Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1001/21.0PHAMD-A.L1-5
Relator: SARA REIS MARQUES
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL EM SEPARADO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I.A constituição de assistente não tem de ser requerida dentro do prazo que a lei prescreve para o exercício do direito de queixa, a que se refere o art.º 115º do CP, ou seja, dentro do prazo de seis meses a contar da data em que o lesado teve conhecimento do facto típico violador da sua esfera jurídica.

II.O prazo para constituição como assistente por crime cujo procedimento dependa de acusação particular (arts. 50.º/1 e 285.º), de 10 dias, conta-se a partir da advertência pela autoridade judiciária ou pelo OPC de que aquela constituição é obrigatória e dos procedimentos a observar (arts. 68.°/2 e 246.º/4).

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO:


Pelo Juízo de Instrução Criminal da Amadora foi proferido, em 17.01.2024, despacho indeferindo a constituição da requerente AA como assistente relativamente ao(s) crime(s) de natureza particular que se investigava nos presentes autos por factos denunciados com referência a Fevereiro de 2022 e admitindo-a a intervir nos presentes autos na qualidade de assistente quanto aos crimes de natureza não particular denunciados.
*
*
-» Inconformado, o M.º P.º interpôs recurso desta decisão, que motivou e formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1.–Nos presentes autos, na sequência da notificação que o Ministério Público fez à denunciante, ao abrigo do disposto nos art.s 68.2/2, 246.2/4 e 2852, n.2 1, do Código de Processo Penal foi AA admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente no que concerne aos crimes de natureza não particular, mas não no que concerne ao crime de natureza particular.
2.–Ainda que AA estivesse representada por Ilustre Mandatário desde que apresentou queixa tempestiva nos autos, e ainda que naquela logo tenha manifestado o desejo de se constituir como assistente, a denunciante só foi notificada nos termos e para os efeitos do disposto naqueles preceitos legais no dia 27-11-2023, pelo que, quando no dia 4-12-2023, a denunciante AA veio requerer a sua constituição como assistente e deduzir acusação particular estava em tempo.
3.–Onde o legislador não distingue não cabe ao intérprete distinguir.
4.–Só este entendimento é consentâneo com a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, plasmada nos art. 2s 18.2, 20.2/l e 32.2/7, da Constituição da República Portuguesa, no art. 2 8.2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no art. 2 6.2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que a todos assegura o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
5.–Pelo que a denunciante, que apresentou queixa tempestivamente nos autos, e que cumpriu o prazo preclusivo da notificação/advertência que, ao abrigo do dever à informação, lhe foi feita por despacho da autoridade judiciária competente, nos termos dos art.2s 68.2/2 e 246.2/4, do CPP, deve ser admitida a intervir como assistente nos autos também no que concerne ao crime de natureza particular.
6.–Tudo para que o MP possa proceder relativamente ao crime de natureza particular (art.2s 48.2 e 50.2/l, do Código de Processo Penal) - v., por todos, o Ac. do TRC de 05.01.2011, no Processo n.e 256/09.3GBFND-A.C1, relatado por Jorge Jacob.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve ser declarado totalmente procedente o recurso apresentado pelo Ministério Público, devendo o douto despacho recorrido ser parcialmente revogado e a denunciante ser admitida a intervir nos autos como assistente também no que concerne ao crime de natureza particular, assim se fazendo JUSTIÇA.”
*

O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
*

Não foi apresentada resposta ao recurso.
*

-» Uma vez remetido a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do Recurso interposto pelo Ministério Público, dizendo:
Analisados os fundamentos do recurso, bem como a fundamentação do Despacho recorrido, e tendo em conta a data da prática dos factos (fevereiro de 2022), a data em que foi apresentada a denúncia (5/4/2022) e a data em que foi requerida a constituição de assistente (4/12/2023), e sempre como devido e muito respeito por diferente opinião, não acompanhamos o recurso apresentado pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1 .a instância.
Com efeito, no caso em apreço, antes concordamos com o entendimento jurisprudencial plasmado nos Acórdãos do TRG de 11 /9/2017 (relatora Fátima Furtado) e do TRP de 21/2/2018 (relatora Élia São Pedro), ambos consultáveis na base da DGSI, entendimento que aqui damos como reproduzido.”
*

Cumprido o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP, veio AA, Recorrida, “reiterar e acompanhar na íntegra o douto recurso apresentado pelaDigna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância.”
*

Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
*
*

II–OBJETO DO RECURSO

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (Diário da República, série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Das conclusões do recurso extrai-se que com o mesmo visa o recorrente abordar as seguintes questões:
- Admissibilidade da constituição da requerente como assistente relativamente ao crime de natureza particular que foi denunciado.
*

III–FACTUALIDADE RELEVANTE PARA A DECISÃO DO RECURSO:

1.AA, melhor identificada nos autos, e através de Mandatário constituído, apresentou queixa-crime a 8-04-2022, junto do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Sintra, contra BB e CC imputando-lhes factos em seu entender integradores de um crime de burla, no art.° 217° n.° 1 do CP, de um crime de difamação previsto e punível pelos artigos 180° n° 1 e 183° n° t al. b) do C.P, de um crime de Extorsão p.e.p. no art. 223° n°1. do Código Penal e de um crime de Falsas Declarações, pe.p. artigo 348°-A do Código Penal, agravadas, de um crime de Dano artigo 212°. p. e p. do Código Penal e de um crime de usurpação p.e.p no artigo 215° do Código Penal;
Declarou, em simultâneo, a sua vontade de se constituir como assistente.
2.Tal queixa foi distribuída à 4ª Secção do DIAP de Sintra e autuada com o nº 2050/22.7T9SNT
3.Por despacho de 20/4/2022 foi excecionada a incompetência territorial daquele Ministério Público e determinada a remessa autos ao Ministério Público junto do DIAP da Amadora por ser este o territorialmente competente para a realização do inquérito, nos termos do disposto nos artigos 264.º n.º 1 e 266.º n.º 1, ambos do CPP.
4.Por despacho de 23/9/2022, determinou-se a incorporação do referido processo no inquérito 1001/21.0PHAMD - DIAP - 2ª Secção da Amadora, uma vez que se trata de uma situação de queixa contra queixa.
5.Por despacho do M.º P.º de 16/11/2023 determinou-se a notificação de AA para, no prazo de 10 dias, querendo, se constituir como assistente nos autos e vir deduzir acusação particular contra BB, nos termos do disposto nos art.ºs 68.º/2, 246.º/4 e 285º, n.º 1, do CPP, consignando-se que, no seu entender, foram recolhidos indícios suficientes da prática pela arguida BB do crime de difamação, com publicidade e calúnia, p. e p. pelo art. 180.º e 183.º nº 1 alíneas a) e b), do Código Penal.
6.Tal notificação ocorreu por via postal simples com prova de depósito remetida para a requerente a 22-11-2023.
7.Por requerimento datado de 4/12/2023, AA, requereu a constituição como assistente.
8.Foi determinada a remessa dos autos ao Mmo Juiz de Instrução, para apreciação do requerimento de constituição de assistente, mais consignando o Magistrado titular do inquérito nada ter a opor ao deferimento de tal pretensão, por se verificarem os correspondentes pressupostos, previstos nos arts. 68º, nº 1 e nº 3, e 70º, nº 1 do Código de Processo Penal.
9.Distribuídos os autos ao Juízo de Instrução Criminal da Amadora foi proferido, em 17.01.2024, o despacho recorrido com o seguinte teor (transcrição):
“Nos presentes autos investiga-se, além do mais, a eventual prática do crime de difamação, assumindo este natureza particular, cfr. art° 188°, n° 1 do C.P..
Nos termos do art° 68°, n° 2 do C.P.P., a constituição como assistente em procedimento dependente de acusação particular deve ser requerida no prazo de 10 dias a contar da advertência ou da declaração do denunciante efectuada nos termos do art° 246°, n° 4 do C.P.P., sendo peremptório este prazo, cfr. decorre do Ac. n° 1/2011.
Dispõe este último preceito (art° 246°, n° 4 do C.P.P.) que o denunciante pode declarar, na denúncia, que deseja constituir-se assistente. Tratando-se de crime cujo procedimento depende de acusação particular, a declaração é obrigatória, devendo, neste caso, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal a quem a denúncia for feita verbalmente advertir o denunciante da obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar.
No caso dos autos a denunciante, que ora pretende constituir-se assistente, apresentou queixa-crime, através de Distinto Mandatário constituído, que logo firmou essa pretensão, pelo menos em 5-2-2022, mas sem que o tivesse vindo fazer em prazo, ou seja, no prazo máximo de caducidade do direito de queixa, ou seja, em seis meses após os factos ou o conhecimento dos mesmos, cfr. art° 115°, n° 1 do C.P., mostrando-se este já integralmente decorrido quando o denunciante veio apresentar o seu requerimento em 4-12-2023, quando não era já, no nosso entendimento, admissível a constituição como assistente.
Neste sentido, o Ac. proferido no processo n° 627/14.3GBILH.P1, relatado pela Veneranda Desembargadora Élia São Pedro, disponível para leitura em http://www.dgsi.pt/itrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/1402970b2038babc8025824a00371e8e?OpenDocument :
«I-Na apresentação de queixa por crime particular, é obrigatória, nos termos do art° 264° 4 CPP a declaração do denunciante de que pretende constituir- se assistente.
II-Apresentada denuncia por escrito subscrita pelo denunciante, pelo crime do art° 181° CP, sem conter a declaração de que pretende constituir-se assistente, a mesma não se mostra validamente efectuada.
III-Tal falta não pode ser suprida decorrido o prazo para o exercício do direito de queixa.»
bem como o Ac. prolatado no processo n° 660/16.0T9BGGGC-A.G1, subscrito pela Veneranda Desembargadora Fátima Furtado, disponível para leitura em http://www.dgsi.pt/itrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/0cd2e2c5e384c48a802581ae00340db6?OpenDocument :
I)- Tendo a ofendida, na própria denúncia que originou o procedimento criminal requerido logo a sua constituição como assistente, a autoridade que recebeu a queixa fica desonerada da obrigação legal de efetuar advertência sobre a obrigatoriedade da constituição como assistente e dos procedimentos a observar, a que alude o n.° 4 do artigo 246 do CPP.
II)- Neste caso, de omissão justificada daquela advertência, o direito de constituição como assistente mantém-se até ao limite temporal em que ocorreria a extinção do direito de queixa, ou seja, até ao decurso do prazo de seis meses previsto no artigo 115.°, n.° 1 do CP. » mostrando-se estes já integralmente decorridos aquando da notificação que o M.P. entendeu dever fazer em 16-11-2023, efectivada por ofício de 22-11-2023, quando não era já, no nosso entendimento, admissível a constituição como assistente.”
No caso dos autos, como se vem dizendo, não é aplicável o disposto no art° 246°, n° 4 do C.P.P. na parte em que determina a notificação com a advertência do denunciante da obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar, bem como não o é o disposto no art° 8°, n° 3, parte final do R.C.P., quando impõe a notificação para junção aos autos do comprovativo de pagamento da taxa de justiça devida, além do mais, para constituição como assistente, uma vez que estes preceitos se destinam aos casos em que a denúncia e o requerimento são apresentados verbalmente perante a autoridade policial e/ou judiciária, sendo que in casu a denúncia foi apresentada por escrito subscrito por Distinto Mandatário Judicial.
Assim, resulta que o requerimento de constituição como assistente é manifestamente intempestivo quanto ao procedimento que se pretendia fazer valer relativamente ao(s) crime(s) de natureza particular denunciado alegadamente praticado em Fevereiro de 2022, tendo a denunciante apresentado a respectiva queixa crime em 5-4-2022, subscrita por Distinto Mandatário Judicial, que logo declarou a pretensão de se constituir como assistente, cfr. fls. 8/77-A, apenas o vindo requerer em 4-12-2023, decorrido o prazo legal para o efeito.
Termos em que se indefere a requerida constituição como assistente quanto ao(s) crime(s) de natureza particular que se investigava nos presentes autos por factos denunciados com referência a Fevereiro de 2022.
Já relativamente à demais matéria penal de natureza não particular, sendo legal e tempestivo o requerimento, possuindo legitimidade para o efeito, mostrando- se a requerente devidamente representada por Advogado e tendo suportado o pagamento da taxa de justiça devida, nada tendo sido oposto pelo M.P. ou pelas arguidas constituídas nos presentes autos, admito AA a intervir nos presentes autos na qualidade de assistente - art°s 68°, n°s 1 a 4 do C.P.P., 8°, n° 1 do R.C.P..
Notifique.”

IVFUNDAMENTAÇÃO

Elencada a questão suscitada pelo recorrente, mostrando-se descrita a factualidade que resulta dos autos e transcrita a decisão recorrida, vejamos o que consta do quadro legal aplicável.
Como é sabido, em procedimento criminal relativo a crimes particulares, a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal depende de queixa do ofendido, da sua constituição como assistente e que este deduza acusação particular (artigo 50.º, n.º 1 e 246.°, n.° 4 do CPP).
Estes pressupostos constituem, por isso, verdadeiras condições de procedibilidade, sem os quais o Ministério Público não pode prosseguir o processo quanto aos crimes dessa natureza.
Daí que, além da queixa, o processamento de um crime dependente de acusação particular inclui o requisito da constituição do ofendido como assistente, sendo que o requerimento de constituição de assistente tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.° 4 do artigo 246.° do CPP, em conformidade com o disposto no n.° 2 do artigo 68.° do CPP.
O denunciante deve, pois, ser advertido expressamente da obrigatoriedade de constituição como assistente e, ainda, dos procedimentos a observar.
O dever de informação da autoridade judiciária ou do órgão de polícia criminal, compreendendo o esclarecimento adequado dos diversos procedimentos a observar para a constituição de assistente, obriga a que o denunciante seja pelo menos informado de que o requerimento para constituição como assistente tem de ser apresentado no prazo de 10 dias, a contar da data da declaração do denunciante de que pretende constituir-se assistente, que o assistente tem obrigatoriamente de ser representado por advogado e que pela constituição de assistente é devido o pagamento de taxa de justiça (artigos 68.º, n.o 2, 70.º, n.º 1, e 519.º).

Escreve-se no Ac. STJ 1/2011, de uniformização de jurisprudência, que:
o requerimento para constituição como assistente constitui um acto de formalização necessária para que o processo possa prosseguir para além da queixa. Devendo notar-se que o processo já se iniciou com a queixa (artigo 241.º), o requerimento para constituição como assistente não é, por isso, um acto que se encontre a montante do processo (o processo já existe) embora se encontre a montante do procedimento. É um acto a praticar, no processo, visando produzir um efeito processual (a constituição de assistente) mediante a obrigatória decisão do juiz que tal requerimento suscita.
É, neste sentido, um acto processual estimulante.
E um acto que se integra num procedimento público.
Com efeito, a atribuição ao ofendido da decisão de haver, ou não, procedimento pelos crimes particulares, não retira ao processo por esses crimes a natureza pública.”

A questão que se coloca é então a de saber se estes dois actos, queixa e constituição de assistente, devem ser exercitados dentro do prazo que a lei prescreve para o exercício do direito de queixa, a que se refere o art.º 115º do CP, ou seja, dentro do prazo de seis meses a contar da data em que o lesado teve conhecimento do facto típico violador da sua esfera jurídica.

Ora, a respeito da interpretação da lei processual penal diz-nos Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I volume, Coimbra Editora:
“Nas suas linhas essenciais, portanto, o problema da interpretação da lei não ganha, em direito processual penal, autonomia: trata-se aí, como em geral, da necessidade de uma actividade – prévia em relação à aplicação do direito e que, por isso mesmo em nada contende com o carácter não substantivo desta operação – tendente a descortinar o conteúdo de sentido ínsito em um certo texto legal. Só convirá aqui relembrar dois pontos já devidamente acentuados: é o primeiro o da relevância que, para uma interpretação axiológica e teleológica nos domínios da nossa disciplina, assume a consideração do fim do processo; é o segundo o da necessidade de, por ser o direito processual penal verdadeiro «direito constitucional aplicado», se tomar na devida conta o princípio da interpretação conforme à Constituição.”

Nessa tarefa, tem de se ter em mente que a letra da lei não é só o ponto de partida da interpretação mas um elemento irremovível de toda a interpretação. O artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil diz que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso.
Em traços gerais, é esta a matriz de resposta à questão em apreço neste recurso.
Sobre a questão, sabemos que são duas corrente em confronto: uma “minimalistas”, que é a tese do despacho recorrido e outra “maximalista”, que é defendida pelo recorrente, tendo ambas respaldo jurisprudencial e doutrinário.
Em defesa da tese do despacho recorrido, pronunciou-se designadamente Paulo Pinto de Alburquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2007, Lisboa: Universidade Católica Editora, pp. 211, em anotação ao Art.º 50.º do CPPenal.

Na jurisprudência, encontramos, entre outros, os Ac. da RP de 25-09-2019, Processo: 06/19.3T9PRT-A.P1, Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO, e de 08-07-2009, Processo: 506/08.3PAVFR-A.P1, Relator: ÂNGELO MORAIS e Ac. da RG de 11-09-2017, Processo: 660/16.0T9BGGGC-A.G, Relator: FÁTIMA FURTADO.

Contudo, e com todo o respeito que é devido, julga-se que esta interpretação não encontra suporte no texto da lei.
De facto, julga-se, a letra do n.º 2 do artigo 68.º e do 254 n.º 2 do CPP não deixam margem para ambiguidades. De forma inequívoca indicam o período dentro do qual o requerimento para constituição de assistente, nos crimes dependentes de acusação particular, deve ser apresentado, marcando o início desse prazo e não fazendo nenhuma menção ao prazo estabelecido para a apresentação da queixa crime.
O que se pretende com a imposição daquele prazo e daquela notificação, é assegurar que, em caso de denúncia de factos integradores de crime de natureza particular, o Ministério Público comprometa recursos numa investigação sem a segurança de que, quem os denunciou, tem interesse no procedimento criminal.
Ora, se houve necessidade de indicar um prazo - o de dez dias após a notificação nos termos do art.º 254º do CPP – e nenhum outro é referido, é porque não se admite outro, para além, evidentemente, do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal.
As únicas limitações que encontram apoio na letra da lei são as que resultam do art. 68º, nº 3 do CPP.
Por outro lado, a preclusão do direito de o ofendido se constituir assistente, pelo não exercício do direito no prazo previsto no art.º 115 n.º 1 do CP, comportaria uma restrição inadmissível ou desproporcionada do direito do ofendido se constituir assistente, constitucionalmente consagrado.

Vejamos que se conferiu legitimação constitucional ao direito do ofendido intervir no processo, no n.º 7 do artigo 32.º, onde se escreve que “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei”.

Esse direito ficaria, de facto, injustificadamente dependente de uma atuação por parte da autoridade policial ou judiciária, fora do controlo do requerente, esvaziando de conteúdo tal direito.

Lê-se no Ac RC de 05-01-2011, Processo: 256/09.3GBFND-A.C1, Relator: JORGE JACOB:
A omissão de um dever de informação por parte de uma autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal conduzia à extinção do direito do queixoso a ver judicialmente apreciada a queixa que apresentou é entendimento que colide com a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, garantida pelos comandos vertidos nos nºs 1 e 2 do art. 20º da Constituição da República Portuguesa, que a todos asseguram o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e a todos garantem, nos termos da lei, o direito à informação jurídica. O incumprimento daquele dever de informação por parte do órgão de polícia criminal que recebeu a queixa não pode ser resolvido em desfavor da queixosa, sob pena de atropelo aos referidos preceitos constitucionais.”

Parece-nos, pois, que a leitura feita pelo M.º P.º no recurso que apresentou é aquela que encontra apoio legal e constitucional.
Assim, o prazo para a constituição ode assistente inicia-se apenas aquando da notificação nos termos e para os efeitos n.° 4 do 246.° do CPP e pode ter lugar até ao limite da prescrição do direito de queixa.
Tal advertência é obrigatória independentemente de a denúncia vir subscrita por mandatário judicial.
Trata-se de uma interpretação que assegura o “fair process” pressuposto pelo conceito de Estado de Direito e que, como salienta o recorrente, é “consentâneo com a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, plasmada nos art.2s 18.2, 20.2/l e 32.2/7, da Constituição da República Portuguesa, no art.2 8.2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no art.2 6.2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que a todos assegura o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.”
E, acrescentamos, este entendimento é também o que melhor se coaduna com os princípios da previsibilidade e da confiança que são uma das vertentes do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2.ª da Constituição.
Com efeito, não é compreensível que um cidadão apresente tempestivamente queixa crime e que, por inércia dos serviços, seja notificado para se constituir assistente depois de decorrido o prazo para o exercício do direito de queixa, como sucedeu no caso em apreço, e que, requerendo nesta altura e no prazo concedido a sua intervenção nessa qualidade, veja o seu direito cerceado de modo definitivo, impedindo-o, de forma irremediável, de dar continuidade ao procedimento iniciado com a queixa oportunamente apresentada.

Sobre o conteúdo do princípio geral da segurança jurídica, e da confiança escreve Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, p.257.:
O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso desde cedo se consideram os princípios da segurança e da protecção jurídica da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito (…).O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo a ideia de protecção de confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem o direito de poder confiar em que aos seus actos ou decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico”.

Neste sentido se pronunciou também Pedro Soares Albergaria, em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo I, pág. 805, onde se lê:
«O prazo para constituição como assistente por crime cujo procedimento dependa de acusação particular (arts. 50.º/1 e 285.º), de 10 dias, conta-se a partir da advertência pela autoridade judiciária ou pelo OPC de que aquela constituição é obrigatória e dos procedimentos a observar (arts. 68.°/2 e 246.º/4), de modo que a advertência em causa é condição de início do cômputo dele: não sendo feita, o prazo não se inicia e o candidato a assistente estará sempre em condições de se constituir como tal.

Também na jurisprudência encontramos vários Acórdãos no mesmo sentido, de que são exemplo o Ac. da RP de 03-05-2023, Processo: 919/20.2PWPRT.P1 (“Sendo apresentada queixa reportada a factos suscetíveis de integrar a prática de crime de natureza particular e de crime de natureza semi–pública, o ofendido pode requerer a sua constituição como assistente em qualquer altura do processo, nos termos do artigo 68.º, n.º 3, do Código de Processo Penal”) e o Ac. da RC de 05-01-2011, Processo: 256/09.3GBFND-A.C1, Relator: JORGE JACOB (“Não tem qualquer suporte legal a orientação de que em caso de inobservância pela entidade que recebe a queixa, do dever de advertência para a obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar, no caso de crime particular, conduz ao protelamento da admissibilidade da constituição de assistente apenas até ao termo do prazo em que poderia ser apresentada a queixa”).

Assim, o que efectivamente releva, no caso vertente, é que a queixa foi tempestivamente apresentada.

E uma vez que a omissão do órgão de polícia criminal veio a ser suprida antes de decorrido o prazo de prescrição do procedimento criminal, tendo a ofendida requerido a sua constituição como assistente no prazo que lhe foi assinalado para o efeito, deverá esse acto considerar-se válido, por tempestivamente praticado.

Deve, pois, proceder o recurso no que toca ao reconhecimento da admissão da ofendida a intervir nos autos como assistente
*

IV–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido e admitindo-se AA a intervir nos autos como assistente relativamente ao crime de natureza particular denunciado.
Sem tributação.
*


Lisboa, 21 de maio de 2024


(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)


Sara Reis Marques
(Juíza Desembargadora Relatora)
Carla Francisco
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Manuel Advínculo Sequeira
(Juíza Desembargadora Adjunta)