Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
241/22.0T8LRS.L1-9
Relator: FERNANDA SINTRA AMARAL
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO GRAVE
ACUSAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
SUBSTITUIÇÂO DA COIMA POR ADMOESTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I.- Nos processos contraordenacionais, é a decisão administrativa, e não o auto de notícia, que vale como “acusação”, estando o MºPº dispensado de formular esta peça processual, nos termos do artigo 62º nº 1 do RGCO.
II. - É irrelevante que o auto levantado pela PSP não contenha (como nunca contêm) o elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional (o dolo ou culpa e a consciência de ilicitude) recaindo sob a autoridade administrativa colmatar esses factos.
III. - Assim, é sobre a decisão administrativa, que vale como acusação, e não sobre o auto de notícia, que vale tão-só como isso mesmo (como acto de investigação), que terá de se apreciar se estão consignados os factos tendentes a demonstrar os elementos objectivos e subjectivos da contra-ordenação.
IV.- A ratio legal é punir com coima mais elevada a contraordenação muito grave em relação à grave, e esta última com coima mais elevada do que a classificada como leve; sendo que, apenas neste último caso, até pelo menor montante patrimonial em que se consubstancia a coima, poderá haver a "substituição" da coima por admoestação, sob pena de, também aqui, se admitir uma latitude ao decisor que permite conformar a concreta moldura a aplicar, ao invés da determinação do quantum dentro de uma moldura já pré estabelecida pelo legislador.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito dos autos de recurso de contra-ordenação n.º 241/22.0T8LRS que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Loures - Juiz 4, em que é arguida “F…….., Lda.”, com os demais sinais nos autos, foi proferida sentença, em 16-03-2022, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“(…)
E) DISPOSITIVO  
Pelo exposto, julgo parcialmente procedente, por provado, o recurso interposto pela arguida/recorrente, e em consequência decido manter integralmente a decisão administrativa quanto à condenação pela prática das infracções imputadas e fixar a coima única no montante de €5.000,00 (cinco mil euros).
(…)”
I.2 Recurso da decisão
Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a arguida recorrente “F…., Ldª” (que anteriormente utilizou a denominação social de “F…, Limitada”) para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
EM CONCLUSÃO:
a) Ao omitir os factos subjectivos subjacentes á infracção imputada, a acusação é nula, nulidade essa não sanada, antes agravada, pelo facto de a decisão administrativa pretender suprir tal nulidade com a consideração como provados de factos que nem sequer foram aflorados pela acusação/auto de noticia, o que determina, contrariamente ao que a sentença recorrida considera, que a decisão impugnada viole o disposto no art. 58º do DLCO, ferindo a mesma de nulidade, por aplicação do disposto no art. 379º, nº 1, al. b) e c) do Cod. Proc. Penal e em obediência ao princípio do contraditório, este de dignidade constitucional;
b) Sendo que, a considerar-se que a acusação/auto de noticia não carece de conter os elementos subjacentes a uma acusação e está a violar o principio da defesa vertido no art. 32º da Constituição da Republica Portuguesa;
c) A consideração de elementos legais gera uma interpretação sobre a não inserção na moldura legal cominatória, porquanto tratando-se de uma farmácia em hospital publico, com um regime legal próprio e um enquadramento geográfico específico, não se lhe pode considerar direccionada a previsão contida no art. 8º, nºs 3, als. a) e b) e 4º do REASP ao estabelecimento em causa nos presentes autos, sob pena de erro sobre os pressupostos de direito;
d) A coima aplicada revela-se desproporcional em face dos fins específicos da mesma, devendo a mesma reverter em admoestação – arts. 20º, nº 1, e 51 do RJCO;
e) A sentença recorrida, salvo melhor opinião, violou os comandos legais e princípios constitucionais invocados nas presentes conclusões de recurso.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências, por ser de
JUSTIÇA!
(…)”
O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 02/05/2022.
I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela sua improcedência, alegando o seguinte [transcrição]:
“(…)
IV- CONCLUSÕES
1) O recorrente foi condenado por decisão proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna, que a condenou pela falta de instalação de sistema de videovigilância e de dispositivo de detenção de intrusão, pela prática negligente, de duas contra-ordenações graves, p. e p. pelos artigos 8.º n.º 3 alíneas a), b) e 4 do REASP e artigo 100.º n.º 1 alíneas a) e b) da Portaria nº 273/2013 de 20 de agosto, na coima única de €11.250,00 (onze mil duzentos e cinquenta euros);
2) Tendo impugnado judicialmente a decisão administrativa, a sentença recorrida confirmou a prática das mencionadas infrações, tendo reduzido a coima aplicada, em cúmulo, numa coima única no valor de € 5.000,00.
3) Inconformada com a sentença, a recorrente recorreu de direito, e apresentou as suas alegações de recurso dar cabal cumprimento ao disposto no artigo 412.º nºs 2 do Código de Processo Penal. Não o tendo feito, deve o recurso do recorrente ser rejeitado nos termos do artigo 417.º n.º 6 alínea b), por violação do disposto no artigo 412.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a) b) e c) do Código de Processo Penal.
4) A recorrente invoca a nulidade do auto de notícia e da notificação recebida para exercício do direito de audição e defesa, por falta de elemento subjectivo, bem como da decisão administrativa por ter acrescentado factos que não constavam do auto de notícia.
5) Sucede que não só o auto de notícia e a notificação não estão feridas de nulidade, como não enfermam de qualquer vício por apresentam todos os elementos de facto e de direito exigíveis e necessários ao exercício do direito de defesa, tanto mais que a defesa foi exercida tempestiva e assertivamente, deixando claro que a recorrente compreendeu o teor das imputações que lhe foram feitas.
6) Tendo a recorrente apresentado defesa escrita, e estando assistida por advogado, não invocou a nulidade do auto de notícia nem da notificação recebida para exercer a sua defesa, o que impede que o possa invocar em sede de impugnação judicial.
7) O recorrente põe ainda em crise a sentença recorrida, bem como a decisão administrativa, alegando que o normativo que prevê as infrações que lhe são imputadas não lhe é aplicável por o estabelecimento em causa ser uma farmácia hospitalar (regida pelo disposto no Decreto-Lei nº 241/2009, de 16 de setembro) e não uma farmácia comum de oficina.
8) Sucede que pese embora devido às suas especificidades as farmácias hospitalares estivessem sujeitas a algumas regras próprias, as diferenças de regime caracterizavam-se pela adoção de num regime mais exigente para as hospitalares do que o das farmácias de oficina sendo que, nos termos do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 241/2009, lhes seria aplicável o regime destas farmácias com as necessárias adaptações, sendo que, no que à instalação de equipamentos de segurança se refere não há qualquer razão de facto ou de direito que exija ou justifique regras distintas, ou qualquer tipo de adaptação.
9) A recorrente insurge-se também contra a medida da coima aplicada na sentença recorrida, que reputa de desproporcional, pugnando pela aplicação de uma mera admoestação.
10) Sendo a coima uma sanção com expressão pecuniária, deve implicar uma efetiva agravação da situação económica do infrator, sob pena de a pena não satisfazer as exigências e os objectivos subjacentes à punição.
11) A sentença recorrida atendeu a todos os critérios legais aplicáveis, sem descurar as circunstâncias de facto, sendo que estas não admitem a aplicação de uma mera admoestação por não estarem reunidos os pressupostos previstos no artigo 51.º do RGCO.
12) Atenta a situação em concreto, se o valor da coima fixado na sentença peca, seguramente é por defeito e não por excesso, pelo que bem andou o Tribunal a quo na decisão sobre esta matéria.
13) A Juiz a quo estribou a sua decisão nos critérios legalmente estabelecidos para encontrar a medida concreta da pena ajustada, o que fez sempre a favor do recorrente em conformidade com a lei.
14) Destarte, bem andou o Tribunal a quo, sendo a decisão recorrida conforme à lei e à constituição, não tendo sido tomada em atropelo de qualquer norma jurídica nem de quaisquer direitos ou garantias que assistem ao recorrente, razão pela qual não merece qualquer reparo, devendo manter- se inalterada.
Em face do exposto, deverá o presente o recurso ser considerado totalmente improcedente e, consequentemente, a sentença recorrida ser mantida nos seus exatos termos, com o que se fará JUSTIÇA!
(…)”
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição do Digno Magistrado do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, o que fez nos seguintes termos [transcrição]:
“(…)
Vem, pela arguida, pessoa colectiva, sociedade comercial, “F….., Ldª”, por dissentir, em vários segmentos, de direito, da douta Sentença que, em 16.03.22, confirmou decisão da autoridade administrativa- SGMAI-, embora com redução da sanção (coimas parcelares e única), dela interpor Recurso, estribando a sua impugnação em 3 grandes vectores (objecto recursório: art 412º,1, CPP, aplicável “ex vi” do art 74º,4, RGCO), a saber:
- nulidade (por omissão do elemento subjectivo, desde o auto de notícia, à notificação deste, até à decisão, final e condenatória, administrativa, abrangendo respectiva notificação): arts 379º, b) e c), CPP ; e
- inaplicabilidade, em concreto, da L 34/13, 16.05 (REASP) ao tipo de estabelecimento versado nos autos de contra-ordenação: art 8º, 3, a) e b), e 4, desse diploma; e
- desproporcionalidade sancionatória, que se bastaria com a mera admoestação (art 51, RGCO).
Todas estas questões, seu argumentário e pretensões associadas, mereceram uma muito bem estruturada Resposta da Exmª Magistrada afecta ao JLCriminal e processo respectivo, que, cirúrgica e proficuamente, respaldando-se em razões de facto e de direito, desmontou a tese recursória, alinhamento racional a que aderimos integralmente, no fundo, pois, secundando a solução judicial ora posta sob censura, imerecidamente, como, porventura redundamente, destacaremos, em jeito de breve síntese.
Assim, sem conceder pelo incumprimento, “in casu”, do ritualismo próprio da impugnação da matéria de direito, por força da ausência, mormente, da indicação das normas violadas e das que deveriam ter sido relevadas, bem como o sentido com que foram aplicadas e o que lhes deveria ter presidido (art 412º,2, a) a c), CPP), sufragamos a insusceptibilidade legal de ser conhecida e ponderada a questão da aplicabilidade do REASP (no seu art 8º, 3 e 4, justamente o segundo ponto recursório acima referido) ou, no limite da tolerância, a necessidade de ser corrigido o Recurso nesse vector ( arts 412º, 2, 417º, 3, e 420º, CPP).
 Debruçando-nos, depois, e sucessivamente, nas (3) temáticas controvertidas, verificamos que inassiste qualquer razão à recorrente, quando agita com a existência de nulidade, por ter, na sua concepção, o Tribunal “ a quo” condenado por factos que não constavam da “acusação” (auto de notícia e decisão final administrativa) e/ou ter conhecido matéria que lhe estava vedada apreciar (art 379º, b) e c), respectivamente.
É que a própria natureza do processo de contra-ordenação (relativamente ao processo penal, que, em regra, implica com a liberdade das pessoas) e da entidade decisora (administrativa, não judiciária), senão mesmo do agente autuante (que não é, sequer OPC) impõe menor exigência rigorista e jurídica que naqueloutro plano (criminal e judiciário).
Isso reflecte-se, mesmo, na flexibilização do regime das contra-ordenações, quando confrontado com o que é devido pela dimensão penal, o que, exemplificativamente, flui da permissão do recurso de impugnação judicial poder ser lavrado pelo “punho” do próprio arguido, autuado (cfr art 59º,2, RGCO).
Em todo o caso, diga-se, sempre seria insustentável que o agente autuante, numa fase embrionária do processo de mera ordenação social, pudesse determinar, diríamos premonitoriamente, durante a fiscalização fortuita e instantânea, classificar a conduta como dolosa ou negligente, o que, a ousar fazer, suscitaria, até a quebra da presunção de inocência (art 32º,2, CRP).
Por isso, quando é dirigida ao arguido a respectiva notificação, para exercer o direito de defesa (de audição), ela deve bastar-se com a transmissão do essencial a esse indeclinável direito, ou seja, a narração da factualidade ou materialidade imputadas, normativos inerentes e prova recolhida, habilitando-o a percepcionar e a reagir em conformidade (art 50º,RGCO), circunstância ocorrida, como documentado nos autos, sem que fossem tolhidos quaisquer interesses do autuado, sem olvidar ou desprezar que, a emergir uma nulidade, esta teria que ser tempestivamente arguida, o que não aconteceu, sanando-se.
 Ademais, a arguida exerceu efectivamente o direito de audição, através de mandatário forense, que constituiu para o acto, reforçando a sua conformação, na ocasião, com o teor da notificação recebida, para o efeito.
Acresce que, então no âmbito do art 58º, RGCO, aquando da recepção do conteúdo da decisão condenatória administrativa, não se sentiu o recorrente inibido de exercer o direito de defesa, realizando-o, através do competente recurso de impugnação judicial, revelando, à saciedade, a compreensão e contornos da imputação a si dirigida pela SGMAI!
Da leitura dessa decisão final (condenatória), de resto, resulta, claramente, sem a perfectibilização duma congénere decisão judicial, concede-se, a consignação suficiente do elemento subjectivo (a título negligente, aí se plasmou).
Volvendo agora o foco para o REASP (Lei 34/13, 16.05), em momento algum ou lugar nenhum se contempla a exclusão das “farmácias hospitalares” ou a distinção destas relativamente às “farmácias comunitárias”, ditas de “oficina”, não se percebendo o percurso exegético trilhado pela recorrente, quando, ao invés, nada nesse regime legitima a diferenciação por que propugna, até pela razão da obrigatoriedade de instalação dos sistemas de videovigilância e de detecção de intrusão (que será mais premente quando o espaço a monitorizar abrange unidades hospitalares, do SNS), consciencialização que a recorrente admite, paradoxalmente, contrariando a sua lógica recursória, ao invocar na defesa escrita conhecer os diplomas pertinentes e ter, inclusivamente, abordado o hospital em que se inseria para o efeito de iniciar a adaptação/instalação dos equipamentos, optando por renunciar à montagem desse material tecnológico por ter cessado a sua actividade entretanto!
O DL 241/09, 16.09 , nesse contexto, embora já revogado, não deixava margem para dúvidas quanto à abrangência (e por maioria de razões) de todas as farmácias, sem excepção.
Surge, desta sorte, descabida a ensaiada tentativa de descartar da versada obrigatoriedade aquela tipologia de farmácias, por falta de fundamento legal e racional/teleológico.
A rematar, reputamos de inglória a proposta de mera admoestação (art 51º,1, RGCO) trazida ao debate pela arguida, quando foi autora de duas contra-ordenações “graves” (cfr art 59, 2, c), REASP), inconciliando-se a pretensão recursória com tal catalogação legal.
Quanto à dosimetria definida (já nos termos mitigados, para metade, e de forma fundamentada: arts 59º, 8 e 9, REASP, e 18º,1, RGCO) surgem os montantes bem perto do seu mínimo abstracto (tanto parcelar, quanto sanção única), pelo que seria um sinal de excessiva benevolência, vulnerabilizando as finalidades da própria punição, qualquer redução (pecuniária).
Pelo antedito, somos a subscrever a irrepreensibilidade do judiciosamente decidido, sugerindo a sua validação.
(…)”
I.5 Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao dito parecer.
I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], e da doutrina[2], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal[3], relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do C.P.P.).
II.2 - Questões a apreciar e decidir
Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- se a decisão administrativa se encontra ferida de nulidade (por omissão do elemento subjectivo, desde o auto de notícia, à notificação deste, até à decisão, final e condenatória, administrativa, abrangendo respectiva notificação), nos termos do art. 379º, b) e c), do C.P.P.;
- se é inaplicável, em concreto, a Lei nº 34/13, 16.05 (REASP), face ao tipo de estabelecimento versado nos autos de contra-ordenação, nos termos do art. 8º, nº 3, a) e b), e nº 4, desse diploma; e
- se ocorreu uma desproporcionalidade sancionatória, que se bastaria com a mera admoestação (art 51º do RGCO).
Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]:
“ (…)
I - RELATÓRIO
“F……., Lda.”, NIPC ……., com sede na ……., veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela Secretaria Geral do  Ministério da Administração Interna, no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 1967/2019, que a condenou pela falta de instalação de sistema de videovigilância e de  dispositivo de detenção de intrusão, pela prática negligente, das contra-ordenações p. e p.  pelos Arts.º 8º nºs 3 als. a) e b) e 4 do REASP (Regime Exercício da Actividade Segurança  Privada – Lei 34/2013 de 16-05 e actualmente na redacção introduzida pela Lei nº 46/2019 de  8-7) e Art.º 100º nº1 da Portaria nº 273/2013 de 20-08, na coima única de €11.250,00 (onze mil  duzentos e cinquenta euros),  acrescida de custas do processo no valor de €51,00.
Tais factos são imputados à recorrente como tendo sido praticados em 10-09-2018, por referência à farmácia sita no Hospital Beatriz Ângelo - Loures.
A infracção em que incorre a recorrente é punível com coima de €7.500 a €37.500, a título doloso e tratando-se de uma pessoa colectiva e a título negligente, com coima de €3.750 a €18.750 (v. Art.º 59º nºs2 al. c), 4 al. b) e 9 do REASP e 17º nº4 e 19º Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas - RGCOC).
A arguida/recorrente vem impugnar tal decisão, alegando que o normativo supra citado não abrange as farmácias integradas em unidades hospitalares, como é o caso, sendo que a entidade gestora até recusou tal possibilidade, estando por isso impedida de instalar tais sistemas. Mais alega que a coima fixada sempre seria desproporcional atenta a inexistência de culpa e/ou beneficio, estando a decisão posta em crise ferida de erro sobre os seus pressupostos.
Baseia a sua impugnação judicial nas conclusões constantes de fls. 46 a 48 e que aqui damos por integralmente reproduzidas.
Em sede de alegações orais e em julgamento suscitou a nulidade da decisão administrativa pelo facto da acusação ser omissa quanto ao elemento subjectivo.
O Ministério Público ordenou a apresentação dos autos nos termos do Art.º 62.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, na sua redacção vigente, valendo este acto como acusação.
A Autoridade Administrativa conhecendo do recurso, nada mais esclareceu.
O recurso apresentado pela recorrente foi recebido, tendo sido realizada a audiência de julgamento, como decorre da respectiva acta.
Como vem sendo uniformemente entendido pela jurisprudência, são as conclusões da motivação do recurso que delimitam o seu âmbito, independentemente de na motivação propriamente dita se poderem deduzir outros fundamentos, (cfr. Arts.º 403.º, n.º1 e 412.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, aplicáveis por força do disposto no Art.º 41.º, n.º1 do aludido RGCOC), pelo que cumpre apreciar o presente recurso tendo em conta as conclusões formuladas.
-Da nulidade da decisão administrativa e da falta do elemento subjectivo
Vem a recorrente pugnar pela nulidade da decisão posta em crise, porquanto a acusação é omissa quanto ao elemento subjectivo.
Ao perscrutar o que serve de base à impugnação, deve o Tribunal de recurso detectar e assinalar um qualquer vício que inquine a referida viabilidade (logo o direito de defesa do arguido/recorrente e de fundamentação), dando conta das razões fáctico-jurídicas que a determinam (cfr. artigo 379.º, n.º 2, e 380.º do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas ou RGCOC.).
Desde logo e no que tange à notificação em causa e para o exercício do direito de defesa se afere que a mesma foi realizada a fls. 13, com indicação dos factos e das normas jurídicas em causa.
A doutrina e jurisprudência vêm considerando que nesta fase ainda embrionária não é exigível o mesmo nível de rigor de uma decisão, mesmo em termos de factualidade subjectiva e, mesmo em sede administrativa, as exigências da decisão final não se podem considerar iguais às de uma sentença, importando sim e apenas percepcionar o sentido e alcance da decisão.
V. neste segmento a jurisprudência nesta matéria, à qual aderimos, designadamente o descrito no AC. TRL de 06-12-2017 in www.dgsi.pt, ao consagrar que “No auto de notícia devem ser relatados os factos materiais sensorialmente perceptíveis que constituem a contra-ordenação, especificando-se o dia, a hora, o local, e as circunstâncias em que foram cometidos, a identificação do arguido, dos ofendidos e do autuante, bem como indicação das disposições legais que preveem e punem a infracção, a coima e, sendo caso, a sanção acessória. O agente autuante não pode o imputar ao arguido os factos a título de culpa, na modalidade de dolo ou na modalidade de negligência, sob pena de contrariar o art.º 32.°, n.º 2, da CRP.”
Assim e nesta parte, deverá improceder o recurso.
No que tange à prova dos factos, infra nos pronunciaremos, sendo que de momento nada cumpre adiantar, existindo referência nos autos a prova documental e testemunhal, sendo a mesma analisada na decisão administrativa posta em crise, como decorre de fls. 32.
Pelo que e nesta parte, igualmente não se afere qualquer nulidade.
Igualmente e pelo recurso apresentado, é manifesto que a recorrente percebeu e compreendeu a situação e causa.
Nesta matéria rege o disposto no artigo 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 17 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto –Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.
Estabelece este normativo que:
«1 – A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.»
Como referem Simas Santos e Lopes de Sousa (loc. cit., 2002, página 334), em anotação ao preceito citado, «Os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória do processo contraordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que podem impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”.
Na senda do entendimento perfilhado pelos já citados autores, no lugar mencionado, considera-se que a consequência processual da falta dos requisitos previstos no artigo 58.º, não resultando do R.G.C.O., deverá ser retirada dos preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, em consonância com o preceituado no artigo 41.º, n.º 1, deste diploma.
Assim, a falta dos requisitos previstos no n.º 1, constitui uma nulidade da decisão, de harmonia com o estatuído nos artigos 374.º, n.º s 2, e 3, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
A decisão condenatória administrativa, quando impugnada judicialmente, “... converte-se, para todos os efeitos, numa verdadeira acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial” (cfr. art. 62.º, n.º 1, do RGCO) – v. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.01.2013, proc. n.º 704/12.5TBCLD.L1-9, Rel. Francisco Caramelo -, com tudo o que esta arrasta e engloba, não só em termos de factualidade dada como provada, mas também de “provas obtidas”, nomeadamente o auto de notícia.
Mas será assim neste caso?
De acordo com o dicionário da língua portuguesa, por fundamentação entende-se o acto de justificar, comprovar, argumentar, visando a necessidade de fundamentação legalmente estabelecida para as decisões convencer os visados e a comunidade do teor decisório e permitir, por outro lado, a sindicância de tais razões (v. Vítor Santos, in Contra-ordenações Laborais, CEJ, 2ª edição, 2014).
No caso em apreço e do segmento decisório em análise é ainda possível aferir a factualidade objectiva constatada pelos autuantes e testemunhas e o nível de actuação da arguida, através dos seus colaboradores, mesmo ao nível da imputação subjectiva, e que consta de tal decisão (fls. 31 verso e 33).
Igualmente assenta na indicação da prova e na análise jurídica do caso e nas condições para aplicação de uma coima.
Assim, e, não obstante se verificar alguma falta de rigor, a verdade é que a mesma não de forma que inquine a percepção do leitor sobre os factos em apreço, a conduta da arguida e as razões para a coima aplicada.
V. os Acs. TRL de 11-11-2020 e 20-06-2017, ambos in www.dgsi.pt, consagrando-se neste último que “ As exigências formais no processamento das contra-ordenações não se equiparam às do processo penal, apresentando aquelas autonomia decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores; apesar de, na parte relativa aos factos provados, apenas constarem os que integram o elemento objectivo da infracção, referindo a decisão administrativa na parte decisória que a arguida "... agiu com dolo, ... deve entender-se que da decisão administrativa constam os factos relativos ao elemento subjectivo da infracção imputada; a expressão "dolo" tem um sentido claro no uso vulgar de cada cidadão para que o agente possa saber do que se trata quando uma infracção lhe é imputada a esse título, o que permite ao arguido adequada impugnação do fundamentos da condenação e exercício dos seus direitos de defesa.”
Pelo exposto e aderindo a tal posição jurisprudencial e doutrinária, deverá improceder a argumentação da defesa nesta parte, uma vez que a decisão posta em crise não padece de vicio formal que a inquine ou que coloque em causa a percepção do leitor sobre os factos, as normas, as coimas em apreço, a conduta da arguida e as razões para a sua condenação.
Consequentemente e pelo exposto, improcede tal argumentação da defesa igualmente nesta parte.
*
Após o despacho que recebeu o presente recurso, não ocorreram nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer, mantendo-se a validade e regularidade da instância.
II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) Factos Provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da mesma:
1. No dia 10-09-2018, pelas 11h00m, no âmbito de uma acção de fiscalização, os agente dirigiram-se à Farmácia do Hospital …, sita na ……., constatando que o local não dispunha de sistema de videovigilância e de dispositivos de detenção de intrusão.
2. O referido estabelecimento procede à venda de produtos farmacêuticos, com o alvará nº…… – Autoridade Nacional do Medicamento e Produto de Saúde, I.P., pelo que estava obrigado à adopção de sistemas de segurança, nomeadamente instalação sistema CCTV e alarme.
3. A arguida não solicitou nenhum pedido de dispensa de sistemas de segurança relativo à Farmácia …...
4. A arguida ao não instalar nenhum sistema de videovigilância e dispositivos de detenção de intrusão, nem ao não solicitar nenhum pedido de dispensa de sistemas de segurança, não agiu com o zelo
objectivamente devido e de que era capaz, para cumprimento das suas obrigações.
Mais se provou,
5. A farmácia acima aludida está actualmente encerrada.
6. Na data dos factos apresentava balanço positivo.
7. Detinha cerca de dez funcionários ao seu serviço.
B) Factos Não Provados
Não se provou que:
- A entidade hospitalar e a sua gestão rejeitou o pedido formulado pela arguida de implementação de sistemas de videovigilância e segurança.
Não deixaram de se provar quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão
da causa.
(…..)
II.3- Apreciação do recurso
Da nulidade da decisão administrativa impugnada:      
Antes de mais, não nos estribamos no rigor invocado pelo Ministério Público, quer na 1ª instância, quer nesta 2ª instância, no sentido de que a recorrente, recorrendo de direito, não deu cabal cumprimento ao disposto no artigo 412.º nº 2 do Código de Processo Penal, devendo, por isso, o recurso ser rejeitado nos termos do artigo 417.º n.º 6 alínea b), por violação do disposto no artigo 412.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a) b) e c) do Código de Processo Penal.
Com efeito, ainda que no limite (reconhecemos), a arguida recorrente lançou mão do procedimento mínimo exigido pelo art. 412º, nº 2, do C.P.P., indicando as normas que, no seu entender, foram violadas, bem como o sentido com que foram aplicadas, com o qual não concordou, alegando em sentido diferente.
Assim, cumpre analisar da questão da invocada nulidade.
No processo de contra-ordenação n.º 1967/2019 - AUTO DE NOTICIA/SIGESP - 12342018/PCO, a SGMAI aplicou à arguida “F….., LDA.” uma coima única no montante de €11.250,00 (onze mil duzentos e cinquenta euros), nos termos do artigo 19°, nº 1, do RGCO, pela prática das contra-ordenações consubstanciadas na falta de instalação de sistema de videovigilância e de dispositivo de detenção de intrusão, p. e p. pelos arts. 8º, nºs 3, als. a) e b) e 4 do REASP (Regime Exercício da Actividade Segurança Privada – Lei 34/2013 de 16-05 e actualmente na redacção introduzida pela Lei nº 46/2019 de  8-7) e Art.º 100º nº1 da Portaria nº 273/2013 de 20-08,  acrescida de custas do processo no valor de €51,00.
A arguida “F……., LDA.” impugnou judicialmente aquela decisão proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), tendo o Tribunal a quo julgado parcialmente procedente, por provado, o recurso interposto pela arguida/recorrente, e em consequência decidido manter integralmente a decisão administrativa quanto à condenação pela prática das infracções imputadas, reduzindo a coima única para o montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) – tudo nos moldes constantes da transcrição que supra expendemos.
O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a questão invocada pela arguida recorrente, da nulidade da decisão administrativa, pelo facto de a acusação ser omissa quanto ao elemento subjectivo, tendo indeferido a mesma, com a fundamentação constante da sentença [veja-se a transcrição supra].
Veio, então, a arguida recorrente “F……, Ldª” (que anteriormente utilizou a denominação social de “F……., Limitada”) recorrer da sentença proferida pelo Tribunal a quo, para este Tribunal da Relação, invocando as questões decidendas acima descritas, entre as quais, a questão pela qual iniciamos [pois antecede e condiciona a apreciação das restantes] da nulidade, por omissão do elemento subjectivo, desde o auto de notícia, à notificação deste, até à decisão, final e condenatória, administrativa, abrangendo respectiva notificação, nos termos do art. 379º, b) e c), do C.P.P..
Vejamos.
Argumenta a arguida recorrente que a acusação que, no seu entender, se consubstancia no auto de notícia, limita-se a dizer que os agentes policiais se deslocaram à Farmácia, onde verificaram a inexistência de “sistemas e medidas de segurança”, concretizando quais, que foi contactada a responsável da Farmácia, que confirmou inexistirem os mesmos e que não foi pedida a isenção de tais equipamentos.
E, acrescenta a recorrente, a decisão sancionatória, por seu turno, depois de recuperar os três pontos de facto constantes do auto de notícia, veio fazer um “emendar de mão”, acrescentando que a arguida, ao não instalar nenhum sistema de videovigilância e dispositivos de detenção de intrusão, nem a não solicitar nenhum pedido de dispensa de sistema de segurança, não agiu com o zelo objectivamente devido e de que era capaz para cumprimento das suas obrigações legais, dando como provados factos que nem sequer tinham sido  aflorados e que não constavam da acusação previamente formulada.
Conclui, então, a arguida recorrente que, ao omitir os factos subjectivos subjacentes à infracção imputada, a acusação/auto de notícia é nula, nulidade essa não sanada, antes agravada, pelo facto de a decisão administrativa pretender suprir tal nulidade com a consideração como provados de factos que nem sequer foram aflorados pela acusação/auto de notícia, o que determina, contrariamente ao que a sentença recorrida considera, que a decisão impugnada viole o disposto no art. 58º do DLCO, ferindo a mesma de nulidade, por aplicação do disposto no art. 379º, nº 1, al. b) e c) do Cod. Proc. Penal.
Não assiste, porém, razão, à recorrente.
A nulidade invocada é a contemplada nas als. b) e c) do nº 1 do art. 379º do Código de Processo Penal que, subordinada à epígrafe “nulidade da sentença” diz o seguinte:
“1 - É nula a sentença:
(…)
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)”
Ora, nos termos do disposto no art. 62º nº 1 do RGCO, cuja epígrafe é “Envio dos autos ao Ministério Público”:
Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação.”
Ou seja, é por demais evidente que é a decisão administrativa que vai valer como “acusação”, estando o MºPº dispensado de formular esta peça processual.
Ao contrário do pretendido pela arguida recorrente, em processo contraordenacional, não é o auto de notícia que vale como acusação, mas antes e como dissemos, é a decisão administrativa.
Repare-se que, nos termos do citado art. 62º nº 1 do RGCO, cabe ao MºPº, no exercício pleno das suas funções legalmente acometidas, analisar os autos de contra-ordenação e decidir, em princípio, uma de duas coisas:
- submeter os autos de contra-ordenação a julgamento;
- arquivá-los por falta de indícios.
Ora, se os submete a julgamento é porque entende que há indícios suficientes e matéria de facto suficiente para levar a uma condenação.
No caso em apreço, o MºPº decidiu “aderir” aos autos de contra-ordenação, pelo que os factos que terão de ser apreciados são os que constam da decisão administrativa que os concentra todos, sendo irrelevante que o auto levantado pela PSP não contenha (como nunca contêm) o elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional (o dolo ou culpa e a consciência de ilicitude) recaindo sob a autoridade administrativa colmatar esses factos.
Assim, é sobre a decisão administrativa, que vale como acusação e não sobre o auto de notícia, que vale tão-só como isso mesmo (como acto de investigação), que terá de se apreciar se estão consignados os factos tendentes a demonstrar os elementos objectivos e subjectivos da contra-ordenação.
No âmbito da responsabilidade contraordenacional, a decisão administrativa que aplica a coima deve efectuar a imputação da contra-ordenação ao agente, quer na sua vertente objectiva, quer na vertente subjectiva e qual a consequência processual, caso a decisão seja omissa quanto aos referidos elementos.
Para tanto, cumpre, desde já, chamar à colação o disposto no artigo 58.º do RGCO [DL n.º 433/82, de 27 de Outubro], que estabelece os requisitos a que legalmente deve obedecer qualquer decisão administrativa.
E deste preceito legal, sob a epígrafe, “decisão condenatória”, no que aqui releva, decorre o seguinte:
“1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
(…)
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
(…) ”. [sublinhado e bold nosso].
Ou seja, a decisão administrativa deve conter, entre outros requisitos e segundo a alínea b), do n.º1, do referido artigo 58.º, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, o que equivalerá a dizer, a descrição dos factos susceptíveis de condenação pela contra-ordenação imputada, ou seja, quer os elementos objectivos, quer os elementos subjectivos do tipo contraordenacional.
Vejamos, então:
Quanto à descrição dos factos imputados – elemento subjectivo do tipo contraordenacional:
O DL n.º 433/82 de 27 de Outubro (RGCO) estabeleceu o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.
Por isso, mesmo, dispõe o artigo 32.º do RGCO que:
“Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.” e, relativamente ao regime adjectivo, dispõe o artigo 41.º do mesmo diploma que:
“1 - Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
2 - No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.”
Além disso, quanto à natureza das infrações em causa, dispõe o artigo 1º do RGCC que "Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.", decorrendo, por sua vez, do artigo 8.º n.º 1 do mesmo diploma que:
 "1 - Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
2 - O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo.
3 - Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.". [sublinhado nosso].
Resulta, portanto, da conjugação de tais preceitos legais que, embora, no domínio das contra-ordenações, a culpa não esteja baseada numa censura ética, como a jurídico-penal, ela não deixa de ser um elemento subjectivo indispensável à punição, e, também aqui, pode existir quer na modalidade de dolo, quer de mera negligência.
Em suma, também o direito contraordenacional não dispensa o juízo de culpa do agente, o que se compreende, pois se assim não fosse, estaria aberta a porta para a punição como contra-ordenação a título de responsabilidade objectiva, bastando, para tanto, que a administração imputasse ao agente a materialidade objectiva dos factos praticados para que o mesmo fosse condenado na coima respectiva, independentemente de se saber se a respectiva conduta é ou não censurável, se o agente podia ou devia, nas circunstâncias concretas, ter agido de outro modo.
Além disso, de forma alguma se pode admitir que os elementos do dolo ou da negligência, quando não descritos na decisão que aplica a coima, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objectivos, ainda que com recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos.
Na verdade, a imputação de um "facto contraordenacional" e a sua responsabilização, exigem sempre um nexo de imputação subjectiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente. E essa imputação subjectiva deve constar expressamente da decisão administrativa, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas, acima de tudo, porque desse mesmo grau depende a determinação da própria coima aplicável.
In casu, tal referência é feita, na decisão administrativa.
São os seguintes os factos provados que constam da decisão administrativa [transcrição]:
“(…)
Dos FACTOS PROVADOS
5) Com interesse para a decisão a proferir, consideram-se provados os seguintes factos:
• No dia, pelas 10/09/2018, pelas 11:00h, no âmbito de uma ação de fiscalização os agentes fiscalizadores dirigiram-se à Farmácia ….., sita na ……., onde verificaram que o local não era munido de sistemas de videovigilância e dispositivos de detenção de intrusão.
• O referido estabelecimento procede à venda de produtos farmacêuticos, com o Alvará n.° …….. do Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produto de Saúde, I.P., pelo que o mesmo está obrigado à adoção de sistemas e medidas de segurança, nomeadamente a instalação de sistema CCTV e instalação de alarme.
• A arguida não solicitou nenhum pedido de dispensa de sistemas de segurança relativo à Farmácia……..
• A arguida, ao não instalar nenhum sistema de videovigilância e dispositivos de detenção de intrusão, nem a não solicitar nenhum pedido de dispensa de sistemas de segurança, não agiu com o zelo objetivamente devido e de que era capaz, para cumprimento das suas obrigações legais.
Ora, da simples leitura da decisão administrativa escrutinada (que, como atrás expendemos, vale como acusação), encontram-se referidos quer os elementos objectivos, quer os subjectivos, das contra-ordenações em causa, não tendo isso constituído um “emendar de mão”, como o pretende a arguida recorrente, mas, antes, um procedimento efectuado no seu tempo certo. Seria impensável e indefensável exigir-se aos agentes policiais, que procedem à autuação, o rigor jurídico implícito na indicação dos elementos subjectivos da contra-ordenação em causa.
Como o refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, que subscrevemos, “sempre seria insustentável que o agente autuante, numa fase embrionária do processo de mera ordenação social, pudesse determinar, diríamos premonitoriamente, durante a fiscalização fortuita e instantânea, classificar a conduta como dolosa ou negligente, o que, a ousar fazer, suscitaria, até a quebra da presunção de inocência (art 32º,2, CRP)”.
In casu, a decisão condenatória da autoridade administrativa imputa à arguida a prática de uma contra-ordenação a título de negligência, que, como é consabido, se reconduz à violação de um dever objectivo de cuidado por parte de um agente que se encontrava obrigado a não violá-lo, porque as suas capacidades e as circunstâncias em concreto lhe permitiam que ele o tivesse cumprido[4].
E tal factualismo encontra-se presente, como vimos, na decisão administrativa, tendo sido, depois, também, carreado ao manancial fáctico apurado descrito na sentença recorrida.
Aqui chegados, só nos resta concluir que o argumento recursivo quanto a esta questão não poderá obter provimento, tendo a decisão administrativa em apreço (que vale como acusação) feito alusão ao elemento subjectivo do tipo contraordenacional pela qual a arguida veio a ser sancionada, em respeito pelo art. 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO.
Não se verifica, pois, a invocada nulidade, prevista no art. 379º, b) e c), do C.P.P.; improcedendo, portanto, o recurso, neste segmento.
*
Da inaplicabilidade, em concreto, da Lei nº 34/13, 16.05 (REASP), face ao tipo de estabelecimento versado nos autos de contra-ordenação, nos termos do art. 8º, nº 3, a) e b), e nº 4, desse diploma:
Veio a arguida recorrente invocar a circunstância especifica de se tratar de uma farmácia hospitalar, a qual tem um regime distinto e diverso das farmácias de oficina.
E alega a recorrente que tal situação flui do disposto no Decreto-Lei nº 241/2009, de 16.9. que criou as farmácias de dispensa de medicamentos ao público, nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (o qual alterou o Decreto-Lei n.º 235/2006, de 6 de Dezembro), figura distinta e diversa das farmácias comuns que têm o seu regime, essencialmente distinto, fixado pelo Decreto-Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto (com as sucessivas alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 171/2012, de 1 de Agosto, pela Lei n.º 16/2013, de 8 de Fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 109/2014, de 10 de Julho).
Mais alega a recorrente que tais farmácias hospitalares, como é o caso da arguida recorrente (a qual se encontrava instalada no …..) são alvo de concessão que tem por objecto a exploração do serviço público para a dispensa de medicamentos ao público, criado em hospitais do SNS (art. 3º), estando o seu funcionamento condicionado pelas regras próprias contidas no art. 47º, não podendo, complementarmente, introduzir inovações ou efectuar alterações aos elementos estabelecidos no contrato de concessão – cf. tudo o diploma legal invocado.
Ou seja, são estabelecimentos de farmácia integrados na estrutura do hospital onde se enquadravam, sendo que, por tal motivo, não lhes era, ao que se considera, aplicável uma serie de normas inerentes às farmácias de oficina, tal como foi explanado em sede de recurso de impugnação – com efeito, as farmácias de oficina laboram em locais públicos, desinseridos de uma estrutura hospitalar em cujo perímetro a farmácia objecto dos presentes autos se integrava fisicamente.
Conclui a recorrente que, assim, dado “o enquadramento legal e geográfico próprios das farmácias hospitalares”, resulta inaplicável às mesmas, e, em concreto, à arguida, o disposto no art. 8º, nº 3, als. a) e b) e 4 do REASP, como consequência da existência de regimes jurídicos próprios – tanto mais que a alusão legislativa a farmácias se reporta, por natureza, às farmácias de oficina, não abrangendo as farmácias hospitalares.
Não assiste, porém, razão, à arguida recorrente.
O REASP (regime do exercício da actividade de segurança privada), previsto na Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio, estabelece o regime do exercício da actividade de segurança privada e procede à primeira alteração à Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto (Lei de Organização da Investigação Criminal).
Reza assim o art. 1º do referido regime (REASP), sobre a epígrafe “Objecto e âmbito”:
“1 - A presente lei estabelece o regime do exercício da atividade de segurança privada e da organização de serviços de autoproteção.
2 - A presente lei estabelece ainda as medidas de segurança a adotar por entidades, públicas ou privadas, com vista à proteção de pessoas e bens e à prevenção da prática de crimes.
3 - A segurança privada e a autoproteção só podem ser exercidas nos termos da presente lei e da sua regulamentação, e têm uma função complementar à atividade das forças e serviços de segurança do Estado.
4 - Para efeitos da presente lei, e sem prejuízo das atribuições das forças de segurança, a proteção de pessoas e bens e a prevenção da prática de crimes pode ser exercida:
a) Por entidade privada que vise a prestação de serviços de segurança privada a terceiros, nos termos da presente lei e regulamentação complementar;
b) Através da organização, em proveito próprio, de serviço de autoproteção.
5 - A atividade de formação profissional do pessoal de segurança privada e de consultoria de segurança são consideradas atividades de segurança privada, sendo reguladas nos termos da presente lei e regulamentação complementar.
6 - Ficam excluídas do âmbito de aplicação da presente lei:
a) A atividade de porteiro de hotelaria;
b) A atividade de porteiro de prédio urbano destinado a habitação ou a escritórios, cuja regulamentação é da competência das câmaras municipais;
c) A gestão e monitorização de sistemas de segurança e a implementação de vigilância e controlo de acessos adotados em espaços para fins habitacionais.
7 - O Banco de Portugal não está sujeito às medidas previstas na presente lei que se mostrem incompatíveis com as normas e recomendações adotadas no âmbito do Sistema Europeu de Bancos Centrais.
8 - A presente lei não se aplica às iniciativas de cariz político, organizadas por partidos políticos ou outras entidades públicas, sindicatos ou associações sindicais, sendo as medidas de segurança e autoproteção diretamente articuladas com as forças e serviços de segurança.”
Logo se vê, portanto, da simples leitura do descrito preceito legal, que baliza o âmbito de aplicação da referida Lei, que a situação específica das farmácias hospitalares – em que se enquadra a arguida recorrente – não se encontra, ao contrário do pretendido por esta, afastada do âmbito de aplicação de tal regime legal.
Por sua vez, reza assim o art. 8º, do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Obrigatoriedade de adoção de medidas e sistemas de segurança”, nos seus nºs 3, als. a) e b) e 4 (com relevância para o caso sub judice):
“ (…)
3 - Sem prejuízo do disposto em legislação especial, os estabelecimentos onde se proceda à exibição, compra e venda de metais preciosos e obras de arte são obrigados a adotar um sistema e medidas de segurança, que no mínimo inclua:
a) A instalação de um sistema de videovigilância;
b) A instalação de dispositivos de segurança e proteção.
4 - A obrigação prevista no número anterior é extensível a farmácias e postos de abastecimento de combustível.
(…)”
Ora, também aqui o legislador é claro, quando refere o termo geral “farmácias”, não especificando nem as farmácias comuns, de oficina, nem as farmácias hospitalares. Não há que distinguir, pois, aquilo que claramente o legislador não quis distinguir.
É inquestionável que as farmácias hospitalares têm especificidades próprias, que justificam algumas regras próprias. Ocorre que, no que à instalação de equipamentos de segurança se refere, não há qualquer razão de facto ou de direito que exija ou justifique regras distintas, ou qualquer tipo de adaptação, sendo que, nos termos sobreditos, o diploma legal que regula tal matéria (REASP), não faz qualquer diferenciação entre as duas distintas naturezas de farmácias. A obrigatoriedade de instalação dos sistemas de videovigilância e de detecção de intrusão é, assim, aplicável às farmácias em geral.
Carece, portanto, de fundamento legal, o pretendido pela arguida recorrente.
Improcede, pois, também neste segmento, o recurso.
*
Da desproporcionalidade sancionatória, que se bastaria com a mera admoestação (art 51º do RGCO):
Veio, por fim, o arguido recorrente, invocar que a coima aplicada se revela desproporcional em face dos fins específicos da mesma, pedindo a sua substituição por admoestação – arts. 20º, nº 1, e 51 do RJCO.
Vejamos.
Como vimos, a arguida recorrente foi condenada pela prática negligente, das contra-ordenações p. e p.  pelos arts.  8º, nºs 3, als. a) e b) e 4 do REASP – Lei 34/2013 de 16-05 e actualmente na redacção introduzida pela Lei nº 46/2019 de 8-7) e Art.º 100º nº1 da Portaria nº 273/2013 de 20-08, na coima única de € 5.000,00 (cinco mil euros), pelo Tribunal a quo.
De acordo com o disposto no art. 59º do citado diploma legal (REASP), na parte que ora releva:
“ (…)
2 - São graves as seguintes contraordenações:
(…)
c) O incumprimento do disposto no artigo 8.º, 9.º, 10.º e dos requisitos que sejam fixados em regulamento;
(…)”
4 - Quando cometidas por pessoas coletivas, as contraordenações previstas nos números anteriores são punidas com as seguintes coimas
(…)
b) De 7 500 (euro) a 37 500 (euro), no caso das contraordenações graves;
(…)
8 – A tentativa e a negligência são puníveis.
9 - Nos casos de cumplicidade e de tentativa, bem como nas demais situações em que houver lugar à atenuação especial da sanção, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade.(…)”
Ora, da leitura do normativo supra citado, logo se conclui que as contra-ordenações em que vai condenada a arguida recorrente são consideradas graves.
Assim, a primeira operação a realizar, no âmbito da subsunção e tendo em consideração o invocado pela arguida recorrente – substituição da coima por admoestação -, será verificar se estando perante uma contra-ordenação classificada pela lei como grave, poderá ser aplicado o instituto em causa.
Para clareza argumentativa, transcreve-se a norma que prevê a admoestação – art. 51º do RGCO:
“1–Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
2–A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação.”
O primeiro elemento a ter em conta na interpretação é o literal, conforme resulta do artigo 9. ° do Código Civil.
O recurso a este elemento exige, sendo a mais avisada doutrina, o recurso simultâneo ao elemento lógico, contendo tal interpretação estes dois elementos, de forma incindível.
O subelemento lógico compreende, por seu lado o elemento sistemático (a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada), o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento global e a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. Cabe, ainda, aqui o elemento racional ou teleológico, onde se enuncia qual a razão de ser da norma e o fim visado pelo legislador ao proceder à sua elaboração.
É com estes elementos que terá de ser apreciada a pretensão da arguida/recorrente.
Vejamos o elemento literal. Ora, no texto da norma em que se pune a contra-ordenação (o supracitado art. 59. °, n.° 2, alínea c), do REASP), como vimos, refere-se que ”São graves as seguintes contraordenações: [...] c) O incumprimento do disposto no artigo 8.º, 9.º, 10.º e dos requisitos que sejam fixados em regulamento”.
Por sua vez, a possibilidade de se aplicar a admoestação está prevista no artigo 51.°, n.° 1, do RGCO, onde se lê que "quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.
As contra-ordenações têm um escalonamento de gravidade, podendo ser leves (cf. artigo 59.°, n.° 3), graves (cf. artigo 59.°, n.° 2) ou muito graves (cf. artigo 59.°, n.° 1); sendo que cada uma das categorias exclui as restantes, não se admitindo que existam flutuações entre estas.
Estando claramente definidos os conceitos, resulta manifesto que a lei quis e distinguiu as contra-ordenações por gravidade, não havendo forma de interpretar que a "gravidade reduzida” prevista na norma da admoestação possa abranger contra-ordenação que a lei qualifica e adjectiva como "grave” ou "muito grave”, já que tal aceitação subverte o elemento literal e, como tal, é inadmissível à luz do artigo 9.°, n.° 2, do C.C., por se tratar de interpretação "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso ".
Debrucemo-nos, além disso, no elemento sistemático. A Lei n. ° 34/2013, de 16 de Maio consagra o regime do exercício da actividade de segurança privada, punindo diversas condutas como contra-ordenação.
Encontra-se, assim, ao abrigo das regras gerais previstas no Decreto-Lei n. ° 433/82, de 27 de Outubro, que consagra o denominado regime geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, também apelidado de RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações).
Ora, este último diploma é norma geral em relação à Lei 34/2013 e esta última é norma especial em relação àquela. Do que dissemos resulta que apenas há a aplicação do regime especial quando o mesmo assim o determine, aplicando-se, na falta de regra específica, as regras gerais.
O RGCO prevê a admoestação como sanção, no artigo 51.°, explicitando o seu regime.
A Lei 34/2013 não faz referência à admoestação em nenhuma das suas normas.
Nestes termos, resulta inequívoco que a aplicação da admoestação tem de seguir o regime previsto no RGCO, por imposição legal, e que apenas pode ser aplicada em caso de contra-ordenação leve, por não ser grave ou muito grave, como aí determinado.
Veja-se, ainda, o elemento teleológico. As contra-ordenações estão, como já mencionamos, previstas por categoria (de gravidade) e é dentro de cada categoria que se fixa a respectiva coima.
Existem, assim, diferentes molduras, por categoria de contra-ordenação. Na lei 34/2013 estão previstas as seguintes molduras:
a) as contra-ordenações leves são puníveis com coima de €1.500,00 a €7.500,00, no caso de pessoa colectiva e de €150,00 a €750,00, no caso das pessoas singulares;
b) as contra-ordenações graves são puníveis com coima de €7.500,00 a €37.500,00, no caso de pessoa colectiva e de €300,00 a €1.500,00, no caso das pessoas singulares; e
c) as contra- ordenações muito graves são puníveis com coima de €15.000,00 a €44.500,00, no caso de pessoa colectiva e de €600,00 a €3.000,00, no caso das pessoas singulares.
A ratio legal é punir com coima mais elevada a contra-ordenação muito grave em relação à grave, e esta última com coima mais elevada do que a classificada como leve; sendo que, apenas neste último caso, até pelo menor montante patrimonial em que se consubstancia a coima, poderá haver a "substituição" da coima por admoestação, sob pena de, também aqui, se admitir uma latitude ao decisor que permite conformar a concreta moldura a aplicar, ao invés da determinação do quantum dentro de uma moldura já pré estabelecida pelo legislador.
Tudo isto, sublinhe-se, em cumprimento da presunção legal de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, imposta ao intérprete aquando da fixação do sentido e alcance da lei, presunção ilidível mediante prova em contrário que, aqui, não se logrou fazer (cf artigos 9.°, n.° 3 e 350.°, n.° 2, ambos do Código Civil).
Por fim, cumpre ainda aludir à jurisprudência obrigatória, fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.° 6/2018, de 14-11, segundo o qual ”a admoestação prevista no artigo 51.°, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27.10, não é aplicável às contraordenações graves previstas no art. 34.°, n. ° 2, do Decreto-Lei n. ° 78/2004, de 03.04”.
Ora, ainda que no douto acórdão referido não se analise a mesma Lei, no artigo 34. °, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 78/2004 de 03 de Abril refere-se, em paralelo, que "constitui contra-grave, punível com coima de (euro) 500 a (euro) 3700, no caso de pessoas singulares, e de (euro) 5000 a (euro) 44800, no caso de pessoas colectivas” o comportamento concretizado nas alíneas subsequentes.
Assim, temos que o raciocínio jurídico subjacente à posição vertida naquele acórdão uniformizador é aplicável, mutatis mutandis, nos presentes autos, não cabendo, também por esta via, aplicar tal regime de admoestação a uma contra-ordenação que seja qualificada como grave na própria lei.
No mesmo sentido vão aliás, outros Arestos, como se pode aferir, a título de exemplo, através do Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 17/09/2014, processo n.° 656/13.4TBPNF.P2,'ou do Tribunal da Relação de Évora de 08-03-2018, processo n.° 2551/17.9T8ENT.E1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
Por todo o supra exposto, impõe-se concluir pela inaplicabilidade do instituto da admoestação à arguida recorrente.
Improcede, pois, também aqui, o recurso.
Resta apreciar se, in casu, e apesar da redução do valor da coima única aplicada à arguida recorrente, pelo Tribunal a quo [de €11.250,00, fixada na decisão administrativa, para € 5.000,00], ainda se verifica a invocada desproporcionalidade.
Veja-se o que, a propósito, se lê, na sentença recorrida [na parte que ora releva] – transcrição:
“(…)
Segundo o Art.º 59º nºs 2 al. c), 4 al. b) e 9 do REASP, os limites mínimos e máximos das coimas estão fixados em €3.750,00 e €18.750,00, respectivamente, uma vez que a  imputação é a título negligente e não doloso, pelo que o quantitativo em que incorre a  recorrente é diverso daquele plasmado na decisão administrativa.
Considerando a factualidade apurada e o próprio critério utilizado pela Autoridade Administrativa, fixando a coima próximo do seu mínimo, bem como atendendo às concretas condições da recorrente e ao facto desta farmácia estar encerrada, consideramos adequado,  justo e proporcional reduzir o valor de ambas as coimas a €3.800,00 (três mil e oitocentos euros) para cada, perfazendo o total de €7.600,00 (sete mil e seiscentos euros).
Importa, no entanto, atender ao concurso de infracções e ao plasmado no Art.º 19º do  RGCOC, que contempla “1- Quem tiver praticado várias contra-ordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso. 2 - A coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso. 3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contra-ordenações.”.
E em cúmulo, tendo presente tais critérios definidos pelo Art.º 18º e 19º do RCOC,  consideramos justo, adequado e proporcional fixar a coima única de €5.000,00 (cinco mil  euros).
Sem esquecer que a coima a aplicar deve surgir como uma verdadeira sanção, com imposição de certo sacrifício para a arguida, devendo funcionar como um dissuasor eficaz, afastando-se o sentimento de impunidade que constitui um incentivo à infracção e ao desrespeito pelas regras.
Tendo presente a gravidade da infracção, não obstante a actuação negligente, a postura da arguida e recorrente, detendo capacidade financeira na data dos factos, a experiência detida e conhecimento, não tendo diligenciado pela respetiva reparação, não se justifica a aplicação do Art.º 51º do RGCOC, ficando a mesma aquém das exigências de prevenção e sancionamento legal que se impõem, gerando até sentimentos de impunidade.
(…)”
Logo se vê, pois, que, nesta matéria, a sentença recorrida não deixou de ponderar todas as circunstâncias de facto atendíveis, estribando a sua decisão nos critérios legalmente estabelecidos para encontrar a medida concreta da pena ajustada, fazendo-o em moldes que reputamos de ajustados e adequados.
Com efeito, considerando a dosimetria abstracta aplicável [com redução para metade, nos termos do disposto nos arts 59º, 8 e 9, do REASP e 18º,1, do RGCO], os montantes aplicados pelo Tribunal a quo, a cada uma das contra-ordenações, foram bem perto do seu mínimo abstracto, quer no que concerne às coimas parcelares, quer no que respeita à coima única.
E não podemos olvidar que a coima consubstancia uma sanção com expressão pecuniária, pelo que deve implicar sempre uma efectiva agravação da situação económica do infractor, sob pena de a pena não satisfazer as exigências e os objectivos subjacentes à punição.
Não se reconhece, assim, a violação, por parte do Tribunal a quo, de qualquer norma jurídica, nem de quaisquer direitos ou garantias de defesa da arguida recorrente, razão pela qual não nos merece a mesma qualquer reparo, devendo manter-se inalterada.
Improcede, pois, também aqui, o recurso.
»
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pela arguida e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela arguida recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.

Lisboa, 07 de Dezembro de 2023
 (O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelas Exmas. Juízes Desembargadoras Adjuntas – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Os Juízes Desembargadores,
Fernanda Sintra Amaral
Paula Albuquerque
Maria Ângela Reguengo da Luz
_______________________________________________________
[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
[3] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
[4] Alexandra Vilela, in “O Direito de Mera Ordenação Social”, pág. 539.