Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1605/04.6TCSNT-C.L1-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: CITAÇÃO POR VIA POSTAL
FALTA DE CITAÇÃO
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Os art.ºs 236.º e 241.º do C. P. Civil configuram uma presunção de citação (a), a qual pressupõe a prática de todos os atos aí previstos (b) e que sempre pode ser elidida (c) pela prova de que, apesar de praticados tais atos, não foi dado o conhecimento, que é o cerne do ato de citação (art.ºs 228.º, n.º 1, 344.º, n.º 1 e 350.º, n.º 2, do C. Civil).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
No âmbito do processo de execução requerido por …, S. A. contra Liliana …, inconformada com o despacho que indeferiu a sua reclamação de declaração de nulidade de tudo o que tenha sido praticado no processo por falta absoluta da sua citação, prevista nos art.ºs 194.º, al. a), 204.º, n.º 2, 206.º, n.º 1 e 921.º, do C. P. Civil, a executada reclamante dele interpôs recurso, recebido como agravo, pedindo a revogação desse despacho e a substituição por outro que defira o requerido, declarando nulos todos os atos praticados na ação executiva posteriores ao momento em que se omitiu a citação e ordenando a citação da executada para deduzir oposição à execução, citando o acórdão desta relação, de 29-3-2007[1], formulando conclusões nas quais suscitou as seguintes questões:
a) Estamos perante um a/r para citação assinado por um terceiro que não o destinatário não estando comprovados os atos determinados pelo art.º 236.º do C. P. Civil uma vez que o tribunal a quo, por não ter ouvido a testemunha, não sabe se o carteiro negligenciou perguntar ao terceiro se este estava em condições de entregar a carta prontamente à citanda, se este terceiro negligenciou pois não sabe se este disse ao carteiro que não tinha ordens para receber correspondência que carecesse de assinatura da executada, assim como também não sabe se o terceiro informou o carteiro que a destinatária estava ausente em parte incerta ou se estava em condições de entregar a carta prontamente à citanda e se a carta de citação foi extraviada (conclusões 1 a 10 e 11);
b) O tribunal a quo não sabe se a destinatária teve conhecimento da carta de advertência do art.º 241.º do C. P. Civil e se sem culpa sua a carta não lhe foi ter às mãos como também não sabe quando e como é que a recorrente teve conhecimento do ato de citação, ou seja, em que data e se por intermédio do terceiro recebedor ou não (conclusões 11 e 12);
 c) Ao decidir na forma como o fez, o juiz aplicou uma presunção judicial (art.º 349.º do C. P. Civil) que não é meio de prova mas um meio lógico ou mental de operação, violando o disposto no art.º 265.º, n.º 3, do C. P. Civil (conclusões 13 a 23);
d) A executada por ter o direito de fazer a prova cabe-lhe o ónus de ilidir a presunção juris tantum (art.º 350.º, n.º 2 do C. P. Civil) mediante a prova de que, sem culpa sua, não teve conhecimento do ato (carta não entregue), o que implica o reconhecimento da nulidade de falta de citação e consequentemente a necessidade de repetição do ato, como decidiu o acórdão da relação de Lisboa de 29-3-07, processo n.º 2136/07-8 consultável no site da dgsi.pt (conclusão 24)

A apelada apresentou contra-alegações, declarando aderir à fundamentação do despacho recorrido.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.
A matéria de facto a considerar é a acima descrita e a aquela que, constando dos autos, a seguir transcreveremos, sendo certo que a questão submetida a decisão deste Tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
I. A questão da apelação.
Atentas as questões do agravo, supra descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela agravante consiste, tão só, em saber se o tribunal a quo podia conhecer da nulidade de falta de citação, invocada pela agravante na sua reclamação, com fundamento nos art.ºs 921.º, 194.º, al. a), 204.º, n.º 2 e 206.º, n.º 1, do C. P. Civil, nos termos em que o fez, indeferindo a reclamação sem necessidade de produção de prova relativamente aos factos articulados pela executada, ou se deveria, primeiramente, apurar esses factos para, em seguida, conhecer da arguida nulidade.
De facto, apesar de a agravante pedir a revogação do despacho recorrido e a substituição por outro que declare nulos todos os atos praticados na ação executiva, ordenando-se a citação da executada para deduzir oposição à execução, é ela própria que se arroga o direito de produzir prova em ordem a elidir a presunção de citação (questões c) e d) supra) e que aduz desconhecer o tribunal factos relevantes para apreciação da invocada nulidade (questões a) e b) supra).
O conhecimento do fundo da questão, sem necessidade de prova de mais factos do que os constantes dos autos, e o apuramento dos factos articulados pela agravante, a que se seguirá a apreciação de fundo, são questões processuais diversas, embora conexas, na perspetiva de que o conhecimento da segunda pode dispensar o conhecimento da primeira.
Não foi esta a perspetiva da reclamação, a qual articulou um conjunto de factos como fundamento da pretensão para, com base neles, pedir a declaração de nulidade por falta de citação.
E será esta a perspetiva de conhecimento da apelação, uma vez que, de outro modo, este tribunal conheceria, não em sede de recurso de agravo da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, mas de uma questão nova, não suscitada perante por esse tribunal.
Assim delimitada a questão, vejamos pois.
II. O conhecimento da questão.
Como é pacifico nestes autos, no âmbito da execução foram praticados atos relativos à citação da executada, ora agravante, os quais consistiram no envio de uma carta registada, com aviso de receção, que foi recebida por terceiro (fls. 55 destes autos de agravo e fls. 78 do processo de execução), na residência conhecida da executada, ato previsto no art.º 236.º do C. P. Civil, com o envio de nova carta registada à citanda (fls. 56 destes autos e fls. 79 dos autos de execução), ato previsto no art.º 241.º do mesmo código.
Em face de tais atos, decidiu o tribunal a quoque: “…como, claramente, resulta dos autos a executada foi devidamente citada (cfr. fls. 78, 79)”.
Uma primeira vertente da questão sub judice consiste em saber se os atos constantes de fls. 55 e 56 permitem concluir, como fez o tribunal a quo, que a agravante foi devidamente citada.
Sem uma preocupação de descrição exaustiva, tais atos consistem no seguinte:
Fls. 55 é um impresso de “aviso de receção” de “Citação-Notificação via postal”, dirigido a Lil…, onde consta na parte relativa à identificação do destinatário, o nome manuscrito de “L……”, precedido do n.º 0…300 e a expressão “cartão de cidadão” e fls. 56 é um escrito impresso onde, além do mais, consta a indicação de agente de execução, um número de processo, a indicação de que se trata de um registo postal (R) e dirigido à executada, para o mesmo endereço da fls. 78 (Rua do … 78, ….).
Pela sua própria configuração, como já referimos, trata-se de atos próprios do instituto processual da citação por via postal, em que a carta registada com aviso de receção para citação foi recebida por terceiro, como previsto nos art.ºs 236.º e 241.º do C. P. Civil.
Como dispõe o art.º 228.º, n.º 1, do C. P. Civil: “A citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu…”.
Atenta uma tal definição legal do ato de citação - dar conhecimento - a citação prevista nos art.ºs 236.º e 241.º do C. P. Civil, não estatuindo um concreto ato de conhecimento por parte do citando, configura-se juridicamente como uma presunção de que foi dado conhecimento.
Atenta a normal aptidão dos procedimentos aí previstos para dar conhecimento a uma determinada pessoa, esses normativos estabelecem uma presunção de que foi dado esse conhecimento.
Essa presunção é, expressamente, estabelecida pelo art.º 233.º, n.º 4, do C. P. Civil, que dispõe: “…presumindo-se, salvo prova em contrário, que o citando dela teve conhecimento”.
Esta citação, ficta, presumida, pressupõe, antes de mais, que tenha sido dado cumprimento integral aos diversos passos dos procedimentos aí previstos, entre eles, que o terceiro “…declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando” (art.º 236.º, n.º 2, in fine) e que o distribuidor do serviço postal advirta expressamente o terceiro do dever de pronta entrega ao citando (art.º 236.º, n.º 4).
E nada autoriza o tribunal a estabelecer, a partir de um dos passos desse procedimento - a assinatura do aviso de receção por terceiro - a presunção de que tais outros passos (n.º 2 in fine e n.º 4, do art.º 236.º) foram praticados, com o que estaria a aligeirar os procedimentos em que se estrutura a bondade da própria presunção de que o citando tomou conhecimento, criando assim uma dupla presunção a que já não assiste a segurança da primeira.
Nesta linha de ideias, o conteúdo dos atos de fls. 55 e 56, só por si, seria suficiente para criar no tribunal a quo a dúvida sobre a apetência de tais atos para suportarem a conclusão de que a agravante foi devidamente citada.
Esta dúvida não é dissipada pelo facto invocado no despacho recorrido de que: “…a executada em 25 de janeiro de 2011…teve intervenção nos autos, tendo remetido através de correio requerimento de proteção jurídica…[2], o qual se configura, agora, não como presunção sobre presunção, mas como uma tripla presunção em que a primeira (1) é a de que, remeteu requerimento, logo teve intervenção, a segunda, (2) a de que teve intervenção, logo o terceiro transmitiu-lhe a carta registada, e a terceira, (3) que é a presunção própria dos art.ºs 236.º e 241.º, o terceiro entregou-lhe a carta, logo foi citada para a execução, ou seja, teve conhecimento da existência do processo e dos elementos necessários para nele se defender.
Mas a agravante vai mais longe na sua reclamação aduzindo, a fls. 64 destes autos e fls. 148 do processo de execução, que:
1) O terceiro era a pessoa da casa, não vivia com a executada em economia comum, ocupando esta temporariamente uma assoalhada na morada dos autos.
2) Segundo o terceiro, ao tempo da citação este desconhecia o paradeiro da aqui reclamante por esta se encontrar em parte, por si, desconhecida.
3) Apesar de se encontrar encarregado de transmitir o ato, o terceiro não o pôde fazer, por desconhecer o paradeiro da executada, o que o impossibilitou de entregar à executada os elementos recebidos.
4) Na sequência da citação da execução na pessoa do terceiro, foi remetida pelo AE, carta registada, para a morada que consta dos autos, a qual e pelas razões referidas não foi recebida pela ora reclamante.
E esta é a segunda vertente da questão submetida à nossa apreciação.
Com a alegação destes factos propõe-se a agravante demonstrar que, na realidade, lhe não foi dado o conhecimento em que consiste a citação para a execução, assim elidindo a presunção desse conhecimento, que é o fundamento da forma processual de citação praticada nos autos.
Não vislumbramos fundamento para lhe ser denegada uma tal possibilidade uma vez que, como já referimos, (a) os art.ºs 236.º e 241.º do C. P. Civil configuram uma presunção de citação; (b) a qual pressupõe a prática de todos os atos aí previstos e que (c) sempre pode ser elidida pela prova de que, apesar de praticados tais atos, não foi dado o conhecimento, que é o cerne do ato de citação (art.ºs 344.º, n.º 1 e 350.º, n.º 2, do C. Civil)[3].
Não podemos, pois, deixar de conceder provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que determine a audição da testemunha oferecida pela agravante aos factos por ela articulados, fixe a correspondente matéria de facto provada e decida, na linha do acima expendido, conforme for de direito.

C) EM CONCLUSÃO.
Os art.ºs 236.º e 241.º do C. P. Civil configuram uma presunção de citação (a), a qual pressupõe a prática de todos os atos aí previstos (b) e que sempre pode ser elidida (c) pela prova de que, apesar de praticados tais atos, não foi dado o conhecimento, que é o cerne do ato de citação (art.ºs 228.º, n.º 1, 344.º, n.º 1 e 350.º, n.º 2, do C. Civil).

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento o agravo, revogando o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que, determine a audição da testemunha oferecida pela agravante aos factos por ela articulados, fixe a correspondente matéria de facto provada e decida conforme for de direito.
Custas pelos agravados.

Lisboa, 23 de abril de 2013.

Orlando Nascimento
Ana Resende
Dina Monteiro
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince. 
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[1] P.º 2136/07-8, in dgsi.pt (relator: Salazar Casanova).
[2] Cfr. nesta matéria, o acórdão da Relação de Guimarães, de 5/4/2011 (relatora: Rosa T Ching), in dgsi.pt.
[3] Cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos desta relação de Lisboa, de 29/3/2007 (já citado),  de 17/6/2008 (relator: Rijo Ferreira), de 13/1/2009 (relator: Rui Moura), todos in dgsi.pt.