Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1723/2004-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: ÓNUS DA ALEGAÇÃO
FACTO CONSTITUTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - Impende sobre as partes o ónus de alegar os factos que integram a sua causa de pedir ou que fundamentam as excepções.
II - O princípio do dispositivo veda que o Tribunal se substitua às partes, colmantando, por qualquer meio a ausência de alegação por aquelas dos factos essenciais.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I MARIA, vem nos autos de acção declarativa com processo ordinário que intentou contra CENTRO NACIONAL DE PENSÕES, interpor recurso do despacho saneador sentença que absolveu o Réu do pedido, por falta de alegação de todos os factos integrantes dos requisitos prevenidos no artigo 2020º do CCivil, apresentando as seguintes conclusões:
- Os autos não continham elementos suficientes para uma decisão segura e conscienciosa;

- Por conseguinte, a sentença saneador recorrida não dispõe de todos os elementos suficientes para decidir, como decidiu, uma vez que não se esgotaram os meios de prova e havia necessidade de averiguar factos;

- Não se verifica a apontada falta de alegação de factos donde pudesse resultar a verificação de todos os requisitos a que alude o Art. 2020º do Código Civil, com referência ao Art. 2009º nº1 do mesmo diploma, conducentes à improcedência da acção;

- Pois, infere-se, com clareza do novo articulado apresentado pela ora Apelante que esta, uma vez que não mantém quaisquer contactos com os seus familiares desde os seus 22 anos de idade, desconhece e, como tal, é-lhe vedada a possibilidade de, per si, comprovar o que alega, isto é, que os seus familiares não têm possibilidade de prover o seu sustento;

- Por esse facto, impossibilitada de, per si, provar a impossibilidade de obter alimentos do seu pai e irmãos, a Apelante requereu, ao abrigo do disposto no Art. 266º, conjugado com o Art. 519º, ambos do C.P.C., a cooperação do Tribunal no sentido de ser feita prova da insuficiência económica destes, mediante a notificação daqueles para virem aos autos juntar declarações de IRS, tendo sido ordenado que, para o efeito, fosse oficiada a GNR;

- Resulta claro do ofício da GNR de Mem Martins quais os rendimentos auferidos pelos familiares da ora Apelante, pelo que se concluiu que estes não tinham possibilidade de prover o sustento da ora Apelante;

- Contudo, caso assim não fosse entendido, a ora Apelante novamente requereu, ao abrigo dos Arts. 266º e 519º, ambos do C.P.C., a notificação das respectivas Repartições de Finanças e das Juntas de Freguesias para virem aos autos juntar fotocópias das Declarações de IRS dos seus familiares e informar qual a composição dos agregados familiares;

- É indiscutível que a ora Apelante alegou factos que a levaram a concluir não poder obter alimentos nos termos do Art. 2009º alíneas a) a d) do Código Civil e, por conseguinte, ter direito a recebê-los, nos termos do Art. 2020º do mesmo diploma;

- Sucede que, por se tratarem de factos reservados e secretos – apuramento de bens, rendimentos e despesas mensais - os quais, mercê de desavenças familiares, não lhe podem ser facultados directamente e voluntariamente pelos seus familiares, utilizou um mecanismo ao seu dispor, previsto nos Arts. 266º e 519º, ambos do CPC, para a coadjuvarem a fazer prova do alegado;

- Sem prejuízo de, para tal, também, poder recorrer, na fase em que se encontrava o processo, a outros meios, nomeadamente à prova testemunhal;

- Ora, com o saneador sentença não só lhe foi vedada a requisição de determinados documentos às Repartições de Finanças e Juntas de Freguesia, como também lhe foi negado o direito de apresentar quaisquer outros meios probatórios;

- Houve violação do disposto no Art. 510º nº 1 al. b) do C.P.C., uma vez que, atendendo à complexidade da produção de prova que não acabou de ser feita na sua totalidade – vide ofício da GNR de Mem Martins –, apesar de requerida pela ora Apelante e sem prejuízo de esta ainda o poder ter feito, conforme Arts. 508º A nº2 al. a) e 512º, ambos do C.P.C., não deveria o Tribunal ter decidido do mérito da causa pois impunha-se o prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados;

Não houve contra alegações.

Vejamos.

No caso de união de facto, o direito a alimentos depende das seguintes condições: viver o alimentando, no momento da morte do companheiro não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, em more uxorio com este há mais de dois anos; não puder o alimentando obter alimentos de outra pessoa nos termos legais, cfr artigo 2020º, nº1 do CCivil.

E, nos termos dos artigos 1º e 8º do DL 322/90, de 18 de Outubro, 1º, 2º e 3º do Decreto Regulamentar 1/94, de 18 de Janeiro, beneficiará da protecção pela aplicação do regime geral da segurança social, quem demonstre que vivia com o falecido, beneficiário da Segurança Social, em condições análogas às dos cônjuges, há pelo menos dois anos antes do óbito; que carece de alimentos; que não tem meios para os obter; que a herança deixada pelo falecido não lhos pode prestar; e que não os pode obter das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do nº1 do artigo 2009º do CCivil.

In casu, a Autora não alegou nos autos, a factualidade atinente à demonstração de todos aqueles requisitos, os quais são cumulativos.

Assim, não obstante tenha alegado que vivia em comunhão de cama, mesa e habitação com o falecido há mais de quinze anos, bem como factos conducentes à constatação da sua necessidade de alimentos (cfr artigos 1º a 17º da Petição Inicial), não alegou quaisquer factos de onde se pudesse inferir que os não pudesse obter das pessoas aludidas no artigo 2009º, nº1 do CCivil, cfr Ac STJ de 29 de Junho de 1995, CJ, 1995, tomo II/147.

Quer dizer, não obstante o Tribunal tivesse convidado a Autora, ora Apelante, a suprir as deficiências da sua Petição Inicial, na Segunda Petição apresentada, a Apelante manteve a indefinição no que tange aos seus familiares, quer dizer, a mesma desconhece se os mesmos têm ou não capacidade para lhe satisfazerem alimentos, a este propósito veja-se a matéria alegada nos artigos 18º a 26º, de onde apenas decorre que a Apelante não mantém quaisquer contactos com os seus familiares mais próximos e da qual não se pode inferir que esses familiares não possam efectivamente suprir as carências daquela.

Ora, a prova que a Apelante pretendeu fazer, através do auxílio dos organismos oficiais, sobre a situação económica dos seus familiares, obrigados a alimentos, não pode substituir o dever de alegação que sobre si impende, dos factos que consubstanciam o direito que se arroga.

Efectivamente, nos termos do normativo inserto no artigo 264º, nº1 do CPCivil é sobre as partes que recai o ónus de «alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.»: é o princípio do dispositivo, que enforma o nosso processo civil, não podendo o Tribunal «substituir-se» às partes, colmatando a ausência de factos essenciais à composição do litígio.

É que, uma coisa é ónus de alegação, outra coisa é o ónus da prova, e este só pode funcionar na medida em que se deu cumprimento prévio àquele: isto é, sobre as partes impende o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, artigo 342º, nº1 do CCivil.

Se se seguisse à risca o entendimento da Apelante, então nunca seria necessária a alegação de qualquer factualidade, bastando apenas as partes formularem um pedido e juntarem, ou requisitarem a efectivação de prova dos hipotéticos factos que dariam origem ao petitório, fazendo-se impender sobre o Tribunal, quiça, um dever de premonição, ou de presunção sobre aqueles: quer dizer, a parte não alega os factos, mas se pedir a efectivação de determinada prova é porque quis alegar isto ou aquilo.

Não pode ser.

A Lei faz depender a concessão de determinados direitos, da verificação de determinados requisitos, sendo que as partes são obrigadas a alegar todas as circunstâncias factuais de onde o Tribunal os possa vir a extrair.

No caso sub judice, não obstante a omissão daquele dever pela Apelante, o Tribunal, convidou-a a suprir as deficiências, sendo que, na segunda Petição Inicial apresentada, a Apelante manteve as mesmas, as quais pretendeu suprir, posteriormente, através da efectivação de prova, como se a obtenção pelo Tribunal de determinados elementos, pudesse colmatar aquela deficiente alegação.

Ora, como deflui do normativo inserto no artigo 513º do CPCivil «A instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.», sendo que «As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.», artigo 341º do Ccivil.

Quer dizer, não é admissível qualquer prova sem que haja no processo a base factual da mesma e no caso sub especie, a Apelante não alegou as circunstâncias fácticas de onde se pudesse concluir que a mesma não pode obter alimentos dos seus familiares mais próximos por os mesmos não terem quaisquer possibilidades económicas.

Não há qualquer censura a fazer á sentença sob recurso, improcedendo in totum as conclusões.

III Destarte, julga-se improcedente a Apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa.29/04/04

(Ana Paula Boularot)

(Lúcia de Sousa)

(Luciano Farinha Alves)