Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
170/22.7PBLSB.L1-5
Relator: CARLA FRANCISCO
Descritores: ERRO SOBRE A ILICITUDE
ARGUIDO ESTRANGEIRO
CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
TROTINETE ELÉCTRICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1.Não age com falta de consciência da ilicitude o cidadão estrangeiro, de férias em Portugal, que conduz uma trotinete eléctrica, com uma TAS superior a 1,2 g/l, sabendo que está sob o efeito do álcool e querendo conduzir esse veículo nesse estado.

2.O desconhecimento da proibição de conduzir trotinetes com motor sob o efeito do álcool é um erro censurável e não implica a exclusão da culpa, porquanto a incriminação em causa não é nova, discutível, controvertida ou axiologicamente neutra e em função da perigosidade adveniente da condução de veículo sob o efeito do álcool, para a vida, integridade física e bens materiais do próprio ou de terceiros, qualquer homem médio, não necessariamente instruído e versado no conhecimento das leis, compreende que a condução de qualquer veículo motorizado em estado de embriaguez tem que ser criminalmente punida.

3.Sendo muito elevadas as necessidades de prevenção geral positiva, face à frequência cada vez maior da circulação de trotinetas sem cumprimento das regras estradais, em que os seus condutores ora adoptam comportamentos de peões, ora de veículos, conforme lhes é mais conveniente, sem respeito pela vida, pela integridade física e pelo património dos próprios e de terceiros, não deve ser substituída a pena de multa por uma pena de admoestação.

4.O instituto da dispensa da pena previsto no artigo 74º, nº 1 do Código Penal abrange somente as penas principais de prisão e multa e não também as penas acessórias.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



1– Relatório


No processo nº 170/22.7PBLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa - Juiz 4, após julgamento em processo abreviado, foi proferida sentença oralmente, nos termos previstos no art.º 389º-A do Cód. Proc. Penal, datada de 3/10/2022, na qual se decidiu:
1.- Condenar o arguido J......, como autor material na forma consumada, em 01/02/2022, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos n.º 1, do artigo 292.º, 14º e 26º ambos do C.P., na pena de sessenta (60) dias de multa, à taxa diária de cinco (5) euros, o que descontado um (1) dia por detenção, atento o disposto no artigo 80.º nº2 do CP, perfaz a quantia global de duzentos e noventa e cinco euros (€295,00 euros);
2.- Condenar o arguido J……, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados (nos termos do artigo 69.º, nº1, alínea a), do Código Penal) pelo período de três (3) meses, ficando, desde já, notificado para proceder à entrega das suas carta e/ou licença de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo máximo de 10 (dez) dias, após o trânsito em julgado da presente decisão, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, se não o fizer, e sem prejuízo da apreensão da(s) mesma(s), nos termos do artigo 69.º, n.º 3, do Código Penal e 500.º do Código de Processo Penal);
3.- Condenar o Arguido J…… no pagamento da taxa de justiça que se fixa em duas (2) UC, atento o disposto no artigo 513.º, do CPP ex vi artigo 8.º, n.º 9, do RCP.
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Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor recurso, formulando as seguintes conclusões, após despacho de aperfeiçoamento:
a.-O Recorrente não está de acordo com a sua condenação, nem com a escolha da pena e respetiva sanção acessória de inibição de conduzir.
b.-O Recorrente é cidadão irlandês, residente na Irlanda, que durante umas férias em Lisboa, foi detido na sequência da condução de uma trotineta elétrica sob efeito de álcool, com uma taxa de alcoolemia relevante para efeitos criminais (situação essa decorrente de uma ação de mera fiscalização por parte das forças policiais, sem qualquer intervenção em acidente de viação).
c.-O Recorrente totalmente desconhecia que a sua conduta era criminalmente punida em Portugal tendo, conforme depoimento da testemunha, ficado muito surpreendido ao percebê-lo, depois de intercetado pelos agentes autuantes.
d.-O Recorrente cooperou com a Autoridade Policial, não tendo, em momento algum, agido de forma hostil durante a sua detenção para comparência em Tribunal.
e.-Mal andou o Tribunal Recorrido ao ignorar que o Recorrente é cidadão estrangeiro que estava em Portugal de férias, à data da prática dos factos, tendo atuado como atuou em total abstração e falta de consciência sobre a ilicitude dos seus atos, conforme artigo 17.º, n.º 1 do CP – facto incorretamente julgado.
f.-Face à prova produzida (mormente o depoimento da testemunha), não poderia o Tribunal Recorrido não dar como não provada a falta de consciência do Recorrente sobre a ilicitude.
Com efeito,
g.-Ao decidir como decidiu, o Tribunal Recorrido violou o artigo 127.º do CP, já que a livre apreciação de prova não é ilimitada, exigindo-se que a decisão seja racional, objetivável e não meramente especulativa.
h.-Ao decidir pela condenação do Recorrente com base no fundamento de que aquele se deveria ter inteirado nas normas portuguesas (em lato senso) aquando decidiu vir de férias a Lisboa, o Tribunal Recorrido violou o princípio vertido no artigo 127.º do CP, por ter fundando a sua convicção numa premissa meramente especulativa.
i.-E por consequência, também o princípio de presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2 CRP) foi violado!
j.-REQUERENDO-SE, NESTAS INSTÂNCIAS, QUE SEJA A DECISÃO RECORRIDA REVOGADA NA PARTE EM QUE CONDENA O RECORRENTE, E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE DETERMINE A SUA ABSOLVIÇÃO.
k.-Mesmo que assim não se entendesse, quanto à escolha da pena, dada a factualidade e o baixo grau de censura que o caso concreto importa, deveria o Tribunal Recorrido ter condenado o Recorrente numa pena de admoestação, conforme artigo 74.º, n.º 1 do CP, sendo a advertência ao mesmo apta ao cumprimento das finalidades da prevenção geral e especial.
l.-Qualquer pena além da admoestação é, na opinião da defesa, exagerada e desproporcional ao caso concreto.
m.-E ao não considerar a possibilidade de aplicação do instituto da dispensa de pena, do artigo 74.º do CP, o Tribunal aquo enfermou a decisão recorrida de nulidade conforme conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, al. c) e 410.º, n.º 3 do CPP.
n.-TERMOS PELOS QUAIS, SUBSIDIARIAMENTE, SE REQUER AO DOUTO TRIBUNAL DA RELAÇÃO QUE REVOGUE A DECISÃO RECORRIDA NA PARTE EM QUE CONDENA O RECORRENTE EM PENA DE MULTA, E A SUBSTITUA POR OUTRA QUE APLIQUE AO RECORRENTE UMA PENA NÃO MAIS GRAVOSA DO QUE A ADMOESTAÇÃO.
Mais,
o.-Bem sabe a defesa de que a sanção acessória de inibição de conduzir é obrigatoriamente aplicável em caso de condenação pela prática do crime de condução em estado de embriaguez.
p.-Não obstante, nenhum sentido faz a aplicação desta sanção acessória quanto à prática do crime, quando relacionado com a condução de trotinetas, dado que nenhum utilizador carece de carta de condução para estes efeitos.
q.-A norma que determina a aplicação de uma sanção acessória de proibição de conduzir está teleologicamente pensada para as situações de condução de veículos sob o efeito de álcool, para os quais é exigido título de condução.
r.-O alargamento do ilícito típico aos velocípedes, pelo Código da Estrada, parece ter sido pensado da perspetiva de arrecadar receita, ignorando o legislador o facto de ao crime de condução sob efeito de álcool estar associada uma sanção acessória de inibição de conduzir.
s.-Esta sanção acessória é manifestamente exagerada e desproporcional à gravidade dos factos, em total violação do princípio da proporcionalidade constantes do artigo 18.º, n.º 2 da nossa Lei Fundamental e do artigo 40-º, n.º 2 do CP, de acordo com o qual a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
t.-Sendo este exagero estradal completamente perverso à vida diária do Recorrente, que não passa, de todo, por Portugal,
u.-Ficar 3 (três) meses impedido de trabalhar (já que o Recorrente é Eletricista e necessita da sua licença para fazer domicílios) é uma sanção demasiado pesada para um turista estrangeiro que, com erro sobre a ilicitude, decidiu abandonar a zona de diversão noturna de Lisboa, em direção ao hotel, de trotineta elétrica, para a qual não é exigível qualquer título de condução.
v.-As finalidades de prevenção ficaram acauteladas e preenchidas aquando da detenção do Recorrente e subsequente comparência a Tribunal, que claramente afetado e abalado, nunca mais ousará conduzir uma trotineta elétrica em Portugal, depois de consumir bebidas alcoólicas (se é que alguma vez mais volta a Portugal ...).
w.-TERMOS PELOS QUAIS, CASO SE DECIDA PELA MANUNTENÇÃO DA CONDENAÇÃO DO RECORRENTE, DEVE SER ORDENADA A REVOGAÇÃO DA SANÇÃO ACESSÓRIA DE INIBIÇÃO DE CONDUZIR.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, sem formular conclusões, defendendo que deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, nos seguintes termos:
“Recorre J……, inconformado com a condenação sofrida por conduzir uma trotinete com motor eléctrico, sob influência de álcool. Alega além do mais, que desconhecia a ilicitude de tal comportamento, já que no seu país tal não é crime. Contesta a pena e a necessidade da sanção acessória resultante da proibição de conduzir veículos.
Ao recurso respondeu com propriedade e assertivamente o MP junto do tribunal a quo, pugnando pela rejeição do recurso e integral confirmação da sentença recorrida.
O signatário revê-se nesta resposta, que sufraga e faz sua, igualmente defendendo a bondade da sentença em crise.
Não deixaria de anotar, quanto à questão relacionada com a condução de veículos do tipo trotinete no país de origem do arguido, sob influência do álcool e a respectiva (i)licitude, que o TRL já expendeu sobre o tema, nomeadamente no caso do Ac. Tirado sobre o NUIPC 280/19.8SCLSB.L1-5, em que decidiu como segue:
“No direito penal português existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevantes, ainda que com efeitos diferenciados sobre a responsabilidade do agente: uma que exclui o dolo, ficando ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais (art. 16.º do Cód. Penal); outra que exclui a culpa, se não for censurável, mantendo-se a punição a título de dolo se o for, ainda que com uma pena especialmente atenuada (cf. art. 17.º do mesmo Diploma).
A falta de conhecimento de que a norma penal pune igualmente a condução de veículo sem motor em estado de embriaguez, onde manifestamente se inclui o velocípede, não constitui erro sobre as proibições nos termos do art. 16.º, n.º1, do C.Penal, dado que o conhecimento da proibição e punição concreta não pode reputar-se razoavelmente indispensável para que o arguido tomasse consciência da ilicitude do facto”, mas sim, no domínio do art. 17.º daquele Diploma.
– O carácter perigoso do exercício da condução em geral e, em particular, da condução em estado de embriaguez, são claramente suficientes para que o condutor de velocípede tenha consciência da ilicitude respetiva, ao mesmo tempo que fazem impender sobre ele o dever de conhecer as regras essenciais à condução na via pública independentemente da obrigatoriedade de licença de condução”, sendo que no caso presente, esta última condição até se verificará, atento o tipo de condenações que revela já ter sofrido”.
Em suma, a “valoração paralela na esfera do leigo”, que é aquilo que se espera de qualquer cidadão médio, na avaliação permanente da licitude do comportamento em sociedade, deveria ter alertado o arguido para a desconformidade legal do seu comportamento.
Em resumo,
A tudo o expendido no recurso se deve recusar provimento, como bem aduz o ilustre magistrado do MP em primeira instância, com a adesão do signatário.
Na certeza de que V.ªs Exas melhor dirão, como aliás é de costume.”
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2– Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»).

Nos presentes autos, após despacho de convite para formulação de conclusões, o arguido não se limitou a formular conclusões de acordo com a motivação anteriormente apresentada, mas antes aditou questões não presentes na motivação do recurso inicial.
Uma vez que, de acordo com a previsão do art.º 412º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, as conclusões devem ser um resumo das “razões do pedido”, entendendo-se, por isso, que devem corresponder a um apanhado conciso de quanto se desenvolveu no corpo da motivação, não podem as mesmas servir para alargar o objeto do recurso a matérias estranhas e naquele não tratadas.
Dispõe o art.º 417º, nºs 3 e 4 do mesmo diploma que o aperfeiçoamento das conclusões não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação inicial.
Por maioria de razão o “aperfeiçoamento” efectuado nestes autos não permite alterar a motivação de recurso inicial, através da introdução de novas questões, pois tal equivaleria à concessão de um novo prazo de recurso, não previsto na lei.

Assim sendo, serão tidas em conta na apreciação do presente recurso apenas as questões suscitadas nas conclusões do recorrente, na medida em que não extravasem o alegado na primeira versão da motivação de recurso apresentada e que são as seguintes:
- falta de consciência da ilicitude do recorrente;
- substituição da pena de multa aplicada ao recorrente pela pena de admoestação;
- desproporcionalidade da sanção acessória aplicada.
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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto
3.1.É a seguinte a decisão recorrida:
(…) FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1.- No dia 1 de fevereiro de 2022, pelas 4h47, o arguido conduzia uma trotineta com motor, da marca Bolt, na R. São J..., junto ao nº ...- A, em Lisboa, quando foi fiscalizado por agentes da PSP e submetido a teste para deteção da presença de álcool no sangue, tendo acusado uma taxa de 1,59g/l, a que corresponde, pelo menos, após dedução do erro máximo admissível a taxa de 1,51g/l.
2.- O arguido sabia que a qualidade e a quantidade de bebidas alcoólicas que ingeriu momentos antes de iniciar a condução lhe determinariam, necessariamente, uma T.A.S. superior a 1,20g/l, o que não o impediu de conduzir o veículo na via pública, de forma livre, voluntária e consciente.
3.- Mais sabia, o arguido, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
4.- O Arguido não tem antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS
Não se resultou provado que:
A.- A taxa de alcoolemia fosse igual ou inferior a 1,46g/l.
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No mais, não se provaram quaisquer outros enunciados de facto, quer por se traduzirem em juízos conclusivos, quer por afirmarem conceitos de direito, quer por resultarem em contrário dos plasmados como provados.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Atendendo à prova produzida em audiência de julgamento, dão-se como demonstrados todos os factos imputados na acusação pública. Porém, no que diz respeito à concreta taxa de alcoolémia, considerando o talão de folhas 13, confrontado com o certificado de verificação de folhas 14, o que refere que o mesmo foi sujeito a primeira verificação em 21 de dezembro do ano 2021, a taxa para a redução do erro máximo admissível é a mais reduzida, apurando-se então uma taxa concreta de 1,51g/l e não 1,46g/l o que corresponderia ao desconto realizado por uma verificação periódica.
No que diz respeito e atendendo à discrição que foi feita pela testemunha atuante que referiu que o arguido conduzia trotinete naquele dia e naquele local, e tendo sido sujeito à pesquisa do álcool do qual resultou o talão de folhas 13, do confronto do já referido do certificado de verificação apura-se então a taxa de 1,51g/l que se dá como aprovado.
No que diz respeito ao elemento subjetivo, pese embora, o arguido seja estrangeiro, o que é certo que é turista, está mais do que ciente e na possibilidade de conhecer as leis que regulam o país para onde se desloca, para mais, quando se inicia a condução de um veículo, obviamente que o mesmo tinha todas as condições para saber e tinha o dever de conhecer, não sendo justificável o alegado desconhecimento, pelo que se considera que efetivamente o arguido executou os factos exatamente com a motivação que está esplanada na acusação pública, não sendo admissível sequer a alegação de que o arguido desconheceria por ser estrangeiro, isso seria abrir uma porta imensa em termos de não punibilidade deste tipo de comportamentos.
No que diz respeito também à alegação de que os nacionais que também quase desconhecem, desconhecem também porque não se inteiram de optar por utilização de quaisquer veículos sejam trotinetes, bicicletas ou automóveis ou quaisquer outros tipos de veículos independentemente de terem bebido alcoólicas em excesso pelo menos para iniciarem a condução de veículo na via pública, e nesta medida consideramos que não é justificável o alegado desconhecimento por parte do arguido, e nesta medida consideramos que está demonstrado suficientemente para a condenação por estes factos que aqui vão dados como provados.
Também ressalta, quanto ao arguido a inexistência de antecedentes criminais conforme consta do certificado de registo criminal devidamente atualizado junto dos autos, cujo teor não foi questionado.
Portanto dá-se como não provado que a taxa de alcoolemia seria de 1,46g/l nos termos anteriormente referidos.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
DO CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
Estatui o n.º 1, do artigo 292.º, do CP, o seguinte:
“(…) 1.- Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal (…)”.
Apreciando,
Atendendo à matéria de facto dada como provada resultam demostrados os elementos objetivos do tipo, designadamente, que o arguido conduzia um veículo, no caso, uma trotinete na via pública, com uma taxa de álcool no sangue apurada em valor superior 1,2g/l, mais concretamente em 1,51g/l, pelo que estão reunidos os respetivos elementos objetivos e, também, que o fez bem sabendo que tal comportamento era ilícito e criminalmente punido, pelo que, agiu com dolo direto nos termos do artigo 14.º n.º 1 do código penal.
Estando verificados os elementos objetivos e subjetivos do tipo e inexistindo causas da exclusão da ilicitude ou da culpa, impõem-se a condenação do arguido.
Este crime é punido com pena de prisão ou com pena de multa, considerando que o arguido não tem antecedentes criminais registados, entende-se satisfazer as necessidades de punição a aplicação de uma pena de multa.
No que diz respeito à ilicitude de factos consideramos que é mediana baixa, atendendo à taxa concreta de alcoolemia que foi detetado, considerando também a natureza do veículo que circulava; o grau de culpa está no expoente máximo, atento o dolo direto em que agiu, as necessidades de prevenção especial são reduzidas uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais e as necessidades de prevenção geral são elevadas considerando a frequência deste tipo de comportamentos, designadamente na condução de trotinetes.
Tudo visto e ponderado considera-se adequada a condenação do arguido, numa pena de multa, que se fixa 60 dias, e não sendo conhecidas concretamente as condições económicas e financeiras do mesmo, fixa-se o valor diário no mínimo legal em €5,00 (cinco euros).
Pelas mesmas razões, anteriormente referidas, considera-se ser justo adequada e necessária a aplicação de uma pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período mínimo, ou seja 3 (três) meses, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal.” (…)”

3.2.- Mérito do recurso
Nos presentes autos foi o arguido J…. condenado, como autor material na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos arts.º 292º, 14º e 26º do Cód. Penal, na pena de sessenta (60) dias de multa, à taxa diária de cinco (5) euros, o que perfaz a quantia global de duzentos e noventa e cinco euros (€295,00 euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do art.º 69º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma, pelo período de três (3) meses.
O arguido não põe em causa os factos apurados na decisão condenatória, nem a qualificação jurídica dos mesmos.
Antes alega que agiu sem consciência da ilicitude, pugnando pela sua absolvição, e, subsidiariamente, pedindo a substituição da pena de multa que lhe foi aplicada por uma pena de admoestação e a dispensa da pena acessória de inibição de conduzir.
Vejamos se lhe assiste razão.
Prevê-se no art.º 292º, nº 1 do Cód. Penal, sob a epigrafe condução de veículo em estado de embriaguez, que:
“Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” (sublinhados nossos)

No que concerne à classificação do tipo de veículo, a trotinete com motor eléctrico é equiparada a velocípede pelo art.º 112º, nº 3 do Cód. da Estrada, nos seguintes termos:
1 - Velocípede é o veículo com duas ou mais rodas acionado pelo esforço do próprio condutor por meio de pedais ou dispositivos análogos.
2 - Velocípede com motor é o velocípede equipado com motor auxiliar com potência máxima contínua de 0,25 kW, cuja alimentação é reduzida progressivamente com o aumento da velocidade e interrompida se atingir a velocidade de 25 km/h, ou antes, se o condutor deixar de pedalar.
3 - Para efeitos do presente Código, os velocípedes com motor, as trotinetas com motor, bem como os dispositivos de circulação com motor elétrico, autoequilibrados e automotores ou outros meios de circulação análogos com motor são equiparados a velocípedes.”(sublinhados nossos)

Voltando à sentença recorrida, resultou provado que o arguido conduziu uma trotinete eléctrica, com uma TAS superior a 1,2 g/l, sabendo que agia sob o efeito do álcool, querendo fazê-lo e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Desta factualidade decorre, sem margem para dúvida, o preenchimento pelo arguido dos elementos objectivo e subjectivo do crime pelo qual foi condenado, na modalidade de dolo directo.
O Tribunal a quo apurou os factos com base nas declarações do arguido, da testemunha autuante e no teste de alcoolemia efectuado ao arguido, não teve dúvidas e fundamentou a sua decisão de facto e de direito.
Da leitura da decisão não resulta a verificação de qualquer dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nem tal foi invocado pelo arguido, impondo-se concluir que a decisão recorrida não padece de qualquer nulidade.
Sem impugnar a matéria de facto apurada, vem o arguido invocar ter agido com falta de consciência da ilicitude, por ser cidadão estrangeiro de férias em Portugal e desconhecer a proibição de conduzir trotinetes com motor sob o efeito do álcool, não lhe sendo exigível o conhecimento da proibição.
Alega também que da matéria de facto apurada não decorre o preenchimento por si do elemento subjectivo do crime em apreço.
A este respeito, importa recordar que o dolo é constituído pelo elemento intelectual, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo de ilícito, e pelo elemento volitivo, que consiste na orientação da vontade para um determinado comportamento, e está dividido em três modalidades: dolo directo, dolo necessário e dolo eventual, conforme o previsto no art.º 14º do Cód. Penal.

Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, 1º Volume, Editora Rei dos Livros, 2.ª Edição, pág. 182, "para afirmar o dolo, basta a consciência marginal, não é necessária a consciência focal; basta a consciência liminar ou difusa, não é necessária a consciência clara ou de atenção; basta a consciência. Não é preciso que, no momento do facto, a atenção do agente incida clara e precisamente sobre o elemento da situação considerado. É suficiente para o dolo que se possa dizer que o agente dispõe da informação correspondente. Para se poder afirmar o dolo, basta que se prove que, em algum momento anterior, o agente adquiriu a informação relevante".

Quanto ao caso dos autos, para o preenchimento do dolo, ao nível da sua estrutura subjectiva, exige-se que o agente saiba que conduz sob o efeito do álcool um veículo com motor na via pública e, ao nível da estrutura volitiva, que o tenha querido fazer.
Como já referido, uma vez que o arguido não impugnou a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, mostra-se preenchido no caso dos autos o elemento subjectivo do crime em apreço, na modalidade de dolo directo.
Por outro lado, provou-se que o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, não se tendo apurado que o mesmo agiu em erro.
No entanto, alega o arguido que o fez na convicção de que tal comportamento lhe era permitido, ou seja, convencido de que podia conduzir aquele veículo motorizado sob o efeito do álcool.
Não obstante se mostrarem preenchidos pelo arguido os elementos objectivo e subjectivo do crime, importa, ainda assim, apurar se é ou não penalmente relevante a invocação deste erro.

Em matéria de erro, estatui o Cód. Penal o seguinte:
«Artigo 16.º - Erro sobre as circunstâncias do facto
1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.
2 - O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
3 - Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.
Artigo 17.º- Erro sobre a ilicitude
1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.».

Destas disposições legais decorre que no nosso direito penal existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevante, com diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente:
- uma exclui o dolo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (art.º 16º);
- a outra exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena especialmente atenuada (art.º 17º).
Na situação a que se refere o art.º 16º, nº 1 estamos perante uma falta de conhecimento que deve ser imputada a uma falta de informação ou de esclarecimento do agente.
No caso do art.º 17º estamos perante uma deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não lhe permite apreender corretamente os valores jurídico-penais vigentes na sociedade.
A este respeito escreveu José António Veloso, in “Erro em Direito Penal”, Associação Académica da FDL, 1993, pág. 22: “A distinção entre as hipóteses dos artigos 17º e 16º nº 1, segunda parte, não é uma distinção na espécie do erro – o erro é em ambas as hipóteses da mesma espécie, um erro-ignorância sobre a punibilidade -, mas uma distinção no objeto do erro, isto é, nas incriminações a que respeita:
a)- O art. 17º refere-se aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida, e se tem de exigir que seja conhecida, de todos os cidadãos normalmente socializados. Daí o regime mais severo. Estes crimes são chamados “crimes naturais”, “crimes em si” ou “mala in se”. Todos os crimes previstos no Código Penal são “mala in se”.
b)- A segunda parte do nº 1 do art. 16º refere-se aos crimes cuja punibilidade se não pode presumir conhecida de todos os cidadãos, nem se tem de exigir que o seja. Daí o regime mais benevolente de equiparação ao erro sobre o facto. Estes crimes são os chamados “crimes artificiais”, “crimes meramente proibidos” ou mala prohibita.»

Também a este propósito, refere Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 180, citando Figueiredo Dias, que: “ Age sem dolo quem… desconhece preceitos jurídicos cujo conhecimento seria indispensável para tomar consciência da ilicitude do facto”, e dá como exemplos os ilícitos de mera ordenação social e algumas áreas do direito penal secundário, devido à irrelevância ou ténue relevância axiológica da conduta nestes campos.

Relativamente ao erro sobre a ilicitude previsto no art.º 17º, refere o mesmo autor, in ob. cit., pág. 185 e 186, que: A consciência da ilicitude consiste numa “valoração paralela na esfera do leigo” da proibição legal, isto é, numa apreensão do sentido social desvalioso da conduta e não num conhecimento do articulado da lei. O agente não tem sequer que possuir um conhecimento da punibilidade criminal da conduta, bastando que saiba que a sua conduta contraria a ordem jurídica.

Acrescenta este autor, para o que aqui nos interessa, que a falta de consciência da ilicitude se verifica, por exemplo, nos casos de erro sobre a ilicitude da acção ou de erro directo sobre a proibição, dependendo a punibilidade do agente em erro sobre a proibição de o erro lhe ser censurável e estando a censurabilidade ligada à atitude interna do agente.

Mais refere que a censurabilidade se verifica quando a deficiência da consciência ética do agente não lhe permite apreender os valores jurídico-penais e orientar-se para a observância do direito, acrescentando: “ (…) Se essa deficiência derivar de uma atitude de contrariedade ou indiferença do agente perante esses valores, ela consubstancia uma culpa dolosa censurável. Se essa deficiência não derivar de qualquer atitude interna desvaliosa, mas por exemplo da natureza discutível da ilicitude da concreta conduta, a falta de consciência da ilicitude não é censurável e exclui a culpa. (…) Portanto, a censurabilidade da falta de consciência da ilicitude assenta na atitude pessoal de contradição ou indiferença ao direito.”

Quanto a esta matéria, salienta Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 3ª edição, Gestlegal, pág. 423 e 424, que na esmagadora maioria dos casos não se coloca, à afirmação do dolo do tipo, a questão do conhecimento da proibição legal. Excepcionalmente, porém, torna-se indispensável, à afirmação desse dolo, que o agente tenha actuado com conhecimento da proibição legal. “Isto sucede sempre que o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. Nestes casos, com efeito, seria contrária à experiência e à realidade da vida a afirmação de que já o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento orientam suficientemente a consciência ética do agente para a o desvalor do ilícito.”

Entre tais casos podem salientar-se, nomeadamente, certos crimes de perigo abstracto, “em que a conduta, em si mesma, divorciada da proibição, não orienta suficientemente a consciência ética do agente para o desvalor da ilicitude”, ou certas incriminações pertencentes ao direito penal secundário, nomeadamente ao direito penal económico, “em que a relevância axiológica da conduta, se bem que existente, é de tal maneira ténue (…) que também neste âmbito o conhecimento da proibição deve considerar-se razoavelmente indispensável para a orientação do agente para o desvalor da ilicitude” (ob. cit., pág. 425).

Verifica-se, assim, que o que está em causa na problemática do erro sobre a ilicitude é saber se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto era lícito ou ilícito e, na dúvida, procurar informar-se antes de o praticar.
Estamos perante um erro sobre a proibição relevante quando o simples conhecimento do tipo objetivo pelo agente não é suficiente para apreender o desvalor do comportamento, sendo ainda necessário o conhecimento da proibição.
É o que sucede nos casos em que a conduta tem fraca coloração ética, quando a proibição se baseia em razões de pura oportunidade ou de estratégia social, quando estamos em presença de uma nova criminalização que ainda não ganhou a devida ressonância ético-social ou quando estamos em presença dos chamados crimes artificiais ou do direito penal secundário, conforme supra citado.
Não se tratando de uma conduta axiologicamente neutra, prevista numa norma do chamado direito penal secundário ou em novo preceito penal, e encontrando-se a incriminação já suficientemente assimilada pela generalidade dos destinatários, mostra-se afastado o regime previsto no art.º 16º do Cód. Penal.
Nestes casos a afirmação de que o agente não sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei apenas pode constituir um erro de valoração sobre condutas axiologicamente relevantes, o qual se não for censurável pode excluir o juízo de culpa e sendo-o pode fundamentar uma punição especialmente atenuada, nos termos do art.º 17º do Cód. Penal.
Não se verificando nenhuma destas hipóteses, o erro será irrelevante em termos de culpa, ainda que possa ser tido em conta na determinação concreta da pena, para efeitos do disposto no art.º 71º do Cód. Penal.
Tendo presente este entendimento, e voltando ao caso dos autos, conclui-se que o erro sobre a ilicitude que o arguido invoca, a ter-se verificado, é, em nosso entender, censurável, uma vez que a incriminação em causa não é nova, discutível, controvertida ou axiologicamente neutra.
Atenta a perigosidade adveniente da condução de veículos em geral e sobretudo da condução sob o efeito do álcool, para a vida, para a integridade física e para os bens materiais do próprio ou de terceiros, qualquer homem médio, não necessariamente instruído e versado no conhecimento das leis, compreende que a condução de qualquer veículo motorizado em estado de embriaguez tem que ser criminalmente punida.
A ter-se verificado algum erro do arguido não seria um erro por desconhecimento do regime legal, mas antes um erro de valoração ética, que se traduz numa dissonância entre os critérios de valoração ética do agente e os da ordem jurídica e da vida em sociedade e que é abrangido pelo campo de aplicação do art.º 17º do Cód. Penal.
Para além de se encontrar sedimentado o conhecimento da proibição de conduzir sob efeito do álcool pela generalidade dos cidadãos, é igualmente estável a perceção de que tal proibição não incide apenas sobre certas categorias de veículos, nomeadamente com motor.
Trata-se de uma norma incriminadora do chamado direito penal clássico, cuja ressonância ético-social é manifesta, por a incriminação constituir uma reação ao aumento da sinistralidade rodoviária provocada pela condução sob efeito do álcool e que pretende ser também uma medida dissuasora deste tipo de comportamentos, sem que a lei distinga entre a condução de veículos com e sem motor e mencionando-se as duas categorias de veículos nas normas incriminadoras.
Por outro lado, considerando a jovem idade do arguido e, através dela, a sua capacidade de compreensão e de acesso a informação, era-lhe exigível que se tivesse informado se a condução de trotinetes sob o efeito do álcool era ou não permitida no nosso país.
Impõe-se, assim, concluir que não só a punição da condução de trotinetes em estado de embriaguez não é uma questão discutível e controvertida, como resultou provado que o arguido sabia e queria conduzir este veículo na via pública com uma TAS superior a 1,2 g/l.
Assim sendo, o erro sobre a ilicitude não implica a exclusão da culpa no caso presente, nos termos previstos no art.º 17º, nº 1 do Cód. Penal, pelo que se impõe a condenação do arguido, como decidido pelo tribunal recorrido, improcedendo, nesta parte, o recurso.

No sentido do decidido, relativamente à condução de velocípedes, pronunciaram-se os seguintes acórdãos, consultáveis in www.dgsi.pt:
- Acórdão do TRL datado de 3/03/20, proferido no processo nº 280/19.8SCLSB.L1-5, em que foi relator Luís Gominho:
- No direito penal português existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevantes, ainda que com efeitos diferenciados sobre a responsabilidade do agente: uma que exclui o dolo, ficando ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais (art.º 16.º do Cód. Penal); outra que exclui a culpa, se não for censurável, mantendo-se a punição a título de dolo se o for, ainda que com uma pena especialmente atenuada (cf. art.º 17.º do mesmo Diploma).
- A falta de conhecimento de que a norma penal pune igualmente a condução de veículo sem motor em estado de embriaguez, onde manifestamente se inclui o velocípede, não constitui erro sobre as proibições nos termos do art.º 16.º, n.º1, do C.Penal, dado que o conhecimento da proibição e punição concreta não pode reputar-se razoavelmente indispensável para que o arguido tomasse consciência da ilicitude do facto”, mas sim, no domínio do art.º 17.º daquele Diploma.
- O carácter perigoso do exercício da condução em geral e, em particular, da condução em estado de embriaguez, são claramente suficientes para que o condutor de velocípede tenha consciência da ilicitude respetiva, ao mesmo tempo que fazem impender sobre ele o dever de conhecer as regras essenciais à condução na via pública independentemente da obrigatoriedade de licença de condução”, sendo que no caso presente, esta última condição até se verificará, atento o tipo de condenações que revela já ter sofrido.”
- Acórdão do TRE, datado de 13-07-2017, proferido no processo nº 342/15.0GEBNV.E1, em que foi relator António João Latas:
I- Perspetivando-se o conhecimento da ilicitude como materialidade que acresce ao conhecimento dos elementos objetivos do tipo de ilícito, a falta de consciência da punibilidade que lhe corresponde como realidade negativa, tanto pode ser juridicamente qualificada de erro sobre as proibições, nos termos do art. 16º, como erro sobre a ilicitude de que trata o art. 17º, ambos do C. Penal, correspondendo-lhe regimes jurídicos diferentes, incluindo consequências jurídicas igualmente diversas, de que pode resultar mesmo a irrelevância do erro em ambas as hipóteses.
II- A eventual relevância do erro a que se reporta o art. 16º nº1 do C.Penal e, portanto, do facto apurado ou a apurar (“o arguido não sabia ser proibida e punida por lei a sua conduta”) assenta em considerações de natureza jurídico penal ligadas ao tipo de ilícito em causa que permitam concluir ser necessário o conhecimento da proibição concreta para uma correta orientação do agente para o desvalor do ilícito, pelo que tal apreciação deve acompanhar a individualização e decisão do facto relativo ao desconhecimento da proibição.
III- A falta de conhecimento de que a norma penal pune igualmente a condução de veículo sem motor em estado de embriaguez, onde manifestamente se inclui o velocípede, não constitui erro sobre as proibições, nos termos do art. 16º nº1 do C.Penal, dado que o conhecimento da proibição e punição concreta não pode reputar-se razoavelmente indispensável para que o arguido tomasse consciência da ilicitude do facto.
IV- Assim resultando da factualidade provada e não provada que o arguido terá agido sem consciência da ilicitude ao conduzir o velocípede em estado de embriaguez, esta falta de consciência apenas pode imputar-se a deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não lhe permitiu apreender corretamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo - cfr F. Dias, ob. cit. p. 73.
V- Segundo F.Dias o critério da não censurabilidade da falta de consciência da ilicitude encontrar-se-á na “retitude” da consciência errónea, de acordo com o qual a falta de consciência da ilicitude será não censurável sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamenta em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deve responder, o que se verificará nas situações em que a questão da ilicitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida.
VI- A falta de prova de que o arguido sabia que a condução de velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, era proibida e punida por lei, não obsta à sua condenação de acordo com a imputação a título de dolo (e não de negligência) que é feita na acusação, uma vez que não nos encontramos perante erro relevante sobre as proibições, que excluísse o dolo nos termos do art. 16º nº1, nem perante Erro não censurável sobre a ilicitude que excluísse a culpa, nos termos do art. 17º
VII- A aplicabilidade da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a condutor de veículo sem motor resulta da alteração introduzida no art. 69.º do C. Penal pela Lei 77/2001 de 13 de julho, que passou a prever a sua aplicabilidade a quem for condenado por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º, o que se mantém, contrariamente à versão originária introduzida pelo Dec.-lei 48/95 de 15 de março que apenas previa a aplicação daquela pena acessória a quem cometesse crime no exercício da condução de veículo motorizado.”

No caso dos autos pretende também o arguido a substituição da pena de multa que lhe foi aplicada por uma pena de admoestação, considerando que a aplicação de qualquer outra pena é desproporcional face aos factos por si praticados.

A aplicação de uma pena tem sempre em vista as finalidades previstas no art.º 40º do Cód. Penal, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96).
Em termos de recurso, defende o mesmo autor, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196 e 197, § 255, que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há que corrigir o que não padece de qualquer vício.

Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.”

Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que:Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”

Voltando ao caso dos autos, a sentença recorrida fundamentou a aplicação ao arguido da pena em apreço pela seguinte forma:
“(…) Este crime é punido com pena de prisão ou com pena de multa, considerando que o arguido não tem antecedentes criminais registados, entende-se satisfazer as necessidades de punição a aplicação de uma pena de multa.
No que diz respeito à ilicitude de factos consideramos que é mediana baixa, atendendo à taxa concreta de alcoolemia que foi detetado, considerando também a natureza do veículo que circulava; o grau de culpa está no expoente máximo, atento o dolo direto em que agiu, as necessidades de prevenção especial são reduzidas uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais e as necessidades de prevenção geral são elevadas considerando a frequência deste tipo de comportamentos, designadamente na condução de trotinetes.
Tudo visto e ponderado considera-se adequada a condenação do arguido, numa pena de multa, que se fixa 60 dias, e não sendo conhecidas concretamente as condições económicas e financeiras do mesmo, fixa-se o valor diário no mínimo legal em €5,00 (cinco euros).(…)”

Sendo o crime punido com pena de prisão ou com pena de multa, optou o Tribunal recorrido pela aplicação ao arguido de uma pena de multa nos moldes expostos.
Pretende, no entanto, o arguido a susbstituição da pena de multa que lhe foi aplicada por uma pena de admoestação.
Quanto à admoestação, prevê-se no art.º 60º do Cód. Penal que:
1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 120 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação.
2 - A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
3 - Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos 3 anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação.
4 - A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal.”

Sucede, porém, que não obstante não ter sido aplicada ao arguido uma pena superior a 120 dias de multa, no caso em apreço as prementes exigências de prevenção geral não se satisfazem com uma simples admoestação.
É cada vez mais frequente a circulação de trotinetas sem cumprimento das regras estradais, em que os seus condutores ora adoptam comportamentos de peões, ora de veículos, conforme lhes é mais conveniente, e sem respeito pelos restantes utentes das vias e dos passeios.
Esta é uma situação a que urge pôr cobro, pelo que a sociedade e o sentir comunitário não compreenderiam a substituição da pena de multa aplicada ao arguido, já de si de baixo valor, por uma simples admoestação.
Na verdade, as razões e necessidades de prevenção geral positiva são muito elevadas, tendo em conta a grande sinistralidade rodoviária ainda existente no nosso país e os perigos para a saúde e para a vida de terceiros que a prática da condução sob o efeito do álcool potencia, geradores de insegurança social e justificadores de uma resposta punitiva firme, com vista a assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas e na circulação rodoviária.
Por outro lado, é necessário e urgente que a sociedade se consciencialize da gravidade dos comportamentos dos condutores das trotinetes, que conduzem estes veículos ao arrepio das mais elementares regras de cuidado e de respeito pela vida, pela integridade física e pelo património dos próprios e de terceiros, e que aqueles alterem os seus comportamentos.
Também Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 363, entende que não se deve proceder à substituição da pena de multa por admoestação nos crimes rodoviários, atenta a natureza dos bens jurídicos em causa e as necessidades de prevenção geral, citando jurisprudência no mesmo sentido do decidido.
Assim sendo, considera-se não ser de substituir a pena concretamente aplicada ao arguido, a qual se mostra adequada e proporcional à sua culpa e à gravidade dos factos por si praticados.
Alega ainda o recorrente que a pena acessória que lhe foi aplicada é desproporcional, pelo que deve ser dispensado da mesma, pois precisa da carta para conduzir, sendo que não é necessária licença para condução de trotinetas.
Trata-se, porém, de uma pretensão que não pode legalmente proceder.
O instituto da dispensa da pena está previsto no art.º 74º, nº 1 do Cód. Penal, e abrange as penas principais de prisão e multa e não também as penas acessórias, como decorre directamente da letra da lei.
Por outro lado, este instituto pressupõe a verificação dos demais requisitos aí previstos, ou seja, a punibilidade do crime com pena de prisão não superior a 6 meses ou só com pena de multa não superior a 120 dias.
Sucede que, o crime em apreço nos autos não é punido apenas com pena de multa, nem a pena de prisão abstractamente aplicável é inferior a 6 meses.
A isto acresce que as referidas necessidades de prevenção geral que no caso se fazem sentir, sempre impediriam uma dispensa de pena, pelo que está completamente afastada a possibilidade de aplicação deste instituto.
Quanto ao facto de o arguido conduzir uma trotinete e não outro tipo de veículo, essa circunstância é indiferente para a aplicação da pena acessória prevista no art.º 69º, nº 1, alínea a) do Cód. Penal, a qual decorre automaticamente da prática do crime previsto no art.º 292º do mesmo diploma, independentemente do tipo de veículo conduzido pelo arguido aquando da sua prática.
Alega ainda o arguido que a pena acessória que lhe foi aplicada é desproporcional.
No entanto, a pena que lhe foi concretamente aplicada corresponde ao limite mínimo previsto na lei, pelo que também aqui nada há a alterar.
Aquando do julgamento, o arguido não fez prova de qual é a sua profissão e de que necessita da licença de condução para trabalhar, sendo que o apuramento das suas condições pessoais resultou sobretudo das suas próprias declarações.
Como já se referiu, também não impugnou o arguido a matéria de facto apurada.
Assim, não resultando os factos agora invocados do elenco dos factos apurados, não podem os mesmos ser tidos em conta por este Tribunal de recurso.
Em face de tudo o exposto, impõe-se julgar o presente recurso improcedente, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
*

4.Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto por J……. e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s, nos termos do art.º 513º, nº 1 do Cód. Proc. Penal.



Lisboa,14 de Novembro de 2023



(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)



Carla Francisco
(Relatora)
João António Filipe Ferreira
Ester Pacheco dos Santos
(Adjuntos)