demonstrem justo receio de outras lesões futuras e idênticas. Invocam os Requerentes que, em virtude das infiltrações ocorridas desde o inverno de 2022/2023, (veja-se o artigo 13.º do requerimento inicial), o fim de exploração em alojamento local, da fração B, ficou impossibilitado. Mais referindo que o 2.º Requerente se desloca à fração B “três vezes por semana, para mudar as extensas mantas que aí colocou e mantém e de as centrifugar na máquina de lavar, para que as águas não se estendam a toda a fração, e para proteger o arrendatário do rés-do-chão, onde se encontra instalado um atelier de cerâmica com fornos elétricos sobre os quais não pode cair nenhuma água” (artigo 12.º da petição inicial). Todavia, os Requerentes reportam a existência de infiltrações ao inverno de 2022 e deduzem a presente providência cautelar a 06.06.2023. Não só os Requerentes não delimitam, com o mínimo rigor exigível em que data concreta ocorreram as infiltrações, como não alegam quaisquer factos próximos ou contemporâneos da instauração do presente procedimento cautelar e que sejam suscetíveis de traduzir um acréscimo ou agravamento dos danos ou prejuízos sofridos em consequência da conduta da Requerida. É que, desde o inverno de 2022 já lá vão mais de seis meses e os Requerentes não referiram qualquer facto que pudesse, agora, com a atualidade exigida pelo periculum in mora, levar o Julgador a determinar a imprescindibilidade de acautelar a situação. Quanto à desadequação da fração para a finalidade de exercício do alojamento local, a sua alegação demonstra que – a existir essa lesão – o dano invocado já se encontra consumado e, portanto, é irrelevante conhecê-lo. Os Requerentes (nomeadamente para os 2.º e 3.º Requerentes) não alegaram sequer que essa desadequação para a finalidade de alojamento local consubstancie uma lesão de difícil e grave reparação, mas tão somente que lhes retira um ganho patrimonial de 1.300,00€ que é passível de reparação, em sede de ação principal, por parte da Requerida. Mas mesmo que se pudesse considerar que a pretensão dos Requerentes é a de evitar o retardamento do seu direito, compulsado o requerimento inicial constata-se que os Requerentes não alegaram qualquer outra factualidade capaz de levar o Tribunal a crer que estão efetivamente a ter danos muito maiores do que aqueles que, até aqui, já tiveram. Conforme se referiu acima, só as lesões graves e de difícil reparação caem no âmbito das providências cautelares, e mesmo nesse caso, estão eximidas do âmago provisório das providências as lesões com as quais o titular do direito se conforma, sendo que os Requerentes alegam saber desta situação, sem que nada tenham feito até ao momento, desde o inverno de 2022. Estando a lesão consumada, e existindo inércia dos Requerentes, jamais aquela poderia fundamentar a presente providência cautelar. Quanto ao segundo fundamento – os danos futuros no atelier do rés-do-chão – são estes reconduzíveis a juízos hipotéticos, incertos e abstratos. Nada foi alegado no sentido de que, atendendo à origem e tipo de infiltrações, seja provável que elas cheguem a esse andar e, mais, que é especificamente a conduta da Requerida que provoca esse risco. Mais se estranha que, a existir esse receio de lesão dos equipamentos do rés-do-chão, o proprietário dessa fração não acompanhe os Autores nestes autos. Esta inércia na propositura desta providência cautelar é elucidativa do carácter de urgência que os requerentes ao assunto conferiram e que agora pretendem ver (urgentemente) acautelado. Daqui, portanto, se extrai que não verifica o designado periculum in mora. * A não verificação de um dos pressupostos basilares de decretamento de uma providência inviabiliza, desde logo, a sua procedência, mas ainda que assim seja, vejamos da adequação do pedido dos Requerentes à provisoriedade inerente aos procedimentos cautelares. É de recordar que as principais finalidades das providências cautelares se consubstanciam na função garantia de um direito, na função de regulação provisória de uma situação e, por fim, na função de antecipação da tutela definitiva. [3 - Acompanha-se, de perto, o proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em acórdão datado de 20.04.2023, em sede de processo n.º 2987/22.3T8PRD.P1.] A segunda das finalidades pretende evitar a ocorrência de prejuízos e lesões que afetem gravemente o direito, enquanto a situação não é regulada definitivamente na ação principal. A última função das providências cautelares é a antecipação da tutela definitiva que terá lugar com a decisão final. Nestas medidas cautelares, é certo, há sempre uma antecipação dos efeitos materiais da sentença final a ser proferida na ação principal, em caso de procedência. No entanto, mesmo nestes casos, as referidas medidas não perdem a sua natureza de provisoriedade, ao que é intrínseco o periculum in mora – que, como se verificou, inexiste na presente situação. “A inversão do contencioso, prevista no artigo 369.º n.º1, do Código de Processo Civil, apenas se compadece com as providências cautelares antecipatórias, na medida em que apenas estas têm os mesmos efeitos do pedido apresentado na ação principal” [4 - Acórdão citado do Tribunal da Relação do Porto.] e não se reconduzem ao pedido da ação principal. No presente caso, os Requerentes, com a sua pretensão de intimação da Requerida a facultar o acesso à fração para realização das obras e consequente pedido de sanção pecuniária compulsória pretendem, por meio de uma providência cautelar, resolver definitivamente a sua problemática. Não peticionam qualquer inversão do contencioso, é certo, mas, o pedido da providência nos exatos termos em que o conformam, nem o implicaria porque obteriam o resultado almejado simplesmente com o presente procedimento. Destarte, “não é compatível com a natureza instrumental e provisória das medidas cautelares, conservatórias e antecipatórias, a formulação pelo requerente da providência cautelar inominada de pretensões típicas da ação principal e que sejam suscetíveis de conceder imediata satisfação do requerente””. Insurgem-se os apelantes contra o decidido, sustentando que: - nos art.ºs 11º, 12º, 13º, 34º, 36º e 37º do RI, alegaram factualidade que, a provar-se (depois de produzida prova), demonstra que a lesão do direito dos Requerentes não se mostra inteiramente consumada, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, sendo atual o perigo de lesão, lesão que é continuada, não tendo existido qualquer inércia dos Requerentes; - os prejuízos referidos nos autos são graves e de difícil reparação; - a presente providência cautelar é, simultaneamente, conservatória (na medida em que se pretende não haver maiores lesões, quer no edifício e na fração, quer no património do condómino) e antecipatória (quando se pretende a intimação da Requerida para a prática de um comportamento (omissivo)), tendo-se pedido, ainda, a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias; - a natureza (parcialmente) antecipatória não impede a concessão das providências. - da natureza da medida solicitada não resulta a desnecessidade da ação “definitiva”, na qual se pedirá não só a condenação da aqui Requerida a permitir (ou a não impedir) o acesso à sua fração para a reparação de elementos do sistema de esgoto, como, também, pedidos indemnizatórios, dos 2ª e/ou 3ª Requerentes pelo prejuízos decorrentes de obras e de lucros cessantes, e motivados pelas deslocações frequentes à fração para conter o alastramento dos danos. Vejamos. Dispõe o art. 2º, nº 2, do CPC que “A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação”. Os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação são os procedimentos cautelares. Como escrevia o Alberto dos Reis, no CPC Anotado, Vol. I, págs. 624/625, “Convém, evidentemente, que a justiça seja pronta; mas, mais do que isso, convém que seja justa; O problema fundamental de política processual consiste exatamente em saber encontrar o equilíbrio razoável entre as duas exigências: a celeridade e a justiça. … Tudo isto vem para dizer que a demora no julgamento final e definitivo é, dentro de limites razoáveis, um facto normal impossível de remover. Mas essa demora pode, em certas circunstâncias, criar um estado de perigo, porque pode expor o titular do direito a danos irreparáveis; pode, na verdade, suceder que até à altura da emanação da decisão final se produzam ocorrências graves, suscetíveis de comprometer a utilidade e eficácia da sentença. O processo foi instruído, discutido e julgado com a ponderação indispensável para se obter uma decisão justa, mas essa decisão porque vem muito tarde, já não serve de nada, ou serve de muito pouco: o interessado obrigado a esperar longo tempo pelo reconhecimento do seu direito, foi vítima de prejuízos que a sentença já não pode apagar. … A função das providências cautelares consiste justamente em eliminar o periculum in mora, em defender o presumido titular do direito contra os danos e prejuízos que lhe pode causar a formação lenta e demorada da decisão definitiva. … Qual o mecanismo da providência cautelar? Como consegue ela prover ao fim a que se destina, isto é, eliminar o periculum in mora? Muito simplesmente: submetendo a relação jurídica litigiosa a um exame sumário, e por isso rápido, tendente a verificar se a pretensão do requerente tem probabilidades de êxito e se, além disso, da demora do julgamento final pode resultar, para o interessado, dano irreparável ou, pelo menos, considerável”. Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma de Processo Civil, III Volume, 3ª ed., pág. 35, escreve que “Os procedimentos cautelares são um instrumento processual privilegiado para proteção eficaz de direitos subjetivos ou de outros interesses juridicamente relevantes. A sua importância prática não resulta da capacidade de resolução autónoma e definitiva de conflitos de interesses, antes da sua utilidade na antecipação de determinados efeitos das decisões judiciais, na prevenção da violação grave ou dificilmente reparável de direitos, na prevenção de prejuízos ou na preservação do statu quo, enquanto demorar a decisão definitiva do conflito de interesses. Representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal ...”, e mais adiante, na pág. 43 conclui que “… os procedimentos cautelares constituem mecanismos jurisdicionalizados, expeditos e eficazes, que permitem assegurar os resultados práticos da ação, evitar prejuízos graves ou antecipar a realização do direito (instrumentalidade hipotética), de forma a obter, na medida do possível, a conciliação dos interesses da celeridade e da segurança jurídica”. Dispõe o art.º 362º, nº 1, do CPC, que “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”. Por seu turno, o art.º 364º, nº 1, do CPC, dispõe que “Exceto se for decretada a inversão do contencioso [1], o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva”. Processados os autos de procedimento cautelar nos termos dos arts. 365º a 367º do CPC, “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (art. 368º, nº 1). Requisitos do procedimento cautelar em causa são o fundado receio de que outrem, antes de proposta a ação principal ou na pendência dela, cause lesão grave ou dificilmente reparável do direito do requerente, a probabilidade séria da existência do direito ameaçado, a adequação da providência solicitada para evitar a lesão (nº 3 do art. 362º do CPC), e não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar (nº 2 do art. 368º do CPC). O procedimento cautelar comum visa obter uma decisão que decrete uma providência, conservatória ou antecipatória, que assegure ao requerente que o seu direito não será lesado, de forma grave e dificilmente reparável, enquanto não for proferida uma sentença definitiva a reconhecer esse mesmo direito. O procedimento cautelar não reconhece de forma definitiva o direito do requerente, nem resolve, de forma definitiva o litígio, visa, tão só, acautelar o direito do requerente - cuja probabilidade séria de existência resulta demonstrada nos autos -, decretando medidas conservatórias ou antecipatórias que tal assegurem, enquanto não houver uma decisão definitiva, e porque, muitas vezes, a delonga na administração da justiça não se compadece com a necessidade de uma atuação rápida, única que permite evitar uma violação irremediável do direito. Feitas estas considerações gerais, apreciemos o caso sub judice, tendo em conta a decisão do tribunal recorrido e as críticas que lhe tecem os apelantes. 1. O fundado receio de lesão grave e de dificilmente reparável do direito do requerente tem de ser apoiado em factos que permitam concluir, com objetividade, a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, a lesão grave e dificilmente reparável. Como escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no CPC Anotado, Vol. 2º, 4ª ed., págs. 7/8, “Dadas a provisoriedade da medida cautelar e a sua instrumentalidade perante a ação de que é dependência, bastar-lhe-á fazer prova sumária da existência do direito ameaçado …; mas já não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito”. Marco Filipe Carvalho Gonçalves, em Providências Cautelares, 2017, 3ª ed., págs. 196/198, escreve que “O periculum in mora, enquanto “paliativo das demoras do processo”, constitui um requisito processual de natureza constitutiva da providência cautelar concretamente requerida – já que a falta desse requisito obsta, por via de regra, ao decretamento efetivo da providência – e traduz-se no prejuízo que pode advir para o requerente em consequência da demora na tutela definitiva do seu direito. Dito de outra forma, o periculum in mora refere-se ao perigo de retardamento da tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido. Caberá assim ao requerente “provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis” [2]”. Abrantes Geraldes, na ob. cit., págs. 99 e ss., densifica o requisito em causa, referindo que “… não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade de permitir ao tribunal, mediante solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão”; “…, o juiz deve convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo dos danos futuros. A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado.”; “A proteção cautelar não abarca apenas os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular. Quanto aos prejuízos materiais o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.”; “Apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação. Ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de graves, sejam facilmente reparáveis.”; “Determina a lei que o receio deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Não bastam, pois, simples dúvidas, conjeturas, receios meramente subjetivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade, embora, de acordo com as circunstâncias, nada obste a que a providência seja decretada quando se esteja face a simples ameaças advindas do requerido, ainda não materializadas, mas que permitam razoavelmente supor a sua evolução para efetivas lesões.”. E no que respeita às “Lesões ainda não consumadas, lesões continuadas e repetidas”, escreve o mencionado autor, no ob. cit., págs. 105/106, que “Ao abrigo protetor das providências cautelares apenas podem aceder os titulares de direitos ou interesses que, por força de determinada atuação ou por omissão de determinado comportamento, sintam injusta ameaça de serem lesados se nenhuma providência cautelar for adotada. Pode, assim, bastar a prova de atos preparatórios, que permitam prever a ocorrência de um evento objetivamente idóneo a prejudicar o direito, do mesmo modo que não deixam de ser tuteladas situações em que o evento é anunciado por uma série de elementos de facto ou em que o evento danoso já verificado continua a produzir efeitos que se prolongam no tempo, agravando o estado de insatisfação. A situação de perigo contra a qual se pretende defender o lesado tem de ser atual. Apesar disso, as lesões já ocorridas não são inócuas; servem ainda para dar maior seriedade e fortalecer a concessão de uma providência destinada a evitar a repetição ou a persistência de situações lesivas, admitindo-se o deferimento de uma providência cautelar se e enquanto subsistir uma situação de perigo de ocorrência de novos danos ou de agravamento dos danos entretanto ocorridos. Cremos, apesar de tudo, que, face a este circunstancialismo, deve ser utilizado um critério mais generoso que, em situações de dúvida, acabe por beneficiar a tutela pretendida pelo interessado, em detrimento do requerido. A atualidade da situação de perigo … deve continuar a ser exigida, uma vez que, além de ser a que mais adequadamente se ajusta à letra do preceito (“receio de que outem cause lesão grave”), é ainda a que melhor se adapta à razão de ser deste tipo de medidas antecipatórias ou conservatórias, … Estão, pois, fora da proteção concedida pelo procedimento cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, ainda que se trate de lesões graves, mas já nada obsta a que relativamente a lesões continuadas ou repetidas seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição de atos lesivos, v.g. … ou quando se pretenda prevenir a continuação de infiltrações provenientes de condutas de água.”. Os Requerentes pediram, para além do mais, que fosse “intimada a requerida a facultar ao Condomínio (e/ou ao 2º ou à 3ª Requerentes) – e, assim, à empresa de reparação de canalização/esgotos, seus técnicos e operários – o acesso à sua fração, ou seja, ao 2º andar esquerdo, do edifício sito na Calçada …, nºs 68, 70 e 72, em Lisboa, para os efeitos da reparação dos esgotos do prédio, que provocam a queda de águas de esgoto no 1º andar esquerdo, pelo prazo de 1 (uma) semana, podendo, para o efeito, serem transportadas as necessárias ferramentas e materiais, devendo para o efeito, o Condomínio avisar da data de início da intervenção com, pelo menos, oito dias de antecedência”. Concluiu o tribunal recorrido pela verificação do requisito da prova sumária do direito dos Requerentes: “O concreto direito dos Requerentes emerge do interesse comum que detêm na conservação e fruição do prédio, nos termos dos artigos 1420.º, 1421.º e 1424.º do Código Civil. Emerge, assim, o direito de realizar obras que afetam não só as frações, como as próprias partes comuns do prédio (consubstanciadas nas suas paredes e esgotos)”. Contudo, entendeu que, da factualidade alegada, não resulta a demonstração do requisito do periculum in mora, uma vez que este não resulta atual, antes resultando que a lesão do direito se mostra inteiramente consumada, os Requerentes se conformaram com a mesma numa postura de inércia, nada tendo sido alegado que demonstre um acréscimo ou agravamento dos danos, não sendo os alegados de difícil reparação. Os apelantes sustentam que a matéria do periculum in mora se encontra devidamente alegada, mormente nos arts. 11º, 12º, 13º, 34º, 36º e 37º do RI. Vejamos o teor dos mencionados artigos, bem como dos que se tornam necessários para entender o seu sentido: 11º No decurso do inverno de 2022/2023, a fração autónoma designada pela letra “B”, ou seja, o 1º andar esquerdo – propriedade do 2º Requerente e explorada pela 3ª Requerente -, passou a receber “infiltrações de águas negras”, provenientes da canalização de esgoto do edifício, que caiam e caem do 2º andar esquerdo, em quantidade suficiente para afetar aquele 1º andar esquerdo, antes saudavelmente habitável, que passou a ter um ambiente terrivelmente nauseabundo e húmido, 12º De onde decorre a necessidade de o proprietário desta última fração (e sócio gerente da sociedade requerente) aí se deslocar pelo menos três vezes por semana, para mudar as extensas mantas que aí colocou e mantém e de as centrifugar na máquina de lavar, para que as águas não se estendam a toda a fração, e para proteger o arrendatário do rés-do-chão, onde se encontra instalado um atelier de cerâmica com fornos elétricos sobre os quais não pode cair nenhuma água. 13º Daí decorre, desde então, a impossibilidade do 1º andar esquerdo (fração “B”) servir para a finalidade para a qual se encontra licenciada, ou seja, para Alojamento Local. 32º Pretende-se a cessação imediata da produção dos prejuízos graves que o proprietário do 1º andar esquerdo está a sofrer, bem como a 3ª Requerente, aí forçada à inatividade, e por cujo o ressarcimento o Condomínio (assim como a Requerida) será responsável, já que é a ele que cabe a execução da reparação no esgoto do prédio. 33º Para além do Condómino do 1º esquerdo ter que se deslocar umas três vezes da semana para conter a degradação da fração, com a troca de mantas que absorvem as descargas vindas do 2º andar esquerdo e centrifugação das mesmas, e a abertura de janelas, para arejamento, 34º A mesma fração, no estado em que se encontra, sem a intervenção ou a obra necessária, cuja execução a Requerida impede, está completamente inabitável e impossibilita de ser utilizável para o fim a que se destina. 36º A inutilização temporária do 1º andar esquerdo impede o seu proprietário e/ou sociedade (3ª Requerente) de que é sócio gerente, de retirar, de rendimento líquido, uma média mensal de € 1.300,00, pelo menos (atendendo a que os proveitos não são iguais todos os meses), ou seja, depois de retiradas as despesas. 37º Estes prejuízos estão a avolumar-se, aumentando em cada dia que passa, agravando-se aceleradamente. Os apelantes sustentam, ainda, que o alegado nos arts. 14º a 19º, 23º, e 24º do RI [3] demonstram que não houve “inércia” da sua parte, tendo-se reconhecido na oposição as abordagens do 2º Requerente. Tendo em atenção a factualidade alegada, não podemos concordar com o tribunal recorrido quando entende que a lesão do direito dos Requerentes não é atual, o dano invocado se encontra consumado, existindo inércia dos mesmos. Como concluiu o tribunal recorrido, o direito subjacente à peticionada providência cautelar é o direito de realizar obras que afetam não só as frações, como as próprias partes comuns do prédio. Obras essas que são a realizar nos esgotos do prédio, e, conforme alegado, nos andares do 2º Requerente e da Requerida. E o que os Requerentes alegaram foi que, no decurso do inverno de 2022/2023 (e não só no inverno de 2022), a fração do 2º Requerente passou a receber “infiltrações de águas negras”, provenientes da canalização de esgoto do edifício, que caiam e caem do 2º andar esquerdo, o qual passou a ter um ambiente terrivelmente nauseabundo e húmido, quando antes era saudavelmente habitável. Dessa situação “decorre a necessidade” de o 2º Requerente se deslocar à sua fração pelo menos três vezes por semana, para mudar as extensas mantas que aí colocou e mantém e de as centrifugar na máquina de lavar, para que as águas não se estendam a toda a fração, decorrendo, desde então, a impossibilidade do 1º andar esquerdo (fração “B”) servir para a finalidade para a qual se encontra licenciada, ou seja, para Alojamento Local, por estar completamente inabitável e impossibilita de ser utilizável. Da factualidade alegada resulta que a lesão se verificou no decurso do inverno de 2022/2023, mas se mantém, de forma continuada, mantendo-se atual [4]. Por outro lado, da factualidade alegada não se mostra comprovada a inércia dos Requerentes, como entendeu o tribunal recorrido, na medida em que os Requerentes tentaram proceder à reparação dos esgotos, quer acedendo a casa da Requerida, o que esta sempre negou, quer através da fração do 1º Requerente, quer deliberando sobre a questão em assembleia de condóminos. Os danos patrimoniais alegados pela 3ª Requerente pela não utilização da fração, a provarem-se, são suscetíveis de ser indemnizados, nenhuma factualidade tendo sido alegada que justifique pôr em causa tal possibilidade, pelo que não são aqueles a justificar o periculum in mora. Já as infiltrações de águas negras provenientes da canalização de esgoto do edifício, que caiam e caem do 2º andar esquerdo no 1º andar esquerdo, tornando-o inabitável, e passando a ter um ambiente terrivelmente nauseabundo e húmido, tendo o 1º Requerente de manter mantas no chão e de as centrifugar na máquina de lavar (o que faz 3 vezes por semana), para que as águas não se estendam a toda a fração, encerram matéria reveladora da urgência do decretamento da providência e, implicitamente, a alegação de que o retardamento da decisão agravaria o dano dos Requerentes. A propositura de uma ação não se compadece com a urgência da intervenção pretendida, afigurando-se-nos, pois, suficientemente alegado o periculum in mora. Admitindo o tribunal recorrido que os factos alegados não são suficientemente explícitos, designadamente quanto a datas, pode/deve fazer atuar o mecanismo que o art.º 590º, nº 4, do CPC. 2. Entendeu, ainda, o tribunal recorrido que inexiste adequação da providência requerida à situação, não sendo compatível com a natureza instrumental e provisória das medidas cautelares, conservatórias e antecipatórias, a formulação pelo requerente da providência cautelar inominada de pretensões que são típicas da ação principal e são suscetíveis de conceder imediata satisfação do requerente. A lei permite, no art. 362º, nº 1, do CPC, que o requerente do procedimento cautelar comum, requeira “a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”. As medidas conservatórias “visam acautelar o efeito útil da ação principal, assegurando a permanência da situação existente quando se despoletou o litígio ou aquando da verificação da situação de periculum in mora”, nos dizeres de Abrantes Geraldes, na ob. cit., pág. 107 [5]. Nas medidas antecipatórias, o tribunal, atenta a urgência da situação carecida de tutela, antecipa a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e que será objeto de execução [6]. Lopes do Rego, na ob. cit. na nota 3, pág. 343 define as medidas antecipatórias como aquelas que “visam obstar ao prejuízo decorrente do retardamento na satisfação do direito ameaçado, através de uma provisória antecipação dos efeitos da decisão a proferir sobre o mérito da causa”. E, mais adiante na mesma página, conclui que “a redação do preceito [7] inculca expressamente que a matriz essencial da justiça cautelar é o asseguramento do princípio da efetividade da tutela jurisdicional, de modo a permitir que o titular de todo e qualquer direito possa obter, em tempo útil e na medida do possível, o que o respetivo conteúdo o autoriza a fruir”. Embora Abrantes Geraldes e Lopes do Rego se pronunciem no âmbito do anterior CPC, as considerações que tecem mantêm plena atualidade. À eventual procedência do procedimento cautelar não obsta ser o pedido o mesmo que é (será) formulado na ação, porquanto, por um lado, não está o tribunal adstrito à providência concretamente requerida (art.º 376º, nº 3, do CPC) [8], e, por outro, a lei prevê que possa ser requerida uma providência antecipatória concretamente adequada. Abrantes Geraldes, na ob. cit., págs. 111/112, refere que, quando se está perante medidas de carácter antecipatório, o risco de decisões injustas, presente nos procedimentos cautelares, aumenta exponencialmente, sendo que, “Apesar disso, as consequências foram assumidas pelo legislador, depois de ter ponderado os diversos interesses em confronto: por um lado, o interesse da segurança jurídica, que apela à restrição dos efeitos das medidas cautelares à função de mera garantia da utilidade de decisão definitiva e através da qual se previnem os prejuízos irrecuperáveis que, porventura, possam ser provocados na esfera jurídica do requerido; por outro lado, o interesse da celeridade e da eficácia das decisões judiciais, a fim de conferir ao interessado, tanto quanto possível, a mesma tutela que conseguiria se não houvesse a necessidade de recorrer aos meios de tutela jurisdicional”. (João de Castro Mendes e) Miguel Teixeira de Sousa, no Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, págs. 604/605, escreve que “As providências com uma finalidade de antecipação da tutela destinam-se a antecipar aos efeitos da ação principal e são genericamente admissíveis quando o requerente necessita da satisfação imediata do seu direito, quando esse requerente não pode obter em tempo útil a tutela definitiva e quando as vantagens obtidas suplantam as desvantagens impostas ao requerido (art.º 368º, nº 2). A providência cautelar pode ter caráter antecipatório da tutela definitiva, sem com isso retirar objeto à ação principal de que é dependente. Por exemplo: uma associação de consumidores pode requerer a proibição do uso ou da recomendação de cláusulas contratuais gerais proibidas (art.º 31º, nº 1 e 2, LCCG); o inquilino de um prédio urbano, que reside num dos últimos andares, pode requerer que o proprietário do prédio repare e ponha em funcionamento os elevadores; os vizinhos podem requerer a remoção dos animais alojados num canil clandestino instalado no logradouro de um prédio urbano, onde existem mais de trinta cães ladrando dia e noite e de onde emana um cheiro nauseabundo”. O nosso sistema permite, como referido, que, através de providências cautelares, se decretem medidas com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, sem que daí resulte a descaracterização do procedimento cautelar, nomeadamente, no que respeita à sua natureza instrumental em relação à ação principal. Apesar de antecipatórias dos efeitos jurídicos, estas providências cautelares não deixam de ter a característica de provisoriedade dos procedimentos cautelares, na medida em que se destinam a ser substituídas pela decisão que vier a resultar da ação principal de que depende [9]. Miguel Teixeira de Sousa, em Estudos sobre o novo processo civil, LEX, pág. 229, afirma que “O objeto da providência cautelar não é a situação jurídica acautelada ou tutelada, mas, consoante a sua finalidade, a garantia da situação, a regulação provisória ou a antecipação da tutela que for requerida no respetivo procedimento. … Mas esta distinção também se justifica quando a providência cautelar antecipa a tutela jurisdicional: neste caso, o objeto da providência não é a situação cuja tutela antecipa, mas a própria antecipação da tutela para essa situação. É por isso que, mesmo nesta eventualidade, o decretamento da providência não retira o interesse processual à solicitação da tutela definitiva …”. Apesar da “aparente” consunção dos efeitos da decisão final, o que é um facto é que o titular do direito tem de obter tutela definitiva para a sua pretensão, sob pena de caducidade da providência cautelar decretada, ainda que antecipatória (art. 373º, nº 1, al. a), do CPC). Em conformidade, não sufragamos, também, a decisão recorrida nesta parte. Em conclusão, procede a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida, devendo prosseguir seus termos o procedimento cautelar, com produção de prova. As custas da apelação são a cargo da Requerida por ter ficado vencida (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC). DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, devendo prosseguir seus termos o procedimento cautelar. Custas pela apelada. * Lisboa, 2023.10.24 Cristina Coelho Ana Mónica Mendonça Pavão Paulo Ramos de Faria _______________________________________________________ [1] Regulado no art.º 369º do CPC, que dispõe que: “1. Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio. 2. A dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da audiência final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o requerido opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada. 3. (…).” [2] Reproduzindo João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, em Contencioso Comunitário, pág. 535. [3] “7. Veja-se, ainda a pretensa inércia. Não existiu, nunca, como se retira da apreciação dos factos alegados no Requerimento inicial (e até da oposição): - o condomínio diligenciou junto de uma empresa de reparação de esgotos (NUNCOBTUSO, LDA.), a necessária intervenção (deteção, através das necessárias sondagens), a reparação da fuga (artigo 14º); - a Requerida não permitiu o acesso pela sua fração; - os técnicos fizeram sondagem a partir do 1º andar esquerdo, e chegaram à conclusão de que seria necessário aceder aos elementos do esgoto pelo 2º andar; - a Requerida negou o acesso; - deslocaram-se, ainda, ao local peritos de regulação de sinistros, que consideraram que a intervenção deveria ser feita a partir do 2º andar; (artigo 15º) - o 2º Requerente tentou, através de canalizadores, a reparação através de uma intervenção levada a efeito a partir da sua fração, mas não teve sucesso; - chegou-se à conclusão segura que a intervenção terá que ser feita a partir do 2º andar esquerdo, onde se encontra a caixa de esgoto; (artigo 16ª) - seguidamente, foi comunicado à Requerida o resultado das sondagens e a conclusão da empresa de canalização que realizou o trabalho e a opinião de peritos; - mas a Requerida manteve a posição de não permitir o necessário acesso; (artigo 17º) - reuniu a assembleia de condóminos, para o efeito convocada, em 27 de março de 2023; - nessa assembleia foi reportada a situação aos condóminos; - a Requerida manifestou recusar-se a permitir o acesso; - o orçamento foi aprovado; (doc. nº 18) Após a tomada de deliberação de condóminos, foi, de novo, solicitado à Requerida, que permitisse o acesso ao seu andar, unicamente para efeitos de aceder à caixa de visita do esgoto e de se proceder às substituições e/ou reparações necessárias, inclusivamente com a reparação escrupulosa dos elementos que fossem, para o efeito, necessário danificar, restituindo a fração dela ao estado anterior à obra (e, designadamente, com o compromisso de substituição da sanita). - artigo 23º Mas a Requerida voltou a recusar. - artigo 24º Tudo isto ocorreu em período de públicas e notórias dificuldades e atrasos na obtenção de orçamentos e de disponibilidade de mestres de obras.”. [4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no CC Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 459, escrevem que “A situação de perigo contra a qual se pretende defender o lesado deve ser atual, exigência que leva a excluir da proteção cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, mas que não exclui a tutela cautelar face a situações de lesões ainda não inteiramente consumadas, continuadas ou repetidas (…)”. [5] Ou, nos dizeres de Lopes do Rego, em Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., pág. 342, “… visam manter inalterada a situação de facto que pré-existe à ação, tornando-a imune à possível ocorrência de eventos prejudiciais”. [6] Neste sentido, Abrantes Geraldes, na ob. cit., pág. 109. [7] O art.º 381º do CPC1961. [8] Gozando de amplos poderes na determinação da medida a adotar, nada obstando que o tribunal recorrido imponha determinadas condutas destinadas a conferir proteção temporária ao direito que se procura salvaguardar. [9] Reconhecendo ou negando a existência do seu direito. |