Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4422/07.8TVLSB-C.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: DESPEJO IMEDIATO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – O incidente previsto nos nºs 4 e 5 do art. 14 da lei 6/2006 (NRAU), pressupõe a falta de pagamento de rendas e não a falta de satisfação de uma indemnização pela mora quando a renda já fora paga.
II – Estará então em causa a falta de pagamento da renda na pendência da acção de despejo, aplicando-se o nº 4 do art. 14 sempre que o arrendatário não tenha efectuado o pagamento ou depósito de uma renda vencida há mais de 3 meses – a mora deve ter duração superior a 3 meses.
III – Neste incidente sempre cumprirá ao juiz controlar a verificação dos respectivos pressupostos de aplicação, desde logo a falta de cumprimento da obrigação de pagamento das rendas no circunstancialismo previsto na lei.
IV - Sem o pressuposto da falta de pagamento ou depósito da renda por um período superior três meses após o respectivo vencimento o incidente não tem fundamento sustentável, não podendo proceder.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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            I – “A” intentou acção de despejo com processo declarativo ordinário contra «B, Sociedade Unipessoal, Lda.» e “C”.
            No decurso daquele processo, por requerimento entrado em juízo em 23-3-2010 a A. veio expor e requerer:
- que no âmbito do contrato de arrendamento que havia sido celebrado as rendas se vencem no 1º dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que respeitam, entrando o inquilino em mora decorridos oito dias sobre o data do vencimento e que decorridos aqueles oito dias o senhorio tem o direito a exigir uma indemnização correspondente a 50% do que for devido;
- que correndo a acção desde Outubro de 2007 as RR. pagaram, sem indemnização, a renda relativa ao mês de Junho de 2008 apenas em 14 de Maio do mesmo ano e que no mês de Janeiro de 2010 a renda foi paga sem indemnização em 17 de Dezembro de 2009.
Requereu a notificação das RR. nos termos do nº 4 do art. 14 da lei 6/2006.
As RR., notificadas do requerimento da A., por requerimento de 15-4-2010, admitiram os atrasos no pagamento das rendas por ela alegados, acrescentaram ter entretanto procedido ao depósito dos valores correspondentes às indemnizações, liquidando os valores em dívida e alegaram que a sua mora no pagamento das rendas durou apenas alguns dias e nunca período superior a três meses, além de que no momento em que a A. apresentou o seu requerimento nenhuma das rendas já estava em mora, apenas não havendo sido paga a indemnização. Concluíram que nunca estiveram preenchidos os pressupostos de aplicação do incidente e que a forma que a A. utilizou para se aproveitar do regime previsto na lei sempre consubstanciaria abuso de direito, além de que, uma vez satisfeita a indemnização devida, o incidente deveria ser declarado extinto por inutilidade superveniente.
Posteriormente, por requerimento de 21-6-2010, veio a A. requerer que se decretasse o despejo imediato do locado, alegando que as RR. só em 17-3-2010 procederam ao depósito da renda relativa ao mês de Abril, sem inclusão da indemnização pela mora; fundou-se nas disposições conjugadas dos nºs 3, 4 e 5 da lei 6/2006, de 27-2, bem como nos arts. 1048, nº 2 e 1083, nº 3, do CC.
As RR., por requerimento de 12-7-2010, admitiram o atraso no pagamento da renda relativa ao mês de Abril, referiram que em 25-6-2010 procederam ao depósito da indemnização e salientaram nunca se ter verificado uma situação de mora por prazo superior a três meses, bem como que os requerimentos da A. foram apresentados apenas com o fundamento de se encontrar em dívida a indemnização pela mora no pagamento das rendas, sendo que mesmo esta não esteve em dívida por mais de três meses, improcedendo o incidente por falta de verificação dos respectivos pressupostos legais. Reiteraram a existência de abuso de direito e pretenderam a extinção do incidente por inutilidade superveniente da lide.
A A. respondeu, pugnando pela declaração da resolução do contrato e por que fosse decretado o despejo imediato, bem como pela passagem da certidão prevista no nº 5 do art. 14 da lei 6/2006.
Foi proferido despacho que decidiu nos seguintes termos:
“… julgo procedente, por provado o incidente de despejo imediato e, consequentemente, decido:
- decretar o despejo imediato da loja com os números dois-13 e dois-C do prédio urbano sito na Avenida …, n.° 2, n.° 2-A, n.° 2-B, n.° 2-C e n.° 2-D, tornejando, para a Avenida …, n.° 23, n.° 23-A e n.° 23-B, freguesia de …, concelho de Lisboa, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n° 00000;
- condenar as Rés "B — Sociedade Unipessoal, Lda." e “C” a restituir à Autora “A” o locado completamente devoluto, livre de pessoas e de bens”.
Deste despacho agravaram as RR. concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
A) Da Sentença recorrida resulta com toda a evidência que o Tribunal a quo proferiu a decisão de despejo imediato sem que tenha resolvido todas as questões que as Partes, nomeadamente as ora Agravantes, submeteram à sua apreciação, e sobre as quais não se poderia abster de decidir por serem absolutamente fundamentais para a boa decisão do incidente.
B) Conforme resulta expressamente da Oposição ao incidente, as Agravantes suscitaram, pelo menos, três questões que o douto Tribunal a quo deveria ter apreciado e não o fez:
i) A não verificação do preenchimento dos requisitos legais de que depende o decretamento do despejo imediato, mormente os que resultam do artigo 14° n°s 4 e 5 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro;
ii) A verificação da invocada excepção de abuso do direito;
iii) A inutilidade superveniente da lide.
C) O Tribunal a quo estava igualmente obrigado a decidir a questão da inadmissibilidade do articulado de resposta à Oposição apresentado pela ora Agravada em 26/07/2010 e cujo desentranhamento foi requerido pelas ora Agravantes em 21/1012010.
D) Pelo que, o douto Tribunal a quo violou o seu dever decorrente do artigo 660° n°2 1° parte do CPC, sendo nula a Sentença recorrida nos termos da primeira parte do art. 668° n° 1 alínea d) do CPC.
E) Acresce que no que concerne à matéria de facto considerada assente, impunha-se ao Tribunal a quo considerar assentes outros factos com indubitável "relevo para a boa decisão do incidente" face aos elementos documentais constantes dos autos e à factualidade descrita no requerimento de dedução do incidente e na Oposição apresentada pelas ora Agravantes, os quais nem tão pouco foram objecto da ponderação que se exigia para a decisão a proferir, nomeadamente os seguintes:
i) "A mora no pagamento da renda relativa ao mês de Abril de 2010 não se verificou por período superior a três meses" (cfr. Doc. n° 1 junto pela A./Requerente com o Requerimento de dedução do incidente e escritura pública de 20/07/1961 constante do instrumento de fls. 42-47)
ii) "Em 21/06/2010 nenhuma renda do locado estava por liquidar"
iii) "Em 25/06/2010 foi depositado na conta bancária da A./Requerente o montante correspondente à indemnização devida pela mora no pagamento da renda relativa ao mês de Abril de 2010" (cfr. Doc. n°1 junto com a Oposição)
iv) "As RR./Requeridas pagaram em singelo as rendas do locado relativas a Maio, Junho e Julho de 2010" (cfr. Docs. n°2, 3 e 4 juntos com a Oposição)
v) “A A./Requerente não recusou o pagamento em singelo das rendas do locado relativas a Maio, Junho e Julho de 2010".
vi) "Em 23/03/2010 a A./Requerente já tinha conhecimento de que a renda relativa ao mês de Abril de 2010 tinha sido paga em mora pelas RR./Requeridas".
vil) "No requerimento apresentado nos autos em 23/03/2010 a A./Requerente não se referiu à indemnização pela mora no pagamento da renda do locado relativa ao mês de Abril de 2010".
F) O Tribunal a quo proferiu a decisão recorrida fazendo incorrecta interpretação e aplicação do regime legal referente ao despejo imediato, sendo que, não só a matéria de facto considerada assente é manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão proferida, como a Sentença recorrida padece de desconformidade entre a decisão e o direito substantivo aplicável.
G) A conclusão tirada na sentença de que "por mais de uma vez, a locatária incorreu no não pagamento pontual da renda" e a sua subsunção ao disposto no artigo 1048° do Código Civil não constituem fundamento bastante para a apreciação e procedência do incidente de despejo imediato, desde logo porque mesmo numa situação em que se verifique o preenchimento da sua previsão este dispositivo legal não determina como consequência o despejo imediato do locado.
H) Face à deficiente e desadequada fundamentação de facto e de Direito que a sustenta, é inequívoco que a decisão constante da Sentença recorrida está inquinada por um manifesto erro de julgamento do douto Tribunal a quo.
I) O douto Tribunal a quo não poderia ter decretado o despejo imediato do locado, porquanto não se encontraram preenchidos os requisitos legais de que depende, mormente os que resultam do artigo 14° n°s 4 e 5 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, uma vez que, em 21/06/2010 não havia qualquer renda do locado em mora, a renda relativa a Abril de 2010 já se encontrava liquidada desde 17/03/2010 não se prolongando a mora por período superior a três meses, e nem tão pouco as Agravantes se encontravam em mora, muito menos por período superior a três meses, relativamente à obrigação de indemnizar nos termos do artigo 1041° n°1 do Código Civil.
J) Resulta inequivocamente da própria letra do artigo 14° n°4 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, que o despejo imediato só ocorre quando exista mora no pagamento das rendas e esta se prolongue "por um período superior a três meses" o que não aconteceu no caso dos autos.
L) Resultando também da expressão "e ainda" que para que se possa aplicar o artigo 14° n°4 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, não basta que esteja em dívida a indemnização a que alude o artigo 1041° n°1 do Código Civil, sendo condição sine qua non que haja mora no pagamento de uma ou mais rendas e por um período superior a três meses.
M) Através da necessária interpretação sistemática e da análise da Ratio legis do artigo 14° n° 4 e 5 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, é possível constatar que o funcionamento deste mecanismo legal não se coaduna com os preceitos específicos do nosso ordenamento jurídico civilístico aplicáveis à mora no cumprimento de obrigações indemnizatórias.
N) À luz dos próprios princípios gerais do Direito seria inaceitável uma interpretação que estendesse a aplicação e consequências do artigo 14° n° 4 e 5 da Lei 6/2006 a situações em que o incumprimento do arrendatário se refere apenas à obrigação de indemnização prevista no artigo 1041° n°1 do Código Civil.
O) Ainda que assim não se entendesse, o que se concebe sem conceder e por mera cautela de patrocínio, em 21/06/2010 as ora Agravantes nem tão pouco estavam em mora, muito menos por período superior a três meses, no pagamento da indemnização pela mora na liquidação da renda do locado relativa ao mês de Abril de 2010, nos termos do art. 1041° n°1 do Código Civil, a qual foi liquidada em 25/06/2010.
P) Isto porque o direito à indemnização é um direito potestativo e disponível, cuja satisfação "o locador tem o direito de exigir", sendo distintos o momento de constituição do direito indemnizatório e o momento em que se inicia a mora do arrendatário no cumprimento desta obrigação, pelo que, a mora do arrendatário no cumprimento da obrigação indemnizatória só se inicia quando o locador exige a satisfação do seu direito à indemnização decorrente da mora no pagamento das rendas, sendo este um direito que não se constitui automaticamente.
Q) Ainda que se entendesse estarem preenchidos os requisitos legais de que depende o decretamento do despejo imediato, o que se concebe sem conceder e por mera cautela de patrocínio, o douto Tribunal a quo sempre se deveria ter debruçado sobre a excepção de abuso do direito alegada pelas Agravantes na sua Oposição, impondo-se o indeferimento do pedido de despejo imediato face à actuação da Agravada que excedeu gritantemente os limites impostos pela boa fé e em manifesto abuso do direito.
A A. contra alegou nos termos de fls. 40 e seguintes.
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II Tendo em conta que, atento o disposto nos arts. 684, nº 3, 690, nº 1, e 660, nº 2, todos do CPC, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação,  as questões que se colocam são as seguintes:
- se o despacho recorrido é nulo, nos termos da 1ª parte do art. 668, nº 1-d) do CPC;
- se para a correcta decisão haveriam de ser considerados como provados outros factos, designadamente os mencionados pelas agravantes;
- se estão verificados os pressupostos previstos nos nºs 4 e 5 do art. 14 do NRAU.
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III - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Com data de 20/07/1961, foi outorgada a escritura pública constante do instrumento de fls. 42-47, denominada "arrendamento", cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido:
"compareceram como primeiro outorgante, “D” (..); e como segundos outorgantes, “E” (...); e “F” (..), que intervêm neste acto como únicos sócios, e em representação da sociedade por cotas de responsabilidade limitada "B, Limitada" (...).
Pelo primeiro outorgante, foi dito: que dá de arrendamento à sociedade representada pelos segundos outorgantes, a loja, com os números dois-B e dois-C, do prédio urbano sito nesta cidade, na Avenida …, inscrito na matriz da freguesia do … sob o artigo …, arrendamento que será regido pelas condições dos artigos seguintes:
Primeiro: o prazo do arrendamento é de seis meses, a começar no dia um de Agosto do corrente ano; Segundo: A loja arrendada destina-se ao exercício de qualquer ramo de negócio, com excepção do de drogaria, carvoaria, vinhos, talho, ferro-velho, agência funerária e de qualquer outro ramo que dependa de autorização especial por parte de autoridades oficiais; Terceiro: A inquilina pagará de renda mensal a quantia de mil e seiscentos escudos, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito, na residência do senhorio, ou na de quem legalmente o representar, nesta cidade (...); Quinto: A inquilina fica obrigada a conservar em bom estado a loja arrendada e a entregá-la, findo o arrendamento, sem deteriorações, que não sejam as inerentes ao uso normal, ficando responsável por todos os danos que ali sejam causados; Sexto: Nenhumas obras ou benfeitorias se poderão fazer na loja arrendada, sem autorização escrita do senhorio e as que se fizerem ficarão desde logo a pertencer ao prédio, sem que possam ser levantadas ou destruídas e por elas pedir-se qualquer indemnização ou alegar-se retenção; Sétimo: Fica proibida a sublocação. Pelos segundos outorgantes, foi dito: Que aceitam, para a sociedade sua representada este arrendamento nos termos expostos (..). Li e expliquei, em voz alta, simultaneamente na presença de todos, aos outorgantes, o conteúdo e efeitos desta escritura".
2.         Por despacho de 15/07/2010, foi declarado extinto por inutilidade superveniente da lide um incidente de despejo imediato, por ter sido paga a renda de Junho de 2008 com o acréscimo de 50%.
3.         Em 17/03/2010, as Rés procederam ao pagamento da renda de Abril.
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IV – 1 –  A nulidade por omissão de pronúncia, prevista no art. 668, nº1-d) do CPC, traduz-se no incumprimento por parte do julgador do dever prescrito no nº 2 do art. 660 do mesmo Código, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada.
Consoante o nº 3 do art. 666 tal é aplicável, até onde seja possível aos próprios despachos.
Saliente-se, todavia, que as mencionadas «questões», enquanto fundamento de nulidade, não abrangem os argumentos ou as razões jurídicas invocados pelas partes. «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» ([1]).
O Tribunal de 1ª instância fundamentou nos seguintes termos, no que ao direito concerne, a sua decisão:
“Dispõe o artigo 1048.° do Código Civil sob a epígrafe “falta de pagamento da renda ou aluguer", que:
"1 – O direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da acção declarativa ou para a oposição à execução, destinadas a fazer valer esse direito, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.°1 do artigo 1041.º.
2 – Em fase judicial, o locatário só pode fazer uso da faculdade referida no número anterior uma única vez, com referência a cada contrato.
3 – O regime previsto nos números anteriores aplica-se ainda à falta de pagamento de encargos e despesas que corram por conta do locatário".
Assim sendo, por mais de uma vez, a locatária incorreu no não pagamento pontual da renda.
Deste modo, deverá ser decretado o despejo imediato do locado”.
Como vimos, as agravantes haviam defendido faltarem os pressupostos do despejo imediato, designadamente por nunca se ter verificado uma situação de mora por prazo superior a três meses, existir abuso de direito e ocorrer a extinção do incidente por inutilidade superveniente da lide.
Às “questões” adiantadas pelas agravantes - que não se reconduzem a simples argumentos apresentados pela parte e que não se encontravam, aliás, prejudicadas pela solução adoptada - não foi, efectivamente, feita qualquer referência no despacho recorrido.
Mesmo entendendo que alguma destas questões não constituiria oposição relevante no âmbito do incidente, impunha-se que tal fosse dito ([2]).
Assim, porque o despacho não se debruçou sobre tal, o mesmo é nulo, nos termos das disposições acima indicadas.
Contudo, de acordo com o art. 715 do CPC (aplicável por força do art. 749 do mesmo Código) o tribunal de recurso não deixará de conhecer do objecto do agravo, suprindo-se aquela nulidade.
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IV – 2 – Na conclusão E) da sua alegação de recurso indicam as agravantes o que consideram factos relevantes para a decisão do incidente e que não foram ponderados na decisão recorrida, apesar de comprovados nos autos.
Vejamos.
As agravantes aludem, por vezes, a “conclusões” que não propriamente a factos – por exemplo, quando em E – ii) concluem que «Em 21/06/2010 nenhuma renda do locado estava por liquidar». Por outro lado, alguns “factos” poderão surgir como “duvidosos”, quer quanto ao acordo das partes, quer quanto à respectiva relevância – por exemplo, a menção, em E - vi) de que «Em 23/03/2010 a A./requerente já tinha conhecimento de que a renda relativa ao mês de Abril de 2010 tinha sido paga em mora pelas RR./Requeridas». Daí, tais elementos sugeridos pelas agravantes, não poderem ser elencados entre a factualidade a ter em conta.
De qualquer modo existem elementos de facto com interesse para a decisão e que não foram considerados – alguns deles até nem concretamente sugeridos pelas agravantes.
Assim, por resultarem de documentos juntos aos autos - respectivamente a fls. 86, 114, 115, 116 e 117 - e das posições assumidas pelas partes no processo, aditam-se os seguintes factos aos factos julgados provados pelo Tribunal de 1ª instância:
4 – As RR. somente em 14 de Maio de 2008 pagaram a renda relativa ao mês de Junho e em 17 de Dezembro de 2009 pagaram a renda relativa ao mês de Janeiro de 2010.
5 - Em 13-4-2010 as RR. procederam ao depósito na conta bancária da A. da quantia de € 66,37 que quiseram fazer corresponder ao pagamento da indemnização de 50% pela mora no pagamento das rendas de Junho de 2008 e Janeiro de 2010.
6 – Em 25-6-2010 as RR. procederam ao depósito na conta bancária da A. da quantia de € 33,19 que quiseram fazer corresponder à indemnização pela mora no pagamento da renda relativa a Abril de 2010.
7 – As RR. procederam ao depósito na conta da A. do valor de € 66,37 correspondente ao montante da renda mensal, respectivamente em 6-4-2010, 4-5-2010 e 2-6-2010.
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IV – 3 – O regime consignado no art. 58 do RAU em que surgia regulado o incidente de despejo imediato a que dava lugar a falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção de despejo – aplicável em todas as acções de despejo, inclusive as que se fundamentavam na falta de pagamento de rendas – surge em termos substancialmente diferentes nos nºs 3 a 5 do art. 14 do NRAU.
Estabelece-se no nº 3 que na pendência da acção de despejo as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais, regulando-se na sequência o que respeita à falta de pagamento da renda na pendência daquela acção.
Este regime é o aplicável ao caso dos autos em que nos encontramos na pendência de uma acção de despejo iniciada em 2007 ([3]).
Sucede que os nºs 4 e 5 do art. 14 do NRAU são inovadores evidenciando um registo diferente do que resultava do aludido art. 58 e “implicando um corte com o regime da acção incidental de despejo imediato” ali regulada, prevendo-se agora no caso de mora mas apenas superior a três meses um “procedimento simplificado” destinado à obtenção de título executivo, um «caso específico de formação de título executivo». Saliente-se que na regulamentação constante dos nºs 3 e 4 do art. 14 da NRAU ao invés do pedido de despejo imediato o senhorio deve requerer a notificação do inquilino para em 10 dias proceder ao pagamento ou depósito das rendas e indemnização, pelo que estaremos perante um pedido (pelo menos implícito) de despejo/resolução do contrato de arrendamento formulado ao contrário ([4]).
Concretamente diz-nos o nº 4 do referido art. 14: «Se o arrendatário não pagar ou depositar as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período superior a três meses, é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância de indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas do levantamento do depósito, que são contadas a final».
Prescrevendo o nº 5 que se dentro daquele prazo, os montantes referidos no número anterior não forem pagos ou depositados, o senhorio pode pedir certidão dos autos relativa a estes factos, a qual constitui título executivo para efeitos de despejo do local arrendado, na forma de processo executivo comum para entrega de coisa certa».
Está em causa a falta de pagamento da renda na pendência da acção de despejo, aplicando-se o nº 4 do art. 14 sempre que o arrendatário não tenha efectuado o pagamento ou depósito de uma renda vencida há mais de 3 meses – a mora deve ter duração superior a 3 meses.
A lei menciona, tão só, a falta de pagamento de rendas ([5]), mas já tem sido igualmente referida a indemnização pela mora. Assim, Gravato Morais ([6]) afirma: «Decorrido, sem sucesso (do ponto de vista do senhorio), o mencionado período sem que haja o pagamento das rendas em atraso (e da correspondente indemnização) – pois há aqui uma situação de mora juridicamente relevante (a partir do “oitavo dia”) – o senhorio pode juntar requerimento aos autos onde pede a notificação do arrendatário, nos termos e para os efeitos do art. 14.º, nºs 4 e 5 NRAU».
Afigura-se-nos, todavia, que atenta a letra da lei o nº 4 do art. 14 se aplicará sempre que o arrendatário não tenha efectuado o pagamento ou depósito de uma (ou mais) renda(s) vencida(s) há mais de três meses ([7]).
Certo é que notificado o arrendatário nos referidos termos, este dispõe de um prazo de 10 dias para o pagamento da renda e da indemnização, comprovando-o no processo.
Assim, menciona Gravato Morais ([8]) que o «arrendatário dispõe de um prazo (complementar, já que, por um lado a isso já estava obrigado desde a mora juridicamente relevante, e, por outro, já decorreu o período de favor de três meses) de 10 dias, a contar da data da notificação, “para proceder ao pagamento [da renda] ou ao [seu] depósito” e, “ainda da importância da indemnização devida”».
A falta de demonstração do pagamento dos montantes devidos permitirá, então, ao senhorio pedir ao tribunal e emissão de certidão relativa ao não pagamento pelo arrendatário, conferindo ao senhorio aquela certidão a possibilidade de instauração de acção executiva para entrega de coisa certa.
Já perante a demonstração do pagamento da renda e da indemnização o incidente cessará. Todavia, há quem entenda que «estando limitada na fase judicial o uso da faculdade de purgação da mora – cfr. art.º 1048, nº 2, do CC – não poderá o arrendatário que já tenha sido notificado nos termos do nº 4 do art. 14.º e usado uma vez da faculdade de purgar a mora vir, mais tarde, confrontado com um outro “incidente de despejo imediato”, usar novamente dessa faculdade, sob pena de se poderem suceder os “incidentes de despejo imediato”» ([9]).
Tecidas estas considerações genéricas destinadas ao enquadramento da situação dos autos debrucemo-nos sobre a mesma.
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IV – 4 - Resulta da factualidade apurada que nos termos do contrato de arrendamento celebrado a renda do locado deveria ser paga no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito.
Resulta, igualmente, que as RR. somente em 14 de Maio de 2008 pagaram a renda relativa ao mês de Junho do mesmo ano e em 17 de Dezembro de 2009 pagaram a renda relativa ao mês de Janeiro de 2010.
Por requerimento entrado em juízo em 23-3-2010 a A. veio requerer a notificação das RR. nos termos do nº 4 do art. 14 da lei 6/2006 e estas, notificadas do requerimento da A., em 15-4-2010, admitiram os atrasos alegados, acrescentando ter entretanto procedido ao depósito dos valores correspondentes às indemnizações, sendo que, efectivamente, em 13-4-2010 haviam procedido ao depósito na conta bancária da A. da quantia de € 66,37 que quiseram fazer corresponder ao pagamento da indemnização de 50% pela mora no pagamento das rendas de Junho de 2008 e Janeiro de 2010.
Na sequência, por despacho de 15-07-2010, foi declarado extinto por inutilidade superveniente da lide o incidente de despejo imediato, por ter sido paga a renda de Junho de 2008 com o acréscimo de 50%.
Posteriormente, por requerimento de 21-6-2010, veio a A. requerer que se decretasse o despejo imediato do locado, alegando que as RR. só em 17-3-2010 procederam ao depósito da renda relativa ao mês de Abril desse ano, sem inclusão da indemnização pela mora.
Efectivamente, foi em 17-3-2010, que as RR. realizaram o pagamento da renda de Abril desse ano. Depois, em 25-6-2010 as RR. fizeram o depósito na conta bancária da A. da quantia de € 33,19 que quiseram fazer corresponder à indemnização pela mora no pagamento da renda relativa a Abril de 2010, sendo que entretanto haviam procedido ao depósito na conta da A. do valor de € 66,37 correspondente ao montante da renda mensal, respectivamente em 6-4-2010, 4-5-2010 e 2-6-2010.
Como foi referido é nosso entendimento que o nº 4 do art. 14 se aplicará sempre que o arrendatário não tenha efectuado o pagamento ou depósito de uma (ou mais) renda(s) vencida(s) há mais de três meses. Ou seja, o senhorio, A. na acção de despejo, poderá despoletar o incidente se a mora do arrendatário persistir durante mais de três meses; saliente-se que também o nº 3 do art. 1083 esclarece «ser inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda».
No caso que nos ocupa a mora no que concerne ao pagamento da renda vencida em 1 de Março de 2010 – aquela que deu causa ao presente incidente - não chegou a persistir pelo tempo referido na lei (três meses) uma vez que o pagamento da renda de Abril teve lugar em 17 de Março de 2010.
É certo que as RR. não liquidaram então a indemnização pela mora apenas o tendo feito em 25-6-2010, após o requerimento da A. datado de 21-6-2010.
Contudo, o incidente previsto nos nºs 4 e 5 do art. 14 da lei 6/2006, pressupõe a falta de pagamento de rendas e não a de uma indemnização pela mora quando a renda já fora paga – como o vieram a ser, aliás, as vencidas nos meses subsequentes, pagas, respectivamente, em 6-4-2010, 4-5-2010 e 2-6-2010 e referentes aos meses de Maio, Junho e Julho de 2010. Efectivamente, o depósito na conta da A. do valor de € 66,37 correspondente ao montante da renda mensal e naquelas datas apenas poderá querer significar que as RR. quiseram proceder ao pagamento das rendas vencidas no primeiro dia útil dos meses de Abril, Maio e Junho.
Refira-se que, como entendido no acórdão da Relação do Porto de 5-5-1992 ([10]) sendo as rendas depositadas em conta bancária ficaram à ordem dos senhorios, «ou seja, foram por … por eles recebidas», já que «o depósito das rendas na conta bancária significa que elas ficaram na sua inteira disponibilidade e «o acto que possibilita ao locador deixar de receber rendas que lhe são oferecidas sem que o ofertante deixe de se considerar em mora tem de ser um acto positivo de recusa».
Isto sem que se negue o direito do senhorio ao recebimento da indemnização a que alude o nº 1 do art. 1041 do CC e o direito do mesmo a recusar o recebimento das rendas seguintes enquanto não pagas as anteriores bem como a respectiva indemnização (nº 3 do art. 1041) – o que não terá acontecido no caso dos autos.
Neste incidente, ao juiz sempre cumprirá controlar a verificação dos respectivos pressupostos de aplicação, desde logo a falta de cumprimento da obrigação de pagamento das rendas no circunstancialismo previsto na lei.
No caso, e no que concerne ao incidente despoletado pela A. através do seu requerimento de 21-6-2010, o pressuposto da falta de pagamento ou depósito da renda por um período superior três meses após o respectivo vencimento não se verifica; logo, o incidente não tinha fundamento sustentável, não podendo proceder.
Atenta a perspectiva adoptada, indiferente será, neste caso, a posição assumida quanto à possibilidade do arrendatário poder, ou não, usar pela segunda vez da faculdade de purgar a mora, de acordo com a previsão do nº 4 do art. 14.
                                                           *
V - Face ao exposto, acordam os Juízes desta secção em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido e indeferindo a pretensão da A. no sentido de ser decretado «o despejo imediato do locado».
Custas pela A. (quer do incidente quer do agravo).
                                                           *
Lisboa, 29 de Novembro de 2011

Maria José Mouro
Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
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[1] Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil  Anotado», vol. V, pag. 143.
[2] Suscitando-se a questão de saber quais os meios susceptíveis de utilização pelo arrendatário na oposição ao incidente, tem sido entendido que relevante será a prova do pagamento das rendas ou do seu depósito - o que será de articular, afigura-se, com as possibilidades de defesa susceptíveis de utilização na oposição à execução que venha a ser intentada com base no título executivo de que o senhorio passará a dispor.
[3]   Genericamente o NRAU entrou em vigor em 28 de Junho de 2006 – art. 65 da lei 6/2006 e a presente acção foi intentada em 2007. Havendo que ter em conta o disposto no art. 59 daquela lei que manda aplicar o NRAU às relações contratuais constituídas que subsistam quando da sua entrada em vigor, no que concerne ao âmbito processual do incidente, seria de considerar o disposto no nº 2 do art. 142 do CPC.
[4]  Ver Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge em «Arrendamento Urbano», 3ª edição, pags. 51-52 e 212-213.
[5] Tem sido por vezes entendido que este incidente não poderá ser usado quando a mora respeita, apenas, a encargos ou despesas - ver Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge. Obra citada, pag. 54.
[6] Em «Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano», pag. 229.
[7]  O fundamento do incidente seria um incumprimento contratual de manifesta gravidade.
[8]  Obra citada, pag. 230.
[9] Assim, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira, obra citada, pag. 55.
[10]  Publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, tomo 3, pag. 279.